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Eggebrecht-Dahlhaus-Que-e-a-Musica

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www.lusosofia.net
QUE E´ A MU´SICA?
Hans Heinrich Eggebrecht
Carl Dahlhaus
Tradutor: Artur Mora˜o
2009
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Covilha˜, 2011
FICHA TE´CNICA
Tı´tulo: Que e´ a Mu´sica?
Autor: Hans Heinrich Eggebrecht / Carl Dahlhaus
Colecc¸a˜o: Artigos LUSOSOFIA
Direcc¸a˜o: Jose´ Rosa & Artur Mora˜o
Design da Capa: Anto´nio Rodrigues Tome´
Composic¸a˜o & Paginac¸a˜o: Jose´ M. S. Rosa
Universidade da Beira Interior
Covilha˜, 2011
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Agradecimento
Agradece-se ao editor, Joaquim Soares da Costa, da Texto & Grafia,
a ama´vel autorizac¸a˜o para aqui se oferecer aos cultores e apreci-
adores da filosofia e da mu´sica, portugueses e outros, a ocasia˜o
de libar estes textos de dois dos maiores musico´logos alema˜es do
se´culo XX e da cena internacional.
Trata-se do Capı´tulo X da obra a duas vozes Que e´ a mu´sica?,
que saiu na versa˜o portuguesa em Abril de 2009.
Eis o rol dos outros capı´tulos: I – Existe “a” mu´sica?; II –
Conceito de mu´sica e tradic¸a˜o europeia; III – Que quer dizer “ex-
tramusical”?; IV – Mu´sica boa e mu´sica ma´; V – Mu´sica antiga e
Mu´sica Nova; VI – Mu´sica antiga e Mu´sica Nova; VII – Conteu´do
musical; VIII – Do belo musical; IX – Mu´sica e tempo.
A traduc¸a˜o tem por base o texto original – Was ist Musik? –
publicado pela casa Florian Noetzel, Verlag der Heinrichshofen-
Bu¨cher, Wilhelmshaven 2001 (4.a edic¸a˜o).
Artur Mora˜o
Jose´ Maria da Silva Rosa
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Que e´ a Mu´sica?
Hans Heinrich Eggebrecht / Carl Dahlhaus
Hans Heinrich Eggebrecht
Na˜o esperemos que, no fim deste livro, surja uma definic¸a˜o. E´
ja´ rara uma definic¸a˜o de mu´sica respeitante so´ ao presente e nisto
condicionada, eventualmente de modo inconsciente, pela posic¸a˜o
de observac¸a˜o. Pois, como definic¸a˜o em sentido estrito, na˜o se
encontra em lado algum. E uma definic¸a˜o de orientac¸a˜o histo´rica,
mesmo quando pretendesse referir-se “so´” a` mu´sica europeia, reve-
lar-se-ia, se ela fosse possı´vel, talvez ta˜o aproximada e pa´lida que
nos levaria a perguntar se valera´ a pena.
Nem sequer me propus enquadrar nos textos anteriores – em-
bora eles contenham uma perspectiva – a pergunta do tı´tulo e do
capı´tulo conclusivo do nosso livro de modo a limitar-me a recolher
aqui o que foi dito e de modo que, adicionando o todo, se obtenha
como resultado o que e´ a mu´sica.
Na tentativa de captar no seu princı´pio a mu´sica (a ocidental),
introduzi no discurso treˆs caracterı´sticas do conceito europeu de
mu´sica, que, segundo creio, se consideram essenciais e esta˜o con-
stantemente presentes, sempre com novas conotac¸o˜es, valeˆncias e
inter-relac¸o˜es. Chamei-lhes emoc¸a˜o, mathesis, tempo; e as palavras
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4 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus
escolhidas deveriam ser menos importantes do que aquilo a que
aludem.
Sem du´vida, as caracterı´sticas constantes da mu´sica europeia
na˜o se esgotam nas treˆs que mencionei, e pode duvidar-se que
aquelas que aqui tenho por essenciais sejam verdadeiramente as
mais essenciais.
Em primeiro lugar, poderia citar-se tambe´m “a audibilidade”; a
esse respeito, na vertente do “material sonoro” importa distinguir,
na lı´ngua alema˜, entre Gera¨usch, Klang e Ton. Mas a audibilidade
(incluindo as suas negac¸o˜es intencionais) pode aqui, por um lado,
pressupor-se como evidente e, por outro, na˜o e´ uma caracterı´stica
especı´fica da mu´sica europeia. E´, pelo contra´rio, uma caracterı´stica
europeia o facto de, no centro da mu´sica, estar o som [Ton] como
som “musical” (gr. phtongos, lat. sonus musicus), isto e´, como
uma entidade sonora da qual se quer saber e se sabe – embora de
modo sempre novo – o que ela e´. Chamei mathesis a` instaˆncia que
cria esta conscieˆncia e institui assim o som como “musical”; pode
tambe´m definir-se de outro modo, por ex. logos ou ratio ou teoria,
ou ainda a inteligeˆncia que sistematiza, o pensamento cientı´fico. E
se se afirmasse que o som, hoje, ja´ na˜o e´ o elemento essencial da
mu´sica (asserc¸a˜o que seria contestada com forc¸a), o pensamento
teo´rico continuaria a ser sempre a instaˆncia essencial, mesmo a
respeito de tudo o mais que pode ser ouvido, na medida em que este
chega a` mu´sica. (Isto vale tambe´m, por ex., para o sector da mu´sica
ligeira e pop, porque ela utiliza apenas um material produzido com
base teo´rica.)
