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Coleção Monografias Jurídicas nº 2 Org. Antonio Eduardo Ramires Santoro A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro O Projeto de Lei do Senado nº 156/2009 e o Juiz das Garantias RODOLFO SANTOS CORREIA DA SILVA A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 ii RODOLFO SANTOS CORREIA DA SILVA A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: O PLS nº 156/2009 e o Juiz das Garantias Coleção Monografias Jurídicas Organizador da Coleção Antonio Eduardo Ramires Santoro Rio de Janeiro Novembro de 2010 A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 iii S586 Silva, Rodolfo Santos Correia. A constitucionalização do processo penal brasileiro: o PLS nº 156/2009 e o juiz das garantias / Rodolfo Santos Correia da Silva 68 f. Coleção Monografia Jurídicas. Processo Penal. I. Direito Constitucional. CDD 341.430981 A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 iv Dedico este trabalho a Maria de Lourdes, minha mãe, por me ter ensinado, com o exemplo, a não esmorecer ante as intempéries da vida, tendo força, raça e gana sempre; a viver a vida, apesar do pesares, com manha, graça e sonho sempre; a acreditar num mundo melhor, mantendo, sempre, essa estranha mania de ter fé na vida. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 v AGRADECIMENTOS Agradeço, em primeiro lugar, ao Lá De Cima, por tudo que me deu, que me dá e que me ainda dará, sobretudo pela luz que me alumia os caminhos da vida. Em seguida, agradeço àqueles que diretamente colaboraram e sem os quais este trabalho não seria possível: Professora Paula Calainho, pela atenção, paciência e zelo não só comigo, mas para com todos os seus orientandos; e Professor Antonio Santoro, de quem eu tive o duplo privilégio de tê-lo como professor durante a graduação e, fora da sala de aula, de tê-lo com um amigo. Todos os eventuais créditos deste trabalho são destes professores; os equívocos e omissões, descréditos meus. Não poderia faltar, aqui, referência a Samanta Felix, especialista em Processo Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e mestranda em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada (Espanha). Afora o exemplo de profissional da advocacia, tenho a agradecer por sua amizade sincera e honesta, e pela força que me dá para continuar caminhando. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 vi Agradeço também a alguns professores que tiveram vital importância na minha formação jurídica. São eles: Antonio Santoro (de novo), Carlos Eduardo Adriano Japiassú, Telson Pires, Floriano André, Guilherme Bollorini, Pablo Arruda e André Luiz. Por fim, mas não menos importantes, os agradecimentos aos meus amigos de faculdade, que me apoiaram, me incentivaram; que comigo discutiram, debateram; com quem troquei idéias e experiências de vida; com quem amadureci nestes cinco anos de curso. Não esqueço, porém, de meus familiares e amigos pessoais, que tiveram a compreensão necessária para entender que as horas que deixamos de passar juntos foram investidas em uma boa causa. Aos meus irmãos, Rômulo e Rodrigo, um muito obrigado mais do que especial por tudo o que representam em minha vida. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 vii Maria, Maria É um dom, uma certa magia Uma força que nos alerta Uma mulher que merece Viver e amar Como outra qualquer Do planeta Maria, Maria É o som, é a cor, é o suor É a dose mais forte e lenta De uma gente que rí Quando deve chorar E não vive, apenas aguenta Mas é preciso ter força É preciso ter raça É preciso ter gana sempre Quem traz no corpo a marca Maria, Maria Mistura a dor e a alegria Mas é preciso ter manha É preciso ter graça É preciso ter sonho sempre Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania De ter fé na vida.... (Milton Nascimento e Fernando Brant) A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 viii RESUMO SILVA, Rodolfo Santos Correia da. A constitucionalização do processo penal brasileiro: o PLS 156/2009 e o juiz das garantias. 2010. 33f. Monografia (Graduação em Direito) – Centro Universitário da Cidade, Rio de Janeiro, 2010. O presente estudo inicia-se pela conceituação do Estado Democrático de Direito e todos os reflexos decorrentes de sua adoção pela Constituição da República de 1988, dentre eles as funções do Poder Judiciário neste modelo de Estado. Passa-se, então, à análise do processo penal, começando por uma análise histórica, passando pela conceituação e desenvolvimento histórico dos sistemas processuais, pela caracterização do processo penal condizente com um Estado Democrático de Direito e, por fim, perquiri-se o papel do juiz no processo penal. O derradeiro capítulo versa sobre o Projeto de Lei do Senado nº 156/2009 (projeto de Código de Processo Penal), que tramita no Congresso Nacional, tendo sido aprovado em primeiro turno pela Casa Legislativa de origem. Tal projeto tem como mote a constitucionalização do processo penal brasileiro, tornado, com isso, a estrutura do processo penal brasileiro compatível com a Constituição da República de 1988, o que não ocorre com a estrutura atual, vez que baseada no Código de Processo Penal de 1941, cuja essência é inquisitorial. A citada constitucionalização se dá em razão do reposicionamento do juiz no processo penal, exercendo ele, agora, seu verdadeiro papel: o de julgador imparcial e garantidor dos direitos fundamentais do indivíduo. Palavras-Chave: Estado Democrático de Direito. Processo Penal. Projeto de Lei do Senado nº 15/2009. Jus das Garantias. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 ix PREFÁCIO Rodolfo é daqueles estudantes que se diferenciam à primeira manifestação. Aos professores acostumados ao marasmo da mediocridade soa petulante, àqueles que esperam por algo que tenha valido à pena o esforço do magistério eis a recompensa. O convite à pesquisa veio acompanhada da dedicação e com ela esta audaciosa monografia com cara de livro. O tema, além de novo (aliás, mais do que isso, incipiente beirando ao prematuro) já é uma digna contribuição para compreensão do papel do Juiz das Garantias cuja inserção em nosso sistema processual positivo tem tudo para acontecer. E o melhor, de antemão encontra sua fundamentação constitucional e axiológica (neste ponto até mais do que o autor pretendeu fazê-lo) neste trabalho. No mais, à leitura... Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 2010. Antonio Eduardo Ramires Santoro Organizador da Coleção A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da SilvaColeção Monografias Jurídicas nº 2 x SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................12 1 A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 E A ELEIÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO...................................................................................14 1.1 A Eleição do Estado Democrático de Direito.......................................................................................16 1.1.1 Conceito de Estado Democrático de Direito.......................................................................................17 1.1.2 Implicações Jurídicas.......................................................19 1.1.3 A Nova Pirâmide Jurídica na Visão do Supremo Tribunal Federal ......................................................................................21 1.1.4 O Papel do Poder Judiciário.............................................24 2 PROCESSO PENAL.............................................................32 2.1 Breve Escorço Histórico do Processo Penal.......................32 2.2 Sistemas Processuais Penais ..............................................35 2.2.1 Sistema Acusatório..........................................................35 2.2.2 Sistema Inquisitório ........................................................37 2.2.3 Sistema Misto...................................................................39 2.2.4 A Superação do Reducionismo do Conceito de Sistema Misto ........................................................................................41 2.3 Processo Penal Democrático...............................................43 2.4 O Papel do Juiz no Processo Penal.....................................45 3 O PLS Nº 156/2009 E O JUIZ DAS GARANTIAS..............47 3.1 A Compatibilização do Processo