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Literatura Portuguesa: Poética O Renascimento português e a lírica camoniana Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof.Dr. Manoel Francisco Guaranha Revisão Textual: Profa. Ms. Silvia Augusta Albert 5 • A lírica de Luís Vaz de Camões • Contextualizando: Renascimento europeu e português • Camões, vida e obra Para que você possa apreender de modo adequado o conteúdo dessa disciplina, é muito importante realizar o seguinte percurso: a) Leitura da contextualização; b) Leitura do material teórico (esta leitura deve ser feita várias vezes destacando-se os principais conceitos ou as definições contidas no texto, bem como procurando compreendê-las por meio dos exemplos); c) Realização da atividade de sistematização; d) Realização da atividade de aprofundamento; e) Consulta ao material complementar fornecido e/ou visita aos sites sugeridos; f) Leitura da bibliografia da unidade, especialmente a que se encontra na biblioteca virtual da universidade; e g) Contato com o professor tutor para esclarecer dúvidas ou mesmo expor suas ideias a respeito do assunto. Lembre-se, você está seguindo uma disciplina na modalidade a distância, mas isso não significa que você está sozinho nesse processo: o diálogo é a forma mais produtiva de ensino e de aprendizagem. É preciso compreender, ainda, que o estudo deve ir além dos conteúdos disponibilizados nos textos da unidade e a forma de fazer isso é consultar a bibliografia indicada. Nesta unidade, estudaremos o Renascimento português e a lírica camoniana. Trata-se de um período áureo da cultura lusitana, produto da grande revolução cultural ocorrida na Europa no século XVI. Veremos alguns aspectos do contexto histórico e cultural da época mostrando como eles aparecem nas composições, notadamente as líricas, de Luís de Camões, um dos maiores poetas portugueses. Como vamos nos centrar na lírica camoniana, solicitamos que você aprofunde seus conhecimentos por meio do material complementar, que traz informações sobre Os Lusíadas, a poesia épica do autor igualmente importante, mas que representa um universo à parte na obra de Camões, embora integrado aos demais gêneros praticados pelo poeta. O Renascimento português e a lírica camoniana 6 Unidade: O Renascimento português e a lírica camoniana Contextualização A literatura de um país está intimamente ligada à história de seu povo. Como vimos anteriormente, o Trovadorismo registra o início de uma cultura independente, embora com influências de outros povos. Veremos a seguir que a marca acentuada de lirismo do período medieval irá se constituir em presença marcante nos períodos posteriores. No início do século XVI, em 1516, por exemplo, surgiu o Cancioneiro Geral, organizada por Garcia de Resende, uma compilação de poemas de poesia palaciana que inclui obras dos séculos XV e XVI. Os poemas, escritos em sua maioria em português, mas também em castelhano, tratam dos mais variados temas. Além de ser a primeira coletânea de poesia impressa em Portugal, essa compilação testemunha o surgimento da imprensa nesse país, e representa o principal repositório de poesia portuguesa da época. Você pode saber um pouco mais sobre essa obra no site: • http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/resende.htm Esses poemas, com certeza, devem ter influenciado a obra do poeta que estudaremos nesta unidade, Luís de Camões. Mas em que pese toda a tradição herdada por este poeta do Renascimento, você poderá perceber que ele assimilou, à sua maneira, os grandes temas da época e soube expressá-los por meio da mais alta literatura, fazendo com que Portugal não ficasse nada a dever às demais literaturas dessa época. Convidamos você, então, para essa fascinante viagem pela lírica camoniana, que esperamos seja um guia para que você amplie seus estudos. 7 A lírica de Luís Vaz de Camões Pode-se dizer que Luís Vaz de Camões (1524/25?-1580) foi a voz do Renascimento português. E ainda hoje, podemos ouvir essa voz que se dilui por toda a literatura luso-afro-brasileira. Dizemos a voz, porque quanto ao homem há uma biografia incerta, recuperada por documentos que se referem a ele. No entanto, por seus escritos, podemos dizer que a vida do poeta conta- se por meio de seus poemas. Saiba que, é uma parte desse percurso, que faremos aqui, caro aluno. De posse dessa proposta, você poderá ampliar suas leituras, já que o espaço de uma unidade não contempla tudo que há para dizer sobre o nosso escritor maior. Contamos sempre com a nossa capacidade de fazer um recorte significativo de Camões e com sua autonomia para ampliá-lo por meio do farto material que há na rede e fora dela. Acreditamos que, cruzando aspectos da vida e da obra desse poeta maior, você poderá tomar contato com o sujeito e a sua poesia ao mesmo tempo: sempre lembrando, é claro, que poesia é fingimento e que aqueles percalços pelos quais o poeta passou não estão, necessariamente, colocados em suas obras tal como aconteceram, mas fazem parte da experiência vivida que se transformou em arte literária. Como sempre, em literatura, o verossímil, aquilo que é possível, substitui o verídico, aquilo que aconteceu. Para que você possa compreender melhor a obra do poeta, vamos fazer aqui um breve apanhado do contexto que a envolve: o Renascimento português. O Renascimento português está inserido no Renascimento europeu, decorrente do final da Idade Média. Então, vamos tratar a seguir desse período. Contextualizando: Renascimento europeu e português O Renascimento foi um movimento artístico, cultural e científico que marcou a passagem da Idade Média para a Moderna. Ele reflete as transformações do pensamento que não dizem mais respeito ao sistema de valores da sociedade medieval, em que se colocava Deus no centro de todas as coisas, o Teocentrismo. No