Poderia ainda lamentar-se a circunstaˆncia de que, nas nossas
treˆs caracterı´sticas essenciais, o aspecto “instrumental” da mu´sica
nos escapa, porque o som [Laut] da emoc¸a˜o e´ de natureza sobre-
tudo “vocal”. No entanto, na nossa pesquisa o aspecto instrumen-
tal oculta-se sob aquilo que se chamou mathesis. De facto, o som
[Ton] entendido no sentido ocidental de som “musical” e´ de na-
tureza instrumental: e´ – no seu “princı´pio pitago´rico” – o resultado
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Que e´ a Mu´sica? 5
de operac¸o˜es “instrumentais” que lhe conferem a faculdade de dar
vida a` mu´sica como forma dotada de sentido, que consta de ele-
mentos aconceptuais e pode ser artificialmente produzida. Tentei
aprofundar noutros lugares estas questo˜es, sempre em relac¸a˜o ao
confronto entre palavra e som, lı´ngua e mu´sica, mu´sica vocal e
instrumental, aos impulsos e a`s tendeˆncias que emergem do par-
alelismo e da polaridade existentes entre lı´ngua e mu´sica. Aqui
bastara´ repetir que – tambe´m na mu´sica vocal – o especı´fico da
mu´sica, o cara´cter que no reino do sonoro e do audı´vel possui
exclusivamente por si mesma, e´ de natureza instrumental, porque
ele surge e tem histo´ria em virtude da actividade mental que ex-
plora, ordena e sistematiza o material sonoro a nı´vel “matema´tico”
e “fı´sico”, tornando-o assim disponı´vel para o pensamento musical.
Poderia talvez dizer-se que, como caracterı´stica essencial da
mu´sica, tambe´m o aspecto da forma, o acto de formar e estruturar
deveria ter sido mencionado e discutido. O ser-audı´vel e ter-forma
sa˜o qualidades de toda a manifestac¸a˜o e mensagem, para que se
possam definir como musicais no sentido mais amplo da palavra;
e tambe´m a peculiaridade da forma na mu´sica europeia e´ dada au-
tomaticamente pela mathesis. O especificamente musical do som
pode dizer-se auto´nomo sob a condic¸a˜o de que o som musical se re-
alize como resultado de um reconhecimento cientı´fico da natureza
do sonoro, e por isso em virtude do pro´prio sonoro, por outras
palavras, que seja caracterizado por si mesmo. Corresponde ao es-
pecificamente musical da forma, que e´ auto´nomo, porque desdobra
o especı´fico do som musical em forma: em estruturas (qualidades
dos intervalos, sistemas tonais, modalidade, qualidade e sistemas
do som) que chegam na pra´tica a uma forma temporal muito mais
concreta. A tal respeito a mu´sica no sentido europeu do conceito
e´ – como ja´ foi dito – sempre auto´noma, mesmo quando a palavra
cantada e as func¸o˜es parecem tudo dominar. E, no entanto, nunca
e´ auto´noma, se a forma – mesmo quando idealizada enfaticamente
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6 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus
como auto´noma – for determinada ao mesmo tempo por conteu´dos,
um dos quais, e essencial, definimos como emoc¸a˜o.
Mesmo se houvesse outras caracterı´sticas essenciais para la´ das
treˆs aqui mencionadas, emoc¸a˜o, mathesis e tempo, estas sa˜o sem-
pre suficientes para gerar uma se´rie de princı´pios que – condicionan-
do-se reciprocamente na constante junc¸a˜o – caracterizam a mu´sica
(no sentido europeu). Citamos aqui, de seguida, apenas sete.
As treˆs caracterı´sticas dizem todas respeito ao homem no cen-
tro da sua existeˆncia. A emoc¸a˜o e´, por assim dizer, o centro da
natureza sensı´vel do homem. A mathesis e´ o instrumento capaz de
descobrir e constituir a harmonia(ordenac¸a˜o), ou seja, a dimensa˜o
que se encontra perante este centro e se lhe contrapo˜e, embora seja
por ele constantemente ansiada. Mas o tempo e´ aquilo em que as
outras duas se tornam realidade como mu´sica, e e´ para o homem a
mais real de todas as realidades.
As treˆs caracterı´sticas sa˜o todas imediatas para a mu´sica (em-
bora mediadas): na˜o designam o que significam, sa˜o-no. A emoc¸a˜o
e´ inerente a` manifestac¸a˜o sonora como exclamac¸a˜o do aˆnimo, activa-
se imediatamente em face da produc¸a˜o e (tambe´m isto e´ claro)
da reproduc¸a˜o de mu´sica. A harmonia e´, como elemento sonoro,
a natureza do som seleccionada pela mathesis; a mu´sica e´ a sua
aparic¸a˜o sensı´vel. E o tempo e´ uma qualidade essencial do pro´prio
som, que enquanto tal faz surgir a mu´sica como jogo temporal e
torna musical o tempo.
Estas treˆs caracterı´sticas enquanto tais, e tambe´m o alto grau de
imediatidade com que constituem a mu´sica e nela aparecem como
conteu´do (ja´ com o simples ser da mu´sica) qualificam a peculiari-
dade da mu´sica em relac¸a˜o a`s outras artes. O seu elemento pecu-
liar e´ a determinac¸a˜o abstracta e aconceptual com que consegue
acolher em si e fazer compreender com potencialidade infinita o
existencial do ser humano, sendo ela pro´pria existencial.
