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Francisco Amaral - Autonomia Privada e Atos jurídicos


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Francisco Amaral
Professor 'l'ilular de Direito Civil e Romano na Faculdade 
de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro 
Da Academia Brasileira de Letras Jurídicas 
Da Ac cade mia dei Giusprivatisti Europei 
Doutor Honoris Causa da Universidade Católica Portuguesa
DIREITO CIVIL 
INTRODUÇÃO
6â Edição 
Revista e A um entada de acordo 
com o novo Código Civil e leis posteriores
R6NOVRR
Rio de Janeiro • São Paulo • Recife 
2006
Editoriais c Autorais
RUSPUITE O AUTOK 
Nao Fa ç a C o p i a
CAPITULO X 
Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada
I Sumário: 1. Os fatos jurídicos. 2. O papel da vontade na nomogênese jurídica.
! ' Vontade, liberdade, autonomia da vontade e autonomia privada. 3. Autonomia 
ffniiada. Conceito, natureza, âmbito de atuação e limites. 4. Perspectivas histórica,
li lógica e funcional da autonomia privada. 5. Fundamentos da autonomia 
^Êbrivada. A liberdade e o personalismo ético. 6. A formação histórica do conceito. 
Kjif''atores morais, políticos e econômicos na sua formação. 7. A função histórica da 
p autonomia privada. Fundamento ideológico. 8. Conseqüências jurídicas do 
princípio da autonomia privada. 9. As críticas à autonomia privada. Argumentos 
lie natureza filosófica, moral e econômica. 10. A intervenção do Estado e os limites 
ila autonomia privada. 11. A funcionalização dos institutos de direito privado. A 
autonomia privada em uma perspectiva funcional.
I. Os fatos jurídicos
; Fatos ju ríd ico s são acontecim entos que produzem efeitos ju r íd i­
cos, causando o nascim ento, a m odificação ou a extinção de rela­
ções ju ríd icas e de seus d ire ito s.1 Os fa tosju ríd icos dizem-se positivos 
((liando im plicam um a ação ou declaração de vontade, e negativos 
i(liando consistem em um a abstenção ou omissão, p o r exem plo, o 
ilào pagam ento , a p ro rrogação tácita de um con tra to , o silêncio 
circunstanciado etc.; simples, q u ando consistem em um único even- 
lo, com o o nascim ento, a m orte, e complexos, q u ando requerem o
% Glóvis Beviláqua. Teoria Geral do Direito Civil, p. 210 e segs.; Eduardo Espíno­
la. Sistema do Direito Civil brasileiro, 2- vol.. n. 226
u m gnu w vu — introauçao
concurso de vários acontecim entos sim ples, ou de vários elem entos, 
com o no caso de usucapião, de con tra to etc. No fato com plexo, s< 
os efeitos se contam desde o início, diz-se que a eficácia é ex tunc, se 
do fim, ex nunc.
Tais acontecim entos podem constituir-se em simples m anifesta 
ção da natureza, sem qualquer participação da vontade hum ana. Sã« > 
acontecim entos naturais e chamam-se fatos jurídicos em senso estrito. I \ > 
dem ser ordinários, os m ais com uns e de m aio r im portânc ia , poi 
exem plo, o nascim ento, a m orte, o decurso cie tem po, a doença; <• 
extraordinários, com o o acaso, nas suas espécies de caso fortu ito ou 
força m aior. E podem consistir em m anifestações da vontade h um a­
na. Neste caso, são fatos voluntários e chamam-se atos jurídicos (ato, de 
agere, agir). Q uando tais atos consistem em simples declarações de 
vontade que produzem efeitos já estabelecidos na lei, dizem-se atos 
jurídicos em senso estrito, com o, po r exem plo, o casam ento, o reconhe­
cim ento de filho, a fixação de dom icílio, a apropriação de coisa aban­
donada, ou de n inguém , a comistão, a confusão, a adjunção, a espe­
cificação, a tradição, a percepção de frutos, a ocupação. Q uando tais 
atos consistem em declarações da vontade h um ana destinadas a p ro­
duzir determ inados efeitos, perm itidos em lei e desejados pelo agen­
te, isto é, quando contêm determ inada in tenção, chamam-se negócios 
jurídicos, com o os contratos, o testam ento, as declarações unilaterais 
de vontade. Tem os então que, no ato ju ríd ico , a eficácia decorre da 
lei, é ex lege, enquan to no negócio ju ríd ico decorre da p róp ria vonta­
de do agente, é ex voluntate. O u tra d iferença existe na circunstância 
de que o ato ju ríd ico em senso estrito é simples atuação de vontade, 
enquan to o negócio ju ríd ico é instrum ento da au tonom ia privada, 
poder que os particulares têm de criar as regras de seu p róp rio com ­
portam ento para a realização de seus interesses.
Com o terceira espécie de atuação da vontade h um ana ao lado 
do ato ju ríd ic o e do negócio ju ríd ico , que se constituem em com ­
portam ento lícito, isto é, não violador do direito , tem os o ato ilícito, 
aquele que, p raticado com culpa, p roduz lesão a um bem ju ríd ico 
(CC, art. 186) e faz nascer a obrigação de inden izar (CC, art. 927).
O Código Civil atual, d iversam ente do de 1916, que, no seu art. 
81 excluía o ato ilícito da espécie ato ju ríd ico , po rque eivado de 
an tiju rid ic idade , qualidade do que é co n trá rio ao d ire ito , com ­
preende na categoria dos fatos ju ríd icos o negócio jurídico, o ato jurí­
dico lícito e ato ilícito, considerando tam bém este ju ríd ico , pois que 
tam bém produz efeitos ju ríd ico s2. Aos atos ju ríd icos lícitos aplicam -
2 Cfr. M oreira Alves, A Parte Geral do Projeto de Código Civil Brasileiro, p. 85-86.
'li!*, ao que couber, as disposições legais p ertinen tes aos negócios 
juifclicos (CC, art. 185).
I Num a classificação sistem ática e conclusiva, podem os en tão dis­
tinguir os fatos ju ríd icos em fatos naturais e fatos humanos ou volun­
tários, Os voluntários subdividem-se em fatos lícitos e fatos ilícitos. Os 
lí tos lícitos subdividem-se em negócios jurídicos e atos jurídicos lícitos,3 
Os ilícitos referem -se no Código com o atos ilícitos (CC, art. 186) 
ijli Para alguns autores, ainda, os atos ju ríd ico s em senso estrito 
dividem-se em atos m ateriais e participações.4 Atos materiais são as 
m anifestações de vontade sem destinatário e sem finalidade específi­
ca, com o no caso de ocupação, derrelição, fixação de dom icílio, 
descoberta de tesouro, comissão, confusão, adjunção, especificação, 
pagam ento indevido etc. Sua execução e eficácia são sim ultâneas.5 
participações são declarações de vontade para ciência de in tenções 
OU de fatos, com o a intim ação, a in terpelação , a notificação, a opo­
sição, o aviso, a confissão, a denúncia etc.