Penal com a Constituição da República..............................................................................47 A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 xi 3.2 O Instituto do Juiz das Garantias........................................51 CONCLUSÃO..........................................................................55 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................61 A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 12 INTRODUÇÃO Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 156/2009, fruto do trabalho de uma Comissão de Juristas instituída pela Presidência do Senado Federal do Brasil, composta por Antonio Correia, Antonio Magalhães Gomes Filho, Eugênio Pacceli de Oliveira, Fabiano Augusto Martins Silveira, Felix Valois Coelho Júnior, Hamilton Carvalhido, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Sandro Torres Avelar e Tito Souza do Amaral. Tal projeto visa à reforma global do processo penal brasileiro, substituindo não só o famigerado Código de Processo Penal, que data de 1941, mas todas as leis esparsas processuais penais. O fato de a futura aprovação do citado projeto ocasionar a mudança de toda a sistemática processual penal do ordenamento jurídico pátrio é o que justifica o esforço expendido na presente pesquisa, porquanto O PLS 156/2009, visando à constitucionalização do processo penal brasileiro, traz diversas inovações, dentre elas o instituto do juiz das garantias. A análise do papel reservado justamente ao juiz das garantias, e se tal papel é compatível, ou não, com os ditames da Constituição da República, é o objetivo do presente estudo. Para tanto, foi utilizado o método de pesquisa bibliográfica, tomando-se como manancial teórico o constitucionalismo moderno, que tem como apoio a doutrina jusfilosófica pós-positivista, decorrente da criação dos Estados Constitucionais de Direito emergentes do processo de valorização do ser humano e A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 13 da dignidade da pessoa humana surgido no segundo pós- guerra do século passado. Inicia-se a presente pesquisa com o estudo da opção política realizada pela Constituição da República ao adotar o Estado Democrático de Direito, sendo feitas algumas delineações acerca do momento histórico em que se deu a elaboração da Constituição de 1988; algumas delineações acerca do modelo de Estado adotado, tais como, o conceito de Estado Democrático de Direito, as implicações jurídicas e a posição do Supremo Tribunal Federal sobre a nova pirâmide jurídica, referente à hierarquia das normas; e, no fim da primeira parte, são versadas as funções do Poder Judiciário neste modelo de Estado. Em seguida, é feita uma análise do processo penal. Faz-se uma breve incursão histórica; são traçadas linhas gerais sobre os sistemas processuais penais; afirma-se o tipo de processo penal condizente com um Estado democrático; e são afirmadas as principais funções do juiz no processo penal de matiz democrático. Por derradeiro, é feita uma análise sobre o PLS 156/2009, mais especificamente sobre a motivação de sua elaboração, qual seja, a necessidade de uma reforma global do processo penal brasileiro, visando à compatibilização do Direito Processual Penal com a Constituição da República de 1988, passando-se, logo após, à análise do instituto do juiz das garantias e do papel que lhe é reservado pelo projeto, ressaltando-se ao fim a compatibilidade constitucional do papel reservado pelo legislador, ao elaborar o PLS 156/2009, ao juiz que atuará na fase pré-processual da persecução penal. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 14 1 A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 E A ELEIÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 05 de outubro de 1988. Congresso Nacional. Brasília, Distrito Federal. É promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil, democraticamente elaborada, votada e aprovada por uma Assembléia Nacional Constituinte composta por parlamentares eleitos diretamente pelo povo para a Câmara dos Deputados e para o Senado Federal, cujo presidente foi Ulysses Guimarães. É tempo de redemocratização no país após longos e duradouros 20 anos de regime ditatorial militar. Em 1985, alguns anos antes da promulgação da Constituição da República, havia sido eleito, de forma indireta, o primeiro presidente da República após a regime militar (a emenda Dante de Oliveira, que asseguraria a eleição diretamente pelo povo, não foi aprovada pelo Congresso Nacional, sendo o presidente eleito pelo Colégio Eleitoral), que teve como missão maior realizar a transição do autoritarismo para a democracia, tarefa nada fácil, pesando sobre seus ombros a responsabilidade de evitar rupturas bruscas que pusessem o país em colapso. A transição foi realizada com sucesso. De lá até os dias de hoje passaram-se 22 anos, maior período de estabilidade política por que A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 15 passou o Brasil, tendo sido exercidos 07 mandatos presidenciais por 05 presidentes da República 1 . Sob o ângulo de Lei Fundamental, Constituição é “o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado”,2 isto é, o instrumento político- jurídico de fundação de um Estado. Esse é o conceito clássico. Hodiernamente, todavia, tal conceito foi ampliado pela doutrina. Assim,este é o conceito trazido por Luis Roberto Barroso: 3 “A Constituição, portanto, cria ou reconstrói o Estado, organizando e limitando o poder político, dispondo acerca dos direitos fundamentais, valores e fins públicos e disciplinando o modo de produção e os limites de conteúdo das normas que integrarão a ordem jurídica por ela instituída. Como regra geral, terá a forma de um documento escrito e sistemático, cabendo-lhe o papel, decisivo no mundo moderno, de transportar o fenômeno político para o mundo jurídico, convertendo o poder em Direito.” Além de prever a organização da estrutura de funcionamento do Estado, a Constituição consagra 1 Em 31 de outubro do presente ano foi eleita em segundo turno a candidata Dilma Roussef para o exercício do oitavo mandato presidencial do período pós-ditadura. Será a sexta pessoa – a primeira mulher – que exercerá o comando do Poder Executivo federal no país no referido período. 2 SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivado, 28 ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 89. 3 BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 75. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 16 direitos e garantias fundamentais, sejam eles individuais, coletivos ou difusos, e elege valores que irradiarão por todo o ordenamento jurídico. Dentre os princípios fundamentais, um merece destaque no presente estudo: o modelo de Estado – Estado Democrático de Direito.4 1.1 A Eleição do Estado Democrático de Direito O poder constituinte originário, como contraponto ao autoritarismo que dominou o país durante o período do regime militar (1964-84), elegeu o Estado Democrático de Direito como modelo de Estado. A população foi às ruas contra a Ditadura, porque a prosperidade econômica, que dava guarida ao regime autoritário, já não mais se fazia presente. O povo já não tolerava mais a imposição de um regime de força; a democracia se fazia necessária. Povo às ruas, movimentos democráticos, movimentos estudantis, Diretas Já. A emenda à Constituição que daria ao povo o direito de eleger diretamente o novo presidente da República não foi aprovada. A eleição do chefe do Poder Executivo federal ficou por conta do Colégio Eleitoral, e Tancredo Neves, candidato com apoio popular, foi eleito, mas não assumiu em razão de seu falecimento, fazendo-o em seu lugar o vice-presidente eleito, José Sarney. Sarney tocou o projeto de Tancredo e convocou uma Assembléia Nacional Constituinte para a elaboração de uma nova Constituição. A Assembléia foi instalada e seus trabalhos tiveram fim no referido 05 de outubro de 1988, 4 Artigo 1º da Constituição da República Federativa de 1988. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 17 tendo como resultado final a Constituição Cidadã 5 . A democracia estava de volta; ou, ao menos, deveria estar. No artigo 1º da Constituição da República está prevista a citada escolha pelo Estado Democrático de Direito. Estado Constitucional de Direito, Estado Constitucional Democrático e Estado Constitucional e Democrático de Direito são tratados aqui como sinônimos, não sendo, para o presente estudo, relevante discorrer sobre as sutilezas semânticas que os diferenciam. 