Reside aqui o primado da mu´sica em relac¸a˜o a`s outras artes,
como a histo´ria demonstra incessantemente em verso˜es alternadas.
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Que e´ a Mu´sica? 7
A mu´sica e´ – de modo incompara´vel no seu ge´nero e na sua am-
bivaleˆncia – imagem do cosmos e quinta-esseˆncia da representac¸a˜o
da paixa˜o humana, voz ange´lica em louvor de Deus e instrumento
do demo´nio, promotora e destruidora do bem e do mal. Como
nenhuma outra arte, ela pode sarar e consolar, embelezar e exaltar,
estimular e pacificar, seduzir e fortificar. Sendo existencial neste
sentido, consegue obter em grau ma´ximo o efeito geral da arte:
atrair a si e ao seu mundo – um outro mundo – o homem na sua
esfera de existencial.
O cara´cter essencial que o conceito de mathesis define pode
tornar-se responsa´vel pela historicidade da mu´sica europeia – uma
capacidade de se fazer histo´ria, que se apresenta como forte inclina-
c¸a˜o histo´rica, como ritmo veloz (embora de modo historicamente
diferenciado) da histo´ria. De facto, o pensamento musicolo´gico,
que examina a mate´ria sonora sob o aspecto das relac¸o˜es instau-
radas, uma e outra vez, com a mu´sica, torna possı´vel o pensa-
mento musicalmente poie´tico. E este e´ caracterizado pela contı´nua
concepc¸a˜o de mu´sica sempre diferente e nova – um pensar em
mu´sica que apresenta um desenvolvimento coerente nos proces-
sos de ligac¸a˜o a` tradic¸a˜o e de renovac¸a˜o, e faz aparecer portanto a
histo´ria da mu´sica na˜o so´ como sucessa˜o de mu´sica sempre nova,
mas tambe´m como continuum de fases e esta´dios que sa˜o sempre
deriva´veis um do outro, mesmo no seio da mu´sica.
O pensamento musical, como pensamento teo´rico, esta´ sempre
entrosado com o pensamento geral: a capacidade de a mu´sica se
fazer histo´ria no seu seio torna possı´vel ao pro´prio tempo a sua
participac¸a˜o na histo´ria geral e cria os pressupostos de tal implica-
c¸a˜o. Ale´m disso, a mu´sica, no concurso de emoc¸a˜o, mathesis e
tempo, e´ um instrumento que reage ao material com a sensibili-
dade de um sismo´grafo: ela esta´ assim predestinada a representar
e a exprimir com grande precisa˜o o que implica e concerne ao ser
humano, ao homem na sua historicidade e a` histo´ria dos homens.
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8 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus
A mu´sica e´ sem conceitos. Nisto se baseia o seu poder, aqui
residem os seus limites. No seu poder, ela consegue estender-se a
toda a existeˆncia humana, em todas as suas ocupac¸o˜es e situac¸o˜es.
E nos seus limites pode utilizar-se, e´ funcional em todas as direcc¸o˜es,
e podem atribuir-se-lhe as mais diversas func¸o˜es. A pergunta “que
e´ a mu´sica?”, a` luz da insisteˆncia com que e´ feita desde a antigu-
idade, e´ de natureza excepcional. Esta pergunta constitui, ainda
hoje, a reacc¸a˜o a um vazio que nos inquieta.
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Que e´ a Mu´sica? 9
Carl Dahlhaus
A reflexa˜o sobre o que e´ a mu´sica, perante o facto de que uma abor-
dagem directa e intuitiva so´ poderia descrever-se de modo vago e
em termos metafo´ricos, pode partir da escrita usada para a notac¸a˜o
musical e da linguagem que usamos connosco mesmos e com os
outros para a entender.
Na interpretac¸a˜o da escrita, embatemos, pore´m, num singular
dilema. O topos litera´rio da inefabilidade, a declarac¸a˜o formal de
que com as palavras seria impossı´vel expressar justamente o que
e´ decisivo, constitui o modelo de um lugar comum ana´logo da
este´tica musical: a ideia de que os momentos a que esta´ ligado
o “verdadeiro” significado de uma obra musical na˜o podem ser fix-
ados pelas notas. O que e´ escrito torna-se letra morta, o espı´rito da
obra – afirma-se – na˜o e´ fixado e preservado pela notac¸a˜o, mas so´
se revela numa comunicac¸a˜o entre compositor e inte´rprete, e que
utiliza o texto musical como simples veı´culo.
