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Pontes de Miranda TRATADO DE DIREITO PRIVADO Tomo II Bens. Fatos jurídicos Atualizado por Vilson Rodrigues Alves 1a edição t 0 1 1 0 » A t D I S T R I B U I D O R A Parte G eral 2000 FATOS JURÍDICOS EM GERAL FATOS JURÍDICOS “STRICTU SENSU” FATOS JURÍDICOS ILÍCITOS ATO-FATO ILÍCITO ATOS ILICÎTOS STRICTO SENSU ATOS-FATOS JURÍDICOS ATOS JURÍDICOS STRICTO SENSU NEGÓCIOS JURÍDICOS Concepção, nasci mento com vida Duração da vida até certo momento Loucura, surdo-mu- dez, cegueira Viúvez Ausência Parentesco Morte Adjunção, mistura, confusão Aquisição da pro priedade pela per cepção dos frutos Aquisição da pro priedade pela pen dência dos frutos Perecimento do ob jeto do direito Retirada de coisas móveis que guar necem o prédio locado Responsabilidade em caso de fôrça maior ou caso for tuito Mau uso da proprie dade Tomada de posse com violação da posse de outrem Gestão de negócios contra a vontade presumível ou ma nifestada do dono (art. 1.332) Responsabilidade por ofensa à boa- fé, no trato dos negócios (e. g., ne gar-se a assinar es critura pública) Atos do art. 159 e, a contrario sensu, do art. 160 Tradição da posse (art. 520, II) Tomada de posse (art. 493, I) Ocupação Especificação Feitura de, livro, de quadro, de estátua Descoberta científi ca (arts. 649-673) Habitação (residên cia) (arts. 31-34) Invenção (art. 603) Abandono da posse (art. 520 ,1) Abandono da pro priedade imobiliá ria (art. 589, III) Imposição de nome ou de pseudônimo Auto-imposição de nome e de pseu dônimo Pagamento Constituição de do micílio (arts. 31- 34) Gestão de negócios sem mandato (art. 1.331) Restituição do pe nhor (art. 803, 2â parte) Perdão Quitação Denúncia Outorga de poder Autorização Assentimento a ato de outrem Transmissão da pos se, não ex lege, nem por tradição (art. 493, III) Derrelicção (art. 592, parágrafo único) Constituto posses- sório Renúncia da pro priedade imóvel (art. 589, III, e § 1-°) Cessio actionis (ces são de oretensão, art. 621) Promessas unilate rais Contratos . ' i i M i i i i H i ' u i i i y ......mm i r . m f f n n - - . . ! . 'iinnnn'j í . i inn : I1 miTi'ini'i " ni........ ..1111111............. ....... 224 P ontes de M ira n d a Capítulo V II Atos-Fatos Jurídicos § 209. Conceito e lugar em classificação dos fatos jurídico« 1. Classe dos atos-fatos jurídicos. Os atos-fatos jurídicos sôo 01 fatos jurídicos que escapam às classes dos negócios jurídicos, dos atos jurídicos stricto sensu, dos atos ilícitos, inclusive atos d<1 infração culposa das obrigações, da posição do réu e de excetuado (ilicitude infringente contratual), das caducidades por culpa, e do‘i fatos jurídicos stricto sensu. Abrangem os chamados atos reci/s, a responsabilidade sem culpa, seja contratual seja extraconlra tuai, e as caducidades sem culpa (exceto o perdão). Ainda quan do, no suporte fático, de que emanam, haja ato humano, cont vontade ou culpa, esses atos são tratados como ato-fato. Os fatos ou atos excludentes (não os confundamos com os fatos ou atoí; extintivos) não entram nessa classe, porque o direito somente se. preocupa com eles, para enunciar, ainda no terreno fático , que, se o suporte fático A é suficiente, ocorrendo o fato a ou o ato, positivo ou negativo, b, o suporte fático fica diminuído de a, OU de b, e, pois, é insuficiente. O direito, por isso mesmo que, 0 propósito de tais fatos excludentes, se mantém no plano fático (= na descrição do suporte fático suficiente), pode entender que o suporte fático do momento A somente entra no mundo jurídico se a, ou b, não ocorre. 