6 Tal modelo foi eleito. Mas o que vem a ser um Estado Democrático de Direito? 1.1.1 Conceito de Estado Democrático de Direito O conceito é formado pela palavra Estado, que recebe dupla adjetivação: democrático e de direito. Estado é “a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território ”7 . Estado de Direito é aquele que se assenta “sobre o monopólio estatal de produção jurídica e sobre o princípio da legalidade ”8 . Nele há uma ordem vigente, denominada ordenamento jurídico, ordem esta que subordina não somente as pessoas, mas também o Estado. 5 O termo foi cunhado por Ulysses Guimarães, deputado que presidiu da Assembléia Nacional Constituinte que promulgou a CRFB/88. 6 BARROSO, Luis Roberto. Op. Cit., p. 245. 7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, 22ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 118. 8 BARROSO, Luis Roberto. Op. Cit. p. 244. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 18 Afirma-se sua caracterização “pela simples existência de algum tipo de ordem legal cujos preceitos materiais e procedimentais sejam observados tanto pelos órgãos de poder quanto pelos particulares ” . 9 O Estado Democrático de Direito é uma evolução do Estado de Direito. Desenvolveu-se a partir do segundo pós-guerra e caracteriza-se pela “subordinação da legalidade a uma Constituição rígida ”10 , daí a adoção por parte da doutrina da nomenclatura Estado Constitucional de Direito. 11 Além da exigência do cumprimento formal do processo legislativo, no Estado Democrático de Direito há a necessidade de efetiva compatibilidade material das normas infraconstitucionais com as normas constitucionais, afora a determinação de deveres de atuação por parte do Poder Executivo e do Poder Legislativo. 12 Com isso, ampliou-se a limitação ao poder do Estado, que antes dizia respeito somente às liberdades públicas, o que significava dizer que havia apenas a previsão de deveres negativos – obrigações de não fazer – concernentes ao poder Público. Agora, ao Estado é dado o dever de promover políticas públicas que visem ao cumprimento dos direitos e garantias fundamentais (deveres positivos, obrigações de fazer). Tal fenômeno, todavia, não restou restrito somente aos Poderes Executivo e Legislativo, tendo se 9 Ibidem, p. 41. 10 Ibidem, p. 244. 11 GOMES, Luiz Flávio. Estado constitucional de direito e a nova pirâmide jurídica. São Paulo: Premier Máxima, 2008. 12 BARROSO, Luis Roberto. Op. Cit. p. 245. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 19 espraiado também para o Poder Judiciário, o que implicou efeitos na forma de interpretar e aplicar o ordenamento jurídico. 1.1.2 Implicações Jurídicas A opção política pelo Estado Democrático de Direito deságua inexoravelmente no processo de Constitucionalização do Direito, é dizer, “a passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico”.13 A Constituição, agora, é o “filtro através do qual se deve ler todo o direito infraconstitucional”.14 Tal fenômeno pode ser observado sob diversos ângulos, importando para o presente estudo dois deles: a normatividade das normas constitucionais e a relevância das opções realizadas pela Constituição na interpretação das normas infraconstitucionais. 15 . O primeiro de há muito já vem sendo defendido, 16 não obstante seu reconhecimento no Brasil só tenha-se dado com a promulgação da Carta da República de 1988. Desde Kelsen se reconhece a supremacia da Constituição dentro do ordenamento 13 Ibidem, p. 86. 14 Ibidem, p. 87. 15 Ibidem,p. 352. 16 Já em 1968, José Afonso da Silva escreveu a monografia Aplicabilidade das normas constitucionais, em que defendia a aplicabilidade direta das normas constitucionais, e não apenas sua aplicação como normas orientadoras ao legislador. Em 1987, Luis Roberto Barroso defendeu sua tese de livre- docência A força normativa da Constituição, texto cujo título é auto-explicativo. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 20 jurídico, porém, nos países de tradição jurídica romano- germânica (como o Brasil), o reconhecimento da normatividade das normas constitucionais se deu apenas com a superação do liberal Estado de Direito 17 . Exemplo irretorquível desta normatividade é a previsão, dentre os direitos e garantias fundamentais, do Mandado de Injunção – remédio constitucional que tem como objetivo a garantia da aplicação da norma constitucional cuja eficácia esteja condicionada à regulamentação pelo legislador infraconstitucional, e que não está produzindo seus efeitos em razão da inércia do Poder Legislativo. Agora, na nova ordem constitucional, as normas constitucionais são verdadeiras normas jurídicas, dirigidas aos juízes, inclusive, e não mais meras diretivas políticas direcionadas apenas aos legisladores. 18 Sobre o segundo ponto, tem clareza solar a explanação de Luis Roberto Barroso: 19 “A idéia de constitucionalização do Direito aqui explorada está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico. Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional.” 17 BARROSO, Luis Roberto. Op. Cit. p. 244. 18 Ibidem, p. 86. 19 Ibidem, Op. Cit. p. 353. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 21 A interpretação do ordenamento jurídico no Estado Democrático de Direito deve ser feita sob a forma de cotejo das normas infraconstitucionais com a Constituição, tanto do aspecto formal, quanto do aspecto material, sendo tarefa do intérprete realizar a aplicação do direito infraconstitucional a fim de atender aos valores e aos fins eleitos pelo poder constituinte originário. Ou seja: é necessário verificar a adequação constitucional da legislação, aplicando-a sempre de forma a atender aos fins colimados pelo constituinte. 20 Como afirmado, desde Kelsen se reconhece a supremacia da Constituição na pirâmide jurídica. Tal pirâmide, no entanto, sofreu significativa alteração com a emersão do Estado Democrático de Direito, fruto da constitucionalização e internacionalização dos direitos humanos. O Supremo Tribunal Federal delineou uma nova hierarquia entre as normas jurídicas. 1.1.3 A Nova Pirâmide Jurídica na Visão do Supremo Tribunal Federal Há muito tempo se discute a questão da hierarquia das normas jurídicas. No que toca ao direito interno, discussões de repercussão não há. No entanto, no que pertine ao direito internacional, o assunto não é pacífico na doutrina. 20 GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura: no estado constitucional e democrático de direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 122. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 22 Para alguns, há dois ordenamentos jurídicos: o interno e o internacional. Chamam-se dualistas os que assim pensam. 21 Por outro lado, existe o grupo que, ao revés, entende haver apenas um ordenamento jurídico, que é composto tanto pelas normas internas quanto pelas normas internacionais: são denominados monistas. 22 Dentro do monismo há uma subdivisão, que leva em consideração o posicionamento acerca da prevalência das normas jurídicas. Alguns defendem a prevalência do direito internacional sobre o interno; outros o reverso; e outros a aplicação do princípio geral do direito segundo o qual lei posterior derroga lei anterior. 23 Na doutrina pátria, há ainda aqueles que invocam o parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição da República para defender que os Tratados que versam sobre direitos humanos são incorporados automaticamente ao ordenamento pátrio com o status constitucional. 24 O poder constituinte reformador, acerca dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, em parte, pôs fim à discussão, incorporando ao artigo 5º da Carta Magna o parágrafo 3º, que confere status de emenda constitucional aos referidos tratados, desde que sua incorporação no ordenamento jurídico pátrio se dê em 21 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O tribunal penal internacional: a internacionalização do direito penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004, p. 2. 22 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Op. Cit. p. 2. 23 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Op. Cit. p. 3. 