Renascimento, surgiram novos temas, perspectivas e interesses que não só decorreram de, mas também concorreram para o desenvolvimento científico e cultural da Europa. Embora não tenha havido uma ruptura radical em relação à Idade Média, sensível diferença entre os dois períodos se fez sentir. Essa diferença, decorrente do Humanismo que precedeu o período renascentista e com ele, às vezes, se fundiu, está ligada à visão do Homem como centro de todas as coisas. Essa é uma visão Antropocêntrica da vida, como se costuma dizer, o que estimulou um certo racionalismo. É preciso compreender que a razão em voga no Renascimento não consistia em desprezo aos valores espirituais, por outro lado, era considerada como uma manifestação do espírito humano que aproximava o indivíduo de Deus. De qualquer modo, ela permitia que o homem exercesse sua capacidade de questionar o mundo, e praticasse um dom concedido por Deus. Esse aspecto pode ser considerado um Neoplatonismo ou idealismo platônico, que aparece na poesia de Camões. 8 Unidade: O Renascimento português e a lírica camoniana Platonismo, Idealismo Platônico e Neoplatonismo: O Idealismo é a tendência filosófica que valoriza as ideias e o espírito, em desfavor da consideração do mundo material. Embora reconheça a necessidade do mundo espaço-temporal, o idealismo crê que só nas ideias, vale dizer, só no trabalho abstrato do espírito, é que se podem encontrar a verdade e a correção das falhas humanas. Assim, o idealismo que nos vem de Platão é uma filosofia que se inspira na separação rigorosa entre o que é do sensível (coisas) e o que é do inteligível (ideias), separação que foi, aliás, parcialmente reaproveitada pela igreja, na crença, que esta sempre sustentou, de que o homem é um ser que tem um corpo sensível submetido a uma alma incorporal e eterna. Para o Platonismo, a experiência do mundo sensível é enganosa, pois só o trato das ideias eleva o homem ao conhecimento verdadeiro. A tradição do Platonismo insiste na existência de dois mundos: “o mundoincorporal das ideias”, onde repousam os modelos eternos de todas as coisas, sobretudo do Bem, do Belo e do Verdadeiro, e o mundo em que vivemos, que é o lugar em que se multiplicam erraticamente as cópias imperfeitas e degradadas daqueles modelos. O homem sábio é, pois, aquele que supera, pelo exercício das ideias, os apelos da matéria e da carne, é aquele que submete o sensível ao inteligível. (RODRIGUES, 1998, p. 21) Explore Para saber mais sobre Platão e sua filosofia, acesse os sites: http://filsofos-vidaeobra.blogspot.com.br/2009/08/platao.html http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0336 Sendo assim, as obras renascentistas privilegiavam as ações humanas, ou seja, o humanismo e, para tanto, representavam-se situações do cotidiano, reproduziam-se rigorosamente os traços e formas humanas, o que se pode chamar de naturalismo, não no sentido que essa palavra tomou no século XIX, em obras que ressaltavam a aproximação entre o homem e os animais, mas no sentido de aproximação com a natureza humana em contraponto ao mundo espiritual. Esse aspecto humanista era inspirado na arte da antiguidade clássica greco-latina, das culturas grega e romana. A burguesia surgida desde a Baixa Idade Média teve seus valores representados por essa concepção do mundo e a valorização das ações humanas fez com que muitos burgueses, ao entusiasmarem-se com os temas do Renascimento, financiassem muitos artistas e cientistas surgidos entre os séculos XIV e XVI. Burguesia A burguesia é uma classe social que surgiu nos últimos séculos da Idade Média (por volta do século XII e XIII) com o renascimento comercial e urbano. Dedicava-se ao comércio de mercadorias (roupas, especiarias, joias, etc) e à prestação de serviços (atividades financeiras). Habitavam os burgos, que eram pequenas cidades protegidas por muros. Como eram pessoas ricas, que trabalhavam com dinheiro, não eram bem vistas pelos integrantes do clero católico. 9 [...] A burguesia participou do renascimento comercial e urbano.[...] Durante grande parte da Idade Média (do século V ao XII), o comércio praticamente inexistiu. Com o final das Cruzadas e a abertura do Mar Mediterrâneo, o comércio começou a crescer novamente. A burguesia contribuiu para este processo. Fonte: http://www.suapesquisa.com/historia/dicionario/burguesia.htm, último acesso em 13/10/2013, 11h34. A aproximação do Renascimento com a burguesia deu-se no interior das grandes cidades comerciais italianas do período. Gênova, Veneza, Milão, Florença e Roma, grandes centros comerciais, propiciaram a intensa circulação de riquezas e, consequentemente, de ideias que promoveram a ascensão de uma classe artística italiana. Algumas famílias comerciantes da época realizaram o mecenato, ou seja, o patrocínio das obras e dos estudos renascentistas. O movimento renascentista pode ser dividido em três períodos: o Trecento, o Quatrocento e Cinquecento, cada período abrangendo, respectivamente, os séculos XIV ao XVI. No período Trecento, destaca-se o legado literário de Petrarca (“De África” e “Odes a Laura”), que influenciou Camões, e de Dante Alighieri (“Divina Comédia”), bem como as pinturas de Giotto di Bondoni (“O beijo de Judas”, “Juízo Final”, “A lamentação” e “Lamento ante Cristo Morto”). No período Quatrocento, com representantes dentro e fora da Itália, o Renascimento contou com a obra artística do italiano Leonardo da Vinci (“Mona Lisa”) e as críticas ácidas do escritor holandês Erasmo de Roterdã (“Elogio à Loucura”). Já na fase final do Renascimento, o Cinquecento, foi um movimento que ganhou grandes proporções, dominando várias regiões do continente europeu. Em Portugal, podemos destacar Gil Vicente e Luís de Camões. Na Alemanha, os quadros de Albercht Dürer (“Adão e Eva” e “Melancolia”) e Hans