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i i i i i i i i www.lusosofia.net QUE E´ A MU´SICA? Hans Heinrich Eggebrecht Carl Dahlhaus Tradutor: Artur Mora˜o 2009 i i i i i i i i i i i i i i i i Covilha˜, 2011 FICHA TE´CNICA Tı´tulo: Que e´ a Mu´sica? Autor: Hans Heinrich Eggebrecht / Carl Dahlhaus Colecc¸a˜o: Artigos LUSOSOFIA Direcc¸a˜o: Jose´ Rosa & Artur Mora˜o Design da Capa: Anto´nio Rodrigues Tome´ Composic¸a˜o & Paginac¸a˜o: Jose´ M. S. Rosa Universidade da Beira Interior Covilha˜, 2011 i i i i i i i i Agradecimento Agradece-se ao editor, Joaquim Soares da Costa, da Texto & Grafia, a ama´vel autorizac¸a˜o para aqui se oferecer aos cultores e apreci- adores da filosofia e da mu´sica, portugueses e outros, a ocasia˜o de libar estes textos de dois dos maiores musico´logos alema˜es do se´culo XX e da cena internacional. Trata-se do Capı´tulo X da obra a duas vozes Que e´ a mu´sica?, que saiu na versa˜o portuguesa em Abril de 2009. Eis o rol dos outros capı´tulos: I – Existe “a” mu´sica?; II – Conceito de mu´sica e tradic¸a˜o europeia; III – Que quer dizer “ex- tramusical”?; IV – Mu´sica boa e mu´sica ma´; V – Mu´sica antiga e Mu´sica Nova; VI – Mu´sica antiga e Mu´sica Nova; VII – Conteu´do musical; VIII – Do belo musical; IX – Mu´sica e tempo. A traduc¸a˜o tem por base o texto original – Was ist Musik? – publicado pela casa Florian Noetzel, Verlag der Heinrichshofen- Bu¨cher, Wilhelmshaven 2001 (4.a edic¸a˜o). Artur Mora˜o Jose´ Maria da Silva Rosa i i i i i i i i Que e´ a Mu´sica? Hans Heinrich Eggebrecht / Carl Dahlhaus Hans Heinrich Eggebrecht Na˜o esperemos que, no fim deste livro, surja uma definic¸a˜o. E´ ja´ rara uma definic¸a˜o de mu´sica respeitante so´ ao presente e nisto condicionada, eventualmente de modo inconsciente, pela posic¸a˜o de observac¸a˜o. Pois, como definic¸a˜o em sentido estrito, na˜o se encontra em lado algum. E uma definic¸a˜o de orientac¸a˜o histo´rica, mesmo quando pretendesse referir-se “so´” a` mu´sica europeia, reve- lar-se-ia, se ela fosse possı´vel, talvez ta˜o aproximada e pa´lida que nos levaria a perguntar se valera´ a pena. Nem sequer me propus enquadrar nos textos anteriores – em- bora eles contenham uma perspectiva – a pergunta do tı´tulo e do capı´tulo conclusivo do nosso livro de modo a limitar-me a recolher aqui o que foi dito e de modo que, adicionando o todo, se obtenha como resultado o que e´ a mu´sica. Na tentativa de captar no seu princı´pio a mu´sica (a ocidental), introduzi no discurso treˆs caracterı´sticas do conceito europeu de mu´sica, que, segundo creio, se consideram essenciais e esta˜o con- stantemente presentes, sempre com novas conotac¸o˜es, valeˆncias e inter-relac¸o˜es. Chamei-lhes emoc¸a˜o, mathesis, tempo; e as palavras i i i i i i i i 4 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus escolhidas deveriam ser menos importantes do que aquilo a que aludem. Sem du´vida, as caracterı´sticas constantes da mu´sica europeia na˜o se esgotam nas treˆs que mencionei, e pode duvidar-se que aquelas que aqui tenho por essenciais sejam verdadeiramente as mais essenciais. Em primeiro lugar, poderia citar-se tambe´m “a audibilidade”; a esse respeito, na vertente do “material sonoro” importa distinguir, na lı´ngua alema˜, entre Gera¨usch, Klang e Ton. Mas a audibilidade (incluindo as suas negac¸o˜es intencionais) pode aqui, por um lado, pressupor-se como evidente e, por outro, na˜o e´ uma caracterı´stica especı´fica da mu´sica europeia. E´, pelo contra´rio, uma caracterı´stica europeia o facto de, no centro da mu´sica, estar o som [Ton] como som “musical” (gr. phtongos, lat. sonus musicus), isto e´, como uma entidade sonora da qual se quer saber e se sabe – embora de modo sempre novo – o que ela e´. Chamei mathesis a` instaˆncia que cria esta conscieˆncia e institui assim o som como “musical”; pode tambe´m definir-se de outro modo, por ex. logos ou ratio ou teoria, ou ainda a inteligeˆncia que sistematiza, o pensamento cientı´fico. E se se afirmasse que o som, hoje, ja´ na˜o e´ o elemento essencial da mu´sica (asserc¸a˜o que seria contestada com forc¸a), o pensamento teo´rico continuaria a ser sempre a instaˆncia essencial, mesmo a respeito de tudo o mais que pode ser ouvido, na medida em que este chega a` mu´sica. (Isto vale tambe´m, por ex., para o sector da mu´sica ligeira e pop, porque ela utiliza apenas um material produzido com base teo´rica.) Poderia ainda lamentar-se a circunstaˆncia de que, nas nossas treˆs caracterı´sticas essenciais, o aspecto “instrumental” da mu´sica nos escapa, porque o som [Laut] da emoc¸a˜o e´ de natureza sobre- tudo “vocal”. No entanto, na nossa pesquisa o aspecto instrumen- tal oculta-se sob