24 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 111 apud JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Op. Cit., p. 4. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 23 processo legislativo idêntico ao necessário para a aprovação daquele tipo de norma. Com relação aos tratados que versam sobre direitos humanos e já estão incorporados ao ordenamento por meio da aprovação de decreto-legislativo e que não seguiram o trâmite do citado parágrafo 3º, o Supremo Tribunal Federal fincou bases e adotou um posicionamento com relação ao tema no julgamento do recurso extraordinário 466.343, oriundo do estado de São Paulo. Na ocasião, entendeu o Pretório Excelso que na pirâmide jurídica nacional os Tratados Internacionais de Direitos Humanos estariam acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição; teriam eles, portanto, status supralegal, mas infraconstitucional. No julgamento do citado recurso extraordinário, o relator, Ministro Cezar Peluso, em seu voto não se pronunciou sobre o tema, mas, em aditamento, admitiu considerar os Tratados internacionais sobre direitos humanos supralegais, não se posicionando, porém, se teriam status constitucional ou infraconstitucional. Em seguida, o Ministro Gilmar Mendes proferiu voto defendendo a supralegalidade infraconstitucional dos referidos documentos internacionais, no que foi acompanhado pelos ministros Carmem Lúcia, Ricardo Lewandowski, Carlos Brito, Marco Aurélio e Menezes Direito. O Ministro Joaquim Barbosa inclinou-se para a adoção da norma (seja ela internacional ou interna) mais favorável ao indivíduo. O decano, Ministro Celso de Mello, proferiu seu voto no sentido de conferir status constitucional aos Tratados em matéria de direitos humanos. O Ministro Eros Grau estava ausente e a A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 24 Ministra Ellen Gracie, não votou no exercício da presidência. Portanto, com essa decisão, verifica-se que o Poder Judiciário ganha especial relevo no Estado Democrático de Direito, tendo seu papelampliado em decorrência da superação do marco juspositivista, que colocava o juiz na posição burocrática de ser apenas a boca da lei. 25 1.1.4 O Papel do Poder Judiciário Em um Estado Democrático de Direito, os poderes são independentes e harmônicos entre si. 26 Como prelecionava Montesquieu, os poderes compõem um sistema de freios e contrapesos, exercendo um a fiscalização do outro, o que dá o equilíbrio necessário ao seu exercício, evitando-se assim que haja sobreposição de um sobre o outro. Ao Poder Executivo é destinada a função precípua de administrar, de governar, executando as leis e promovendo as políticas públicas. Ao Legislativo foi reservada a função típica de legislar, de elaborar as leis que regularão as relações entre os indivíduos. Por fim, ao Poder Judiciário cabe a função jurisdicional, cuja raiz etimológica radica na expressão latina jurisdictio, que significa dizer o Direito. O Poder Judiciário tem a função precípua de solucionar litígios, dizendo o Direito e aplicando-o ao caso concreto. Age o 25 GOMES, Luiz Flávio. Op. Cit. p. 120. 26 Artigo 2º da CRFB/88. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 25 Judiciário somente por provocação, salvo exceções, uma vez que é este poder o responsável legítimo pela solução de litígios em um Estado de Direito, sendo vedado, em regra, o exercício arbitrário das próprias razões, isto é, fazer justiça pelas próprias mãos. 27 O Poder Judiciário, porém, em um Estado Democrático de Direito, não se presta somente a este desiderato, havendo outras funções exercidas pela Magistratura 28 . Segundo as lições de Luiz Flávio Gomes, à Magistratura são reservadas as seguintes funções: a) solucionar litígios; b) controle dos demais poderes; c) autogoverno; d) tutela dos direitos e garantias fundamentais; e e) garante do Estado Constitucional e Democrático de Direito. Para o presente estudo, interessa mais profundamente a segunda, a quarta e a quinta funções, haja vista que a primeira é de unânime reconhecimento e a terceira, diz respeito a uma questão eminentemente administrativa de autogestão. O controle dos demais poderes não é novidade. Como dito, Montesquieu já o conclamava nos idos do século XVIII. Todavia, questão curial para uma perfeita compreensão do tema diz respeito à legitimidade democrática do Poder Judiciário, pois, sempre que uma 27 Vide artigo 345 do Código Penal, que tem a seguinte redação: Art. 345. Fazer justiça pelas próprias mãos para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena – detenção, de 15 dias a 1 mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. 28 Neste trabalho é empregado o termo Magistratura (com inicial maiúscula) como sinônimo de Poder Judiciário. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 26 questão de repercussão nacional é levada ao crivo do Poder Judiciário e existe a possibilidade de a decisão proferida ser contrária à opinião pública majoritária, é feita a seguinte indagação: é legítimo o julgamento por 11 juízes 29 , não eleitos por meio do escrutínio popular, sobre a validade ou não de uma lei aprovada por 513 deputados e 81 senadores, parlamentares estes eleitos diretamente pelo povo de forma democrática por meio do voto? A resposta é afirmativa. Não poderia ser diferente. Há uma confusão, ou mesmo um desconhecimento, muito comum sobre quais as funções da Magistratura em um Estado Democrático de Direito e sobre o fundamento da legitimidade democrática de sua atuação. Quanto às funções, continuaremos adiante. No que pertine à legitimidade democrática, cabe um corte epistemológico, sendo esclarecedora a lição de Luiz Flávio Gomes: 30 29 Este número se refere à composição do Pleno do Supremo Tribunal Federal, que no Brasil é a instância máxima a que pode chegar um processo judicial, seja por sua competência originária, nos casos elencados na Constituição; seja pela via difusa do controle de constitucionalidade, por meio do recurso extraordinário; seja pela via concentrada do citado controle, por meio das ações que buscam a validação ou invalidação de normas infraconstitucionais. 30 GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura: no estado constitucional e democrático de direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 120. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 27 “O Poder Constituinte (soberano) concebeu duas formas de legitimação democrática: a representativa (típica doa altos cargos políticos) e a legal (inerente à função jurisdicional). A legitimação legal, racional ou formal dos juízes, portanto, em nada se confunde com a legitimação democrática representativa. Aquela reside na vinculação do juiz à lei e à Constituição, que são elaboradas pelo Poder Político (...) Os juízes, portanto, de acordo com o sistema adotado pelos Constituintes, não só não serão eleitos diretamente pelo povo, senão que estão proibidos de exercer qualquer atividade partidária, o que significa que não podem sequer desejar sua eleição direta.” A legitimidade democrática da Magistratura, portanto, não reside em sua eleição diretamente pelo povo, pois, para o ingresso nas carreiras da Magistratura, o poder constituinte originário previu o processo do concurso público. 31 Se a Assembléia Nacional Constituinte – expressão máxima da vontade do povo –, ao elaborar a Constituição, previu determinada forma de investidura para se tornar membro do Poder Judiciário, o respeito a esta forma é inafastável. Entretanto, além da forma de ingresso, necessária seja desempenhada a função de controle dos demais poderes pela Magistratura obedecendo-se à Constituição e às leis, desde que estas sejam compatíveis com aquela, o que lhes confere 31 Artigo 93, I da CRFB/88. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 28 validade. 32 A função jurisdicional é exercida sempre vinculada e em obediência à Constituição e às leis válidas, sendo vedado o uso alternativo do Direito, “no sentido de que o juiz está desvinculado da lei”.33 Outra função da Magistratura relevante para o presente estudo é a de tutela dos direitos e garantias fundamentais. É o Poder Judiciário o responsável direto pela tutela dos direitos e garantias fundamentais dos homens. O respeito ao ordenamento jurídico é característica fundamental do Estado Democrático de Direito, e “só quem pode assegurá-lo em sua plenitude é o Poder Judiciário, por meio da tutela judicial efetiva”.34 A expressão direitos fundamentais é sinônima, aqui, dos termos direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do homem. 