Holbein (“Cristo morto” e “A virgem do burgomestre Meyer”). A literatura francesa teve como seu grande representante François Rabelais, Gargântua e Pantagruel. No campo científico, devemos destacar a teoria heliocêntrica defendida pelos estudiosos Nicolau Copérnico, Galileu Galilei e Giordano Bruno. Essa concepção abalou o monopólio do conhecimento mantido pela Igreja. A seguir, vamos falar, mais especificamente, do Renascimento português, motivado pelas Grandes Navegações, momento em que os portugueses “deram novos mundos ao mundo”, impulsionados pela necessidade de novos mercados em uma Europa que já estava um tanto saturada pelo aumento populacional decorrente do fim da Peste Negra. Explore Convidamos você, caro aluno, a visitar os sites recomendados a seguir para ampliar um pouco os conhecimentos sobre esse importante contexto que ilumina muitos aspectos da obra de Luís de Camões: Sobre as grandes navegações: Site da revista Superinteressante: http://mundoestranho.abril.com.br/materia/o-que-foram-as- grandes-navegacoes 10 Unidade: O Renascimento português e a lírica camoniana Caso queira se aprofundar no tema, indicamos a “Enciclopédia Virtual da Expansão Portuguesa”, desenvolvida pelo Centro de História de Além-Mar, unidade de investigação interuniversitária da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores. O endereço eletrônico é http://www.fcsh.unl.pt/cham/eve// Sobre o evento da Peste Negra que precedeu o período renascentista: Assista a um bom documentário do History Channel disponível no Youtube: http://www.youtube. com/watch?v=CHTIsITxmiU Sobre o Renascimento também há um bom documentário no endereço: http://www.youtube.com/ watch?v=-2VIAO_bV7g Observe também, a seguir, um mapa que mostra alguns itinerários feitos pelos portugueses, na época das grandes navegações: Viagens portuguesas. Fonte: Internet - https://www.google.com.br/ - buscar por “Grandes Navegações – imagens”. É importante também conhecer o que temos sobre a vida do poeta, ou seja, sua biografia: Camões, vida e obra Luís Vaz de Camões: • Nasceu em 1524/25, em Coimbra ou Lisboa, pouco se sabe sobre a sua família, pensa-se que teria descendência galega. Era filho de Simão Vaz de Camões e de Ana de D. Fernando. • Estudou em Coimbra de 1531 a 1541. 11 • De 1542 a 1545, Camões teria vindo de Coimbra para a corte em Lisboa. • Entre 1545 a 1548, em Ceuta, Luís Vaz de Camões prestou serviço militar. Lá, perdeu o olho direito, quando lutava a favor de D. João III. • Envolveu-se em vários duelos, num dos quais feriu Gonçalo Borges, moço de arreios de D. João III, em 16 de Junho de 1552, com a espada, o que lhe custou 8 meses de prisão, que durou até março de 1553. • Uma carta de perdão torna possível a sua liberdade, na primavera de 1553, para embarcar a bordo da nau S. Bento, em direção à Índia em serviço de El-Rei, por três anos. • No mês de Setembro de 1553, Camões esteve em Goa, depois em Malabar, com as forças do Vice-rei, para combater o rei Pimenta de Malabar. • Após um breve descanso, ele recebe ordens para viajar para a costa da China, na defesa contra os assaltos dos piratas. • Nessas viagens teria divagado, até 1560, voltando à Índia em 1661. • Estando em Goa pela última vez, Camões permaneceu um bom tempo, de 1561 a 1568. • Diz-se que naufragou no caminho para a Índia (na foz do rio Mekong, no Camboja) e salvou Os Lusíadas a nado. • De volta a Goa, talvez tenha sido novamente preso. • No início de 1569, Camões voltou à pátria, embarcando para Moçambique e depois para Portugal. • Em Portugal, em 1570, encontra-se pobre, mas já com o texto da sua epopeia, Os Lusíadas, praticamente pronto para edição. • A última coisa que Luís Vaz de Camões fez em vida foi a publicação d’Os Lusíadas, em 1572. • O Rei D. Sebastião concedeu-lhe um pagamentode 15000 réis anuais dinheiro com que Camões mantendo-se até a morte. • Não se sabe mais nada da sua biografia tardia em Portugal. A partir de 1570, parece que foi alvo de vários epigramas de autores bem aceitos na corte, o que pode significar que era invejado quer pela grandeza da sua obra quer pelo fato de beneficiar-se da pensão. • Luís Vaz de Camões faleceu no dia 10 de Junho de 1580, em Lisboa, na miséria. Adaptado de: http://camoes9a.no.sapo.pt/biografia.htm, acessado em 14/10/2014. Luís Vaz de Camões escreveu em diversos gêneros, embora a Lírica seja o gênero mais fecundo na obra do autor. Por isso, a seguir, relacionamos alguns gêneros e suas respectivas obras, e apresentamos tipos de poemas e versificação, mais presentes em sua Lírica. 12 Unidade: O Renascimento português e a lírica camoniana Gêneros cultivados por Camões Lírica Épica Dramática Cartas Soneto: forma fixa, dois quartetos e dois tercetos. Os Lusíadas, poema épico, narrativo, que conta os grandes feitos do povo português. Constitui-se de 10 cantos, com 1102 estofes em oitava rima (oitavas), que totalizam 8816 versos decassílabos. Comédias: El-Rei Seleuco, Filodemo e Anfitriões. Documentos escritos de Lisboa e das Índias que revelam as condições de vida do poeta. Redondilhas: forma poética composta por versos de 5 e 7 sílabas, redondilha menor e maior, respectivamente. Vilancete: redondilhas em que se tem o mote (frases ou versos que precisam ser desenvolvidos) e as voltas (estrofes que desenvolvem o mote). Sextina: poema de seis estâncias de seis versos e um terceto final. Égloca: poema de caráter pastoril, frequentemente dialogado. Elegia: poema que expressa temas dolorosos e tristes. Canção: no caso de Camões, poemas líricos compostos de estrofes de número regular de versos, servindo para a expressão do estado de espírito do poeta. Oitavas: estrofes ou poemas de oito versos decassílabos, organizados segundo o esquema de rimas abababcc. Ode: poema lírico e elogioso de tom solene. Costuma-se dividir a obra de