aquilo que se chamou mathesis. De facto, o som [Ton] entendido no sentido ocidental de som “musical” e´ de na- tureza instrumental: e´ – no seu “princı´pio pitago´rico” – o resultado www.lusosofia.net i i i i i i i i Que e´ a Mu´sica? 5 de operac¸o˜es “instrumentais” que lhe conferem a faculdade de dar vida a` mu´sica como forma dotada de sentido, que consta de ele- mentos aconceptuais e pode ser artificialmente produzida. Tentei aprofundar noutros lugares estas questo˜es, sempre em relac¸a˜o ao confronto entre palavra e som, lı´ngua e mu´sica, mu´sica vocal e instrumental, aos impulsos e a`s tendeˆncias que emergem do par- alelismo e da polaridade existentes entre lı´ngua e mu´sica. Aqui bastara´ repetir que – tambe´m na mu´sica vocal – o especı´fico da mu´sica, o cara´cter que no reino do sonoro e do audı´vel possui exclusivamente por si mesma, e´ de natureza instrumental, porque ele surge e tem histo´ria em virtude da actividade mental que ex- plora, ordena e sistematiza o material sonoro a nı´vel “matema´tico” e “fı´sico”, tornando-o assim disponı´vel para o pensamento musical. Poderia talvez dizer-se que, como caracterı´stica essencial da mu´sica, tambe´m o aspecto da forma, o acto de formar e estruturar deveria ter sido mencionado e discutido. O ser-audı´vel e ter-forma sa˜o qualidades de toda a manifestac¸a˜o e mensagem, para que se possam definir como musicais no sentido mais amplo da palavra; e tambe´m a peculiaridade da forma na mu´sica europeia e´ dada au- tomaticamente pela mathesis. O especificamente musical do som pode dizer-se auto´nomo sob a condic¸a˜o de que o som musical se re- alize como resultado de um reconhecimento cientı´fico da natureza do sonoro, e por isso em virtude do pro´prio sonoro, por outras palavras, que seja caracterizado por si mesmo. Corresponde ao es- pecificamente musical da forma, que e´ auto´nomo, porque desdobra o especı´fico do som musical em forma: em estruturas (qualidades dos intervalos, sistemas tonais, modalidade, qualidade e sistemas do som) que chegam na pra´tica a uma forma temporal muito mais concreta. A tal respeito a mu´sica no sentido europeu do conceito e´ – como ja´ foi dito – sempre auto´noma, mesmo quando a palavra cantada e as func¸o˜es parecem tudo dominar. E, no entanto, nunca e´ auto´noma, se a forma – mesmo quando idealizada enfaticamente www.lusosofia.net i i i i i i i i 6 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus como auto´noma – for determinada ao mesmo tempo por conteu´dos, um dos quais, e essencial, definimos como emoc¸a˜o. Mesmo se houvesse outras caracterı´sticas essenciais para la´ das treˆs aqui mencionadas, emoc¸a˜o, mathesis e tempo, estas sa˜o sem- pre suficientes para gerar uma se´rie de princı´pios que – condicionan- do-se reciprocamente na constante junc¸a˜o – caracterizam a mu´sica (no sentido europeu). Citamos aqui, de seguida, apenas sete. As treˆs caracterı´sticas dizem todas respeito ao homem no cen- tro da sua existeˆncia. A emoc¸a˜o e´, por assim dizer, o centro da natureza sensı´vel do homem. A mathesis e´ o instrumento capaz de descobrir e constituir a harmonia(ordenac¸a˜o), ou seja, a dimensa˜o que se encontra perante este centro e se lhe contrapo˜e, embora seja por ele constantemente ansiada. Mas o tempo e´ aquilo em que as outras duas se tornam realidade como mu´sica, e e´ para o homem a mais real de todas as realidades. As treˆs caracterı´sticas sa˜o todas imediatas para a mu´sica (em- bora mediadas): na˜o designam o que significam, sa˜o-no. A emoc¸a˜o e´ inerente a` manifestac¸a˜o sonora como exclamac¸a˜o do aˆnimo, activa- se imediatamente em face da produc¸a˜o e (tambe´m isto e´ claro) da reproduc¸a˜o de mu´sica. A harmonia e´, como elemento sonoro, a natureza do som seleccionada pela mathesis; a mu´sica e´ a sua aparic¸a˜o sensı´vel. E o tempo e´ uma qualidade essencial do pro´prio som, que enquanto tal faz surgir a mu´sica como jogo temporal e torna musical o tempo. Estas treˆs caracterı´sticas enquanto tais, e tambe´m o alto grau de imediatidade com que constituem a mu´sica e nela aparecem como conteu´do (ja´ com o simples ser da mu´sica) qualificam a peculiari- dade da mu´sica em relac¸a˜o a`s outras artes. O seu elemento pecu- liar e´ a determinac¸a˜o abstracta e aconceptual com que consegue acolher em si e fazer compreender com potencialidade infinita o existencial do ser humano, sendo ela pro´pria existencial. Reside aqui o primado da mu´sica em relac¸a˜o a`s outras artes, como a histo´ria demonstra incessantemente em verso˜es alternadas. www.lusosofia.net i i i i i i i i Que e´ a Mu´sica? 7 A mu´sica e´ – de modo incompara´vel no seu ge´nero e na sua am- bivaleˆncia – imagem do cosmos