35 No dizer de José Afonso da Silva, 36 a expressão designa “...no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas aspessoas. No qualificativo fundamentais, acha-se a indicação de que se 32 GOMES, Luiz Flávio. Estado constitucional de direito e a nova pirâmide jurídica. São Paulo: Premier Máxima, 2008. p. 75. 33 GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura: no estado constitucional e democrático de direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 123. 34 Ibidem, p. 96 35 SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 179. 36 Ibidem, p. 12. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 29 trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados.” À Magistratura, então, é dada a missão de proteger e fazer serem respeitados os direitos e garantias fundamentais, tão caras ao homem e cujo respeito é traço fundamental para a caracterização do Estado Democrático de Direito. Luigi Ferrajoli, 37 com maestria, sintetiza afirmando que a legitimação substancial “consiste na função e capacidade da jurisdição de tutelar os direitos fundamentais dos cidadãos”. E continua asseverando que “na sujeição do juiz à Constituição e no seu papel de garante dos direitos fundamentais está o principal fundamento de legitimação democrática da jurisdição”.38 Por derradeiro, merece destaque a função de garante do Estado Constitucional e Democrático de Direito. Como dito acima, Estado Constitucional e Democrático de Direito é, para o presente trabalho, considerado sinônimo de Estado Democrático de Direito. Foi dito também anteriormente que o Estado Democrático de Direito é uma evolução do Estado de Direito. 37 FERRAJOLI, Luigi. Justitia pena y democracia. In: Jueces para La Democracia, nº 4, Madrid, p.5 apud GOMES, Luiz Flávio. Op. Cit. p. 120. 38 Loc. Cit.. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 30 O Estado de Direito liberal, que se desenvolveu no século XIX, culminou nas atrocidades perpetradas pelo Estado Nazista de Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45). O Estado Alemão fez tudo o que fez sob a égide da lei. A doutrina filosófica juspositivista, que dominava o cenário jurídico à época, deu guarida a tudo isso, seguindo a racionalidade do seguinte axioma: “se o legislador é justo, portanto, só pode produzir normas justas ” . 39 Para superar este marco filosófico, surge o pós-positivismo, “confluência das duas grandes correntes de pensamento que oferecem paradigmas opostos para o Direito: o jusnaturalismo e o positivismo”.40 Os direitos naturais agora estão, se não em sua totalidade, em sua maioria, positivados nas Constituições elaboradas do fim da Segunda Guerra até os dias atuais. A dualidade direito natural versus direito positivo já não mais subsiste, uma vez que o direito natural, agora, como dito, está positivado. O problema foi transferido do campo da normatividade para o campo da efetividade. Esta é a questão a ser resolvida dentro de um Estado Democrático de Direito, já que seu marco filosófico o levou a tal situação. O Poder Judiciário, neste contexto, exerce o papel de garantidor da eficácia dos direitos fundamentais; do controle da constitucionalidade das leis; da aferição da validade das normas infraconstitucionais (compatibilidade formal e substancial com a Constituição). Estado de Direito em que não há esse tipo 39 GOMES, Luiz Flávio. Op. Cit. p. 113. 40 BARROSO, Luis Roberto. Op. Cit. p. 247. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 31 de garantia, não pode ser chamado qualificado como democrático. Outrossim, a Magistratura exerce seu mister de solucionar os litígios que lhe são levados com independência e imparcialidade, tutelando sempre os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, mormente para conter os abusos do Poder Público no exercício de seu papel no sistema de freios e contrapesos, característico da tripartição dos poderes, garantindo, assim, a permanência do Estado Democrático de Direito. Além disso, em função eminentemente administrativa de autogestão, exerce ainda o Poder Judiciário seu autogoverno, o que lhe garante a independência da qual necessita para ser imparcial. 41 A contenção dos abusos do exercício do Poder Público deve ser realizada em todas as esferas. Uma, todavia, merece atenção especial, porquanto se trata da intervenção estatal legítima mais gravosa do Estado na esfera do indivíduo: o processo penal – meio pelo qual se aplica o Direito Penal. 41 GOMES, Luiz Flávio. Op. Cit. p. 80-94. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 32 2. PROCESSO PENAL 2.1 Breve Escorço Histórico do Processo Penal A história do Direito Penal é dividida, de forma bastante singela, em três generalizadas etapas: vingança divina, vingança privada e vingança pública. 42 Para fins de relato histórico do processo penal, será levada em consideração somente a terceira etapa, vingança pública, vez que anteriormente a isso não havia verdadeiramente um direito penal, senão um sistema de retribuições não institucionalizado. E, tendo o processo penal a finalidade de “verificar a existência ou não da violação do próprio direito estatal de proibir e a incidência ou não do próprio direito estatal de punir”,43 será tomada como marco referencial inicial a fase em que o jus puniendi é avocado pelo Estado. A Grécia Antiga já conhecia o processo penal do tipo acusatório. No berço da democracia, o processo penal, segundo as lições de Tourinho Filho, 44 tinha “participação direta dos cidadãos no exercício da acusação e da jurisdição”, e era caracterizado pela “oralidade e publicidade dos debates”. 42 BITENCOURT, Cezar Robeto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 28. 43 SANTORO, Antonio Eduardo Ramires. A legitimação do direito penal: origem político-axiológica do sistema penal. Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de pós- graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2005, p.101. 44 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal 1. 25ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 77. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 33 Em Roma, houve variação dos sistemas. Na Alta República, o processo penal, assim como na Grécia, era acusatório, cedendo espaço para o que se tornaria o modelo inquisitório conforme se passava do período republicano para o período do Império. 45 Com o avançar dos tempos, ganhou força no mundo ocidental a Igreja Católica, força tamanha que em determinado momento Estado, moral e religião se tornam conceitos entrelaçados de forma inseparáveis. Com isso, o Estado ganhou contornosmísticos, transcendentais, e o fundamento de o poder estar nas mãos de um monarca absolutista era a vontade divina. Até o século XII, ainda não havia no seio da jurisdição secular processo sem acusação. Do século XIII em diante, todavia, tendo por referência simbólica o IV Concílio de Latrão, a Igreja, sob o comando o Papa Inocêncio III, altera profundamente o processo e, com o mote de se buscar a verdade real, é abolida a figura do acusador. O processo a partir deste momento é iniciado ex officio pelo juiz inquisidor. 46 Neste momento, em busca da propalada verdade real dos fatos, é admitida largamente a tortura, visando à confissão. Nas sábias palavras do referido Tourinho Filho, 47 “baseado no interesse superior de defender a fé, fomentavam-se a indignidade e a covardia”. Este modelo perpetuou-se pela Europa por toda a Idade Média e Idade Moderna. A ruptura, no entanto, 45 Ibidem, p. 79. 46 Ibidem, p. 82. 47 Ibidem, p.83. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 34 teve início com o Iluminismo, no final do século XVIII. Pensadores, dentre eles o expoente Cesare Beccaria, começaram a se insurgir contra o modelo de Estado da época. Tal movimento culminou na Revolução Francesa – revolução burguesa que colocou, literalmente, a baixo o Antigo Regime. 