Camões em duas categorias, em que se enquadram alguns recursos poéticos cultivados pelo poeta: a medida velha, versos com cinco sílabas poéticas, redondilhas menores; ou com sete, redondilhas maiores, usados nos vilancetes, por exemplo, que têm inspiração na lírica trovadoresca; e a medida nova, que é o uso dos versos decassílabos do soneto, cuja inspiração é renascentista. Assim como é difícil delimitar o final da Idade Média e o início do Renascimento, também é difícil categorizar a obra camoniana de modo rígido e pouco ganharíamos com isso. Importa, contudo, estudar o entrelaçamento entre o contexto histórico, os aspectos da vida do poeta e a forma como ele transforma esses elementos em arte. Por isso este material procura alinhavar alguns textos do escritor mostrando como determinados temas são apresentados em diferentes momentos. Um desses temas é a visão da mulher sob a perspectiva Renascentista: ora idealizada, ora apresentada como a responsável pelo sofrimento do sujeito. Em certo sentido, essa visão prolonga aquele tratamento que era dispensado à dona no Trovadorismo, mas agora ressignificado pela nova perspectiva antropocêntrica. 13 Não se sabe se Camões nasceu em Lisboa ou Coimbra, mas sabe-se que estudou em Coimbra, pois seu tio, D. Bento de Camões, era membro da congregação religiosa de Santa Cruz daquela cidade e também chanceler da Universidade. É na canção “Vão as serenas águas...” que tomamos contato com aspectos da vida do poeta ligados à sua vida em Coimbra, já que faz referência ao Mondego, rio que corta a cidade e a aspectos relativos ao desencanto amoroso do sujeito: 1. Vão as serenas águas 2. do Mondego descendo 3. mansamente que até o mar não param; 4. por onde minhas mágoas, 5. pouco a pouco crescendo, 6. para nunca acabar se começaram. 7. Ali se ajuntaram 8. neste lugar ameno, 9. aonde agora mouro, 10. testa de neve e ouro, 11. riso brando, suave, olhar sereno, 12. um gesto delicado, 13. que sempre n’ alma me estará pintado. 14. Nesta florida terra, 15. leda, fresca e serena, 16. ledo e contente para mim vivia, 17. em paz com minha guerra, 18. contente com a pena 19. que de tão belos olhos procedia. 20. Um dia noutro dia 21. o esperar me enganava; 22. longo tempo passei, 23. com a vida folguei, 24. só porque em bem tamanho me empregava. 25. Mas que me presta já, 26. que tão fermosos olhos não os há? 27. Oh, quem me ali dissera 28. que de amor tão profundo 29. o fim pudesse ver inda alguma hora! 30. Oh, quem cuidar pudera 31. que houvesse aí no mundo 32. apartar-me eu de vós, minha Senhora, 33. para que desde agora 34. perdesse a esperança, 35. e o vão pensamento, 36. desfeito em um momento, 37. sem me poder ficar mais que a lembrança, 38. que sempre estará firme 39. até o derradeiro despedir-me. 40. Mas a mor alegria 41. que daqui levar posso, 42. com a qual defender-me triste espero, 43. é que nunca sentia 14 Unidade: O Renascimento português e a lírica camoniana 44. no tempo que fui vosso 45. quererdes-me vós quanto vos eu quero; 46. porque o tormento fero 47. de vosso apartamento 48. não vos dará tal pena 49. como a que me condena: 50. que mais sentirei vosso sentimento 51. que o que minha alma sente. 52. Morra eu, Senhora; e vós ficai contente! 53. Canção, tu estarás 54. aqui acompanhando 55. estes campos e estas claras águas, 56. e por mim ficarás 57. chorando e suspirando, 58. e ao mundo mostrando tantas mágoas 59. que, de tão larga história, 60. minhas lágrimas fiquem por memória. Já nos versos 1 a 13, além da referência geográfica ao Mondego, temos a imagem das águas a que se misturam as mágoas do sujeito. Parecem mágoas eternas que contrastam com a calma e a serenidade do lugar, assim como entram em contraste, na imagem da mulher, neve – frieza e talvez desprezo – e ouro, beleza e sedução relacionadas ao aspecto solar da figura feminina que impressionou o poeta com o retrato que “sempre n’alma me está pintado”. No versos 14 a 24, aparece a temática da ruptura entre o passado de engano e o presente de desengano. Antes, o poeta diz que vivia feliz, ditoso e enganado, porque contente com a pena (o sofrimento) que procedia dos olhos da amada. A quebra provocada pela adversativa “mas” revela, nos versos 25 e 26, que não estão presentes mais aqueles olhos e, por isso, o desengano: “mas que me presta já / que tão fermosos olhos não os há?”. Nos versos 27 a 39, o poeta lamenta a perda de amor tão profundo. Em certo sentido, temos a ideia de que nada, por mais intenso que pareça, dura para sempre: “o vão pensamento/ desfeito em um momento”. Repare que são reflexões que nos conduzem à problemática do caráter efêmero, instável, mutável de tudo, o que nos parece um reflexo daquele mundo de mudanças em que viveu o sujeito. Mas essa mobilidade do mundo, das coisas, não afeta o mundo das ideias, já que a lembrança “sempre ficará firme/ até o derradeiro despedir-me”. Nos versos 40 a 52, o sujeito inverte a equação e coloca-se como vítima: o que o deixa feliz no fato de a amada não corresponder ao seu amor com a mesma intensidade é que ela não irá sofrer tanto quanto ele está sofrendo com a ruptura. Do contrário, se ela o amasse tanto quanto ele a ama, ela sofreria também e isto o deixaria mais infeliz ainda do que já está. As estrofes 53 a 60 encerram o percurso que funde a poesia e o sujeito. Numa referência metalinguística, o poeta afirma que deixa a canção, que escreve como elemento que irá perpetuar seu sofrimento. A vida é efêmera, a arte é eterna. O sofrimento, transformado em poesia, ganha uma dimensão universal. Essa consciência da arte como reflexo da vida, assim como as águas do rio e das lágrimas são reflexo do sofrimento que nos leva a refletir sobre a literaturacomo uma forma de conhecimento, de compreensão do mundo e como uma forma de expressão estética desse mundo. 