e quinta-esseˆncia da representac¸a˜o da paixa˜o humana, voz ange´lica em louvor de Deus e instrumento do demo´nio, promotora e destruidora do bem e do mal. Como nenhuma outra arte, ela pode sarar e consolar, embelezar e exaltar, estimular e pacificar, seduzir e fortificar. Sendo existencial neste sentido, consegue obter em grau ma´ximo o efeito geral da arte: atrair a si e ao seu mundo – um outro mundo – o homem na sua esfera de existencial. O cara´cter essencial que o conceito de mathesis define pode tornar-se responsa´vel pela historicidade da mu´sica europeia – uma capacidade de se fazer histo´ria, que se apresenta como forte inclina- c¸a˜o histo´rica, como ritmo veloz (embora de modo historicamente diferenciado) da histo´ria. De facto, o pensamento musicolo´gico, que examina a mate´ria sonora sob o aspecto das relac¸o˜es instau- radas, uma e outra vez, com a mu´sica, torna possı´vel o pensa- mento musicalmente poie´tico. E este e´ caracterizado pela contı´nua concepc¸a˜o de mu´sica sempre diferente e nova – um pensar em mu´sica que apresenta um desenvolvimento coerente nos proces- sos de ligac¸a˜o a` tradic¸a˜o e de renovac¸a˜o, e faz aparecer portanto a histo´ria da mu´sica na˜o so´ como sucessa˜o de mu´sica sempre nova, mas tambe´m como continuum de fases e esta´dios que sa˜o sempre deriva´veis um do outro, mesmo no seio da mu´sica. O pensamento musical, como pensamento teo´rico, esta´ sempre entrosado com o pensamento geral: a capacidade de a mu´sica se fazer histo´ria no seu seio torna possı´vel ao pro´prio tempo a sua participac¸a˜o na histo´ria geral e cria os pressupostos de tal implica- c¸a˜o. Ale´m disso, a mu´sica, no concurso de emoc¸a˜o, mathesis e tempo, e´ um instrumento que reage ao material com a sensibili- dade de um sismo´grafo: ela esta´ assim predestinada a representar e a exprimir com grande precisa˜o o que implica e concerne ao ser humano, ao homem na sua historicidade e a` histo´ria dos homens. www.lusosofia.net i i i i i i i i 8 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus A mu´sica e´ sem conceitos. Nisto se baseia o seu poder, aqui residem os seus limites. No seu poder, ela consegue estender-se a toda a existeˆncia humana, em todas as suas ocupac¸o˜es e situac¸o˜es. E nos seus limites pode utilizar-se, e´ funcional em todas as direcc¸o˜es, e podem atribuir-se-lhe as mais diversas func¸o˜es. A pergunta “que e´ a mu´sica?”, a` luz da insisteˆncia com que e´ feita desde a antigu- idade, e´ de natureza excepcional. Esta pergunta constitui, ainda hoje, a reacc¸a˜o a um vazio que nos inquieta. www.lusosofia.net i i i i i i i i Que e´ a Mu´sica? 9 Carl Dahlhaus A reflexa˜o sobre o que e´ a mu´sica, perante o facto de que uma abor- dagem directa e intuitiva so´ poderia descrever-se de modo vago e em termos metafo´ricos, pode partir da escrita usada para a notac¸a˜o musical e da linguagem que usamos connosco mesmos e com os outros para a entender. Na interpretac¸a˜o da escrita, embatemos, pore´m, num singular dilema. O topos litera´rio da inefabilidade, a declarac¸a˜o formal de que com as palavras seria impossı´vel expressar justamente o que e´ decisivo, constitui o modelo de um lugar comum ana´logo da este´tica musical: a ideia de que os momentos a que esta´ ligado o “verdadeiro” significado de uma obra musical na˜o podem ser fix- ados pelas notas. O que e´ escrito torna-se letra morta, o espı´rito da obra – afirma-se – na˜o e´ fixado e preservado pela notac¸a˜o, mas so´ se revela numa comunicac¸a˜o entre compositor e inte´rprete, e que utiliza o texto musical como simples veı´culo. Na concepc¸a˜o segundo a qual na mu´sica conta aquilo que na˜o pode ser transcrito pelas notas confluem, pore´m, dois elementos, que, para evitar equı´vocos, importa distinguir: por um lado, os desvios da representac¸a˜o acu´stica relativamente ao texto musical; por outro, as diferenc¸as entre o que e´ acusticamente dado e o seu significado musical. A mescla destes dois elementos na˜o e´ um facto puramente casual e expressa antes a convicc¸a˜o de que o sen- tido da mu´sica – entendido como parecenc¸a linguı´stica – consistiria justamente nas diferenc¸as entre o texto escrito e a sua representac¸a˜o www.lusosofia.net i i i i i i i i 10 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus acu´stica, ou seja, nos matizes da dinaˆmica e da articulac¸a˜o, nas alterac¸o˜es ago´gicas do ritmo. O costume de apreender uma relac¸a˜o estreita entre os desvios do texto – as pequenas variantes que de- finem o cara´cter de uma interpretac¸a˜o – e o significado musical funda-se na sensac¸a˜o de que a mu´sica diz alguma coisa, sem que seja claro e inequı´voco o que ela realmente expressa. Numa