Na concepc¸a˜o segundo a qual na mu´sica conta aquilo que na˜o
pode ser transcrito pelas notas confluem, pore´m, dois elementos,
que, para evitar equı´vocos, importa distinguir: por um lado, os
desvios da representac¸a˜o acu´stica relativamente ao texto musical;
por outro, as diferenc¸as entre o que e´ acusticamente dado e o seu
significado musical. A mescla destes dois elementos na˜o e´ um
facto puramente casual e expressa antes a convicc¸a˜o de que o sen-
tido da mu´sica – entendido como parecenc¸a linguı´stica – consistiria
justamente nas diferenc¸as entre o texto escrito e a sua representac¸a˜o
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10 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus
acu´stica, ou seja, nos matizes da dinaˆmica e da articulac¸a˜o, nas
alterac¸o˜es ago´gicas do ritmo. O costume de apreender uma relac¸a˜o
estreita entre os desvios do texto – as pequenas variantes que de-
finem o cara´cter de uma interpretac¸a˜o – e o significado musical
funda-se na sensac¸a˜o de que a mu´sica diz alguma coisa, sem que
seja claro e inequı´voco o que ela realmente expressa. Numa formu-
lac¸a˜o paradoxal, ela surge como linguagem expressiva, sem conteu´do
e objecto bem delimitados. Mas se o significado da mu´sica – o seu
sentido especı´fico, aconceptual e na˜o figura´vel – na˜o e´ tanto o que
e´ expresso quanto a pro´pria expressa˜o, enta˜o o modo de execuc¸a˜o,
as diferenciac¸o˜es ago´gicas e dinaˆmicas introduzidas, ganham um
acento grac¸as ao qual a forma existencial este´tica de uma obra
musical se distingue, em princı´pio, da de uma obra poe´tica – ab-
straindo das formas extremas da lı´rica que tendem a anular os sig-
nificados das palavras.
Se, por um lado, a obra musical – entendida como associac¸a˜o
de sons com sentido – parece, pois, constituir-se so´ para la´ do texto,
por outro, o conceito de obra musical, tal como se foi formando en-
tre os se´culos XIV e XVIII, implica a ideia de que uma composic¸a˜o
fixa em notas na˜o e´ um simples documento de pra´tica musical, mas
– em analogia com um poema – e´ um texto no significado enfa´tico
do termo: uma estrutura que da´ forma a um significado expressivo
e cuja exposic¸a˜o acu´stica desempenha uma func¸a˜o puramente in-
terpretativa. A obra, que como tal existe tambe´m quando na˜o e´
tocada, estaria portanto contida, em primeiro lugar, no texto e na˜o
na execuc¸a˜o.
E´ possı´vel, portanto, acentuar de modo diferenciado e ate´ con-
tradito´rio a relac¸a˜o entre composic¸a˜o escrita e exposic¸a˜o acu´stica.
E´ verdade que um texto musical e´ sempre, ou quase, entendido
como meio para obter o fim da execuc¸a˜o na qual o escrito se apre-
senta de forma sonora, em vez de simplesmente textual – objectode
leitura musical. Mas ao mesmo tempo a execuc¸a˜o surge, ao inve´s,
como um meio para representar o texto, um meio a que ela se sub-
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Que e´ a Mu´sica? 11
ordina e cujo significado tenta manifestar: um significado que esta´,
em primeiro lugar, ligado a` notac¸a˜o, e na˜o ao modo de execuc¸a˜o ou
a`s diferenc¸as existentes entre a realizac¸a˜o acu´stica e o texto escrito.
E na medida em que a execuc¸a˜o se concebe como meio delineia-se
mais claramente o cara´cter de obra da composic¸a˜o. O que se fixou
pela notac¸a˜o surge como substaˆncia ou esseˆncia da mu´sica, o na˜o
registado como acidente.
Ao longo da mesma linha de evoluc¸a˜o histo´rica em que a composic¸a˜o
escrita, de simples esboc¸o, que como um esquema coreogra´fico
delineou os contornos de um processo, se consolidou num texto,
que surge como ana´logo de um texto litera´rio, afirmou-se cada vez
mais, por outro lado, a convicc¸a˜o este´tica de que, na mu´sica, o na˜o
registado em notas e´ o elemento decisivo. (O crite´rio da musical-
idade e´ justamente a capacidade de fazer justic¸a ao na˜o registado
em notas.) Contudo, a contradic¸a˜o que os separa, a acentuac¸a˜o da
notac¸a˜o e, ao inve´s, a sua minorac¸a˜o, portanto, o conceito enfa´tico
de texto e de obra e a opinia˜o de que, por mor do espı´rito, se
podem ou ate´ devem alterar as notas de um texto musical, sa˜o
entre si complementares. No se´culo XIX, a justeza da notac¸a˜o
– uma justeza que se deve entender no plano este´tico como ten-
tativa de consolidar o significado de cariz linguı´stico da mu´sica
atrave´s da escrita, isto e´, atrave´s de um complexo de signos que
expressam a sua dinaˆmica, ago´gica e articulac¸a˜o, portanto de ano-
tar igualmente aquilo que se subtrai a` notac¸a˜o musical – foi igual-
mente elevada a postulado; o mesmo aconteceu, alia´s, com a liber-
dade da representac¸a˜o acu´stica frente ao texto escrito, o qual, as-
sim se pensava, em vez de falar a partir de si, deveria ser levado
a` linguagem atrave´s da interpretac¸a˜o. A relac¸a˜o entre notac¸a˜o e
realizac¸a˜o acu´stica pode, pois, descrever-se em termos de diale´ctica
de consolidac¸a˜o e emancipac¸a˜o: quanto mais circunstanciada e
pedante se tornava a notac¸a˜o musical, tanto mais radical surgia a
afirmac¸a˜o da autonomia do inte´rprete. Tentava-se consolidar o el-
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12 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus
emento na˜o regista´vel em notas e, ao mesmo tempo, insistia-se na
sua irracionalidade.