2. O papel da vontade na nomogênese jurídica. Vontade, liberdade, 
autonomia da vontade e autonomia privada6
A atividade espiritual do hom em desenvolve-se de dois m odos 
diversos: o conhecer e o querer. Pelo prim eiro , apreendem -se os
3 Acerca da possibilidade de distinção de espécies no ato juríd ico existem 
duas teorias: a unitária e a dualista. Para a primeira, a categoria básica e única
j'fé o ato juríd ico como manifestação de vontade, inexistindo razão para distin­
gui-lo do negócio juríd ico nele com preendido. Para a segunda, o ato juríd ico 
com porta duas subespécies: o ato juríd ico em senso estrito e o negóciojurídico, 
Bambos manifestações cie vontade hum ana mas com características próprias que 
as tornam autônomas e distintas. Barbero apresenta interessante critério de 
distinção, conforme os elem entos que se reúnem , a saber: o fenôm eno, a von­
tade e a intenção. Q uando se verifica o fenôm eno com eficácia jurídica, temos 
o fato jurídico. Se acrescentarmos vontade, temos o ato jurídico, e se reunirm os
o fenôm eno, a vontade e a intenção, configura-se o negóciojurídico. Cf. Dome- 
nico Barbero. Sistema det derecho privado, I, p. 422. Cf. ainda San Tiago Dantas, 
Programa de Direito Civil, p. 254.
4 O rlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 223; Maria Helena Diniz. Curso 
de Direito Civil brasileiro, p. 209.
5 O rlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, p. 255.
6 Este item e os seguintes reproduzem , com algumas modificações, o artigo A 
autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica. Perspectivas 
estrutural e funcional, escrito para o livro em hom enagem aoProf. D outor 
Antonio Ferrer Correia, Reitor Emérito da Universidade de Coimbra, em 1989.
■ tr tn m v v/ ivm IlIlIUVIU^tiU
objetos, faz-se a sua captação m ental; pelo segundo, exercita-se tmui 
faculdade e m direção a um fim ou valor. O estudo deste d ireciona 
m en to in teressa à psicologia, à ética, à filosofia e ao direito .
Para a psicologia, a vontade é um a faculdade espiritual do ho­
m e m que tra d u z um a tendência, um im pulso para algo, a realizaçao 
d e um valor intelectualm ente conhecido. Para a ética, represenlít 
u m a atitude o u disposição m oral para q u ere r algo. M etafísica ou 
filosoficam ente, é um a “entidade a que se atribui absoluta subsistên 
c ia e se converte, p o r isso, em substrato de todos os fenôm enos”.
A vontade aparece, assim, com o um m otor, im pulsionando e 
d irig indo o m ov im en to em todo o re ino das faculdades. Em razão 
d o fim proposto , a vontade move-se p o r si mesma.
Para o d ire ito , a vontade tem especial im portância p o rq u e é um 
d o s elem entos fundam entais do ato ju ríd ico . M anifestando-se de 
a c o rd o com o s preceitos legais, a vontade p roduz determ inados efei­
to s , criando, m odificando ou ex tinguindo relações juríd icas.
Vontade psicológica e vontade ju ríd ica não coincidem , porém . 
E nquan to a psico logia conhece a vontade com o “tipo especial de 
tendência p síqu ica , associada à representação consciente de um fim 
e cie meios e fic ien tes para realizá-lo”, estudando-a no cam po do ser,
o direito ap recia-a no campo do dever ser, reconhecendo-a com o 
f a to r de eficácia ju ríd ica nos limites e na form a que ele m esm o esta- 
h e lece . Para o d ireito , portanto, a vontade tem g rande im portância 
n a gênese d o s d ireitos subjetivos, sendo critério d iferenciador dos 
fa to s e atos ju r íd ic o s , e critério dou trinário de justificação desses 
m esm os direitos.
A possibilidade de a pessoa agir de acordo com sua vontade, 
p o d e n d o fazer ou deixar de fazer algo, chama-se liberdade, que, 
s e n d o conceito plurívoco, extrem am ente com plexo, com preende 
várias espécies, com o a liberdade natural, a social ou política, a pes­
so a l e a ju ríd ica , que é a que nos interessa.7
A liberdade ju ríd ica é a possibilidade de a pessoa a tu a r com 
eficácia ju ríd ica .8 Do pon to de vista do sujeito, realiza-se no poder 
de criar, m odificar ou extinguir relações juríd icas. E ncarada objeti­
vam ente, é o p o d e r de regular ju rid icam en te tais relações, dando- 
lh e s conteúdo e efeitos determinados, com o reconhecim en to e a 
p ro teção do d ire ito .
7 Joaquim de Souza Teixeira. Liberdade, p. 1.099 e segs.
8 M anuel Garcia Amigo. Instituciones de derecho civil, I, parte general, p. 207.
Os Fatos Jurídicos A Autonomia Hrivaaa
A esfera de liberdade de que o agente d ispõe no âm bito do di- 
Ifreito privado chama-se au tonom ia, d ire ito de reger-se p o r suas pró- 
gjípjias leis. A utonom ia da vontade é, assim, o p rinc íp io de d ireito 
plivado pelo qual o agen te tem a possibilidade de p ra ticar um ato 
jurídico, de te rm inando-lhe o con teúdo , a fo rm a e os efeitos. Seu 
|É ;am po de aplicação é, p o r excelência, o d ire ito obrigacional, aquele 
|. cm que o agente pode d ispor com o lhe aprouver, salvo disposição 
líílCOgente em contrário. E q u ando nos referim os especificamente ao 
mifjoder que o particu lar tem de estabelecer as regras ju ríd icas de seu 
I; próprio com portam en to , dizem os, em vez de au tonom ia da vonta­
de, au tonom ia privada. A utonom ia da vontade, com o m anifestação 
j: de liberdade individual no cam po do d ireito , e au tonom ia privada, 
1; como p o d er de criar, nos lim ites da lei, norm as ju ríd icas, vale dizer, 
§§0 p o d e r de alguém de d a r a si p ró p rio um o rd en am en to ju ríd ico e, 
li;objetivam ente, o cará te r p róp rio desse o rd en am en to , constitu ído 
pípelo agente, diversa mas com plem en tarm en te ao o rd en am en to es- 
I talai.9
|!; A au tonom ia privada constitui-se, p o rtan to , em um a esfera de 
1 atuação do sujeito no âm bito do d ire ito privado, mais p rop riam en te 
Bjjum espaço que lhe é conced ido para exercer a sua atividade ju ríd i- 
ca. Os particu lares tornam -se, desse m odo, e nessas condições, legis- 
| ladores sobre seus p róprios interesses.
P |3. Autonomia privada. Conceito, natureza, âmbito de atuação e limites
A au tonom ia privada é o p o d er que os particu lares têm de regu- 
[j lar, pelo exercício de sua p ró p ria vontade, as relações de que parti- 
[•; cipam , estabelecendo-lhes o con teú d o e a respectiva d isc ip lina ju rí- 
! dica.
S inônim o de au to n o m ia da vontade para g rande p a rte da dou- 
Í ! trina con tem porânea , com ela po rém não se confunde, existindo 
f en tre am bas sensível d iferença. A expressão “au tonom ia da vonta- 
: d e” tem um a conotação subjetiva, psicológica, en q u an to a autono- 
I m ia privada m arca o p o d e r da vontade no d ire ito de um m odo ob- 
I jetivo, concre to e real.
Do p o n to de vista institucional e estru tural, d om inan te na teoria 
I geral do direito , a au tonom ia privada constitui-se em um dos prin-
9 Luigi Ferri. L'autonomiaprivata, p. 5; Santi Romano. Frammenti di un diziona- 
rio giuridico, p. 24 e segs.
