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I O capitalismo é moral

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O capitalismo é moral André Comte-Sponville, filósofo francês Rogerio Waldrigues Galindo - [09/07/2010] - [21h02] Sponville: o capitalismo não é moral nem imoral. O capitalismo é moral? A pergunta foi o ponto central de uma série de conferências que o filósofo francês André Comte-Sponville realizou pela Europa. O resultado se transformou num livro de mesmo nome (Martins Fontes, 223 páginas. Tradução de Eduardo Brandão). A conclusão de Sponville é de que o sistema não é moral nem imoral: o capitalismo tem sua lógica interna, que é de ordem diferente da moral. Enquanto a moral pergunta o que é certo e o que é errado, o capitalismo tenta responder o que é mais eficiente, mais lucrativo. Para ele, resta a nós tornar a sociedade capitalista mais justa. Em entrevista por e-mail, o filósofo explicou seus pontos de vista. A sua palestra sobre capitalismo parece aborrecer um bocado de pessoas. Especialmente empresários parecem escandalizados quando ouvem que o capitalismo “não é moral”. Por que isso acontece? Porque seria mais confortável para eles pensar o contrário! Se o capitalismo fosse moral, os diretores de empresas fariam o trabalho mais belo do mundo: eles criariam virtude ao mesmo tempo que riqueza, eles cuidariam de sua saúde ao mesmo tempo que fariam sua fortuna. Não é de espantar que eles queiram acreditar nisso! É preciso dizer que essas questões me foram propostas sobretudo pelo mundo empresarial, onde os dirigentes, porque isso lhes convém, estão massivamente convencidos de que o capitalismo é moral. Eles também me acharam muito severo com nosso sistema econômico. Na esquerda (falo disso na nova edição de meu livro, com um longo posfácio inédito, que não sei se já foi publicado no Brasil), é antes o inverso: as pessoas estão convencidas de que o capitalismo é imoral, e me reprovam de ser indulgente demais com ele! Isso não prova que eu tenho razão, mas salienta a singularidade de meu ponto de vista. O que mostro em meu livro é que o capitalismo não é moral: ele não funciona para a virtude, a generosidade ou o desinteresse, mas, ao contrário, para o interesse pessoal ou familiar. Digamos a palavra: o capitalismo funciona para o egoísmo. É por isso que ele funciona tão bem (o egoísmo é a principal força motora) e é por isso que ele não (nunca) é suficiente! O egoísmo é formidável para criar a riqueza, mas isso nunca foi suficiente para fazer uma civilização, nem mesmo uma sociedade que seja humanamente aceitável . Então o capitalismo não é moral. Ele é imoral? Tampouco. Ocupar-se de seus interesses e dos de sua família não é um erro! Querer ganhar dinheiro, contanto que se respeite a lei, não é proibido! Não tenhamos medo de dizer: o egoísmo faz parte dos direitos do homem. O capitalismo não é, portanto, nem moral nem imoral: ele é amoral, dando ao prefixo “a” seu sentido puramente privativo (de privação). Não conte com o mercado para ser moral no seu lugar, nem com a moral para criar riqueza! O senhor defende que após a queda da União Soviética o capitalismo não podia mais se justificar como uma oposição a outro sistema e que algumas pessoas tentaram justificá-lo dizendo que o sistema é “bom” e “moral” em si mesmo. O senhor compara isso a um processo religioso. Como está essa situação hoje? A União Soviética era uma contraposição que valorizava o capitalismo. Desde que essa contraposição se dissolveu, o capitalismo tenta encontrar uma justificativa interna: ele seria o triunfo da liberdade, do esforço, do mérito, da criatividade... Uma espécie de paraíso sobre a terra! Os pobres julgarão. A verdade é que o capitalismo é um sistema economicamente eficaz, ecologicamente perigoso e moralmente injusto. Evidentemente, tudo seria mais simples se a moral, a economia e a ecologia andassem sempre na mesma direção. Mas graças a que milagre tal coisa aconteceria? A única maneira de articular essas três dimensões é fazer política! Isso passa pela militância, mas também pelo governo, o Parlamento e o direito. Se a economia fosse moral, não teríamos necessidade de Estado. Não é esse o caso. É por isso que temos necessidade de política. Os bons sentimentos jamais foram suficientes para ganhar uma eleição e ainda menos para governar de forma eficaz! O senhor defende que, se nós não podemos contar com o capitalismo para ser moral, nós precisamos fazer as coisas serem morais nós mesmos. Isso pode ser feito por meio de políticas sociais e de 