formu- lac¸a˜o paradoxal, ela surge como linguagem expressiva, sem conteu´do e objecto bem delimitados. Mas se o significado da mu´sica – o seu sentido especı´fico, aconceptual e na˜o figura´vel – na˜o e´ tanto o que e´ expresso quanto a pro´pria expressa˜o, enta˜o o modo de execuc¸a˜o, as diferenciac¸o˜es ago´gicas e dinaˆmicas introduzidas, ganham um acento grac¸as ao qual a forma existencial este´tica de uma obra musical se distingue, em princı´pio, da de uma obra poe´tica – ab- straindo das formas extremas da lı´rica que tendem a anular os sig- nificados das palavras. Se, por um lado, a obra musical – entendida como associac¸a˜o de sons com sentido – parece, pois, constituir-se so´ para la´ do texto, por outro, o conceito de obra musical, tal como se foi formando en- tre os se´culos XIV e XVIII, implica a ideia de que uma composic¸a˜o fixa em notas na˜o e´ um simples documento de pra´tica musical, mas – em analogia com um poema – e´ um texto no significado enfa´tico do termo: uma estrutura que da´ forma a um significado expressivo e cuja exposic¸a˜o acu´stica desempenha uma func¸a˜o puramente in- terpretativa. A obra, que como tal existe tambe´m quando na˜o e´ tocada, estaria portanto contida, em primeiro lugar, no texto e na˜o na execuc¸a˜o. E´ possı´vel, portanto, acentuar de modo diferenciado e ate´ con- tradito´rio a relac¸a˜o entre composic¸a˜o escrita e exposic¸a˜o acu´stica. E´ verdade que um texto musical e´ sempre, ou quase, entendido como meio para obter o fim da execuc¸a˜o na qual o escrito se apre- senta de forma sonora, em vez de simplesmente textual – objectode leitura musical. Mas ao mesmo tempo a execuc¸a˜o surge, ao inve´s, como um meio para representar o texto, um meio a que ela se sub- www.lusosofia.net i i i i i i i i Que e´ a Mu´sica? 11 ordina e cujo significado tenta manifestar: um significado que esta´, em primeiro lugar, ligado a` notac¸a˜o, e na˜o ao modo de execuc¸a˜o ou a`s diferenc¸as existentes entre a realizac¸a˜o acu´stica e o texto escrito. E na medida em que a execuc¸a˜o se concebe como meio delineia-se mais claramente o cara´cter de obra da composic¸a˜o. O que se fixou pela notac¸a˜o surge como substaˆncia ou esseˆncia da mu´sica, o na˜o registado como acidente. Ao longo da mesma linha de evoluc¸a˜o histo´rica em que a composic¸a˜o escrita, de simples esboc¸o, que como um esquema coreogra´fico delineou os contornos de um processo, se consolidou num texto, que surge como ana´logo de um texto litera´rio, afirmou-se cada vez mais, por outro lado, a convicc¸a˜o este´tica de que, na mu´sica, o na˜o registado em notas e´ o elemento decisivo. (O crite´rio da musical- idade e´ justamente a capacidade de fazer justic¸a ao na˜o registado em notas.) Contudo, a contradic¸a˜o que os separa, a acentuac¸a˜o da notac¸a˜o e, ao inve´s, a sua minorac¸a˜o, portanto, o conceito enfa´tico de texto e de obra e a opinia˜o de que, por mor do espı´rito, se podem ou ate´ devem alterar as notas de um texto musical, sa˜o entre si complementares. No se´culo XIX, a justeza da notac¸a˜o – uma justeza que se deve entender no plano este´tico como ten- tativa de consolidar o significado de cariz linguı´stico da mu´sica atrave´s da escrita, isto e´, atrave´s de um complexo de signos que expressam a sua dinaˆmica, ago´gica e articulac¸a˜o, portanto de ano- tar igualmente aquilo que se subtrai a` notac¸a˜o musical – foi igual- mente elevada a postulado; o mesmo aconteceu, alia´s, com a liber- dade da representac¸a˜o acu´stica frente ao texto escrito, o qual, as- sim se pensava, em vez de falar a partir de si, deveria ser levado a` linguagem atrave´s da interpretac¸a˜o. A relac¸a˜o entre notac¸a˜o e realizac¸a˜o acu´stica pode, pois, descrever-se em termos de diale´ctica de consolidac¸a˜o e emancipac¸a˜o: quanto mais circunstanciada e pedante se tornava a notac¸a˜o musical, tanto mais radical surgia a afirmac¸a˜o da autonomia do inte´rprete. Tentava-se consolidar o el- www.lusosofia.net i i i i i i i i 12 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus emento na˜o regista´vel em notas e, ao mesmo tempo, insistia-se na sua irracionalidade. O “significado”, que se subtrai a` notac¸a˜o, na˜o se entende apenas como a esseˆncia expressiva da mu´sica – dependente da interpretac¸a˜o –, mas tambe´m como a sua estrutura lo´gica, na˜o directamente ex- pressa pela escrita: nem a func¸a˜o tonal de um acorde nem a defini- c¸a˜o de um motivo – para na˜o falar da deduc¸a˜o de um motivo a partir de outro – se podem ler a partir das notas, as quais repre- sentam uma escrita sonora e na˜o semaˆntica. (Podemos unificar a codificac¸a˜o de func¸o˜es tonais proposta por Hugo Riemann, por ele chamada “ana´lise”, com