346 Direito Civil — Introdução
cípios fundam enta is do sistema de d ire ito privado10 num reco n h e­
cim ento da existência de um âm bito particu lar de atuação com efi­
cácia norm ativa. Trata-se da projeção, no direito , do personalism o 
ético, concepção axiológica da pessoa com o cen tro e destinatário da 
o rdem ju ríd ic a privada,11 sem o que a pessoa hum ana, em bora for­
m alm ente revestida de titu laridade ju ríd ica , nada mais seria do que 
m ero in strum en to a serviço da sociedade.12
Do p o n to de vista técnico, que revela a im portância prática do 
princíp io , a au tonom ia privada funciona com o verdadeiro p oder 
ju ríd ico particu lar de criar, m odificar ou ex tinguir situações ju r íd i­
cas próprias ou de outrem . Funciona, tam bém , com o princíp io in­
fo rm ador do sistem a ju ríd ico , isto é, com o princíp io aberto , no sen­
tido de que não se apresen ta com o norm a de direito , mas com o 
idéia d ire triz ou justificado ra da configuração e funcionam en to do 
p róprio sistem a ju ríd ic o .13 E funciona ainda com o critério in terp re- 
tativo, j á que ap o n ta o cam inho a seguir na pesquisa do sen tido e 
alcance da no rm a jurídica, e de que são exem plos, no d ire ito brasi­
leiro, os arts. 112, 114, 819 e 1.899 do Código Civil. Por o u tro lado,
o p rincíp io da au tonom ia privada faz presum ir que, em m atéria de 
d ireito patrim onial, cam po p o r excelência de aplicação desse p rin ­
cípio, as norm as ju ríd icas são de natu reza dispositiva ou supletiva. 
No caso de serem cogentes, sua in terp re tação é restritiva (po r exem ­
plo, as norm as do art. 497 do CC).
Tal p o d er não é, porem , orig inário e ilim itado. Deriva do o rde­
n am en to ju ríd ic o estatal, que o reconhece, e exerce-se nos limites 
que esse fixa, lim ites esses crescentes, com a passagem do Estado de 
d ireito para o Estado intervencionista ou assistencial.14
10 W erner Flume. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts. Das Rechtsgeschäft, p. I; 
Antonio Menezes Cordeiro. Teoria Geral do Direito Civil, p. 343 e segs.
11 Larenz. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, p. 29.
12 José Antonio Doral e Miguel Angel del Arco. El Negocio Jurídico, p. 11.
13 Larenz. Metodologia da Ciência do Direito, p. 576.
14 Estado de direito era o Estado liberal ou burguês, do século XVIII, caracte­
rizado por ser um sistema jurídico baseadona separação de poderes, na limita­
ção do poder político e na garantia dos direitos individuais. Sua finalidade era 
proteger esses direitos, principalm ente a liberdade e a propriedade. Cf. Salva- 
toro Valitutti, Liberalismo, in Enciclopédia del diritto, vol. XXIV, p. 210. Estado 
social é o que se serve do direito não para garantir o status quo mas como 
instrumento de reform a social, caracterizando-se, precisamente, pelo primado 
que com ede ;to Item comum e à justiça social como seus objetivos. Cf. Paulo 
it/iniivl/li-w Du KxtnAn Liberal, no Estado Social, n, 208. Cf. ainda fosé Afonso da
Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 347
Sua esfera de aplicação é, basicam ente, o d ire ito patrim onial, 
aquela parte do d ire ito civil afeta à disciplina das atividades econô­
micas da pessoa. Não se aplica, assim, a au tonom ia, ou aplica-se de 
m odo restritíssim o, em m atéria de estado e capacidade das pessoas 
e fam ília. Seu cam po de realização é o d ire ito das obrigações p o r 
• excelência, o n d e o co n tra to é a lei, nas suas diversas espécies de 
liberdade con tra tual, nas prom essas de con tra tar, nas cláusulas ge- 
ji rais, nas garantias etc. No d ire ito sucessório, realiza-se n o testam en- 
j] to, negócio ju ríd ic o com que a pessoa dispõe de seus bens ou esta- 
; belece outras prescrições pa ra depois de sua m orte.
Os lim ites da au tonom ia privada são a o rdem pública, os bons 
costum es e a boa-fé. O rdem pública, com o con jun to de norm as ju- 
jj rídicas que regulam e pro tegem os interesses fundam entais da socie­
dade e do Estado e as que, no d ire ito privado, estabelecem as bases
i ju ríd icas fundam entais da o rdem econôm ica. Bons costum es, com o
I o con jun to de regras m orais que form am a m en ta lidade de um povo 
e que se expressam em princíp ios com o o da lealdade con tra tual, da 
p ro ib ição de lenocín io , dos con tratos m atrim oniais, do jo g o etc. E 
boa-fé, com o lealdade no com portam ento .
A au tonom ia privada distingue-se da au tonom ia pública pelo 
fato de esta ser um p o d e r a trib u íd o ao Estado, ou a seus órgãos, de 
criar d ire ito nos lim ites de sua com petência, para p ro teção dos in ­
teresses fundam enta is da sociedade. Seu objetivo é de na tu reza pú ­
blica e seu p o d e r é o rig inário e d iscricionário. Já na au tonom ia pri- 
j vada, os interesses são particu lares e seu exercício é m anifestação de 
liberdade, derivado e reconhec ido pela o rdem estatal. Seu instru ­
m ento é o negócio jurídico.
E m bora reco n h ecen d o que o p rob lem a da au tonom ia privada 
transcenda o cam po do d ire ito civil e d ire tam en te se ligue à tem áti­
ca das fontes do d ireito , lim itam o-nos aqui à m atéria cível, cuja base
I e fun d am en to é a pessoa h u m an a ,15 e no capítu lo seguinte, ao seu 
in strum en to de realização, que é o negócio ju ríd ico , em que se le­
vanta, p recisam ente, o p rob lem a fundam en ta l de sua eficácia e de 
seus lim ites, isto é, a au tonom ia privada com o princíp io e o negócio 
ju ríd ico com o instrum en to ou processo de sua realização.
Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 99 e segs.; e Jorge Miranda, Teoria 
do Estado e da Constituição, p. 49 e segs.
15 H ernandez Gil. El concepto del derecho civil, apud Federico Pnig Pena, Compen­
dio de derecho civil espanol, I, p. 21.
348 Direito Civil — Introdução
4. Perspectivas histórica, lógica e funcional da autonomia privada
Para com preenderm os o significado, a im portância e a função 
da au tonom ia privada, devemos estudá-la em um a perspectiva histó­
rica, com o expressão de um a experiência que se desenvolve ao lon­
go dos tem pos e que nos dá os elem entos necessários ã percepção 
da gênese, desenvolvim ento, cristalização e, finalm ente, declín io do 
conceito , para depois chegar a um a perspectiva lógica, em que se 
considere a h ipótese de um o rdenam en to jurídico que privilegie ou 
se baseie na vontade particular. Isto com preende a cham ada au to ­
nom ia negociai, que pressupõe o negócio jurídico com o ato e com o 
instrum ento da au tonom ia privada.
Além desses aspectos, levantando o fio de con tinu idade históri­
ca de sucessivas experiências ju ríd icas, que levaram ao nascim ento 
do conceito de au tonom ia com o expressão do p o d er ju r íg e n o dos 
particulares, devemos considerar tam bém um a perspectiva funcio­
nal, na qual o d ireito surge com o p rodu to de um a experiência ju r í ­
dica geral (e não de um a classe), livre, inovadora, e, acim a de tudo, 
pluralística, na eleição e na concretização norm ativa de seus valores. 