O “significado”, que se subtrai a` notac¸a˜o, na˜o se entende apenas
como a esseˆncia expressiva da mu´sica – dependente da interpretac¸a˜o
–, mas tambe´m como a sua estrutura lo´gica, na˜o directamente ex-
pressa pela escrita: nem a func¸a˜o tonal de um acorde nem a defini-
c¸a˜o de um motivo – para na˜o falar da deduc¸a˜o de um motivo a
partir de outro – se podem ler a partir das notas, as quais repre-
sentam uma escrita sonora e na˜o semaˆntica. (Podemos unificar a
codificac¸a˜o de func¸o˜es tonais proposta por Hugo Riemann, por ele
chamada “ana´lise”, com os seus manuais sobre “fraseado” e enten-
der o todo como uma tentativa de integrar a notac¸a˜o dos sons por
meio de uma notac¸a˜o dos significados.)
No entanto, sem termos de renunciar a` terminologia estabele-
cida, na˜o devemos iludir-nos sobre o facto de que a asserc¸a˜o, se-
gundo a qual a mu´sica e´ desprovida de objecto, mas expressa um
significado, e´ necessariamente confusa sob o ponto de vista da teo-
ria linguı´stica. A refereˆncia a uma palavra como “unico´rnio”, cujo
significado e´ unı´voco, embora privado de qualquer referente real, e´
ta˜o inu´til como o recurso a um operador lo´gico como a palavrinha
“ou”, que desempenha uma func¸a˜o semaˆntica, sem designar uma
coisa ou uma propriedade; o conceito de unico´rnio e´, de facto, uma
variante imagina´ria de algo que realmente existe e portanto, mesmo
indirectamente, refere-se a` realidade, e os operadores sa˜o elemen-
tos de proposic¸o˜es, cuja substaˆncia e´ formada por palavras com
um conteu´do de realidade. Mas o significado da mu´sica, entendido
no sentido da lo´gica harmo´nica e motı´vica, na˜o esta´ ancorado, de
modo directo ou indirecto, na realidade objectiva.
Em face da dificuldade de fixar o significado da mu´sica como
significado ana´logo a` linguagem, talvez se fosse tentado a renun-
ciar a` ideia de uma semaˆntica da mu´sica – da mu´sica desprovida
de texto, na˜o programa´tica – e a limitar-se a falar de sintaxe, por
um lado, e de pragma´tica, por outro. A lo´gica musical seria enta˜o
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Que e´ a Mu´sica? 13
apenas uma sı´ntese de momentos sinta´cticos, e a expressividade –
por exemplo, o cara´cter expressivo de uma marcha fu´nebre – se-
ria uma consequeˆncia do uso que da mu´sica se faz. (Que func¸o˜es
externas, desempenhadas pela mu´sica, imigrem gradualmente, por
assim dizer, como caracteres para o aˆmago das obras e´ um processo
histo´rico que decerto parece tornar difı´cil uma ana´lise pragma´tica;
mas na˜o prejudica seriamente a tese que, em princı´pio, reduz a
hermeneˆutica musical a` pragma´tica e, portanto – a interpretac¸a˜o de
significac¸o˜es, em u´ltima instaˆncia, a` ana´lise de func¸o˜es).
Afigura-se improva´vel, pore´m, que se possa efectivamente re-
duzir a lo´gica musical a simples sintaxe. O problema complica-se
depois porque, segundo parece, os pro´prios linguistas na˜o esta˜o de
acordo quanto a estabelecer em que medida as regras sinta´cticas
implicam momentos semaˆnticos. Para os fins da teoria musical –
sem termos de nos enredar nas dificuldades na˜o resolvidas de outra
disciplina – basta, pois, adoptar por agora a obsoleta distinc¸a˜o entre
lo´gica e grama´tica, que esta´ documentada por exemplo na diferenc¸a
entre sujeito lo´gico e sujeito gramatical de uma proposic¸a˜o linguı´sti-
ca. Na transformac¸a˜o de uma proposic¸a˜o da voz activa em pas-
siva muda o sujeito gramatical, mas o lo´gico permanece o mesmo.
Afigura-se razoavelmente possı´vel fazer tambe´m na mu´sica uma
distinc¸a˜o semelhante entre lo´gica e grama´tica.
Desde 1788, ano em que foi cunhado por Johann Nikolaus
Forkel, o termo “lo´gica musical” indicou, em primeiro lugar, a
lo´gica harmo´nico-tonal e, em seguida, tambe´m a tema´tico-motı´vica,
que a` primeira esta´ interactivamente ligada. Hugo Riemann desve-
lou a esseˆncia da lo´gica harmo´nica, e portanto do nexo sistema´tico
dos acordes, nas func¸o˜es tonais de to´nica, dominante e subdomi-
nante. Segundo Riemann, no entanto, o significado de um acorde,
a sua func¸a˜o dominante ou subdominante, e´ em princı´pio inde-
pendente da posic¸a˜o que ele assume no contexto da frase musical.
Pode, sem mais, postular-se – com Kirnberger – que na cadeˆncia
a subdominante deve preceder e seguir-se a` dominante; todavia,
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14 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus
uma dominante na˜o deixa de ser dominante pelo facto de se en-
contrar numa posic¸a˜o inabitual. A regra em cuja base a progressa˜o
subdominante-dominante na˜o e´ invertı´vel em dominante-subdomi-
nante sem perda de efeito torna-se aqui uma regra sinta´ctica; mas
a lo´gica, o nexo interno dos acordes com o centro tonal, distingue-
se substancialmente da sintaxe (apesar das influeˆncias recı´procas):
uma transformac¸a˜o gramatical, a transposic¸a˜o dos acordes na cadeˆn-
cia, deixa inalterado, pelo menos na substaˆncia, o seu sentido tonal,
como Riemann o definira. (Sem du´vida, este sentido surge a uma
luz diferente, mas isto vale tambe´m para as transformac¸o˜es linguı´s-
ticas: ao modificar-se uma frase da voz activa para a passiva, varia
a eˆnfase dada a`s palavras e a consequente modificac¸a˜o semaˆntica
pode ler-se no facto de que a forma activa sugere uma continuac¸a˜o
diferente da passiva.)