2. Ato humano e ato-fato. Ato humano é o fato produzido pelo homem; às vezes, não sempre, pela vontade do homem. Se o direito entende que é relevante essa relação entre o fato, a von tade e o homem, que em verdade é dupla (fato, vontade-homem), o ato humano é ato jurídico, lícito ou ilícito, e não ato-fato, nem 422 Pontes de Miranda íato jurídico stricto sensu. Se, mais rente ao determinismo da natureza, o ato é recebido pelo direito como fato do homem (relação “fato, homem”), com o que se elide o último termo da primeira relação e o primeiro da segunda, pondo-se entre parên teses o quid psíquico, o ato, fato (dependente da vontade) do homem, entra no mundo jurídico como ato-fato jurídico. Não se desce à consciência, ao arbítrio de se ter buscado causa a fato da vida e do mundo (definição de vontade conscien te); satisfaz-se o direito com a determinação exterior. Actus vem de ago, agere. Há movimento próprio, com objetivo, ou mesmo fim; não há só o alcance, que é o da pedra que rola e bate na muralha, ou da fruta, que cai. Agir com o dedo indicador deu Indago, indagação. Agir, indeciso, deu ambiguus, ambigüidade. Porque já há opção no agir, e bastou o prefixo para a confundir. Tanto é implícita a opção no agir, que at, “mas”, no latim, e ak, "mas”, no gótico, no anglo-saxônico e no velho saxônico, têm o mesmo étimo. No factum, há, apenas, o “feito”; donde poder-se distinguir do fato a vontade (distinguire uoluntatem a facto). Se esvaziamos os atos humanos de vontade (= se dela abstraímos = se a pomos entre parênteses), se não a levamos em conta para a juridicização, o actus é factum, e como tal é que entra no mundo jurídico. É de tratar-se, então, como aqueles fatos que, de ordinário,_ ou por sua natureza, nada têm com a vontade do homem. E o casus (cf. casus fortuitus, Casum sentit dominus, Casus a nullo praestatur), a simples queda, o acaecimento, ou acontecimento, duas palavras portuguesas que têm o mesmo étimo (cadescere, como cadere, cair). I. Atos Reais § 210. Conceito de atos reais ]. Espécie de atos-fatos jurídicos. Os atos reais, ditos, assim, por serem mais dos fatos, das coisas, que dos homens - ou atos Tratado de Direito Privado 423 naturais, se separamos natureza e psique, ou atos meramente externos, se assim os distinguirmos, por abstraírem eles do que se passa no interior do agente - são os atos humanos a cujo suporte fático se dá entrada, como fato jurídico, no mundo jurí dico, sem se atender, portanto, à vontade dos agentes: são atos- fatos jurídicos. Nem é preciso que haja querido a juridicização deles, nem, a fortiori, a irradiação de efeitos. Nos atos reais, a vontade não é elemento do suporte fático (= o suporte fático seria suficiente, ainda sem ela). 2. Exemplos de atos reais. São os principais atos reais: a) a tomada de posse ou aquisição da posse, b) a transmissão da posse pela tradição; c) o abandono da posse; d) o descobrimen to do tesouro; e) a especificação; f) a composição de obra cien tífica, artística ou literária; g) a ocupação. F. von Savigny (System , III, 312 s.) ainda tinha o pagamento como negócio jurídico, bilateral, sem levar em conta os muitos casos em que se não exige, sequer, a colaboração do devedor e do credor. Para se explicarem tais exceções à pretensa regra de se submeter o pagamento aos princípios do negócio jurídico, chegou-se a pensar em ficção da aceitação (processo de constru ção que O. Biilow, Über den Begriff des gerichtlichen Geständnisses, Archiv für die civilistische Praxis, 88, 333, energicamente zurzia, cf. A. Stölzel, Schulung, II, 2ä ed., IX, e E. Alexander, Die rechtliche Natur der Erfüllung, 16). A concepção bilateralistica perseguia os juristas. Assimilava-se a solução das dívidas ao con trato, ao acordo de transmissão. Contrato liberatório, cria-o J. A. Gruchot (Die Lehre von derZahlung der Geldschuld, 12); negó cio jurídico bilateral, porém não contrato, afirmava L. Goldschmidt. Todavia, J. Köhler (Annahme und Annahmeverzug, Jahrbücher für die Dogmatik, 17, 362) feriu o ponto; há pagamento e objeto de pagamento. Ainda depois do Código Civil alemão, persistiram os contratualistas (F. Schollmeyer, Das Recht der Schuldverhält' nisse, 275; R. Stammler, Das Recht der Schuldverhältnisse, 221; B. Matthiass, Lehrbuch, 2- ed., 374; A. Stölzel, Schulung, II, 2* ed., 156; G. C ohn , em W. Endem ann, H andbuch des 424 Pontes de Miranda Handelsrechts, III, 1.000; O. Berner, Verrechnung uon Zahlungen, 11; A. Affolter, Zur Lehre vom Rechtsgeschäfte, 6 s. e 19; W. Hertz, Die Zahlung