redistribuição de renda? Nesse sentido, o modelo social-democrata de países nórdicos como a Suécia é mais “moral” do que o modelo de capitalismo dos EUA? Não estou aqui para distribuir boas e más características, nem para dar certificado de moralidade a uns ou outros! Sou um social-democrata: politicamente sinto-me portanto muito mais próximo do modelo escandinavo do que do modelo americano. Mas cuidado para não confundir o combate político, que opõe partidos e ideologias, com um combate moral, que oporia os bons e os malvados. É verossímel que (o economista liberal Friedrich) Hayek, por exemplo, tivesse respondido que ele prefere o modelo americano. Não vejo em nome de qual superioridade moral ou intelectual eu pretenderia que a virtude está no meu campo mais que no seu! A moral não é nem de direita nem de esquerda. É por isso que a esquerda e a direita necessitam dela. Quanto à política de redistribuição, sou favorável a ela, e a princípio por questões morais. Isso não me autoriza a condenar moralmente aqueles que querem limitá-la ou reduzi-la. Com o tempo, o problema é mais de saber se a redistribuição é moral (poucas pessoas o contestam) do que se ela é eficaz. Fazerem os ricos pagarem para ajudar o pobres? Moralmente, só posso ser a favor. Exceto quando a pressão fiscal faz os ricos fugirem ou quando ela mutila a economia: nesse caso os pobres são os primeiros a sofrer. É onde a política encontra seus direitos e suas proibições. A moral não substitui lucidez, nem competência, nem eficácia. “Ser de esquerda”, dizia Coluche, “não dispensa (a necessidade de) ser inteligente”. De todas as “liberdades” do capitalismo, a liberdade de acumulação é a mais criticada pela esquerda. A crítica é de que, se você pode ter tudo o que conseguir, e só o que conseguir, sempre há quem não consiga nada... Sim!, o capitalismo é um sistema onde se pode enriquecer! É preciso lamentar isso? Não estou certo. Porque enfim, criar a riqueza é a única maneira de fazer recuar a pobreza. O capitalismo é desigual? É verdade. Mas ele é formidavelmente eficaz, e, em um país governado corretamente, mesmo os pobres acabam por tirar proveito disso. Compare o destino da classe operária em 1850, em 1900, em 1950 e hoje. Você verá que, na maior parte dos países, os progressos são consideráveis e, nesta escala de tempo, quase contínuos! Contrariamente àquilo em que frequentemente acreditamos, os ricos não precisam empobrecer os pobres. Ao contrário: quanto mais a pobreza recua, mais o comércio avança, e isso é bom para os ricos! O que me faz pensar no que me dizia um dia um amigo judeu: “Vocês, góis, são bizarros! Vocês creem que o problema é a riqueza. Mas nós, judeus, compreendemos há muito tempo que o problema não é a riqueza, é a pobreza!” No fundo, até que estou de acordo. Alguns, à esquerda, dão a impressão de que não ficarão contentes enquanto ainda haja ricos. Mas todo mundo ficar pobre, seria realmente um progresso? Uma política de esquerda eficaz, do meu ponto de vista, não é aquela que diminui a riqueza, é a que faz recuar a pobreza. Em outro livro (Bom Dia, Angústia!), o senhor escreveu que nós pensamos no mandamento de Jesus de não termos dinheiro apenas como uma metáfora porque preferimos (ou precisamos) pensar deste jeito. Na sua opinião, a riqueza pessoal é “imoral”? A questão moral não trata do dinheiro que ganhamos (ter um salário bastante grande não é um defeito), mas do que fazemos com o dinheiro ganho. E quanto a isso, a resposta dos evangelhos é clara: tudo que não damos está perdido e nos perde. O que é imoral não é a riqueza, é o egoísmo. Isso coloca duas questões. A primeiraconcerne à moral: um rico que não fosse egoísta poderia permanecer rico por muito tempo? A segunda concerne à antropologia: um ser humano que não fosse egoísta seria um ser humano? A crise financeira do Ocidente mudou algo na maneira como vemos o capitalismo? Mudou a maneira como as coisas são conduzidas? Muitos economistas me disseram, nesses últimos meses, que meu livro, publicado em 2004, portanto muito antes da crise, era “premonitório”. Isso sem dúvida é um exagero, mas sugere que minhas análises foram mais confirmadas que desmentidas pela crise. Esta crise de fato nos lembra que o capitalismo é amoral, que ele é incapaz de se auto-regular de uma maneira social e moralmente aceitável, enfim, que a moral é também incapaz de regulá-lo. Conclusão: só o direito e a política podem regular eficientemente o capitalismo, submetendo-o a um certo número de coerções externas, o que volta a impor aos mercados um certo número de limites não comerciais “non marchand”: “serviço ou produto” cujo preço não depende do mercado (ex.: serviço público, doméstico)... talvez a melhor equivalência fosse “sem lucro e não lucrativo”, para “non marchande 