15 Os temas dessa canção reaparecem na obra do poeta. Essa imagem ambígua da mulher, que na Canção causa sofrimento ao sujeito que ama, reverbera nos textos de Camões sob outra perspectiva. Veja, por exemplo, o soneto em que retrata uma imagem feminina ao mesmo tempo serena e paradoxalmente dotada de poderes mágicos que podem seduzir o sujeito: Um mover de olhos, brando e piedoso, Sem ver de quê; um riso brando e honesto, Quase forçado; um doce e humilde gesto, De qualquer alegria duvidoso; Um despejo quieto e vergonhoso; Um repouso gravíssimo e modesto; Uma pura bondade, manifesto Indício da alma, limpo e gracioso; Um escolhido ousar; uma brandura; Um medo sem ter culpa; um ar sereno; Um longo e obediente sofrimento: Esta foi a celeste formosura Da minha Circe, e o mágico veneno Que pôde transformar meu pensamento. Episódio de Circe na Odisseia de Homero. O herói Ulisses, personagem épico da Odisseia de Homero, e sua tripulação desembarcam na praia da ilha de Eana, onde vivia Circe, filha do Sol. Ao desembarcar, Ulisses subiu a um morro e, olhando em torno, não viu sinais de habitação, a não ser um ponto no centro da ilha, onde avistou um palácio rodeado de árvores. Ulisses enviou à terra 23 homens, chefiados por Euríloco, para verificar com que hospitalidade poderiam contar. Ao se aproximarem do palácio, os gregos viram-se rodeados de leões, tigres e lobos, não ferozes, mas domados pela arte de Circe, que era uma feiticeira poderosa. Todos esses animais tinham sido homens e haviam sido transformados em feras por seus encantamentos. Do lado de dentro do palácio vinham sons de uma música suave e de uma bela voz de mulher que cantava. Euríloco a chamou em voz alta e a deusa apareceu e convidou os recém-chegados a entrar, o que fizeram de boa vontade, exceto Euríloco, que desconfiou do perigo. A deusa fez seus convivas se assentarem e serviu-lhes vinho e iguarias. Quando haviam se divertido à farta, tocou-os com uma varinha de condão e eles se transformaram imediatamente em porcos, com “a cabeça, o corpo, a voz e as cerdas” de porco, embora conservando a inteligência de homens. Euríloco se apressou a voltar ao navio e contar o que vira. Ulisses, então, resolveu ir ele próprio tentar a libertação dos companheiros. Enquanto se encaminhava para o palácio encontrou-se com um jovem que se dirigiu a ele familiarmente, mostrando que estava a par de suas aventuras. Revelou que era Hermes e informou Ulisses acerca das artes de Circe e do perigo de aproximar-se dela. Como Ulisses não desistiu de seu intento, Hermes deu-lhe o broto de uma planta chamada Moli, dotada de poder enorme para resistir às bruxarias, e ensinou-lhe o que deveria fazer. 16 Unidade: O Renascimento português e a lírica camoniana Ulisses prosseguiu seu caminho e, ao chegar ao palácio, foi recebido cortesmente por Circe, que o obsequiou como fizera com seus companheiros. Depois que ele havia comido e bebido, tocou-o com sua varinha de condão, dizendo: - Ei! procura teu chiqueiro e vá espojar-se com teus amigos. Em vez de obedecer, Ulisses desembainhou a espada e investiu furioso contra a deusa, que caiu de joelhos, implorando clemência. Ulisses ditou-lhe uma fórmula de juramento solene de que libertaria seus companheiros e não cometeria novas atrocidades contra eles ou contra o próprio Ulisses. Circe repetiu o juramento, prometendo, ao mesmo tempo, deixar que todos partissem sãos e salvos[...]. Cumpriu a palavra. Os homens readquiriram suas formas, o resto da tripulação foi chamado da praia e todos foram tratados magnificamente durante vários dias, a tal ponto que Ulisses pareceu ter-se esquecido da pátria e se resignado àquela vida inglória de ócio e prazer. Por fim, seus companheiros apelaram para seus sentimentos mais nobres, e ele recebeu a censura de boa vontade. Circe ajudou nos preparativos para a partida e ensinou aos marinheiros o que deveriam fazer para passar sãos e salvos pela costa da Ilha das Sereias. As sereias eram ninfas marinhas que tinham o poder de enfeitiçar com seu canto todos que o ouvissem, de modo que os infortunados marinheiros sentiam-se irresistivelmente impelidos a se atirar ao mar, onde encontravam a morte. Circe aconselhou Ulisses a cobrir com cera os ouvidos de seus marinheiros, de modo que não pudessem ouvir o canto, e a amarrar-se a si mesmo no mastro dando instruções a seus homens para não libertá-lo, fosse o que fosse que ele dissesse ou fizesse, até terem passado pela Ilha das Sereias. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Circe, último acesso em 13/10/2013. A referência à imagem mitológica e mundana da Circe, com que encerra o texto, contrasta, pelos poderes mágicos e mundanos da figura que seduziu Ulisses e transformou seus homens em porcos utilizando elementos mágicos, com a figura da mulher, que ele constrói ao longo dos doze primeiros versos do poema, caracterizada pela brandura, piedade, humildade, honestidade, doçura, vergonha, gravidade, bondade, medo, obediência. Podemos dizer que existem aí duas mulheres: uma que se mostra e outra que é, residindo nessa tensão o Bem e o Mal. Em outra figura de mulher misturam-se neve e ouro, frieza e calor, doçura e sedução. Essa mesma ambiguidade do elemento feminino permeia a redondilha em que o poeta pinta o retrato da mulher que vai à fonte: MOTE Descalça vai pera a fonte Lianor, pela verdura; vai fermosa e não segura. 