einer fremden Schuld, 5, e outros). Quando se descia à aplicação do conceito, as divergências surgiam, como a respeito do pagamento por ato unilateral do devedor, que alguns negavam (e.g., C. Schanzenbach, Giebt es oder inwieweit giebt es in gegenseitigen Verträgen eine Pflicht zur Annahme der Gegenleistung?, 7) e a inexigência de pressupostos subjetivos por parte do credor, em certos casos (e.g., educação, tratamento e alimentação de absolutamente incapazes, P. Oertmann, Das Recht der Schuldverhältnisse, 97; F. Schollmeyer, Das Recht der Schuldverhältnisse, 277). O que os impressionava era o ato positivo que há no pagamento, sem que fossem de ânimo isento para elevar construção doutrinal científica. Por outro lado, não se atendeu a que a cooperação do credor só é de mister se se precisa de negócio jurídico para o adimplemento, o que nada tem com a questão de ser negócio jurídico, ou não, o pagamento (P. Schingnitz, Inwieweit ist zur Erfüllung einer Obligation eine Mitwirkung des Gläubigers erforderlich?, 3 s.). § 211. A) Tomada de posse 1. Poder fático. A tomada de posse é poder fático sobre a coisa, ao iniciar-se; é o ponto inicial, portanto, desse poder; ato huma no, que se trata como ato-fato (A. Manigk, Das Anwendungsgebiet der Vorschriften für die Rechtsgeschäfte, 30; P. Eltzbacher, Die Handlungsfähigkeit, I, 209 s.; antes deles: G. Planck, Bürgerliches Gesetzbuch, III, 32; O . Fischer e W. Henle, Bürgerliches Gesetzbuch, 419; H. Neumann, Handsausgabe, I, 414; H. Dernburg, Das Bürgerliche Recht, III, 2- ed., 54 s.; J. Biermann, Das Sachenrecht, 2ä ed., 5 s.; E. I. Bekker, Zur Reform des Besitzrechts, Jahrbücher für die Dogmatik, 30, 310-316; E. Strohal, Zum Besitzrecht des Entwurfs, Jahrbücher fü r die Dogmatik, 70-78; Der Sachbesitz nach dem BGB., Jherings Jahrbücher, 38, 66-68; F. Kniep, Der Besitz, 91 s.; Fr. Leonhard, Tratado de Direito Privado 425 Die Vertretung beim Fahrniserwerb, 69 s.; R. Saleilles, De la Possession des meubles, 1-66; L. Raape, Besitzerwerb ohne Besitzwillen, passim). A opinião contrária (V. Bruns, Besitzerwerb durch Interessenvertreter, 58 s.; E. Brodmann, em G. Planck, Kommentar, III, 36 s.; Ebbecke, Besitzstand, Das Recht, IX, 265; E. Zitelmann, Übereignungsgeschãft und Eigentumserwerb an Bestandteilen, Jherings Jahrbücher, 70, 21) foi superada. No direito brasileiro, destoaria do art. 485, que diz: “Considera se possuidor todo aquele que tem de fato o exercicio, pleno, ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade", 2. Conseqüências. Para tomar posse, inicialmente, não é preciso que o tomador da posse seja capaz. O absolutamente incapaz pode tomar posse da coisa; e.g., o louco, que apanhou a moeda e a tem consigo, tomou e mantém a posse dela, e a criança de dez meses que segurou a pepita de ouro somente pode ser desapossada pela pessoa que a vigie, podendo estabelecer-se colisão de interesses entre ela e essa pessoa, ainda titular do pátrio poder, Não há alegabilidade de vícios de vontade quanto à tomada de posse; portanto, não há anulabilidades da tomada de posse. Nem há nulidades. Tomada de posse ou houve, ou não houve. § 212. B) Tradição da posse 1. Entrega corporal, ato-fato. A entrega corporal da coisa supõe, do lado de quem obtém o poder fático, o mesmo que ocorre na ocupação; e, do lado de quem entrega, o fato de transmitir a posse, como ato. Já no ato da tansmissão, pelo lado ativo, há abstração do impulso “toma”!; basta que haja “sim”!, ou “como queira”!. Com os olhos, aponta-se; aponta-se com outros gestos, - com o próprio silêncio, entregando-se, desde que se possa colher a vontade de entregar, ou de iniciativa própria, ou de iniciativa de quem vai obter o poder fático, ou de outrem, que sugira, peça, ou pergunte, O conteúdo do ato é, pois, extre 426 Pontes de Miranda mamente rico. Não há a exigência de manifestação de vontade, quer da parte de quem transmite, quer da parte de quem obtém o poder fático. Não se pode pensar, portanto, na “tradição” se gundo o art. 520, II, como se fosse a “tradição” segundo os arts. 620-622. A tradição, transmissão da posse, é ato-fato jurí dico, não é negócio jurídico, nem ato jurídico stricto sensu. 