os seus manuais sobre “fraseado” e enten- der o todo como uma tentativa de integrar a notac¸a˜o dos sons por meio de uma notac¸a˜o dos significados.) No entanto, sem termos de renunciar a` terminologia estabele- cida, na˜o devemos iludir-nos sobre o facto de que a asserc¸a˜o, se- gundo a qual a mu´sica e´ desprovida de objecto, mas expressa um significado, e´ necessariamente confusa sob o ponto de vista da teo- ria linguı´stica. A refereˆncia a uma palavra como “unico´rnio”, cujo significado e´ unı´voco, embora privado de qualquer referente real, e´ ta˜o inu´til como o recurso a um operador lo´gico como a palavrinha “ou”, que desempenha uma func¸a˜o semaˆntica, sem designar uma coisa ou uma propriedade; o conceito de unico´rnio e´, de facto, uma variante imagina´ria de algo que realmente existe e portanto, mesmo indirectamente, refere-se a` realidade, e os operadores sa˜o elemen- tos de proposic¸o˜es, cuja substaˆncia e´ formada por palavras com um conteu´do de realidade. Mas o significado da mu´sica, entendido no sentido da lo´gica harmo´nica e motı´vica, na˜o esta´ ancorado, de modo directo ou indirecto, na realidade objectiva. Em face da dificuldade de fixar o significado da mu´sica como significado ana´logo a` linguagem, talvez se fosse tentado a renun- ciar a` ideia de uma semaˆntica da mu´sica – da mu´sica desprovida de texto, na˜o programa´tica – e a limitar-se a falar de sintaxe, por um lado, e de pragma´tica, por outro. A lo´gica musical seria enta˜o www.lusosofia.net i i i i i i i i Que e´ a Mu´sica? 13 apenas uma sı´ntese de momentos sinta´cticos, e a expressividade – por exemplo, o cara´cter expressivo de uma marcha fu´nebre – se- ria uma consequeˆncia do uso que da mu´sica se faz. (Que func¸o˜es externas, desempenhadas pela mu´sica, imigrem gradualmente, por assim dizer, como caracteres para o aˆmago das obras e´ um processo histo´rico que decerto parece tornar difı´cil uma ana´lise pragma´tica; mas na˜o prejudica seriamente a tese que, em princı´pio, reduz a hermeneˆutica musical a` pragma´tica e, portanto – a interpretac¸a˜o de significac¸o˜es, em u´ltima instaˆncia, a` ana´lise de func¸o˜es). Afigura-se improva´vel, pore´m, que se possa efectivamente re- duzir a lo´gica musical a simples sintaxe. O problema complica-se depois porque, segundo parece, os pro´prios linguistas na˜o esta˜o de acordo quanto a estabelecer em que medida as regras sinta´cticas implicam momentos semaˆnticos. Para os fins da teoria musical – sem termos de nos enredar nas dificuldades na˜o resolvidas de outra disciplina – basta, pois, adoptar por agora a obsoleta distinc¸a˜o entre lo´gica e grama´tica, que esta´ documentada por exemplo na diferenc¸a entre sujeito lo´gico e sujeito gramatical de uma proposic¸a˜o linguı´sti- ca. Na transformac¸a˜o de uma proposic¸a˜o da voz activa em pas- siva muda o sujeito gramatical, mas o lo´gico permanece o mesmo. Afigura-se razoavelmente possı´vel fazer tambe´m na mu´sica uma distinc¸a˜o semelhante entre lo´gica e grama´tica. Desde 1788, ano em que foi cunhado por Johann Nikolaus Forkel, o termo “lo´gica musical” indicou, em primeiro lugar, a lo´gica harmo´nico-tonal e, em seguida, tambe´m a tema´tico-motı´vica, que a` primeira esta´ interactivamente ligada. Hugo Riemann desve- lou a esseˆncia da lo´gica harmo´nica, e portanto do nexo sistema´tico dos acordes, nas func¸o˜es tonais de to´nica, dominante e subdomi- nante. Segundo Riemann, no entanto, o significado de um acorde, a sua func¸a˜o dominante ou subdominante, e´ em princı´pio inde- pendente da posic¸a˜o que ele assume no contexto da frase musical. Pode, sem mais, postular-se – com Kirnberger – que na cadeˆncia a subdominante deve preceder e seguir-se a` dominante; todavia, www.lusosofia.net i i i i i i i i 14 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus uma dominante na˜o deixa de ser dominante pelo facto de se en- contrar numa posic¸a˜o inabitual. A regra em cuja base a progressa˜o subdominante-dominante na˜o e´ invertı´vel em dominante-subdomi- nante sem perda de efeito torna-se aqui uma regra sinta´ctica; mas a lo´gica, o nexo interno dos acordes com o centro tonal, distingue- se substancialmente da sintaxe (apesar das influeˆncias recı´procas): uma transformac¸a˜o gramatical, a transposic¸a˜o dos acordes na cadeˆn- cia, deixa inalterado, pelo menos na substaˆncia, o seu sentido tonal, como Riemann o definira. (Sem du´vida, este sentido surge a uma luz diferente, mas isto vale tambe´m para as transformac¸o˜es linguı´s- ticas: ao modificar-se uma frase da voz activa para a passiva, varia a eˆnfase dada a`s palavras e a consequente modificac¸a˜o semaˆntica pode ler-se no facto de que a forma