et non marchandables”. Há talvez, no economês, alguma expressão para algo que não possua, digamos, “mais valia”, como o serviço doméstico? e não comerciáveis. É o que os economistas chamam hoje de “o retorno dos Estados”, e é uma boa notícia. Falta encontrar regulações eficazes em uma economia mundializada: isso passa por uma política de escala mundial. É o que se busca no G20, na OMC, no FMI, ou recentemente em Copenhague. Cada um percebe as dificuldades desse processo, que são consideráveis, mas percebe também que não há outra via. O senhor diz que há uma geração tentando substituir ações políticas por ações morais. Isso é ruim? Por quê? Porque isso nos condena à impotência. Não tenho nada contra as ações caritativas ou humanitárias, muito pelo contrário. Mas se você contar com elas para transformar a sociedade, você está se enganando. A moral é uma coisa grande, certamente necessária, mas que não substitui a política! O senhor diz que o erro de Marx foi submeter a economia à moral. E afirma que isso nunca podia ter funcionado. Isso significa que todos os tipos de socialismo estão condenados ao fracasso? O que está fadado ao fracasso, para mim, é toda forma de política que pretendesse impor o reino da virtude, da generosidade ou do desinteresse, enfim, funcionasse para algo que não o egoísmo. Isso seria querer transformar a humanidade, o que é um sonho totalitário e louco. É em nome da virtude que Saint-Just e Robespierre impuseram o Terror! É em nome do “novo homem” que criou-se o goulag! Resta então inventar um socialismo lúcido, que não peça às pessoas para renunciar aos seus interesses, mas simplesmente ser egoístas juntas e inteligentemente (é o que chamo solidariedade) ao invés de estupidamente e uns contra os outros. Isso ainda é socialismo? Pouco importam as palavras. Digamos que é a versão reformista, liberal e sócio-democrata. É o que alguns, hoje, chamam de social-liberalismo, e a expressão não me incomoda nada. O senhor realmente acredita que as empresas estão realmente enganando seus consumidores quando dizem que são empresas “morais” ou empresas “cidadãs”? Por um lado, sim: isso faz parte da comunicação, da publicidade. Mas há também outra coisa: todo mundo prefere defender sua boa consciência. Tanto melhor se isso força nossas empresas a antes prestar contas dos interesses da coletividade. Dito isso, não sonhemos: depende do Estado, e não das empresas, dos cidadãos, e não dos patrões, transformar a sociedade! As empresas estão aí para criar riqueza; o Estado, para criar justiça. É por essa razão que precisamos de ambos! A sua mensagem é que nós não podemos contar com o capitalismo para ser moral. Assim, é possível crer que ações governamentais podem tornar uma nação mais moral? Nenhum país é moral: cabe aos indivíduos sê-lo. Por outro lado, há situações moralmente escandalosas (a opressão, a exclusão, a miséria), que um governo digno deste nome deve combater. Desde a crise falamos muito na França sobre “moralizar o capitalismo”. Tudo depende do que compreendemos dessa ideia. Se pretendemos tornar o capitalismo intrinsicamente moral, de forma que ele não funcione mais com o egoísmo mas com a virtude e o desinteresse, isso é evidentemente um desejo edificante, uma mentira e uma ilusão. Ao contrário, se compreendemos por “moralizar o capitalismo” a ideia de lhe impor um certo número de limites externos, então isso não somente é possível, não somente é necessário, como já o fazemos há bastante tempo. Quando proibimos o trabalho das crianças, quando garantimos as liberdades sindicais, quando criamos o imposto sobre o lucro e a seguridade pública, quando sancionamos os abusos das posições dominantes, etc, moralizamos o capitalismo, e isso se fez, cada vez, através da política e do direito. É uma lição para guardar. A política não está aí para fazer a nossa felicidade (nós, e não o Estado, devemos velar sobre ela), mas para combater a infelicidade. A tarefa é considerável: cada um, como cidadão, deve contribuir! Tradução de Sandra Stropparo

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