2. Conseqüências. O absolutamente incapaz pode entregar a posse, inclusive ao próprio absolutamente incapaz; não pode, pela tradi ção, transmitir a propriedade da coisa móvel. O relativamente incapaz e os que precisam do assentimento de outrem podem transmitir a posse; seria anulável a tansmissão da propriedade, sem o assentimento da outra pessoa. Sempre que há transmissão da posse, sem que haja transmissão da propriedade, há perda da posse, por uma pessoa, e aquisição derivada da posse, por outra (Martin Wolff, Lehrbuch, 8- ed., 32, considera-a originária, o que é contraditório com dizer que o absolutamente incapaz pode entregar a posse). Em todo o caso, ainda exigiam a capacidade negociai, do lado dos transmitentes, V. Bruns (Besitzerwerb durch Interessenvertreter, 82 s.), P. Klein, Die Rechtshandlungen im engeren Sinne, 103; E. Brodmann (em G. Planck, Kommentar, III, 45 ed., 387), A. von Tuhr (Der AUgemeine Teil, II, 1, 361), E. Zitelmann (Ubereignur.2sgescháft und Eigentumserwerb an Bestandteilen, Jherings Jah'-bücher, 70, 23 s.) e L. Raape (Gebrauchs- und Besitzüberlassung, Jherings Jahrbücher, 71, 160 s.). Nem se exige ser captz ao que adquire a posse (L. Rosenberg, Sachenrecht, 28). A aquisição da posse não requer capacidade negociai, exceto quando se tratar de algum dos modos de aquisição da posse que não sejam a apreensão da coisa ou o exercício do direito (art. 4-93, I), ou o fato de se dispor da coisa ou do direito (art. 493, II): o art. 493, parágrafo único, só se há de entender como referência ao art. 493, III (qualquer dos outros modos de aquisição em geral). Não há vícios de vontade, nem nulidade, a propósito de tradição segundo o art. 520, II. Tratado de Direito Privado 427 § 213. C) Abandono da posse 1. Abandono do poder fático. A posse perde-se, entre outros casos, pelo abandono do poder fático (art. 520, I). É preciso, portanto, que se perca o poder fático; não basta a perda do direito à posse (daí haver ações de outrem, contra o possuidor, para imissão na posse). Se é certo que a manifestação de vontade de transmitir a posse pode bastar à perda, não basta ao abandono dizer o possuidor que o quer deixar de ser (L. Rosenberg, Sachenrecht, 50; E. Rohde, Studien im Besitzrecht, XV, 58; diferente, K. Cosack, Lehrbuch, 11, 89). A vontade somente é suficiente se o possuidor não tem mais o poder fático, ou não o exerce efetivamente, ou se adquiriu a posse pelo constituto possessório. A manifestação de vontade não é necessária; por isso, o abandono da posse é ato real, subclasse dos atos-fatos jurídicos. Abandono de posse não é declaração de vontade, hem, sequer, manifestação de vontade. 2. Impedimento aoexercício do poder fático. Mero impedimen to, passageiro, ao exercício do poder fático não acarreta perda da posse. O viajante continua de ter posse das coisas que estavam sob o seu poder efetivo, ao embarcar; porque a ausência não o suspende, nem o interrompe, nem permite aos outros que se apossem dessas coisas. O condenado, durante o tempo da prisão, ou fuga, não deixa de possuir o que possuía e não abandonou. Se alguém se esquece do livro, que estava a ler no campo, ou na praia, ou levara à casa de outrem, ou não encontrara ao procurá- lo, não perde a posse. Se a inundação cobre o sítio, ou parte dele, a posse continua. Se o incêndio na casa, ou no prédio vizinho, obriga o possuidor dela a tirar o que nela se contém e levá*lo para longe, não perde a posse. Nem a perde o que, locatário do prédio, o fecha, e vai morar em outro, ou noutra cidade. Perde* a, por outro se meter no sítio, o que recebeu a posse em escritura e nSo foi tomar o poder fático. Perde-a também o que é forçado ao abandono, pelo estado de necessidade (A. von Tuhr, Der Allgemelne Tell, II, 199), como se o piloto lança a terra alguma 428 Pontes de Miranda arma que não pode, por lei, estar a bordo do avião, ou o coman dante do navio, para diminuir o peso da carga, joga ao mar