activa sugere uma continuac¸a˜o diferente da passiva.) Que a lo´gica musical na˜o se deixe diluirinteiramente em regras sinta´cticas na˜o constitui, pore´m, um motivo suficiente para cair no extremo oposto e supor que tambe´m na mu´sica privada de texto, na˜o programa´tica, existe um estrato semaˆntico, presente em cada instante. (Os sı´mbolos musicais e as alegorias na˜o constituem um “estrato”, como o entendeu Roman Ingarden, uma vez que eles na˜o se manifestam regularmente, mas so´ de forma intermitente.) Especificar na func¸a˜o total que caracteriza um acorde o “sig- nificado” deste acorde, ou conceber como “nexo de sentido” a relac¸a˜o que existe entre temas e motivos de uma frase, na˜o quer dizer que o sentido musical se forme do mesmo que o linguı´stico. O “significado” tonal de um acorde e´ antes algo de radicalmente diferente do “significado” conceptual de uma palavra, sem que por meio desta manifesta diferenc¸a tenhamos de nos sentir obri- gados a evitar o uso equı´voco da palavra “significado”. Tal uso e´, de facto, plenamente justificado, e decerto grac¸as a uma analo- gia estrutural que subsiste, apesar da diferenc¸a de princı´pio e que e´ bastante essencial para se designar com um termo amplo como e´, justamente, a palavra “significado”. Tanto no feno´meno musical www.lusosofia.net i i i i i i i i Que e´ a Mu´sica? 15 como mo linguı´stico podemos distinguir entre presente e represen- tado: entre o que e´ dado a nı´vel sensı´vel e aquilo a que ele alude. Contra a tese de Roman Ingarden da “mono-estratificac¸a˜o” [Ein- schichtigkeit] da mu´sica, uma ana´lise fenomenolo´gica que na˜o se deixe alarmar pelo modelo da lı´ngua e que na˜o negue, sem mais, a presenc¸a de um significado quando este se na˜o encontra em sen- tido linguı´stico, devera´ insistir no facto de que na mu´sica e´ possı´vel separar do substrato acu´stico um segundo substrato, compara´vel na lı´ngua ao som das palavras; este segundo estrato – e decerto como estrato universal – constitui-se nos se´culos XVIII e XIX atrave´s das func¸o˜es tonais e dos nexos motı´vicos; a partir do momento em que ele na˜o se resolve em regras sinnta´cticas pode, sem mais, definir-se como estrado de “significados” embora, como ja´ se afir- mou, seja pouco oportuno falar de semaˆntica musical e sugerir falsas analogias linguı´sticas ou misturar de modo inadmissı´vel o estrato semaˆntico motı´vico-tonal com incluso˜es de simbologia e alegorismo. Decisivo e´ que exista uma contraparte para a sintaxe musical que, de outro modo, se deveria conceber ambiguamente como desprovida de correlato (que na lı´ngua e´ constituı´do, pelo contra´rio, pela semaˆntica). O conceito de linguagem musical, cunhado no se´culo XVIII, visava a concatenac¸a˜o de momentos lo´gicos e expressivos: a evolu- c¸a˜o ao longo da qual, a partir da mu´sica vocal, ligada a` linguagem, nasceu a mu´sica instrumental que constitui tambe´m uma linguagem, e´ um dos processos fundamentais da histo´ria da mu´sica. Entre os problemas em que nos enredamos, ao reflectir sobre a relac¸a˜o entre mu´sica e linguagem, um dos principais, embora tenha sido descurado ou, tanto quanto parece, de todo ignorado e´ a questa˜o da influeˆncia exercida no cara´cter linguı´stico da mu´sica pela linguagem que se utiliza, ao falar de mu´sica. Jamais algue´m duvidou de que a mu´sica como linguagem deve elementos deci- sivos a` mu´sica com linguagem ou relativa a` linguagem; menos evidentes parecem ser, pelo contra´rio, os efeitos que, a partir do www.lusosofia.net i i i i i i i i 16 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus discurso sobre mu´sica, teˆm ressonaˆncia na coisa em si. Por outras palavras, que influeˆncia exerce sobre o estrato semaˆntico, que sug- ere ou permite definir a mu´sica como linguagem, o facto de o trato com a mu´sica ser, em parte, mediado pela lı´ngua? Para em geral se reconhecer o problema e na˜o se ter por insen- sata a questa˜o, importa todavia libertar-se de um preconceito que, durante muito tempo, dominou de modo prejudicial as cieˆncias do espı´rito: o preconceito de que uma terminologia – um modo de falar – e´ apenas uma forma expressiva secunda´ria para ligar a palavras estados de coisas que, para a conscieˆncia, esta˜o ja´ definidos atrave´s da intuic¸a˜o imediata dos feno´menos. Como a filosofia re- conheceu, com clareza crescente, nestas u´ltimas de´cadas, a lin- guagem na˜o e´ um simples sistema semiolo´gico que exprime poste- riormente factos dados de modo pre´-linguı´stico, mas um meio que, acima de tudo, abre um acesso a`s coisas. Os feno´menos sa˜o sem- pre dados “como algo”: um objecto e´ em geral um objecto so´ no recinto de um significado determinado. Mas