17 VOLTA Leva na cabeça o pote, o testo nas mãos de prata, cinta de fina escarlata, sainho de chamalote; traz a vasquinha de cote, mais branca que a neve pura; vai fermosa e não segura. Descobre a touca a garganta, cabelos d’ ouro o trançado, fita de cor d’encarnado... Tão linda que o mundo espanta! Chove nela graça tanta que dá graça à fermosura; vai fermosa, e não segura. Glossário Testo = tampa do pote. Chamalote = tecido de lã e seda. Vasquinha = Saia de vestir por cima da roupa com muitas pregas na cintura. De cote = de uso diário. Veja como Lianor é retratada cromaticamente: a verdura por onde caminha, a prata das mãos, a escarlata (vermelho) da cinta, a brancura da neve, o dourado dos cabelos. Neste retrato colorido, temos a fusão do elemento feminino com a natureza por meio da verdura; a referência à frieza, por meio da prata e da neve; a referência às cores quentes, que nos remetem ao desejo que a mulher provoca no sujeito, quer pela beleza do ouro, quer pela sensualidade do vermelho que carrega na cinta. O contraste entre as cores frias e quentes reflete, de certo modo, o contraste entre os sentimentos do sujeito em relação à mulher. Este quadro vivo também é um bom exemplo daquele naturalismo renascentista a que nos referimos. Não é só por causa do pote que leva na cabeça que a mulher vai “formosa e não segura”, mas talvez muito mais pela sedução que exerce sobre o sujeito. Podemos elencar alguns temas recorrentes na lírica camoniana. Entre eles, a valorização da experiência real em detrimento de um saber imaginativo, fruto, em grande parte, do antropocentrismo renascentista; a saudade, aspecto do espírito português desde o Trovadorismo, vide as Cantigas de Amigo em que a mulher chorava a ausência do amado; as contradições inerentes à vida humana que se materializam nos textos, por meio das antíteses e dos paradoxos (como mostramos na imagem da mulher, por exemplo); o desconcerto do mundo, fruto das ideias de Heráclito (RODRIGUES, 1998, p. 67), redimensionadas para a realidade do tempo de mudanças em que o poeta viveu, pela percepção Maneirista da existência que já revela o fim do Renascimento e o surgimento do período Barroco. 18 Unidade: O Renascimento português e a lírica camoniana Heráclito:(535 a.C. - 475 a.C.) filósofo consideradoo “pai da dialética” É o pensador que afirma que “tudo flui” do fogo, que seria o elemento do qual deriva tudo o que nos circunda. Maneirismo: movimento artístico europeu surgido entre 1515 e 1600, como uma revisão dos valores clássicos e naturalistas prestigiados pelo Humanismo renascentista. Manifestou-se na pintura, escultura e arquitetura na Itália, onde se originou, mas também influenciou as outras artes e a cultura de praticamente todos os países europeus e até das colônias da América e no Oriente. Em linhas gerais, caracterizou-se pela sofisticação intelectualista, pela valorização da originalidade, pelo dinamismo e complexidade e pelo artificialismo no tratamento dos temas, a fim de se conseguir maiores emoção, elegância, poder ou tensão. Tem como marca a contradição e o conflito. A palavra deriva do termo italiano maniera, “maneira”, indicando o estilo pessoal de determinado autor. Pode-se dizer que o Maneirismo marca a passagem do Renascimento para o Barroco, período em que as contradições irão se intensificar. No poema épico Os Lusíadas, Camões insere o episódio O Velho do Restelo, personagem que acompanha a partida da expedição de Vasco da Gama em direção às Índias, na praia do Restelo, e critica o empreendimento. Ao descrever a figura desse Velho, Camões confere-lhe uma autoridade não só pela imagem, “o aspecto venerando” que a idade traz, mas diz também que ele tem “um saber só de experiências feito” que inspira as palavras do esperto peito, “experto peito”, no dizer de Camões. Mas um velho, de aspecto venerando, Que ficava nas praias, entre a gente, Postos em nós os olhos, meneando Três vezes a cabeça, descontente, A voz pesada um pouco alevantando, Que nós no mar ouvimos claramente, C’um saber só de experiências feito, Tais palavras tirou do experto peito: (Os Lusíadas, Canto IV, estrofe 94). Explore Saiba mais sobre o episódio O Velho do Restelo, Canto IV, estâncias 94 a 104 de Os Lusíadas, visitando o site: http://www.tabacaria.com.pt/lusiadas/restelo.htm Ainda no epílogo do poema, quando se dirige ao rei D. Sebastião, expressando desencanto com o destino da nação, o poeta reafirma o valor da experiência. Ao honesto estudo, o saber que vem dos livros, juntam-se a experiência e o engenho: 19 Mas eu que falo, humilde, baixo e rudo, de vós não conhecido nem sonhado? Da boca dos pequenos sei, contudo, que o louvor sai às vezes acabado. Nem me falta na vida honesto estudo, com longa experiência misturado, nem engenho, que aqui vereis presente, cousas que juntas se acham raramente. Que me quereis, perpétuas saudades? Com que esperança ainda me enganais? Que o tempo que se vai não torna mais E, se torna, não tornam as idades. (Os Lusíadas, Canto IV, estrofe 154). Sobre o tema da saudade, podemos usar como exemplo, entre tantos, o soneto a seguir: Aquela triste e leda madrugada, Cheia toda de mágoa e de piedade, Enquanto houver no mundo saudade, Quero que seja sempre celebrada. Ela só, quando amena e marchetada Saía, dando ao mundo claridade, Viu apartar-se duma outra vontade, Que nunca poderá ver-se apartada. Ela só viu as lágrimas em fio, Que de uns e de outros olhos derivadas Se acrescentaram em grande e largo rio. Ela ouviu as palavras magoadas Que puderam tornar o fogo frio E dar descanso às almas condenadas. O tema da partida, da despedida durante a madrugada, desdobra-se no tema da saudade gerada pela separação involuntária, pelo apartamento de duas vontades que não aceitam essa realidade. Ao mesmo tempo, e por isso, continuam unidas pelas “lágrimas em fio” que se “acrescentam em grande e largo rio”, ou seja, pelo imenso sofrimento provocado pelo distanciamento. Neste poema, o poeta recupera a imagem da madrugada como um ser mitológico, a Aurora de róseos dedos, a deusa grega do amanhecer, que se renovava todos os dias e voava pelos céus anunciando a chegada da manhã. Tinha como parentes o irmão, Hélio, deus do Sol, e uma irmã, Ártemis, deusa da Lua e da Caça, além de muitos maridos e quatro filhos, os ventos Norte, Leste, Oeste e Sul. A madrugada, que traz o dia, a claridade e a luz, surpreende a partida, a separação. A dor e a mágoa dos amantes são tão intensas a ponto de esfriar o próprio fogo dos infernos: “tornar o fogo frio/ E dar descanso às almas condenadas.” Neste discurso fundem-se, portanto, no tema da saudade, paganismo e Cristianismo. 