mercadorias. Não na perde o que admite restrições ao seu poder fático, como se, para as férias, o possuidor permite que o vizinho passe por seu sítio, por ter caído a ponte para a rua em que esse mora. 3. Conseqüências. Ato-fato, o abandono da posse não exige a capacidade para os atos jurídicos negociais e stricto sensu. O absolutamente incapaz não pode derrelinqüir (= perder, por aban dono, a propriedade), mas pode abandonar a posse, se ele, e não o representante legal, a tinha; idem, o relativamente incapaz. O servidor da posse pode perdê-la pelo possuidor; porém também aqui não basta a manifestação de vontade, se abandono do poder fático não houve. Se o servidor da posse se serve dela para seus fins, ou se apropria da posse, o possuidor não na perde (L. Rosenberg, Sachenrecht, 49). Não há vícios de vontade, nem há licitude, a propósito de abandono da posse. § 214. D) Descobrimento de tesouro 1. Natureza do ato. O descobrimento do tesouro (arts. 607-610 do Código Civil brasileiro; argentino, arts. 2.585-2.590) é ato- fato. Supõe-se que a coisa esteja guardada e não se saiba quem a guardou. Não é preciso que tenha tido dono; abstrai-se disso. Pode ter tido, pode não ter tido (as moedas abandonadas, porque alguém as jogou no mar, derrelinqüindo-as, e alguém, achando-as, guardou no buraco da pedra, não mais tinham dono, e podem ser achadas pelo que se aproprie delas, como tesouro). No suporte fático há de haver o descobrimento (fato) e a tomada de posse: se A descobre tesouro na parede do hotel e fecha de novo a parede, porque tem de embarcar naquela hora e lhe falta tempo para falar ao proprietário do hotel, que tem direito sobre a metade (art. 607), pode outro hóspede, ou o empregado, ou outra pes Tratado de Direito Privado 429 soa, descobri-lo de novo, e retirá-lo. O suporte fático só se com pletou para o segundo descobridor. O que toma posse do tesouro, sem ter sido descobridor, também não tem qualquer direito a ele. 2. Conseqüências. Há, no descobrimento de tesouro, dois atos- reais, o de descobrir e o de tomar posse do tesouro. Não é preciso que o descobridor seja capaz: a) o absolutamente incapaz pode descobrir o tesouro, e tomar posse dele; pode descobri-lo, e tomar posse dele, por e/e, o seu representante legal, ou o servidor da posse; b) o representante legal de incapaz que, sem ser como representante, descobriu tesouro, pode tomar posse dele, por meio do absolutamente incapaz; c) o servidor da posse, encarregado de verificar se há algum valor nos móveis, ou nas paredes, ou no telhado, descobre pelo que o encarregou disso, bem assim os possuidores imediatos encarregados das pesquisas; d) se o que é dono do prédio, ou patrão de alguém, ou possuidor mediato, não encarregou alguém das pesquisas, não descobre: quem descobre é o que pratica o ato real; e) as pessoas jurídicas descobrem e tomam posse, por seus órgãos. Não há vícios de vontade a propósito de descobrimento de tesouro, como da toma da de posse. Nem nulidade. § 215. E) Especificação 1. Conceito. Na especificação, o suporte fático há de conter a formação de noua species, coisa nova, pelo ato de se elaborar com uma, ou mais matérias, ou de se transformarem duas ou mais matérias ou uma só. Não só se repara: reparar é manter o que é, com retoques, consertos, respaldos; nem se unifica: a união de duas ou mais coisas, para se ter uma só, não é especificação. 0 conceito de novo é o da vida de todos os dias: supõe, apenas, que se reconheça o elemento trabalho humano (ofícios manuais, in dústrias). É tanto especiiicador o ourives quanto o marceneiro e o cozinheiro. São-no o escultor e o pintor, ainda que o sistema 430 Pontes de Miranda jurídico haja adotado o instituto da propriedade intelectual à parte, porque os conteúdos dos direitos são diferentes, como diferentes as composições dos respectivos suportes fáticos. A mudança de forma nem sempre é necessária; pode haver nova species com a mistura química, sem que a liga de metais baste, ou baste o metal sem mistura. 