o significado por cuja mediac¸a˜o ele se constitui nunca e´ independente da linguagem em que este significado surge articulado. O mundo em que vivemos e´ linguisticamente constituı´do. Brotam daqui consequeˆncias que interessam a` teoria da mu´sica. Que um facto musical se na˜o esgote no substrato acu´stico, que esta´ subjacente, deveria ser um dado inquestiona´vel para os teo´ricos musicais que se libertaram do fisicalismo inge´nuo e simplista do se´culo XIX. So´ grac¸as a um tipo particular de formac¸a˜o catego- rial um feno´meno sonoro se constitui como facto musical e na˜o apenas acu´stico (onde por “acu´stico” se deveria entender o tipo de formac¸a˜o categorial que o som adquire do ponto de vista do fı´sico: a pura mate´ria perceptiva e´ uma abstracc¸a˜o, uma coisa ideal; e no entanto, ao pretender-se ainda falar com clareza da mate´ria como do substrato da formac¸a˜o musical-categorial, cai-se sem querer na tentac¸a˜o de recorrer a feno´menos acu´sticos, apesar de um feno´meno acu´stico, em sentido estrito, na˜o passar de mate´ria perceptiva no www.lusosofia.net i i i i i i i i Que e´ a Mu´sica? 17 acto de se formar atrave´s das categorias de um acu´stico, as quais interagem com as categorias de um sujeito musical, em vez de estarem a estas pre´- ordenadas). Mas a formac¸a˜o categorial, grac¸as a` qual a mu´sica se constitui como tal, e´ sempre linguisticamente determinada – e isto significa que ela e´ modelada por uma determinada linguagem. O elemento constitutivo da mu´sica na˜o e´ dado por uma “conscieˆncia em geral”, mas por uma conscieˆncia que existe na linguagem e a ela esta´ acor- rentada. Que a mu´sica seja histo´rica e linguisticamente formada representa as duas faces da mesma realidade. Na˜o e´ difı´cil demonstrar, com base nos conceitos de consonaˆncia e dissonaˆncia, cuja importaˆncia fundamental e´ indiscutı´vel, o facto de que a formac¸a˜o categorial da mu´sica depende da linguagem. A dicotomia expressa por estes dois termos antago´nicos e´ um dado da natureza, mas tem um cara´cter histo´rico. A psicologia do som, que busca extrair dados de facto naturais, fala – desde Carl Stumpf em diante – de “graus de sonaˆncia” para clarificar que “em rigor” (isto e´, no natural equipamento psı´quico do homem) subsistem apenas diferenc¸as de grau entre os acordes e que a diferenc¸a de princı´pio, a subdivisa˜o dos intervalos na classe das consonaˆncias e na oposta das dissonaˆncias, representa uma sobreformac¸a˜o histo´rica. Mas, como Stumpf admitia sem dificuldade, a psicologia do som na˜o e´ a mesma coisa que a teoria musical; e a cunhagem de neologis- mos como “sonaˆncia” e “grau de sonaˆncia”e´ apenas um salto da terminologia musical para a extramusical. (Na mu´sica do se´culo XIX, de que partiu Stumpf, os “graus de sonaˆncia” na˜o eram um facto musical com um papel activo na te´cnica compositiva). Mas no momento em que a linguagem da teoria musical, que trabalha com a dicotomia consonaˆncia-dissonaˆncia, pode ser observada a partir de fora, na sua transposic¸a˜o para a linguagem da psicolo- gia do som, surgem caracterı´sticas estruturais que na˜o se tornavam conscientes, enquanto se permanecesse ligado a` tradicional ter- minologia musical, como se esta fosse a linguagem das pro´prias www.lusosofia.neti i i i i i i i 18 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus coisas. A diferenc¸a de princı´pio entre consonaˆncia e dissonaˆncia – uma diferenc¸a que de nenhum modo foi anulada como forma in- tuitiva em virtude da deslocac¸a˜o da fronteira entre as classes de intervalos – deixa de ser o´bvia, apo´s as descobertas da psicolo- gia do som e revela-se como uma formac¸a˜o categorial de origem histo´rica. Desde o se´culo XII ao se´culo XIX compoˆs-se mu´sica com a dicotomia, sem encarar a possibilidade de se partir apenas de diferenc¸as de grau, uma possibilidade que no se´culo XX foi definida como “gradiente harmo´nico”. A formac¸a˜o categorial era, pore´m, linguisticamente determinada ou, pelo menos, delineada; de facto, a tradic¸a˜o linguı´stica da dicotomia entre consonaˆncia e dissonaˆncia era mais antiga do que a ideia compositiva de estabele- cer – por meio de uma mudanc¸a das qualidades tonais, entendida como tendeˆncia da dissonaˆncia para a consonaˆncia – nexos que representam um fragmento de lo´gica musical. A te´cnica sonora da polifonia na˜o se baseava numa intuic¸a˜o musical independente da linguagem, mas numa forma de pensamento modelada pela lin- guagem – pela tradic¸a˜o linguı´stica greco-latina. A asserc¸a˜o segundo a qual no sentido dos feno´menos musi- cais estaria contida a sua chave linguı´stica na˜o se deveria enten- der mal como tentativa de