Que a lo´gica musical na˜o se deixe diluirinteiramente em regras
sinta´cticas na˜o constitui, pore´m, um motivo suficiente para cair no
extremo oposto e supor que tambe´m na mu´sica privada de texto,
na˜o programa´tica, existe um estrato semaˆntico, presente em cada
instante. (Os sı´mbolos musicais e as alegorias na˜o constituem um
“estrato”, como o entendeu Roman Ingarden, uma vez que eles na˜o
se manifestam regularmente, mas so´ de forma intermitente.)
Especificar na func¸a˜o total que caracteriza um acorde o “sig-
nificado” deste acorde, ou conceber como “nexo de sentido” a
relac¸a˜o que existe entre temas e motivos de uma frase, na˜o quer
dizer que o sentido musical se forme do mesmo que o linguı´stico.
O “significado” tonal de um acorde e´ antes algo de radicalmente
diferente do “significado” conceptual de uma palavra, sem que
por meio desta manifesta diferenc¸a tenhamos de nos sentir obri-
gados a evitar o uso equı´voco da palavra “significado”. Tal uso
e´, de facto, plenamente justificado, e decerto grac¸as a uma analo-
gia estrutural que subsiste, apesar da diferenc¸a de princı´pio e que
e´ bastante essencial para se designar com um termo amplo como
e´, justamente, a palavra “significado”. Tanto no feno´meno musical
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Que e´ a Mu´sica? 15
como mo linguı´stico podemos distinguir entre presente e represen-
tado: entre o que e´ dado a nı´vel sensı´vel e aquilo a que ele alude.
Contra a tese de Roman Ingarden da “mono-estratificac¸a˜o” [Ein-
schichtigkeit] da mu´sica, uma ana´lise fenomenolo´gica que na˜o se
deixe alarmar pelo modelo da lı´ngua e que na˜o negue, sem mais,
a presenc¸a de um significado quando este se na˜o encontra em sen-
tido linguı´stico, devera´ insistir no facto de que na mu´sica e´ possı´vel
separar do substrato acu´stico um segundo substrato, compara´vel na
lı´ngua ao som das palavras; este segundo estrato – e decerto como
estrato universal – constitui-se nos se´culos XVIII e XIX atrave´s
das func¸o˜es tonais e dos nexos motı´vicos; a partir do momento
em que ele na˜o se resolve em regras sinnta´cticas pode, sem mais,
definir-se como estrado de “significados” embora, como ja´ se afir-
mou, seja pouco oportuno falar de semaˆntica musical e sugerir
falsas analogias linguı´sticas ou misturar de modo inadmissı´vel o
estrato semaˆntico motı´vico-tonal com incluso˜es de simbologia e
alegorismo. Decisivo e´ que exista uma contraparte para a sintaxe
musical que, de outro modo, se deveria conceber ambiguamente
como desprovida de correlato (que na lı´ngua e´ constituı´do, pelo
contra´rio, pela semaˆntica).
O conceito de linguagem musical, cunhado no se´culo XVIII,
visava a concatenac¸a˜o de momentos lo´gicos e expressivos: a evolu-
c¸a˜o ao longo da qual, a partir da mu´sica vocal, ligada a` linguagem,
nasceu a mu´sica instrumental que constitui tambe´m uma linguagem,
e´ um dos processos fundamentais da histo´ria da mu´sica.
Entre os problemas em que nos enredamos, ao reflectir sobre
a relac¸a˜o entre mu´sica e linguagem, um dos principais, embora
tenha sido descurado ou, tanto quanto parece, de todo ignorado e´
a questa˜o da influeˆncia exercida no cara´cter linguı´stico da mu´sica
pela linguagem que se utiliza, ao falar de mu´sica. Jamais algue´m
duvidou de que a mu´sica como linguagem deve elementos deci-
sivos a` mu´sica com linguagem ou relativa a` linguagem; menos
evidentes parecem ser, pelo contra´rio, os efeitos que, a partir do
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discurso sobre mu´sica, teˆm ressonaˆncia na coisa em si. Por outras
palavras, que influeˆncia exerce sobre o estrato semaˆntico, que sug-
ere ou permite definir a mu´sica como linguagem, o facto de o trato
com a mu´sica ser, em parte, mediado pela lı´ngua?
Para em geral se reconhecer o problema e na˜o se ter por insen-
sata a questa˜o, importa todavia libertar-se de um preconceito que,
durante muito tempo, dominou de modo prejudicial as cieˆncias
do espı´rito: o preconceito de que uma terminologia – um modo
de falar – e´ apenas uma forma expressiva secunda´ria para ligar a
palavras estados de coisas que, para a conscieˆncia, esta˜o ja´ definidos
atrave´s da intuic¸a˜o imediata dos feno´menos. Como a filosofia re-
conheceu, com clareza crescente, nestas u´ltimas de´cadas, a lin-
guagem na˜o e´ um simples sistema semiolo´gico que exprime poste-
riormente factos dados de modo pre´-linguı´stico, mas um meio que,
acima de tudo, abre um acesso a`s coisas. Os feno´menos sa˜o sem-
pre dados “como algo”: um objecto e´ em geral um objecto so´ no
recinto de um significado determinado. Mas o significado por cuja
mediac¸a˜o ele se constitui nunca e´ independente da linguagem em
que este significado surge articulado. O mundo em que vivemos e´
linguisticamente constituı´do.