O ra, num sistema aberto assim, têm cada vez mais im portância as 
fontes extralegislativas,16 o q u e vai con tra um dos mais caros dogm as 
do positivismo, o da lei com o única fonte do direito. E abrem -se as 
portas para os pluralism os sociais, políticos e ju ríd icos expressos em 
correlatos subsistemas, todos in ter e com plexam ente relacionados 
en tre si.17 É nesse aspecto de vinculações que situam os a au tonom ia 
privada, p rinc íp io norm ativo-juríd ico , fu n d am en to da civilística 
contem porânea. O que está em crise não é p ropriam en te a au to n o ­
m ia em si, mas um a sua determ inada concepção ou perspectiva.
Q uanto à im portância do tem a e do seu estudo, a au tonom ia 
privada constitui-se em categoria lógica e p rincíp io fundam en ta l do 
direito civil e do d ire ito constitucional (na versão da liberdade de 
iniciativa econôm ica), e tam bém em categoria histórica e dogm áti­
ca, consagrada que foi com o expressão da liberdade individual, es­
pecialm ente em m atéria de contratos. E, se po r um lado, a tão falada 
crise do direito a afeta, não só quanto à sua p rópria existência, mas 
tam bém quanto à p rópria eficácia e limites, devido à crescente in-
l(i Caslanheira Neves. Fontes do direito, p. 1.566; Noberto Bobbio. Dalla strutura 
alia funtionit. Nuovi studi di teoria dei diritlo, p. 51.
17 Paul < )riunnc. Introduction nu systhnr juriilique, p. 145 e segs.
Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 349
tervenção do Estado no dom ín io privado, p o r ou tro lado, reafirm a- 
se a sua im portância e função com o “recrudesc im en to da m ística 
co n tra tu a l” e o uso crescente do negócio ju ríd ic o com o instrum en to 
de sua realização e a inda com o faculdade de institu ir ju ízo arbitrai 
p a ra d irim ir litígios relativos a direitos patrim oniais disponíveis (Lei 
n B 9.307, de 23 de setem bro de 1996).
5. Fundamentos da autonomia privada. A liberdade e o personalismo ético
F undam en to ou pressuposto da au tonom ia privada é, em term os 
im ediatos, a liberdade com o valor ju ríd ico , e, m ediatam ente , a con­
cepção de que a pessoa é causa do sistem a social e ju ríd ic o e de que 
a sua vontade, livrem ente m anifestada, pode ser in strum en to de rea­
lização de justiça. C orolário dessa concepção é o negócio ju ríd ico 
com o fon te principal de obrigações.
O d ire ito civil é o o rd en am en to juríd ico dos interesses e das 
relações ju ríd icas privadas, fundado no p rincíp io da igualdade dos 
hom ens pe ran te a lei e e laborado histórica e co n tinuadam en te em 
to rn o do reconhec im en to de um a esfera de soberan ia individual 
que tem suas m anifestações no p rincíp io da liberdade, com refe rên ­
cia à pessoa, na propriedade, com referência aos bens, e no contrato, 
jl com referência à atividade econôm ica das pessoas.18 Pode assim ca­
racterizar-se com o sendo aquele setor do o rd en am en to ju ríd ic o em 
que se exercita ou realiza a au tonom ia reconhec ida aos sujeitos de 
d ireito , aceita com o p rinc íp io fundam en ta l mas lim itada pelas exi­
gências da ordem pública e do bem com um .
O p rinc íp io da au tonom ia privada baseia-se, p o rtan to , ou tem , 
com o pressuposto, a liberdade individual, que, filosoficam ente, se 
e n ten d e com o a possibilidade de opção, com o liberdade de fazer ou 
de não fazer, e, sociologicam ente, com o ausência de cond iciona­
m entos m ateriais e sociais. Do p o n to de vista ju ríd ico , a liberdade é 
o p o d e r de p raticar ou não, ao a rb ítrio do sujeito, todo ato não 
o rd en ad o nem pro ib ido p o r lei, e, de m odo positivo, é o p oder que 
as pessoas têm de op tar en tre o exercício e o não-exercício de seus 
direitos subjetivos.19
A liberdade, com o valor jurídico, perm ite ao indivíduo a atuação 
com eficácia ju ríd ica , que se concretiza em duas m anifestações fun-
18 Giuseppe Stolfi. Teoria dei negozio jurídico, p. XXI, Rosario Nicolò, p. 907.
19 Eduardo Garcia Mayncz. Filosofia dei derecho, p. 389 e 391.
350 Direito Civil — Introdução
dam entais: um a subjetiva, que é o estabelecim ento, m odificação ou 
extinção de relações juríd icas; c ou tra objetiva, que é a normativiza- 
ção ou regulação ju ríd ica dessas mesmas relações. Configuram-se, 
desse m odo, duas facetas da liberdade ju ríd ica : um a, a liberdade de 
criar, m odificar ou ex tinguir relações; ou tra , a de estabelecer as n o r­
mas ju ríd icas disciplinadoras dessa atividade, no exercício do seu 
poder ju ríd ico de criar, nos lim ites legalm ente estabelecidos, n o r­
mas de direito.
A au tonom ia privada significa, assim, o espaço livre que o o rde­
nam ento estatal deixa ao p o d e r ju ríd ico dos particulares, um a ver­
dadeira esfera de atuação com eficáciajuríd ica, reconhecendo que, 
tratando-se de relações de d ire ito privado, são os particulares os 
m elhores a saber de seus interesses e da m elhor form a de regulá-los 
juridicam ente.
O princíp io da au tonom ia privada subm eteu-se nas últim as dé­
cadas a um processo de revisão crítica, reduzindo-se o cam po de sua 
atuação com a in tervenção do Estado, em bora perm aneça com o 
essência do negócio ju ríd ico , particu larm en te de sua principal cate­
goria, o contrato . Por ou tro lado, a m undialização da econom ia, 
com o uso crescente dos m odelos contratuais, e o reconhecim en to 
de um a p lu ralidade nas fontes de d ire ito e nos m eios de com posição 
de conflitos (v.g., a arbitragem ) apon tam para o recrudescim ento 
de sua u tilidade e aum ento do seu cam po de aplicação.
6. A formação histórica do conceito. Fatores morais, políticos e econômicos 
na sua formação
O princíp io da au tonom ia privada é h istórico e relativo, no sen­
tido de que fatores de o rdem m oral, política e econôm ica con tribu í­
ram para a sua configuração ao longo do tem po, transform ando-o 
em um dos princípios fundam entais da o rdem ju ríd ica privada. A 
com preensão de sua natu reza e função exige, assim, o conhecim en­
to prévio dessas condições históricas e culturais em que se form ou.
Pode-se considerar, de m aneira geralm ente aceita, que seu an ­
teceden te im ediato é o individualismo, do u trin a segundo a qual se 
concede à pessoa hum ana um prim ado relativam ente à sociedade,
o indivíduo com o fonte e causa final de todo direito.
D iferentes aspectos ou vertentes podem -se visualizar nessa dou­
trina. Filosoficamente, o individualism o explica os fenôm enos his­
tóricos v. sociais com o decorrência da atividade “consciente e in te­
ressada dos indivíduos”.