2. Conseqüências. A especificação é ato-real; não exige capaci dade: ainda absolutamente incapazes podem especificar. Nem há anulabilidades por vícios de vontade. Nem especificações nulas. 3. Ilicitude e vícios de vontade do especificador. A propósito de especificação, não há pensar-se cm ilicitude, ou qualquer outra causa de nulidade, nem em anulabilidade por vícios de vontade. Se o ato do especificador foi previsto em lei penal, entra no mundo jurídico como ato ilícito penal (crime ou contravenção), não a especificação, ato-faLo jurídico. § 216. F) Criação intelectual 1. Ato-fato jurídico. A criação científica, literária, ou artística, é ato-real. A pintura, a escultura, ou livro, ou a descoberta científica, ou o trabalho de ourives, feito pelo louco, ou pelo surdo-mudo, que não pode exprimir a vontade, ou pelo menor de dezesseis anos, é aquisição originária dele. Os efeitos provenientes de regis tro são relativos à segurança jurídica, e já se passam noutro plano que o capítulo do direito das coisas concernente à aquisição pelo ato real. A figura da especificação pode surgir quando se trata de propriedade literária, ou artística; porque essa é relativa à repro dução, ou à divulgação, e aquela, precisamente, à matéria com que se criou. Tratado de Direito Privado 431 2. Conseqüências. O ato de criação intelectual não está subordi nado aos princípios de validade, nulidade, ou anulabilidade. Não há descobrimento científico nulo, ou anulável, nem criação literá ria, ou artística, nula ou anulável. Se o ato ofendeu algum direito alheio, tem-se de verificar como é que tal ato entra no mundo jurídico, porém, então, não é como ato de criação que entra. 0 plágio é ato ilícito, quer no direito privado, quer no direito penal. A ofensa à reputação de alguém é ato ilícito, quer no direito privado, quer no direito penal. Não é o ato de criação que está em causa. Não se pode pedir a anulação do ato-fato jurídico da criação científica, literária, ou artística, por ter havido dolo, erro, ou coação, simulação, ou fraude contra credores. Se houve negó cio jurídico respeito ao livro, à descoberta científica, à escultura, à pintura, ou ao trabalho de ourives, qualquer nulidade ou anula bilidade somente pode ser concernente ao negócio jurídico. § 217. G) Ocupação1. Ato-fato jurídico. Na ocupação, há ou não há a vontade do ato de ocupar; portanto, o direito recebe o suporte fático (* a regra jurídica incide e o suporte fático entra no mundo jurídico), sem se interessar pela vontade que houve, ou não, de que o suporte fático entrasse no mundo jurídico. Para vender e comprar, é preciso que os dois figurantes queiram a venda e compra, um a venda e outro a compra. Para trocar, que ambos queiram a troca. Para ocupar, não: se é certo que há ato humano, necessíi- riamente, na ocupação, esse ato é recebido pelo mundo jurídico com indiferença pela vontade de adquirir a propriedade. A opinião contrária, que tem a ocupação como negócio jurídico, revela re miniscências reprováveis, e está superada, mal servindo à doutrina fancesa e a outras. Na Alemanha mesmo, - se bem que a torrente dos juristas excluam o elemento vontade (E. Zitelmann, Irrtum und Rechtsgeschäft, 311-316; R. Leonhard, Allgemeiner Teil, 253; A. Manigk, Das Anwendungsgebiet der Vorschriften über 432 Pontes de Miranda Rechtsgeschäfte, 24-36; F. Endemann, Lehrbuch, I, 8ä ed., 123; Fr. Hellmann, Vorträge, 61, Zur Lehre von der Willenserklärung, Jherings Jahrbücher, 42, 441 s.; O. Fischer e W. Henle, Bürgerliches Gesetzbuch, 48; Karl Gareis, Der Allgemeine Teil, 106 s.; P. Eltzbacher, Die Handlungsfähigkeit, 216 s.; H. Isay, Zur Lehre von den Willenserklärungen, Jherings Jahrbücher, 44, 43 s.), - ainda admitiam que se tratasse de negócio jurídico E. 1. Bekker (System, II, 47), O. von Gierke (Deutsches Priuatrecht, I, 281), H. Rebhein (Das Bürgerliche Gesetzbuch, I, 101), L. Enneccerus (Das Bürgerliche Recht, 2- ed., I, 138) e L. Kuhlenbeck (Von den Pandekten, 395). 