recuperar, por via linguı´stica, a histo´ria do espı´rito. Na˜o se pode falar de uma dissoluc¸a˜o da histo´ria ob- jectiva na histo´ria terminolo´gica. Quem na˜o concebe a expressa˜o linguı´stica dos factos como uma formulac¸a˜o secunda´ria, posterior, de intuic¸o˜es prima´rias independentes da linguagem, mas concebe estes factos como se fossem desde sempre linguisticamente co- constituı´dos, nem por isso e´ obrigado a tirar a conclusa˜o extrema de que a natureza das coisas coincide com a sua determinidade linguı´stica, que os feno´menos alteram a sua natureza logo que sa˜o diferentemente denominados. A considerac¸a˜o de que o sentido mu- sical depende da linguagem suscita, porventura, a conscieˆncia de que a linguagem que desvenda o acesso a um feno´meno, o im- pede ao mesmo tempo, por outro lado. Se assim na˜o fosse, difer- www.lusosofia.net i i i i i i i i Que e´ a Mu´sica? 19 entes formulac¸o˜es linguı´sticas da mesma coisa na˜o poderiam se- quer relacionar-se entre si, porque para la´ das muta´veis formulac¸o˜es na˜o existiria a “mesma coisa”; eliminar-se-ia a identidade do feno´- meno, no qual por uma troca da nomenclatura surgiriam sempre novos trac¸os. Mas se na˜o quisermos renunciar a esta identidade – e na˜o ha´ motivo para fazer de outro modo – e´ necessa´rio ad- mitir a existeˆncia de um substrato comum a`s diversas explicac¸o˜es linguı´sticas. Os graus de sonaˆncia, que Stumpf trouxe a` conscieˆncia, eram um momento integrante do feno´meno consonaˆncia que a tradic¸a˜o linguı´stica da teoria musical europeia ocultara. E se se afirmou que eles no se´culo XIX, quando foram descobertos pela psicolo- gia do som, em rigor na˜o faziam parte dos factos musicais – ou dos factos pelos quais se organiza a composic¸a˜o – tal na˜o significa, efectivamente, que eles devam, por princı´pio e para sempre, ficar excluı´dos do aˆmbito do “musical” (no sentido estrito do termo). No se´culo XX, apo´s a emancipac¸a˜o da dissonaˆncia (como passo com- positivo e teo´rico-musical para o qual Arnold Scho¨nberg encon- trou ulteriormente uma confirmac¸a˜o na psicologia do som de Carl Stumpf), os graus de sonaˆncia tornaram-se objecto de uma con- sciente disposic¸a˜o composicional, como sublinhou Ernst Krenek nos seus estudos sobre o contraponto dodecafo´nico. Foram, desde sempre, uma realidade psicolo´gica, mesmo na lateˆncia musical e teo´rico-musical; mas tornaram-se um facto musical, tal como a di- cotomia entre consonaˆncia e dissonaˆncia – so´ mediante uma de- cisa˜o compositiva, ou seja, histo´rica, em que se inseria uma ana´lise linguı´stica do feno´meno. Entre a graduac¸a˜o e a dicotomia existe, pois, uma relac¸a˜o de “sobreposic¸a˜o” ou “sobreformac¸a˜o”: o que e´ dado a nı´vel psicolo´gico, a se´rie dos graus de sonaˆncia, constitui o substrato da ideia de compor, utilizando a diferenc¸a entre duas classes de intervalos, a qual, de certo modo, e´ catapultada para o estado-de-coisas psicolo´gico (no se´culo XIV, as classes de inter- valos eram treˆs: consonantia perfecta, consonantia imperfecta e www.lusosofia.net i i i i i i i i 20 H. H. Eggebrecht / C. Dahlhaus dissonantia). Por outro lado, a pro´pria graduac¸a˜o pode elevar-se a princı´pio sinta´ctico: o nu´mero das classes de intervalo com cujas diferenc¸as se compo˜e e´ enta˜o igual ao nu´mero dos pro´prios inter- valos. Na tese segundo a qual os factos psicolo´gicos se convertem em realidades musicais so´ mediante deciso˜es compositivas, “com- por” significa apenas o seguinte: a produc¸a˜o de um progredir rig- oroso de som para som ou de acorde para acorde. E a ideia que fez da contraposic¸a˜o entre consonaˆncia e dissonaˆncia (com out- ras func¸o˜es na antiguidade) o princı´pio sustentador da escrita po- lifo´nica baseava-se na convicc¸a˜o de que, entre um grau de sonaˆncia mais baixo e outro mais alto, se pode perceber um gradiente sus- ceptı´vel de ser interpretado como tendeˆncia de um para o outro: como tendeˆncia que constitui o fundamento do progredir da mu´sica do interior para a exterior. Que a sucessa˜o dos acordes surja como uma progressa˜o por separac¸a˜o significa, pore´m, que a mu´sica na˜o so´ esta´ localizada no tempo, mas representa um processo que, em certo sentido, gera autonomamente o tempo em que se desenrola. O facto musical da contraposic¸a˜o consonaˆncia-dissonaˆncia, que brota da decisa˜o compositiva a partir da realidade psicolo´gica dos graus de sonaˆncia, e´ constitutivo do “musical” no sentido mais es- trito do termo, porque faz parte dos meios grac¸as aos quais a tem- poralidade “dada” da mu´sica se pode realizar como processuali- dade “produzida”. www.lusosofia.net
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