I
Os Fatos Juríd icos. A Autonom ia Privada 351
Politicam ente, opõe-se ao estatismo, à in tervenção do Estado. Por 
ou tro lado opõe-se tam bém ao conform ism o e ao tradicionalism o. 
Para ele, a sociedade não é um fim em si m esm o, nem o in strum en to 
de um fim superio r aos indivíduos que a com põem , devendo as 
instituições sociais te r p o r fim a felicidade e a perfeição dos indiví­
duos. Significa, en tão , o individualism o um a “tendência a colocar as 
; instituições políticas, ju ríd icas e sociais de um país a serviço dos 
interesses particu lares dos indivíduos que com põem a população,
I de p referência aos interesses coletivos”. Do pon to de vista econôm i- 
j í i co, considera que o indivíduo deve ter a m áxim a liberdade de atua- 
| ção no cam po da econom ia, opondo-se, assim, ao dirigism o estatal 
jÉ e, nesse particu lar, confunde-se com o liberalism o. D efende o “livre
1 jogo da atividade econôm ica individual”, com o m ínim o de in ter- 
Pi venção do Estado, que deve limitar-se a garan tir a liberdade de tra­
balho e do com ércio, e a p rop riedade dos bens. Ju rid icam en te con- 
jí sidera que “as norm as ju ríd icas são ob ra dos indivíduos e não da 
íi; sociedade, ou, mais exatam ente , um sistem a ju ríd ico que resu lta da 
j;: atividade individual”. E finalm ente, na perspectiva da teoria das fon- 
; tes e dos fins do direito , é “um sistema em que se adm ite ser o ind i­
víduo a ún ica fon te das regras do d ire ito e a causa final de toda 
atividade ju ríd ic a das instituições, no tadam en te do E stado”.20
A ntecedentes encontram -se ainda, mais rem otam en te , no p ró ­
prio d ireito rom ano, no d ireito canônico e no d ireito in ternacional 
privado, e m ais recen tem en te na escola de d ire ito natu ra l, na filoso- 
•: fia política do con tra to social, na filosofia de Kant, e no liberalism o 
econôm ico.
No direito romano tem os a lex privata com o prim eira form a de 
expressão do “ius civile”. A lex era um a declaração solene com valor 
de no rm a ju ríd ica , baseada em um acordo en tre declaran te e desti- 
| natário . T in h a po r base um negócio particu lar, que se realizava 
$ quando alguém d ispunha de um a coisa sua (lex rei suae dieta). A lex 
privata era, assim, form a de expressão do d ire ito privado, conform e 
disposto na Lei das XII Tábuas: “ati lingua nuncupassit, ita ius esto”.21 
Depois da lex privata é que surge a lex publica, quando aprovada pelo
20 Mareei Walline. L ’individualisme et le droit, p. 14, 18 e 20.
21 Q uando alguém celebrar um contrato, “conform e o que for deliberado, seja 
direito, tenha força de lei”. Lei das XII Tábuas, Tábua Sexta, De domínio et 
possessione (do direito de propriedade e da posse). Sebastião Cruz. Direito Roma­
no, p. 202.
352 Direito Civil — Introdução
povo, nos com ícios, uma proposta do m agistrado. Consagrava-se, 
desse m odo, o p o d e r ju rígeno da vontade individual.
Em seguida vem o cristianismo, que coloca o hom em n o cen tro 
das reflexões de o rd em religiosa, filosófica e social, e dogm atiza, no 
d ireito canônico, a declaração de vontade com o fon te de obrigações 
juríd icas. O con tra tan te é obrigado, po r sua p róp ria consciência, a 
respeitar a palavra dada, o que im plica a necessidade de o consenti­
m ento dos con tra tan tes não estar viciado, do n d e a im portância dos 
vícios do consentim ento na teoria do negócio ju ríd ico . E im portan ­
te, tam bém , que n ã o se configure o en riquecim en to injusto, donde 
as idéias de lesão e de usura consagradas pelos canonistas. E preciso, 
enfim , que não se tenha dado a palavra p o r nada ou po r um a causa 
ilícita ou im oral, d o n d e a origem da teoria da causa, tão im portan te 
110 regim e dos contratos. R econhecendo com o pecado a violação da 
palavra dada, o d ire ito canônico consagra a inda o acordo de vonta­
des com o fonte d e obrigações morais e religiosas.22
Com os glosadores, principalm ente Bartolo de Saxoferrato ,23 fir­
ma-se o p rin c íp io da autonom ia da vontade no d ire ito in ternacional 
privado, reconhec ido aos particulares o p oder de escolher a lei apli­
cável aos seus contratos. A vontade particu lar passa a estabelecer o 
critério de solução dos conflitosde leis em m atéria con tra tual e, 
assim, a ser fo n te de direito, o que vem a ser aceito no d ire ito civil, 
que tam bém reconhece a vontade particu lar com o p oder de estabe­
lecer as regras d e sua atuação ju ríd ica , pelo m enos no cam po das 
obrigações, co m o disposto no art. 1.134 do Código francês, segundo 
o qual “as convenções legalm ente estabelecidas fazem lei en tre as 
partes”. O que e ra para os in ternacionalistas um a noção pu ram en te 
técnica passou a ser para os civilistas um conceito teórico, traduzin­
do a convicção d e que “a vontade pode, com o o Estado, criar d irei­
to”.24
22 O direito canônico é o direito da Igreja latina. Seu nom e deriva do fato de, 
no O riente, as leis eclesiásticas chamarem-se cânones. Constitui-se das normas 
estabelecidas pelo papa e pelos concílios ecumênicos, das concordatas entre a 
Santa Sé e os Estados e as leis e decretos de autoridades eclesiásticas inferiores. 
Seu principal instrum ento é o Código de Direito Canônico, prom ulgado o lílii 
mo pelo papa Jo ão Paulo II, a 25 de janeiro de 1983, para viger a partir de 27 
de novembro do mesmo ano.
ü:i iku lolo de Saxoferrato (1314-1357), o mais célebre dos pós-glosadores, um 
dos coiiNlrulm es <lo direito internacional privado, com os princípios locus regil 
artum t fax m útar. Cl, 1 laroldo Valladão. Autonomia da vontade no direito interna 
rir mal Mtmdo, I). !M.
Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 353
Com a escola do direito natural, a idéia da origem divina do d irei­
to substitui-se pela das liberdades naturais, que se consideram fun­
d am en to e fim do d ireito . “Declara-se que existem leis da natu reza 
descobertas pela razão que devem d om inar as legislações. Essas leis 
fundam en tam e favorecem a sociedade dos hom ens. O ra, não há 
regra mais favorável à sociedade dos hom ens que aquela que consis­
te em dizer que se é obrigado pelo con tra to e po rque se quis isso. O 
con tra to é a m anifestação da vontade hum ana, e a liberdade con tra ­
tual, um a das liberdades natu ra is.”25
T am bém a teoria do contrato social, de Jean-Jacques Rousseau, 
con tribu i, 110 p lano filosófico, pa ra a teoria da au tonom ia da vonta­
de. O hom em é na tu ra lm en te livre; a vida em sociedade exige, toda­
via, um certo ab an d o n o desta liberdade, mas este ab an d o n o não se 
concede senão q u ando livrem ente consen tido , nos lim ites e nas 
condições que este con tra to social d e te rm in o u .26 Segundo essa teo­
ria, a au to rid ad e pública tem por base a concordânc ia dos sujeitos 
de d ire ito , que se unem para fo rm ar a sociedade, aband o n an d o , 
pelo con tra to social, um a parte dos d ireitos que a na tu reza lhe tinha 
dado. A vida em sociedade não seria possível se cada um quisesse 
exercer ao m áxim o sua liberdade, sendo preciso ren u n c iar a alguns 
direitos pelo con tra to social. A convenção, o acordo, é a base de 
toda au to ridade en tre os hom ens, sendo que a p rópria au to ridade 
pública extrai o seu p o d e r de urna convenção.