48 Após a revolução, ascendeu ao poder Napoleão Bonaparte, inicialmente como primeiro-cônsul e, posteriormente, em 1804, como Imperador. Para servir a este Império foi criado o sistema processual penal misto, composto por elementos caracterizadores do sistema acusatório e inquisitório. Este sistema foi perpetuado por todo o mundo (cada Estado moldando-o com suas nuanças e idiossincrasias), sendo hoje o mais encontrado na parte ocidental do globo. Nele a primeira fase, pré- processual, é inquisitória, não havendo direito a contraditório ou a ampla defesa; e a segunda fase, processual, acusatória, havendo, aqui, o contraditório e a ampla defesa. Para uma compreensão sobre o processo penal, necessária uma passagem pelos elementos históricos e conceituais de cada sistema. 48 A referência literal se faz pelo fato de o símbolo da citada revolução ser a Queda da Bastilha, prisão que abrigou diversos personagens que se opunham ao absolutismo do rei Luis XVI da França. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 35 2.2 Sistemas Processuais No dizer de Tourinho Filho, 49 “levando-se em conta os princípios que o informam, o Processo Penal pode ser acusatório, inquisitivo e misto”. Vejam-se a característica de cada um destes tipos. 2.2.1 Sistema Acusatório O sistema acusatório tem os seguintes traços marcantes: 50 “a) há separação entre as funções de acusar, defender e julgar, com três personagens distintos: o autor, o réu e o juiz (ne procedat iudex ex officio); b) o processo é regido pelo princípio da publicidade dos atos processuais, admitindo-se, como exceção, o sigilo na prática de determinados atos; c) os princípios do contraditório e da ampla defesa informam todo o processo. O réu é sujeito de direitos, gozando de todas as garantias constitucionais que lhe são outorgadas; d) o sistema de provas adotado é do livre convencimento, ou seja, a sentença deve ser motivada com base nas provas carreadas para os autos. O juiz está livre na sua apreciação, porém não pode se afastar do que consta no processo; 49 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit. p. 88. 50 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 14ª ed. ver. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 48-49. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 36 e) imparcialidade do órgão julgador, pois o juiz está distante do conflito de interesse de alta relevância social instaurado entre as partes, mantendo seu equilíbrio, porém dirigindo o processo adotando as providências necessárias à instrução do feito, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias;” Desta forma, no sistema acusatório o processo penal é um processo de partes, caracterizado “pela atuação de partes contrapostas – acusador e acusado –, que duelam em igualdade de posições e direitos, apresentando-se um juiz sobre posto a ambas”.51 Sua adoção se dá em Estados de cariz democrático, por sua estrutura dialética, sendo o sistema “mais aplicado nos países que privilegiam a liberdade do cidadão”. 52 A origem do sistema acusatório remonta à Grécia Antiga, onde o processo penal tinha participação direta do povo. No direito romano também se praticou um processo penal inspirado em ditames democráticos, mais precisamente no período final da Alta República. Com a superação do período da República pelo Império, os traços democráticos cederam espaço, em Roma, para o que mais tarde se desenharia como sistema inquisitório. 53 51 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: incongruências dno sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2005, p. 41. 52 Ibidem, p. 45 53 LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.56-58. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 37 Foi no século XIII, entretanto, que o sistema acusatório surge como tal na Inglaterra, comandada pelo Rei Henrique II, que, com o intuito de desonerar a jurisdição real da imensa quantidade de processos que a abarrotava, criou o sistema Trial by Jury, modelo em que, nos casos de admissão da acusação, um Jury formado por 12 cidadãos julgava as questões de direito material, enquanto o representante real cuidava do respeito às questões processuais, às regras do jogo. 54 Diferentemente do que ocorreu na Inglaterra – país adotante do sistema jurídico do Common Law – nos países da Europa Continental – de tradição jurídica do Civil Law –, o sistema processual penal desenvolvido no mesmo período foi inquisitório, em razão da força política exercida pela Igreja Católica. 2.2.2 Sistema Inquisitório Como características do sistema inquisitório, Paulo Rangel assim aponta: 55 “a) As três funções (acusar, defender e julgar) concentram-se nas mãos de uma só pessoa, iniciando o juiz, ex officio, a acusação, quebrando, assim, sua imparcialidade; 54 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: O novo processo penal à luz da Constituição: análise crítica do Projeto de Lei nº 156/2009, do Senado Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 5. 55 RANGEL, Paulo. Op. Cit., p. 47. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 38 b) O processo é regido pelo sigilo, de forma secreta, longe dos olhos do povo;c) Não há o contraditório nem a ampla defesa, pois o acusado é mero objeto do processo e não sujeito de direitos, não se lhe conferindo nenhuma garantia; d) O sistema de provas é o da prova tarifada ou prova legal e, conseqüentemente, a confissão é a rainha das provas.” O processo penal no sistema inquisitório, portanto, ao reverso do sistema acusatório, não é um processo de partes, não tem estrutura dialética, havendo a concentração das funções de acusar, defender e julgar em um só sujeito, o juiz-inquisidor. 56 Sua adoção se dá em países de cariz autoritário, tendo sido o sistema adotado por excelência durante os regimes absolutistas medievais e modernos. 57 O sistema inquisitório começou a se delinear já na fase do Império na Roma Antiga. Seu surgimento como sistema, todavia, se deu nos regimes monárquicos medievais como superação do sistema acusatório privado. 58 Assim como o sistema acusatório, o inquisitório somente aparece como sistema no século XIII, mais especificamente em 1215 com o IV Concílio de Latrão, no seio da Igreja Católica. Tal aparecimento se deu em razão da perda de prestígio e poder da Igreja 56 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. Op. Cit. p. 46. 57 O termo moderno, aqui, refere-se, especificamente, ao período compreendido entre o Descobrimento das Américas (1492) e a Revolução Francesa (1789) – Idade Moderna. 58 RANGEL, Paulo. Op. Cit. p. 46. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 39 Católica na sociedade, sociedade esta que passava por uma transformação na transição dos feudos para os burgos. 59 Após vigorar por quase toda a Europa Continental durante as Idades Média e Moderna, tal sistema caiu junto com os regimes absolutistas da época, surgindo na França, comandada por Napoleão Bonaparte, um novo modelo. 2.2.3 Sistema Misto O chamado sistema misto surgiu na França com o Code d’Instruction Criminalle de 1808. Tal modelo foi pensado por Jean-Jacques-Régis de Cambacérès para servir a Napoleão Bonaparte, Imperador da França e, como tal, um tirano. 60 O sistema misto é composto por elementos caracterizadores de ambos os sistemas supramencionados, quais sejam, acusatório e inquisitório. O sistema misto, concebido na França e cuja espinha dorsal serve a boa parte dos sistemas processuais dos países ocidentais, tem a primeira fase inquisitória e a segunda, acusatória. Na primeira, que no Brasil corresponde ao Inquérito Policial, não há direito ao contraditório nem à ampla defesa, sendo esta uma fase administrativa, cujo objetivo é apurar e colher indícios de autoria e materialidade de determinado fato delituoso com o escopo de dar subsídios para o exercício da ação 59 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. Cit. p. 2. 60 LOPES JR., Aury. Op. Cit. p. 67. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 40 penal por seu titular (no Brasil, em regra, o Ministério Público). Na segunda fase, após provocação da parte acusadora, é iniciada a etapa judicial da persecução penal, dirigida por um juiz e na qual, diferentemente da primeira, se aplicam os direitos ao contraditório e à ampla defesa, sendo o processo um jogo equilibrado entre as partes. Os sistemas puros, como concebidos, não existem mais na atualidade. 