2. Discussão do assunto. O problema da classificação da ocupa ção (arts. 592 e 593), isto é, a questão de se saber se a ocupação é negócio jurídico, ou ato jurídico stricto sensu, ou ato-fato jurí dico, é uma das mais delicadas do direito, não só do direito privado como do direito público. No direito civil brasileiro, assume importância especialíssima, devido a ter-se abstraído do elemento animus, na teoria da posse, indo-se, em alguns pontos, além do Código Civil alemão, e ao fato de ter o art. 592 redação que afasta a discussão havida, no direito civil alemão, em torno do § 958, alínea l ã, do Código Civil alemão. Enquanto o § 958, alínea I a, diz que adquire a propriedade da coisa o que toma posse própria (= como dono), in Eigenbesitz nimmt, de coisa móvel adéspota (= sem dono), eine herrenlose bewegliche Sache, o Código Civil brasileiro usou de expressões que de modo ne nhum lembram o animus da teoria romana, subjetivista, da posse (art. 592): “Quem se assenhorear de coisa abandonada, ou ainda não apropriada, para logo lhe adquire a propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei”. Nenhuma alusão ao animus domini. É verdade que a melhor interpretação do § 958, alínea l 5, é a que não empresta à distinção entre posse própria (Eigenbesitz) e posse derivada assunção de atitude quanto à teoria da posse. O direito civil brasileiro não pode ser criticado pelo uso de tais expressões: o art. 486 evitou-as. Porém é demasiado exprobrar-se ao Código Civil alemão, que delas usou, o conservar resto do velho animus Tratado de Direito Privado 433 domini, como fez L. F. A. E. Bartels (Ausführungen zur Besitzlehre des BGB, Gruchots Beiträge, 42, 646); tanto mais quanto não importa, sequer, a opinio dominii, que é necessária ao elemento fático da boa-fé, porém não ao suporte fático da posse própria (o ladrão tem posse própria). O texto do art. 592 do Código Civil brasileiro facilita, de lege lata, a solução da questão, tornando inútil o exame das discussões em torno do § 958, alínea I a, do Código Civil alemão. Por exemplo, H. Dernburg (Das Bürgerliche Recht, III, 47; idem, Krebs, Uber Rechtshandlungen im engeren Sinne, 28 s.) aludiu à “situação de proprietário”, o que lembra a referência de R. von Jhering (Der Besitzwille, 167) à proprieda de, que se “presume” em todo poder fático sobre a coisa (cp. Código Civil francês, art. 2.230); J. Auerbach (Merkmale und Bedeutung des Eigenbesitzes, 4 s.) e Friebe (Ist zum Eigenbesitz der sogen, animus domini erforderlich?, 67 e 68), nas pegadas de O. Fischer em torno do § 872 do Código Civil alemão, invo cam como conteúdo da posse própria o “fim de exercício da propriedade”, o que mal disfarça o elemento subjetivo. Por sua vez, R. Knauth (Die Bedeutung des Eigenbesitzes, 13) chegou a dizer que se não pode negar a existência de tal elemento subjetivo. O grande erro da doutrina alemã foi inquirir da questão da inca pacidade, perguntando se o incapaz podia ocupar, em vez de apurar qual a diferença, se tal diferença existia, entre o sentido da posse própria, tratando-se de teoria possessória, e a posse própria exigida para a aquisição por ocupação. Quando se livrava disso, atribuía demasiada significação ao § 958, alínea l ã. Foram típicas de uma e outra atitude as opiniões de F. Kniep (Der Besitz, 104), que exigia o elemento volitivo para aquisição, descambando para a teoria subjetiva da posse, que o Código Civil alemão repelira, e de E. Strohal (Der Sachbesitz, Jherings Jahrbücher, 38, 13), que admitiu ter o Código Civil recebido, a propósito de posse própria, a teoria romanística da posse com animus domini, depois de haver sustentado, de lege ferenda (Zum Basitzrecht des Entwurfs, Jahrbücher für die Dogmatik, 29, 367), que a posse pode «er própria sem haver animus domini. Aqueles que exigem como distintivo da posse própria e da posse derivada o fim da posse, <134 Pontes de Miranda como G. Planck (Kommentar, III, 32), confundem dois dos três fatos típicos, que, no terreno filosófico e científico, temos carac terizado com toda precisão: o fim, o objetivo e o alcance (a pedra, que cai, alcança o muro; o cão, que corre para agarrar o pau, avançou para objetivo; o