Com a filosofia de Kant, que teve definitiva influência, a au tono ­
mia da vontade adqu ire cono tação dogm ática, passando a im perati­
vo categórico de o rdem m oral, afirm ando-se na Metafísica do Direito 
(1796) que “a vontade individual é a ún ica fon te de toda obrigação 
ju ríd ica”.27 Na A lem anha, suas idéias serviram de substrato à fam osa 
Willenstheorie, 2 8 e 11a França, a tradução do seu livro consagra defini-
24 Véronique Ranouil. L'autonomie de ta volonté,. Naissance et évolution d ’un con- 
i; çept, p. 68.
25 Alex Weil et François Terré. Droit civil. Les obligations, p. 51.
§6 Boris Stark. Obligations, p. 341.
27 Emmanuel Kant. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 144. Sobre a 
; origem da expressão, Cf. V eronique Ranouil, p. 42, 76 e 84.
I 28 Willenstheorie (teoria da vontade), segundo a qual, nas declarações de vonta­
de, o intérprete deve atender mais à vontade subjetiva do agente do que ao 
nspecto formal de sua declaração.
354 Direito Civil — Introdução
tivam ente a au tonom ia da vontade, expressão tirada da sua ob ra 
Crítica da razão prática.
Argum entos decisivos da au tonom ia da vontade com o princíp io 
e form a de p o d e r ju ríd ic o encontram -se a inda no cam po econôm i­
co, im pondo-se em toda a sua p len itude com a d o u trin a do libera­
lismo “pelo qual o livre jo g o das vontades particu lares assegura o 
m áxim o de p rodução e os preços mais baixos, com o efeito da livre 
concorrência”. O seu in strum en to é o con tra to que deve ser p re ­
servado com o p ro d u to da liberdade in tegral de suas partes, afasta­
dos os obstáculos ã livre circulação dos bens. E o p rincíp io do lais- 
sez-faire, laissez-passer, laissez-contracter, que vem a ser ju rid icam en te 
form alizado no art. 1.334 do Código Civil francês, com o acim a re­
ferido.
Na A lem anha e na Itália, o notável desenvolvim ento da do u trin a 
leva o p rincíp io da au tonom ia da vontade a nova dim ensão, com 
significado até diverso pa ra alguns juristas, que passaram a conside­
rá-lo, objetivam ente, verdadeiro p o d er ju ríd ico dos particu lares, de­
nom inando-se, p o r isso, au tonom ia privada,29 p o d er de estabelecer 
norm as ju ríd icas individuais para regu lam en tar sua p ró p ria ativida­
d e juríd ica, m anifestada a vontade p o r m eio de figura específica, o 
negócio ju ríd ico . No d ire ito civil brasileiro não tivemos até agora 
m aior receptividade para essa dou trina , o que se com preende à luz 
d a evolução política da sociedade brasileira, em que os valores do 
individualism o e do liberalism o sem pre fo ram postergados pela 
atuação de um Estado h isto ricam ente un itário , cen tralizador, au to ­
crático e intervencionista.30 Diversa é, todavia, a op in ião no cam po 
d a filosofia do direito , em que se reconhece o poder e a legitim ida­
d e da vontade particu lar com o fon te do d ire ito31.
29 Hans Kelsen. Teoria generale del diritío e dello stato, p. 139; Luigi Ferri. L 'auto­
nomia privata, p. 5; Ana Prata. A tutela constitucional da autonomia privada, p. 5; 
Mário Bigotte Chorão. Temas fundamentais de direito, p. 254 e segs.; O rlando
Gomes. Autonomia privada, p. 258; Do autor. Da irretroatividade da condição sus­
pensiva, p. 43 e segs. E ainda, A autonomia privada como poder jurídico, p. 286; 
W erner Flume. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, p. 1 e segs.; Rodolfo Sacco, 
A utonomia nel diritto privato, p. 517.
SO R. A. Amaral Vieira. Intervencionismo e autoritarismo no Brasil, p. 15 e 20; Emi­
lia Viol 1.1 (lit Gosta. Da Monarquia à República. Momentos decisivos, p. 6, 9 e 27. 
m i Mlinii-I Itafile. / .ienes /»eliminares do Direito, p. 179.
Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 355
1. A função histórica da autonomia privada. Fundamento ideológico
A concepção teórica da au tonom ia privada é p ro d u to do indivi­
dualism o que reúne e consolida tendências an terio res já verificadas 
110 d ire ito rom ano, no d ire ito canônico , na teoria do con tra to social 
e no liberalism o econôm ico, e que se m anifesta, h istoricam ente, no 
ju sna tu ra lism o e, filosoficam ente, na d o u trin a de Kant, cujo pensa­
m en to é um a das expressões mais rigorosas do estado liberal.32
Seu fundam en to básico é a liberdade com o p o d e rju ríd ico , e sua 
função se deduz das condições econôm icas e sociais em que se afir­
m ou com o p o d e rju r íd ic o . Im portan te , pois, para explicitar-se tal 
função, o processo econôm ico em que nasceu e se desenvolveu o 
p rinc íp io da liberdade, ou m elhor, do p o d e r individual com o fonte 
norm ativa.
Com o desenvolvim ento do com ércio e da indústria , da divisão 
do trabalho e da especialização,aum en ta o in tercâm bio de bens e 
serviços, e o p rincíp io da au tonom ia da vontade torna-se ex trem a­
m en te útil para o desenvolvim ento desse processo, acred itando o 
pensam en to econôm ico liberal, na sua expressão mais pura, que a 
lei cla oferta e da p ro cu ra responde aos interesses da sociedade.
Nessa perspectiva econôm ica, um a breve revisão histórica m os­
tra-nos que o dogm a da vontade nasce tam bém do d ire ito de p ro ­
priedade. Na Idade M édia, a fon te p rincipal da riqueza e p rodução 
era a terra, e o d ire ito principal, a p rop riedade. A evolução política 
e econôm ica to rna, porém , d istin ta a p rop riedade da terra da dos 
dem ais bens de p rodução , estes a base do com ércio e da indústria , 
de que eram titulares os constru to res da econom ia capitalista, os 
burgueses, interessados no desenvolvim ento do in tercâm bio com er­
cial. Esse processo leva à jurisdicização das relações de troca, isto é, 
a um d ireito que perm ite a livre circulação dos bens e dos sujeitos, 
na dinâm ica do p róp rio sistema. A generalização das trocas configu­
ra um a nova força, um novo poder, que se destaca do d ire ito de 
p rop riedade , e que é, precisam ente, o p o d e r da vontade que se rea­
liza na liberdade de troca e na liberdade de atuação no m ercado, 
co rresponden te ao que hoje denom inam os liberdade de iniciativa 
econôm ica.