Brotam daqui consequeˆncias que interessam a` teoria da mu´sica.
Que um facto musical se na˜o esgote no substrato acu´stico, que esta´
subjacente, deveria ser um dado inquestiona´vel para os teo´ricos
musicais que se libertaram do fisicalismo inge´nuo e simplista do
se´culo XIX. So´ grac¸as a um tipo particular de formac¸a˜o catego-
rial um feno´meno sonoro se constitui como facto musical e na˜o
apenas acu´stico (onde por “acu´stico” se deveria entender o tipo de
formac¸a˜o categorial que o som adquire do ponto de vista do fı´sico:
a pura mate´ria perceptiva e´ uma abstracc¸a˜o, uma coisa ideal; e no
entanto, ao pretender-se ainda falar com clareza da mate´ria como
do substrato da formac¸a˜o musical-categorial, cai-se sem querer na
tentac¸a˜o de recorrer a feno´menos acu´sticos, apesar de um feno´meno
acu´stico, em sentido estrito, na˜o passar de mate´ria perceptiva no
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Que e´ a Mu´sica? 17
acto de se formar atrave´s das categorias de um acu´stico, as quais
interagem com as categorias de um sujeito musical, em vez de
estarem a estas pre´- ordenadas).
Mas a formac¸a˜o categorial, grac¸as a` qual a mu´sica se constitui
como tal, e´ sempre linguisticamente determinada – e isto significa
que ela e´ modelada por uma determinada linguagem. O elemento
constitutivo da mu´sica na˜o e´ dado por uma “conscieˆncia em geral”,
mas por uma conscieˆncia que existe na linguagem e a ela esta´ acor-
rentada. Que a mu´sica seja histo´rica e linguisticamente formada
representa as duas faces da mesma realidade.
Na˜o e´ difı´cil demonstrar, com base nos conceitos de consonaˆncia
e dissonaˆncia, cuja importaˆncia fundamental e´ indiscutı´vel, o facto
de que a formac¸a˜o categorial da mu´sica depende da linguagem. A
dicotomia expressa por estes dois termos antago´nicos e´ um dado da
natureza, mas tem um cara´cter histo´rico. A psicologia do som, que
busca extrair dados de facto naturais, fala – desde Carl Stumpf em
diante – de “graus de sonaˆncia” para clarificar que “em rigor” (isto
e´, no natural equipamento psı´quico do homem) subsistem apenas
diferenc¸as de grau entre os acordes e que a diferenc¸a de princı´pio,
a subdivisa˜o dos intervalos na classe das consonaˆncias e na oposta
das dissonaˆncias, representa uma sobreformac¸a˜o histo´rica. Mas,
como Stumpf admitia sem dificuldade, a psicologia do som na˜o e´
a mesma coisa que a teoria musical; e a cunhagem de neologis-
mos como “sonaˆncia” e “grau de sonaˆncia”e´ apenas um salto da
terminologia musical para a extramusical. (Na mu´sica do se´culo
XIX, de que partiu Stumpf, os “graus de sonaˆncia” na˜o eram um
facto musical com um papel activo na te´cnica compositiva). Mas
no momento em que a linguagem da teoria musical, que trabalha
com a dicotomia consonaˆncia-dissonaˆncia, pode ser observada a
partir de fora, na sua transposic¸a˜o para a linguagem da psicolo-
gia do som, surgem caracterı´sticas estruturais que na˜o se tornavam
conscientes, enquanto se permanecesse ligado a` tradicional ter-
minologia musical, como se esta fosse a linguagem das pro´prias
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coisas. A diferenc¸a de princı´pio entre consonaˆncia e dissonaˆncia
– uma diferenc¸a que de nenhum modo foi anulada como forma in-
tuitiva em virtude da deslocac¸a˜o da fronteira entre as classes de
intervalos – deixa de ser o´bvia, apo´s as descobertas da psicolo-
gia do som e revela-se como uma formac¸a˜o categorial de origem
histo´rica. Desde o se´culo XII ao se´culo XIX compoˆs-se mu´sica
com a dicotomia, sem encarar a possibilidade de se partir apenas
de diferenc¸as de grau, uma possibilidade que no se´culo XX foi
definida como “gradiente harmo´nico”. A formac¸a˜o categorial era,
pore´m, linguisticamente determinada ou, pelo menos, delineada;
de facto, a tradic¸a˜o linguı´stica da dicotomia entre consonaˆncia e
dissonaˆncia era mais antiga do que a ideia compositiva de estabele-
cer – por meio de uma mudanc¸a das qualidades tonais, entendida
como tendeˆncia da dissonaˆncia para a consonaˆncia – nexos que
representam um fragmento de lo´gica musical. A te´cnica sonora
da polifonia na˜o se baseava numa intuic¸a˜o musical independente
da linguagem, mas numa forma de pensamento modelada pela lin-
guagem – pela tradic¸a˜o linguı´stica greco-latina.