20 Unidade: O Renascimento português e a lírica camoniana Quanto à temática do desconcerto do mundo, podemos vê-la manifestando-se claramente nas redondilhas a seguir: Ao desconcerto do mundo Os bons vi sempre passar No mundo graves tormentos; E, para mais me espantar, Os maus vi sempre nadar Em mar de contentamentos. Cuidando alcançar assim O bem tão mal ordenado, Fui mau, mas fui castigado: Assim que, só para mim, Anda o mundo concertado. Percebe-se a clara inversão de valores: aos bons sobram os tormentos e aos maus os contentamentos. O senso de injustiça amplia-se mais para o sujeito poético que, ao agir mal, é castigado. Para ele, que constitui uma espécie de ser de exceção, paradoxalmente, até o concerto é desconcerto, ou seja, até aquilo que é bom torna-se ruim especialmente para o sujeito. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades. Continuamente vemos novidades, Diferentes em tudo da esperança; Do mal ficam as mágoas na lembrança, E do bem, se algum houve, as saudades. O tempo cobre o chão de verde manto, Que já coberto foi de neve fria, E enfim converte em choro o doce canto. E, afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto: Que não se muda já como soía. Neste soneto, a temática da mudança está associada à temática do desconcerto e da saudade. Tudo muda tanto que, no último terceto, percebemos o paroxismo, o ponto máximo da mudança: até ela não muda como soía, ou seja, como costumava mudar. Analisamos alguns poemas da Lírica de Camões, no intuito de mostrar a importância de entrelaçar conhecimentos sobre contexto da época de produção, obras e vida do autor, para atribuir sentidos aos poemas que lemos. Reforçamos a orientação de ler o material indicado nos links e ampliar conhecimentos por meio das referências bibliográficas, para que você possa estar bem preparado para ler e fruir poemas tão importantes para a história da literatura portuguesa, como são os de Camões. 21 Material Complementar Ao abordar a obra de Camões, não poderíamos deixar de apresentar, mesmo que resumidamente, sua grande obra épica: Os Lusíadas. Acompanhe, portanto, o texto a seguir. Camões épico: Os Lusíadas. Além da poesia lírica, Camões escreveu a epopeia Os Lusíadas (1572), o mais importante poema épico da literatura portuguesa. Epopeia é uma narrativa, geralmente em verso, que conta os grandes feitos de um herói (Ulisses – em Odisseia, Aquiles – em Ilíada, e Enéas em Eneida) ou de um povo, como no caso de Os Lusíadas, que canta as glórias do povo português no período das Grandes Navegações. O poema tem como herói coletivo o povo português Em Portugal, no século XV, a necessidade de conhecimento e domínio do espaço físico fez com que se desenvolvesse um espírito de ousadia que levou a uma abertura de mentalidades, como disse o próprio Camões: “Novos mundos ao mundo irão mostrando” Canto II, estrofe 45. Luís de Camões viveu em um período em que Portugal atingiu o seu ponto mais alto de domínio do mundo, por causa dos Descobrimentos. Essa experiência que lhe serviu de inspiração, aliada ao renascimento cultural, lhe deu a conhecer as epopeias clássicas, originando, então, a criação de uma epopeia nacional, pela necessidade que os portugueses tinham de uma obra que cantasse os feitos da nação. Os feitos Portugueses forneceram o argumento,a demonstração da força humana, do domínio da inteligência do Homem sobre os elementos da natureza. Estrutura de Os Lusíadas Estrutura externa O poema divide-se em dez cantos, cada um deles com um número variável de estrofes, que, no total, somam 1102. As estrofes são todas oitavas, têm oito versos, e estes são decassílabos, isto é, cada verso tem dez sílabas métricas, obedecendo ao esquema de rimas “abababcc” (rima cruzada, nos seis primeiros versos, e emparelhada, nos dois últimos). Estrutura interna Como a epopeia clássica, a obra de Camões é constituída por cinco partes: Proposição — O poeta começa por declarar aquilo que se propõe fazer, indicando de forma sucinta o assunto da sua narrativa: falar não só sobre os navegadores que tornaram possível o império português no Oriente, sobre os reis que promoveram a expansão da Fé e do Império, mas também sobre todos aqueles que se tornam dignos de admiração pelos seus feitos. Esta proposição ocupa as três primeiras estrofes do Canto I: 22 Unidade: O Renascimento português e a lírica camoniana As armas e os barões assinalados, Que da ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados, Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados, Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram; E também as memórias gloriosas Daqueles Reis, que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando; E aqueles, que por obras valerosas Se vão da lei da morte libertando; Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte. Cessem do sábio Grego e do Troiano As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandro e de Trajano A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Netuno e Marte obedeceram: Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta. Invocação — Nessa parte, o poeta dirige-se às Tágides (ninfas do Tejo), para lhes pedir o estilo e eloquência necessários à execução da sua obra; afinal, um assunto tão grandioso exigia um estilo elevado, uma eloquência superior, “de tuba canora e belicosa” e não de flauta; daí a necessidade de solicitar o auxílio das entidades protetoras dos artistas (Canto I, estâncias 4 e 5). O poeta pede que as águas do Tejo sejam elevadas à categoria das águas da fonte de Hipocrene, uma nascente de água doce, situada na encosta leste do Monte Hélicon, na Grécia, tradicionalmente consagrada a Apolo e às musas, que teria brotado de uma pedra a partir de uma patada de Pégaso, o cavalo alado. Ela era considerada a fonte de inspiração poética por excelência, sendo que quem bebia das suas águas ficava em comunhão com as musas. E vós, Tágides minhas, pois criado Tendes em mim um novo engenho ardente, Se sempre em verso humilde celebrado Foi de mim vosso rio alegremente, Dai-me agora um som alto e sublimado, Um estilo grandíloquo e corrente, Porque de vossas águas, Febo ordene Que não tenham inveja às de Hipoerene. 