A au tonom ia da von tade traduz, po rtan to , um p o d er de disposi­
ção d ire tam en te ligado ao d ire ito de p rop riedade , d e n tro do siste­
m a de m ercado da circulação dos bens p o r m eio de troca, e de que
32 Noberto Bobbio. Diritto e status nel pensiero di Emmanuel Kant, p. 1.
356 Direito Civil — Introdução
o instrum en to ju ríd ico p róp rio é o negócio ju ríd ico . Essa au tono ­
m ia significa, conseqüen tem en te , que o sujeito é livre pa ra con tra­
tar, esco lher com quem con tra ta r e estabelecer o con teúdo do con­
trato. A au tonom ia privada teria, assim, com o fundam en to prático, 
a p ro p rie d ad e p articu la r e, com o função, a livre c irculação dos 
bens,33 o que pressupõe, tam bém , a igualdade formal dos sujeitos, isto 
é, a igualdade de todos peran te a lei.
A au tonom ia privada revela-se, po rtan to , com o p ro d u to e com o 
instrum ento de um processo político e econôm ico baseado na liber­
dade e na igualdade form al, com positivação ju ríd ica nos direitos 
subjetivos de p ro p ried ad e e de liberdade de iniciativa econôm ica. 
Seu fundam en to ideológico é, portan to , o liberalism o, com o dou tri­
na que, e n tre ou tras fo rm ulações, faz da lib e rd ad e o p rin c íp io 
o rien tad o r da criação ju ríd ic a no âm bito do d ireito privado, pelo 
m enos no seu cam po m aior, que é o do d ire ito das obrigações. Com 
a in tervenção posterio r do Estado, e a respectiva legislação especial, 
limita-se a au tonom ia da vontade e visa-se estabelecer o u tro tipo de 
igualdade, a material, esta referen te à possibilidade de acesso a todos 
os bens e às oportun idades da vida econômico-social. O princíp io 
da au tonom ia p erde seu absolutism o, mas persiste a inda com o p rin ­
cípio básico da o rdem ju ríd ica privada.34 O interesse geral e a justiça 
põem-se acim a da liberdade individual, mas o d ireito objetivo res­
peita o d ire ito subjetivo, pois a superioridade daquele não im pede 
o reconhec im en to da au tonom ia ou, m elhor d izendo, cle um verda­
deiro d ireito dos particulares. A questão é, apenas, cle limites. Per­
m anece, com o regra, a liberdade de con tra ta r e de estabelecer o 
con teúdo do con trato , devendo ser excepcional a in tervenção do 
Estado ao estabelecer a obrigatoriedade de certos con tratos e de 
cláusulas e preços prefixados.35
8. Conseqüências jurídicas do princípio da autonomia privada
Conseqüências im ediatas do reconhecim en to da au tonom ia pri­
vada são, no d ire ito civil, que é o seu cam po p o r excelência, os p rin ­
cípios da liberdade contratual, da força obrigatória dos contratos,
!l!t Pietro llarccllona. Diritto privato eprocesso economico, p. 201, e ainda, Formazio- 
nc c sviluppo dd diritto privato moderno, p. 274.
:í I |a< (|UCH Cilicslin. Obligations. Lecontrat, p. 119.
35 Hiiirellona, Diritto jmvato eprocesso economico, p. 22(5.
Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 357
do efeito relativo dos contratos, do consensualism o e da natu reza 
supletiva ou dispositiva da m aioria das norm as estatais do d ire ito das 
obrigações, e ainda a teoria dos vícios do consen tim ento . No cam po 
sucessório, a liberdade de testar e de estabelecer o con teúdo do 
testam ento . E para os que aceitam a vontade com o p o d er juríd ico , 
a concepção norm ativa do negócio ju ríd ico , isto é, a consideração 
do negócio com o fon te de norm as ju ríd icas, m atéria que se inclui 
no âm bito da filosofia e da teoria geral do direito .
A liberdade de iniciativa econôm ica é a fonte leg itim adora da 
au tonom ia privada no cam po constitucional, com o p rinc íp io básico 
da o rdem econôm ica e social. São conceitos correla tos m as não 
co incidentes, na m ed ida em que a prim eira focaliza o aspecto eco­
nôm ico, e a segunda, o ju ríd ico , do m esm o fenôm eno , havendo, 
en tre eles, um a relação in strum en ta l.36
A liberdade con tra tual manifesta-se nos seguintes aspectos: li­
berdade de con tra ta r, cle escolher as partes com quem con tra ta r, de 
estabelecer o tipo, o con teúdo , a form a e os efeitos do con tra to . O 
princípio do consensualismo significa que basta o consen tim en to , o 
acordo de vontades, para que o con tra to se estabeleça e as obriga­
ções nasçam , não sendo preciso form a especial. Sendo assim, o re­
conhecim en to da au tonom ia privada con tribu i para a redução ou 
até o desaparecim ento do form alism o típ ico dos prim eiros tem pos 
do direito . A vontade deve ser, porém , livrem ente m anifestada, pelo 
que os vícios do consen tim ento revestem-se de g rande im portância. 
Se o consen tim ento não é livre, a m anifestação de vontade é defei­
tuosa e, po rtan to , anulável. Por o u tro lado, não interessam os m oti­
vos da declaração de vontade. Sendo o con tra to m anifestação de 
liberdade, não im portam os motivos que levaram a tal m anifestação.
36 Francesco Galgano. Rapporti economia, p. 5. A eficácia juríd ica da autonom ia 
privada no âmbito constitucional liga-se diretam ente ao problem a da organiza­
ção econômica da sociedade que encontra a sua fonte suprem a na cham ada Cons­
tituição Econômica, orientada pelos seguintes princípios: 1) reconhecim ento e 
garantia da propriedade privada (CF, arts. 52 art. 170, II); 2) da liberdade de 
iniciativa econômica dos particulares (CF, arts. I 2, IV, e 170); 3) a iniciativa 
pública econômica do Estado quando necessária por motivo de segurança na­
cional ou de relevante interesse coletivo; e 4) o reconhecim ento do poder nor­
mativo e regulador do Estado, de caráter indicativo para os particulares. E nesse 
contexto que se conform am os institutos civis da autonom ia privada, a proprie­
dade, o contrato, o testamento, a associação e a fundação. Limites da autonom ia 
privada são a ordem pública e os bons costumes. Cfr. A. Lopez/V.L. Monies, 
Derecho civil, parte general, p, 561 e segs.
358 Direito Civil — Introdução
A vontade vale p o r si mesma, se lícito o respectivo objeto. O princípio 
da força obrigatória dos con tratos significa que a vontade particular, 
autônom a, estabelece um a le i entre as partes con tratan tes que se 
vinculam ao cum prim ento das obrigações estabelecidas p o r essa 
vontade. Já o efeito relativo dos contratos significa, po r sua vez, que a 
eficácia do contrato, isto é, as obrigações e as regras estabelecidas 
para o seucum prim ento, produzem efeitos apenas en tre as respec­
tivas partes, não afetando terceiros.