61 Hodiernamente, o que há são sistemas possuidores de elementos característicos do sistema acusatório e do sistema inquisitório, sendo comum a afirmação de que a conceituação de um sistema se dá em razão da existência ou não da separação das funções de acusar, julgar e defender. Acusatório é o sistema em há tal separação; e inquisitório, o sistema em que tal separação não há. Este modo simplório de caracterizar o sistema processual foi um engodo criado pelo mencionado Napoleão, Imperador da França, como arremedo de processo penal seguidor dos ditames democráticos, escamoteando-se, assim, a verdadeira essência inquisitória daquele sistema processual com o reducionismo do conceito de sistema misto. 61 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. Cit, p. 7. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 41 2.2.4 A Superação do Reducionismo do Conceito de Sistema Misto Hoje em dia não há mais sistemas puros, ficando estes modelos, assim como concebidos, na história. Hodiernamente, “todos os sistemas processuais penais conhecidos mundo afora são mistos”,62 vez que, reafirmando o que foi dito anteriormente, os sistemas processuais, assim como concebidos, ficaram na história, não existindo mais sistemas puros. 63 Jacinto Coutinho, 64 tomando o conceito Kantiano de sistema como conjunto de elementos colocados em relação sob uma idéia única, afirma que a identificação de um sistema se dá pelo princípio unificador (idéia única) que faz a ligação entre os seus elementos. E, sendo idéia única, o princípio unificador, como tal, não pode ser misto. Assentada esta conceituação de sistema, para uma análise dos sistemas processuais penais, necessária a identificação do princípio unificador que os caracteriza, e não apenas a análise da separação inicial das funções de acusar, defender e julgar (actum trium personarum). Ao sistema acusatório corresponde o princípio dispositivo; e ao sistema inquisitório, o princípio inquisitivo. 65 O processo é o meio pelo qual se exerce a jurisdição (jurisdictio – dizer o Direito). Para dizer o Direito, é necessário o conhecimento dos fatos pretéritos 62 Ibidem, p. 1. 63 Ibidem, p. 7. 64 Ibidem, p. 7-8. 65 Loc. Cit. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 42 – no caso do processo penal, o fato criminoso objeto de investigação e todas as suas circunstâncias –, o que se dá por meio da prova. É justamente na gestão da prova, portanto, que reside o núcleo fundante do sistema processual penal, caracterizando-se o sistema pela a opção política de ser dar “a função de aportar as provas ao processo seja ao juiz (como no Sistema Inquisitório), seja às partes, como no Sistema Acusatório”.66 Todos os sistemas atualmente são mistos, no sentido de que possuem invariavelmente elementos (secundários) tanto do sistema acusatório quanto do sistema inquisitório. A caracterização de um sistema como tal, entretanto, não se dá pela presença de elementos secundários, senão por seu princípio unificador, que será Dispositivo (sistema acusatório) ou Inquisitivo (sistema inquisitório), não cabendo mais o reducionismo do conceito de sistema misto ou o engodo de que, presente a separação das funções de acusar, defender e julgar, caracterizado estaria o sistema como acusatório. No seio da Igreja Católica, antes do IV Concílio de Latrão, existia a figura do acusador, que não se confundia com o juiz-inquisidor. No entanto, apesar de sua existência, após realizada a acusação, o processo ficava a cargo do juiz-inquisidor, que ia à cata de provas, provas estas que depois serviriam de base para o seu convencimento.Portanto, não é, única e exclusivamente (não obstante se reconheça sua vital importância para a 66 Loc. Cit. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 43 existência de um sistema acusatório), a separação das funções de acusar, julgar e defender que caracteriza um sistema como acusatório; que torna o processo penal conforme aos ditames democráticos. 2.3 Processo Penal Democrático O processo penal é reflexo da opção política de um Estado. O projeto democrático implica necessariamente na valorização do homem e do valor da dignidade da pessoa humana, valores que são pressupostos básicos do sistema acusatório, tendo democracia e sistema acusatório a mesma base epistemológica. Afora isso, é de bom alvitre rememorar que “a transição do sistema inquisitório para o acusatório é, antes de tudo, uma transição de um sistema político autoritário para o modelo democrático”. 67 A Constituição da República de 1988, de maneira coerente com sua opção política por um modelo de Estado Democrático de Direito, realizou a opção pelo sistema acusatório. Apesar de “não prever nossa Constituição – expressamente – a garantia de um processo penal orientado pelo sistema acusatório”,68 tal opção é resultante de uma interpretação sistemática da Carta Política, vez que a determinação do Ministério Público como titular exclusivo da ação penal pública (art. 129, I), do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV), do devido processo legal (art. 5º, LIV), da presunção de 67 LOPES JR., Aury. Op. Cit. p. 176. 68 Loc. Cit. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 44 inocência (art. 5º, LVII) e da exigência de publicidade e motivação das decisões judiciais (ar. 93, IX) são características que, apesar de secundárias (pois fundante é a gestão da prova), indicam a opção pelo sistema acusatório. Mais que isso: os citados elementos secundários são inconciliáveis com o sistema inquisitório. No sistema acusatório a imparcialidade é o “princípio supremo do processo”,69 tendo todos os direitos e garantias existência em prol da manutenção deste princípio, com a finalidade de ser realizado um julgamento justo. Assim como o Direito Penal democrático, o processo penal com mesmo matiz tem a função de proteção do indivíduo ante as arbitrariedades do Estado. Como dito, a adoção do sistema acusatório, mormente nos países de tradição jurídica romano- germânica, se deu em razão da superação de um Estado autoritário por um democrático, alterando-se, assim, o seu fundamento do eficientismo antigarantista para a instrumentalidade constitucional. 70 Desta feita, tem-se que o processo penal de matiz democrático tem como fundamento a instrumentalidade constitucional, o que significa dizer que é o instrumento de realização do Direito Penal (leia-se: do exercício do direito de penar – aplicação da pena), sob o enfoque do Princípio da Necessidade, mas também, e tão importante quanto, é o instrumento de garantia da observância máxima dos direitos fundamentais insculpidos na Constituição, visando assim não só à observância das 69 LOPES JR. Aury. Op. Cit. p. 122. 70 Ibidem, p. 24. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 45 regras do jogo, mas “um respeito real e profundo dos valores em jogo, com os que – agora – já não cabe mais jogar”.71 É esse instrumento de garantia o meio pelo qual se exerce a jurisdição, que, por sua vez, apesar de una, é exercida individualmente por cada indivíduo que é investido daquele poder: o juiz. Para que um processo penal seja tido como democrático, portanto, necessário se faz o cumprimento pelo juiz, que exerce a jurisdição, do papel que lhe é atribuído no Estado Democrático de Direito. 2.4 O Papel do Juiz no Processo Penal Democrático As funções do Poder Judiciário dentro de um Estado Democrático de Direito já foram suficientemente alinhavadas no item 1.1.4 deste trabalho. Cumpre agora reforçar o já citado anteriormente, chamando especial atenção para a função do juiz de garantidor dos direitos fundamentais. Nas palavras de Aury Lopes Jr., 72 “o juiz assume uma nova posição no Estado Democrático de Direito, e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, consubstanciada na função de proteção dos direitos fundamentais de todos e de cada um, ainda que para isso tenha que adotar uma posição contrária à opinião da maioria.” 71 Ibidem, Op. Cit. p. 109. 72 Ibidem, Op. Cit. p. 110-111. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 46 Reafirmando a posição acima, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes asseverou que a posição do juiz no Estado Democrático é, por vezes, contramajoritária, devendo o magistrado zelar pela observância dos direitos fundamentais ainda que esta observância se dê em desacordo com a vontade da maioria. 73 O Ministro Celso de Mello, também do Supremo Tribunal Federal, assenta que o juiz “representa o órgão estatal incumbido de concretizar as liberdades públicas proclamadas pela declaração constitucional de direitos”, e continua, assentindo que é dever do magistrado “atuar como instrumento da Constituição – e garante de sua supremacia – na defesa incondicional e na garantia real das liberdades fundamentais da pessoa humana”. 