A asserc¸a˜o segundo a qual no sentido dos feno´menos musi-
cais estaria contida a sua chave linguı´stica na˜o se deveria enten-
der mal como tentativa de recuperar, por via linguı´stica, a histo´ria
do espı´rito. Na˜o se pode falar de uma dissoluc¸a˜o da histo´ria ob-
jectiva na histo´ria terminolo´gica. Quem na˜o concebe a expressa˜o
linguı´stica dos factos como uma formulac¸a˜o secunda´ria, posterior,
de intuic¸o˜es prima´rias independentes da linguagem, mas concebe
estes factos como se fossem desde sempre linguisticamente co-
constituı´dos, nem por isso e´ obrigado a tirar a conclusa˜o extrema
de que a natureza das coisas coincide com a sua determinidade
linguı´stica, que os feno´menos alteram a sua natureza logo que sa˜o
diferentemente denominados. A considerac¸a˜o de que o sentido mu-
sical depende da linguagem suscita, porventura, a conscieˆncia de
que a linguagem que desvenda o acesso a um feno´meno, o im-
pede ao mesmo tempo, por outro lado. Se assim na˜o fosse, difer-
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entes formulac¸o˜es linguı´sticas da mesma coisa na˜o poderiam se-
quer relacionar-se entre si, porque para la´ das muta´veis formulac¸o˜es
na˜o existiria a “mesma coisa”; eliminar-se-ia a identidade do feno´-
meno, no qual por uma troca da nomenclatura surgiriam sempre
novos trac¸os. Mas se na˜o quisermos renunciar a esta identidade
– e na˜o ha´ motivo para fazer de outro modo – e´ necessa´rio ad-
mitir a existeˆncia de um substrato comum a`s diversas explicac¸o˜es
linguı´sticas.
Os graus de sonaˆncia, que Stumpf trouxe a` conscieˆncia, eram
um momento integrante do feno´meno consonaˆncia que a tradic¸a˜o
linguı´stica da teoria musical europeia ocultara. E se se afirmou
que eles no se´culo XIX, quando foram descobertos pela psicolo-
gia do som, em rigor na˜o faziam parte dos factos musicais – ou
dos factos pelos quais se organiza a composic¸a˜o – tal na˜o significa,
efectivamente, que eles devam, por princı´pio e para sempre, ficar
excluı´dos do aˆmbito do “musical” (no sentido estrito do termo). No
se´culo XX, apo´s a emancipac¸a˜o da dissonaˆncia (como passo com-
positivo e teo´rico-musical para o qual Arnold Scho¨nberg encon-
trou ulteriormente uma confirmac¸a˜o na psicologia do som de Carl
Stumpf), os graus de sonaˆncia tornaram-se objecto de uma con-
sciente disposic¸a˜o composicional, como sublinhou Ernst Krenek
nos seus estudos sobre o contraponto dodecafo´nico. Foram, desde
sempre, uma realidade psicolo´gica, mesmo na lateˆncia musical e
teo´rico-musical; mas tornaram-se um facto musical, tal como a di-
cotomia entre consonaˆncia e dissonaˆncia – so´ mediante uma de-
cisa˜o compositiva, ou seja, histo´rica, em que se inseria uma ana´lise
linguı´stica do feno´meno. Entre a graduac¸a˜o e a dicotomia existe,
pois, uma relac¸a˜o de “sobreposic¸a˜o” ou “sobreformac¸a˜o”: o que e´
dado a nı´vel psicolo´gico, a se´rie dos graus de sonaˆncia, constitui
o substrato da ideia de compor, utilizando a diferenc¸a entre duas
classes de intervalos, a qual, de certo modo, e´ catapultada para o
estado-de-coisas psicolo´gico (no se´culo XIV, as classes de inter-
valos eram treˆs: consonantia perfecta, consonantia imperfecta e
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20 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus
dissonantia). Por outro lado, a pro´pria graduac¸a˜o pode elevar-se a
princı´pio sinta´ctico: o nu´mero das classes de intervalo com cujas
diferenc¸as se compo˜e e´ enta˜o igual ao nu´mero dos pro´prios inter-
valos.
Na tese segundo a qual os factos psicolo´gicos se convertem
em realidades musicais so´ mediante deciso˜es compositivas, “com-
por” significa apenas o seguinte: a produc¸a˜o de um progredir rig-
oroso de som para som ou de acorde para acorde. E a ideia que
fez da contraposic¸a˜o entre consonaˆncia e dissonaˆncia (com out-
ras func¸o˜es na antiguidade) o princı´pio sustentador da escrita po-
lifo´nica baseava-se na convicc¸a˜o de que, entre um grau de sonaˆncia
mais baixo e outro mais alto, se pode perceber um gradiente sus-
ceptı´vel de ser interpretado como tendeˆncia de um para o outro:
como tendeˆncia que constitui o fundamento do progredir da mu´sica
do interior para a exterior. Que a sucessa˜o dos acordes surja como
uma progressa˜o por separac¸a˜o significa, pore´m, que a mu´sica na˜o
so´ esta´ localizada no tempo, mas representa um processo que, em
certo sentido, gera autonomamente o tempo em que se desenrola.
O facto musical da contraposic¸a˜o consonaˆncia-dissonaˆncia, que
brota da decisa˜o compositiva a partir da realidade psicolo´gica dos
graus de sonaˆncia, e´ constitutivo do “musical” no sentido mais es-
trito do termo, porque faz parte dos meios grac¸as aos quais a tem-
poralidade “dada” da mu´sica se pode realizar como processuali-
dade “produzida”.
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