23 Dai-me uma fúria grande e sonorosa, E não de agreste avena ou frauta ruda, Mas de tuba canora e belicosa, Que o peito acende e a cor ao gesto muda; Dai-me igual canto aos feitos da famosa Gente vossa, que a Marte tanto ajuda; Que se espalhe e se cante no universo, Se tão sublime preço cabe em verso. Dedicatória — É a parte em que o poeta oferece a sua obra ao rei D. Sebastião (Canto I, estâncias 6-18). Narração — O poeta canta os feitos dos Portugueses, tendo como ação central a viagem de Vasco da Gama à Índia. Paralelamente, surge a narração da História de Portugal. A narração começa “in media res”, ou seja, no meio da história, já na viagem, o que é uma característica da epopeia clássica. A narração desenvolve-se em quatro planos diferentes, mas estreitamente articulados entre si: 1. Plano da viagem — A ação central do poema é a viagem de Vasco da Gama às Índias. 2. Plano da História de Portugal – Para enaltecer seu povo, Camões usa artifícios para contar a história do país ao longo do poema: a) Narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melinde — O rei recebe Vasco da Gama e procura saber quem é ele e donde vem. Para lhe responder, Vasco da Gama localiza o reino de Portugal na Europa e conta-lhe a História de Portugal até ao reinado de D. Manuel. Ao chegar a este ponto, conta inclusivamente a sua própria viagem, desde a saída de Lisboa até chegarem ao Oceano Índico, visto que a narrativa principal se iniciara “in media res”, isto é, quando a armada já se encontrava em frente às costas de Moçambique. b) Narrativa de Paulo da Gama ao Catual — Em Calecut, uma personalidade hindu (Catual) visita o navio de Paulo da Gama, que se encontra enfeitado com bandeiras alusivas a figuras históricas portuguesas. O visitante pergunta-lhe o significado daquelas bandeiras, o que dá a Paulo da Gama o pretexto para narrar vários episódios da História de Portugal. c) Profecias — Os acontecimentos posteriores à viagem de Vasco da Gama não podiam ser introduzidos na narrativa como fatos históricos. Para isso, Camões recorreu a profecias colocadas na boca de Júpiter, Adamastor e Tétis, principalmente. 3. Plano Mitológico, dos Deuses ou Maravilhoso (conflito entre os deuses pagãos) — Camões imaginou um conflito entre os deuses pagãos: Baco opõe-se à chegada dos Portugueses à Índia, pois receia que o seu prestígio seja colocado em segundo plano pela glória dos Portugueses, enquanto Vênus, apoiada por Marte, os protege. 24 Unidade: O Renascimento português e a lírica camoniana O maravilhoso tem uma função simbólica: esta intriga dos deuses reflete indiretamente as dificuldades que os Portugueses tiveram que vencer e inculca a ideia de que os portugueses eram seres predestinados para estas façanhas do destino e que os próprios deuses o desejavam. A mitologia permite a evolução da ação (os deuses assumem-se como adjuvantes ou como oponentes dos portugueses) e constitui, por isso, a intriga da obra. São eles: Júpiter, Deus do Céu e da Terra, pai dos deuses e dos homens; Netuno, Deus do mar; Vênus, Deusa do amor e da beleza; Baco, Deus do vinho e do Oriente; Apolo, Deus do Sol, das artes e das letras; Marte, Deus da Guerra, velho apaixonado de Vênus; Mercúrio, Mensageiro dos deuses. 4. Plano das considerações do poeta — Por vezes, normalmente em final de canto, a narração é interrompida para o poeta apresentar reflexões de carácter pessoal sobre assuntos diversos, a propósito dos fatos narrados. Epílogo – encerramento do poema, que ocupa as estrofes 145 a 156 do Canto X, quando o poeta confessa estar cansado de cantar para “Gente surda e endurecida” e que sua pátria está metida “no gosto da cobiça e na rudeza de uma austera, apagada e vil tristeza”: Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho Não no dá a pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na rudeza Duma austera, apagada e vil tristeza. Texto adaptado do site: https://sites.google.com/site/vamosestudarportugues/Home/9o-ano/os-lusiadas/analise-de-os-lusiadas, último acesso em 19/10/2013. 25 Referências CAMÕES, Luís Vaz de. Luís de Camões: lírica, épica, teatro, cartas. João das Neves e Douglas Tufano (org.). São Paulo: Editora Moderna: INL, 1980. COELHO, Jacinto do Prado. Dicionário de literatura: literatura brasileira, portuguesa, galega e estilística literária.Porto: Figueirinhas, 1987. MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 20ª ed. São Paulo: Cultrix, 1984. . A Literatura Portuguesa através dos textos. 12ª ed. São Paulo: Cultrix, 1981. RODRIGUES, Antonio Medina. Roteiro de leitura: sonetosde Luís Vaz de Camões. São Paulo: Ática, 1998. Fontes eletrônicas de consulta: Jornal de Poesia: http://www.jornaldepoesia.jor.br/camoes.html, acesso em 14/10/2013 19h40. Tabacaria: http://www.tabacaria.com.pt/lusiadas/restelo.htm, acesso em 20/10/2013. 26 Unidade: O Renascimento português e a lírica camoniana Anotações www.cruzeirodosulvirtual.com.br Campus Liberdade Rua Galvão Bueno, 868 CEP 01506-000 São Paulo SP Brasil Tel: (55 11) 3385-3000
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