homem, que sai para procurar o livro, de que precisa, tem um fim, que é o encontrá-lo). Na ocupação, como na aquisição da posse sem aquisição da propriedade (a coisa de outrem), não é preciso que haja o fim, - basta que haja o objetivo. Por isso mesmo a ocupação, no direito brasileiro, com grande acerto de iure condendo, é ato-fato jurídico, podendo adquirir a posse e a propriedade o absolutamente incapaz, por loucura, por idade, ou por surdo-mudez. Se alguém, que está a mudar-se, joga à rua, ou a terreno aberto, ou a monturo, brinque dos de criança, ou latas vazias ou cheias, a criança, ou o louco, ou o surdo-mudo absolutamente incapaz, que de algum desses objetos se assenhoreie, com objetiuo de assenhorear-se, o que o cão também poderia ter, se torna proprietário da coisa apreendida. 3. Pressupostos da ocupaçãbo. Os dois primeiros pressupostos objetivos da ocupação são a apropriabilidade da coisa e o ser sem dono. Se a coisa é suscetível de ser objeto de propriedade e não é, no momento, de ninguém, os dois pressupostos estão satisfeitos. Os dois outros pressupostos são subjetivos, porém não psiquicos, de jeito que apenas completam aqueles: poder ser titu lar do direito de propriedade o que ocupa (capacidade de direito); 0 fato da ocupação por ele. Quem, capaz de direito, se apossa de coisa sem dono, que poderia ter dono, adquire-a por ocupação. A apropriabilidade apura-se no momento, tal como está a coisa, ou tal como ficou por ato do que dele se assenhoreou. O ser sem dono a coisa só se apura, quanto à ocupação, objetiva mente: para se saber se houve aquisição, não importa a opinio dominii do possuidor; pode alguém adquirir, crendo que a coisa, de que se assenhoreou, pertencea outrem, e não se adquire a coisa que pertence a outrem (e.g., foi perdida), ainda que se tenha intenção de adquiri-la e se creia que não tem dono. A capacidade Tratado de Direito Privado 435 de direito têm-na todos os homens e pessoas jurídicas. O poder efetivo é aquele mesmo que se define a respeito da posse (arts. 485 e 493, I). No direito brasileiro, abstrai-se do animus e do corpus. A teoria da posse, que se adotou, reflete-se no direito das coisas, quanto à ocupação, com todas as conseqüências que F. C. Gesterding (Entw ickelte Lehre vom E igentum , 69) e E. Pagenstecher (Die römische Lehre vom Eigentum, II, 59) não admitiriam, de se apreender sem o corpus, considerado essencial ao factum apprehensionis (cp. J. Schmitt, Die Okkupation als Eigentumserwerb, 16; A. Müller, Der Okkupationserwerb geschä ftsunfähiger Personen, 12 s.). Certamente não se há de dar solução à questão tão grave como se fora questão de sentimento (H. Dittenberger, Der Schutz des Kindes, 102); mas seria desgar rar da interpretação científica excluir-se da aquisição por ocupação o absolutamente incapaz, como fizeram R. Kasten (Kann Der Geschäftsunfähige nach dem BGB. occupieren? 1 s.), T. Kurts (Ist die Aneignung ein Rechtsgeschäft, und welche Folgen hat dies?, 39) e A. Müller (Der Okkupationserwerb, 63 s.). O animal bravio, que a criança apanhou, é dela, pois que não tinha dono: basta que o seu objetivo (objetivo, não fim, que pode existir, porém não é necessário) seja ficar com ele, assenhorear-se dele. Se a criança se assenhoreia do enxame de abelhas, sem que o dono da colméia o reclame imediatamente, é da criança o enxa me. As pedras, as conchas e outras substâncias, minerais, vegetais, arrojadas à praia pelo mar, se não apresentarem sinal de terem dono (elemento objetivo), são de quem as apanha, ainda que se trate de criança. Se no terreno se pode caçar, a caça, que a criança apreendeu, ou em cujo encalço foi e feriu, ainda que tenha entrado, depois de ferida, em terreno alheio, é da criança. O que a criança pescou é dela. O que ela achou, e era sem dono, é dela. 4. Conseqüências. Não há nulidade, nem anulabilidade da ocupa ção. Ocupação há, ou não há. Os vícios de vontade não a atin gem, porque só entra no mundo jurídico o ato humano como fato, e não como ato.
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