74 Desta forma, verificamos que o papel do juiz em um processo penal que se quer democrático é o de julgador imparcial e garantidor dos direitos fundamentais dos indivíduos (investigado/acusado e vítima), ainda que para isso tenha que tomar decisões que contrariem a vontade da maioria. Sua legitimação democrática não é política, afirma Aury Lopes Jr. acima, mas constitucional; ele não é investido em sua função por vontade da maioria para atender aos seus ditames e reclamos, mas é investido, sim, na forma insculpida na 73 Opinião versada em voto proferido no recurso extraordinário 630.147/DF, que julgava a aplicabilidade da cognominada Lei da Ficha Limpa. 74 Trecos do voto proferido no recurso extraordinário nº 466.343/SP. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 47 Constituição da República, para garantir, por meio do exercício de sua função jurisdicional, o respeito aos direitos fundamentais de todos, inclusive da minoria (normalmente representada na pessoa do acusado, que sofre, em muitas das vezes, verdadeira execração pública), ainda que para fazê-lo seja necessário estar contra a vontade da maioria. Foi pensando em possibilitar ao magistrado que atua na será criminal o pleno cumprimento do papel que lhe é atribuído em um processo penal de matiz democrático, que o legislador ordinário elaborou o Projeto de Lei do Senado nº 156/2009, buscando-se, assim, atender aos reclamos da Constituição da República de 1988. 3 O PLS Nº 156/2009 E O JUIZ DAS GARANTIAS 3.1 A Compatibilizaçãodo Processo Penal com a Constituição da República Entre os estudiosos do Direito Processual Penal, é consenso a necessidade de uma reforma global visando à compatibilização deste ramo do Direito com a Constituição da República vigente. No Brasil, há “uma convergência quase absoluta: a necessidade de elaboração de um novo Código, sobretudo a partir da ordem constitucional da Carta da República de 1988”.75 75 Trecho retirado da Exposição de Motivos do PLS nº 156/2009, projeto de Código de Processo Penal. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 48 O processo penal é um importante termômetro político. Aury Lopes Jr., 76 fazendo menção a James Goldschmidt, assevera que “os princípios de política processual de uma nação não são outra coisa do que o segmento de sua política estatal em geral; e o processo penal de uma nação não é senão um termômetro dos elementos autoritários ou democráticos da sua Constituição. A uma Constituição autoritária vai corresponder um processo penal autoritário, utilitarista (eficiência antigarantista). Contudo, a uma Constituição democrática, como a nossa, necessariamente deve corresponder um processo penal democrático, visto como um instrumento a serviço da máxima eficácia do sistema de garantias constitucionais do indivíduo.” Tomando nota da premissa de que o processo penal é termômetro do regime político estatal, constata-se facilmente que um Código de Processo Penal elaborado em 1941, sob a égide do Estado Novo, não pode ser compatível com a Constituição elaborada em 1988, sob os auspícios do rompimento com o regime ditatorial militar da época, sob ares democráticos intensos. Daí a urgente necessidade de reforma, mas uma reforma global, uma reforma de todo o sistema, e não uma reforma pontual, como de há muito se faz no país. É preciso superar o ultrapassado e autoritário Código de Processo Penal de 1941. 76 LOPES JR., Aury. Op. Cit. p. 7. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 49 A Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal instalada no âmbito da Presidência do Senado Federal do Brasil cumpriu seu mister, tendo elaborado um anteprojeto e entregado-o à Presidência do Senado. Tal anteprojeto passou a tramitar no Senado Federal como Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 156/2009, já tendo sido aprovado pelo plenário daquela Casa Legislativa em primeiro turno, estando na ordem do dia 23 de novembro de 2010 para votação em segundo turno. 77 A missão de elaborar um anteprojeto de Código de Processo Penal para substituir o Código vigente e todas as leis esparsas que tratam sobre o processo penal, ao que parece, foi cumprida com êxito. A Comissão conseguiu elaborar um texto que dá nova sistemática a todo o processo penal, tornando-o compatível com a Lei Fundamental, indicando a superação de um sistema processual ainda com viés inquisitório. 78 A exposição de 77 Informação fornecida em 17 de novembro de 2010 pelo site do Senado por meio do push de acompanhamento de matérias legislativas. 78 Para Jacinto Coutinho, o sistema processual brasileiro não é acusatório, mas inquisitório, em razão de seu núcleo fundante, que na visão do referido autor é a gestão da prova. Logo, estando ela, no caso brasileiro (vide artigo 156, CPP), nas mãos do juiz, tem-se caracterizado o sistema como inquisitório, porquanto funções atinentes ao exercício da acusação estariam nas mãos do órgão julgador, gerando-se assim a confusão das funções de acusar e julgar na mesma pessoa (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Op. Cit. p. 8-9) A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 50 motivos já demonstra esta superação ao alinhavar as diretrizes que permeiam todo o projeto: “Nesse passo, cumpre esclarecer que a eficácia de qualquer intervenção penal não pode estar atrelada à diminuição das garantias individuais. É de ver e de se compreender que a redução das aludidas garantias, por si só, não garante nada; no que se refere à sua observância, ao contrário, é exigência indeclinável para o Estado. Nas mais variadas concepções teóricas a respeito do Estado Democrático de Direito, o reconhecimento e a afirmação dos direitos fundamentais aparecem como um verdadeiro núcleo dogmático. O garantismo, quando conseqüente, surge como pauta mínima de tal modelo de Estado.” Outrossim, ao que parece, o PLS 156/2009 tem tudo para se transformar no Novo Código de Processo Penal, dando início a um movimento necessário que já tarda 22 anos: a constitucionalização do processo penal brasileiro. Importante passo para se chegar a tal desiderato, é a previsão do juiz das garantias, instituto que visa a garantir o cumprimento das mais importantes funções do juiz que exerce a função jurisdicional por meio de um processo penal: julgar de maneira imparcial e garantir os direitos fundamentais daqueles que participam do processo penal, mormente daqueles sobre os quais recaem a ameaça de ser aplicada uma pena. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 51 3.2 O Instituto do Juiz das Garantias No Livro I, Título I, Capítulo II do PLS nº 156/2009 – compreendido entre os artigos 14, inclusive, e 17, inclusive – está disciplinado o instituto do Juiz das Garantias, inovação trazida nesta proposta de reforma global do processo penal brasileiro. Versa da seguinte maneira o artigo 14 do mencionado projeto: “Art. 14. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente:” Adiante, o artigo 15 define a competência do juiz das garantias, que abrange todas as infrações penais, com exceção daquelas definidas como de menor potencial ofensivo, definindo como termo final a propositura da ação penal; finda a sua competência com o oferecimento da denúncia ou queixa, portanto. O artigo 16 prevê o impedimento de o magistrado que atuou como juiz das garantias em determinado processo exercer a atividade jurisdicional na fase processual, ao reverso do ocorre hodiernamente, com a prevenção do juízo (e, com isso, do juiz) que atuou na fase pré-processual. 79 E o artigo 17 apenas estipula que as 79 Artigo 75, parágrafo único do CPP. A Constitucionalização do Processo Penal Brasileiro Rodolfo Santos Correia da Silva Coleção Monografias Jurídicas nº 2 52 normas de organização judiciária de cada ente federativo é que designarão o juiz das garantias. Por juiz das garantias, no dizer de Rubens Casara, 80 “...entende-se o ator jurídico criado pela Reforma o Código de Processo Penal que passa a ser responsável pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à tutela das liberdades públicas, ou seja, das inviolabilidades pessoais/liberdades individuais frente à
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