Para os que vêem na vontade individual um p o d er ju ríg en o , o 
negócio ju ríd ico , seu instrum ento, tem eficácia norm ativa, vale di­
zer, a m anifestação de von tade é fonte de regras ju ríd icas que, ao 
lado das estabelecidas em lei, disciplinam as obrigações nascidas 
desse negócio. As normas que nascem da declaração de vontade são 
juríd icas, ao lado das que nascem do p oder estatal, ou dos costumes, 
ou dos princípios gerais do direito. “Q ualitativam ente não há dife­
rença en tre as distintas fontes normativas que in tegram o com plexo 
regulador da relaçãojurídica concreta, ainda que se estabeleça um a 
h ierarqu ia en tre a norma proceden te de cada fon te .”37 E no proces­
so de revisão da teoria das fontes de direito , o negócio ju ríd ico , 
com o expressão da autonom ia privada, é tido com o “ato constituti­
vo de norm ativ idadejuríd ica” , subordinado à lei mas não dela nor- 
m ativam ente derivado.38 Em face disso, as norm as ju ríd icas que a lei 
estabelece no campo da autonom ia privada, que é p o r excelência o 
das obrigações, são em g ran d e maioria, salvo disposição expressa 
em contrário ou em virtude d e sua natu reza de o rdem pública ou 
de bons costum es, dispositivas ou supletivas.
9. As críticas à autonomia privada. Argumentos de natureza filosófica 
moral e econômica
As m udanças econômicas e sociais decorren tes da revolução in­
dustrial e tecnológica, com a passagem de um a econom ia agrícola <• 
rural para um a industrial e urbana, causaram grandes alterações 110 
sistem a de d ire ito privado. Surgiram novos institu tos ju ríd ico s , 
com o a em presa, os contratos-tipos, os de adesão e outras figuras 
contratuais próprias do desenvolvim ento econôm ico e capitalístico.
.“17 Clareia A m ig o , p . 215.
.18 Cuittnnhdru Neve», p. 1.566.
Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 359
T udo isso provoca restrições à liberdade ju ríd ic a da parte do 
Estado intervencionista, que dirige a econom ia e organiza a p ro d u ­
ção, dan d o m argem a críticas à au tonom ia privada que tem p ro fu n ­
dam en te reduzido o seu cam po de atuação, lim itado aos pequenos 
negócios da m icroeconom ia. Tais críticas são, tam bém , com o os fa­
tores que a fizeram crescer, de o rdem filosófica, m oral e econôm ica.
Do p on to de vista filosófico, constata-se facilm ente que ao indi­
vidualism o se con trapõem as tendências sociais da idade con tem po­
rânea. O hom em é um ser social, vive necessariam ente em grupo, 
do que lhe advêm inevitáveis restrições e cond icionam entos na sua 
capacidade de agir.
Do p on to de vista m oral, tem-se dem onstrado que os princíp ios 
da liberdade e da igualdade não se realizam harm onicam ente . A 
igualdade pe ran te a lei é m eram en te form al; no cam po m aterial, 
vale dizei, no cam po das relações sociais e das o p o rtun idades de 
progresso econôm ico, as desigualdades são profundas. O exercício 
da liberdade con tra tual, p o r exem plo, p o d e levar os segm entos so­
ciais mais caren tes de recursos e, p o r isso m esm o, desprovidos do 
p o d e r de confron to ou de negociação, a acen tuados desníveis eco­
nôm icos, do que é exem plo a m iséria das classes m enos favorecidas, 
o que leva o Estado a intervir para equ ilib rar o p o d er das partes 
con tratan tes, estabelecendo norm as im perativas em m atéria de o r­
dem pública ou de bons costum es. O legislador lim ita, assim, a au­
tonom ia privada, para o fim de p ro teg er os pólos mais fracos da 
relação ju ríd ic a patrim onial, p rinc ipalm en te em m atéria de con tra ­
tos (locação, em préstim os, seguros, operações financeiras típicas 
etc.).
Do pon to de vista econôm ico, justifica-se a in tervenção do Esta­
do n a organização e disciplina dos setores básicos da econom ia, ale­
gando-se a inconveniência, a im possibilidade até, de se deixar às 
forças do m ercado a condução da econom ia nacional, p rinc ipal­
m en te nos países em vias de desenvolvim ento, o n d e são mais fla­
grantes as disparidades econôm icas e sociais. A realização dos valo­
res fundam enta is da o rdem ju ríd ica , a segurança, a justiça, o bem 
com um , a liberdade, a igualdade e a paz social exigem um a p resen ­
ça cada vez m aior do Estado no sentido de equ ilib rar as forças eco­
nôm icas e sociais em conflito. Não mais se adm ite a econom ia libe­
ral do século XIX, que se substitui p o r um a econom ia concertada, 
com um a in tervenção crescente do Estado pa ra o fim de p ro teger as 
categorias sociais m enos favorecidas, com o os trabalhadores assala­
riados, e o rgan izar a produção e d istribu ição dos bens e serviços p o r
360 Direito Civil — Introdução
m eio de um conjunto de m edidas cuja disciplina ju ríd ic a tom a o 
nom e de o rdem pública econômica.
F inalm ente, um argum ento de natu reza ideológica. O princíp io 
da au tonom ia privada encontra sua razão de ser na expressão mais 
pura do liberalism o econômico, na época em que o Estado tinha 
um a função mais política do que econôm ica ou social. Era o Estado 
de d ireito , organizado jurid icam ente para g a ran tir o respeito aos 
direitos individuais que encontravam nesse p rincíp io o in strum en to 
de sua p lena realização. Com a revolução industrial e tecnológica, e 
os problem as sociais dela decorren tes, com guerras m undiais de 
perm eio, surge o Estado social, in tervencionista, pa ra o rien ta r a 
vida econôm ica, protegendo os mais desfavorecidos e p rom ovendo 
iguais oportun idades de acesso aos bens e vantagens da sociedade 
contem porânea. No campo do d ire ito privado, dá-se a socialização 
do direito civil,39 o que representa o p rim ado dos interesses sociais 
sobre os individuais e, conseqüentem ente, a redução do âm bito de 
atuação soberana da pessoa hum ana 110 cam po do d ireito .
10. A intervenção do Estado e os limites da autonomia privada
Constata-se então que o individualism o do século XIX — resul­
tan te das concepçõesjusnaturalistas e ilum inistas que se positivaram 
110 Código de Napoleão e no Código Civil alem ão (BGB), nos quais 
a pessoa hum ana, com sua liberdade e au tonom ia, e ra o cen tro p o r 
excelência do universojurídico, e o d ireito civil, “a garan tia dos fins 
individuais relativos à família e aos bens”40 — foi-se reduzindo gra- 
dativam ente a partir do começo do século e, acentuaclam ente, com 
a Segunda G uerra Mundial, m ercê dum a progressiva intervenção 
do Estado, que limita a autonom ia privada quando não a elim ina 
totalm ente. A intervenção estatal na m atéria econôm ico-jurídica de­
m onstra, assim, a superação do liberalism o econôm ico e político do 
século XIX, intervindo o Estado com princíp ios au toritários na eco­
nom ia privada e na vida juríd ica em geral. Advoga-se o p redom ín io 
dos interesses gerais sobre os particulares e sobrepõe-se o espírito 
da socialidade e da justiça social ao do p u ro individualism o dos có­
digos civis, exigindo-se destes, não a tradicional postura dogm ática
.Hl JtNtu Ciii homiior. Droil civil, |>. 69.
" • * • » -------a a J . . . . I l i * O
Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 361
adequada ao Estado de d ire ito , mas o cará te r instrum enta l de utili­
dade p ró p rio do Estado social. A passagem do Estado liberal para o 
Estado in tervencionista, com a sua crescente ingerência na o rgan i­
zação da vida econôm ica, conduz assim ao declín io da concepção 
liberal da econom ia e a um a conseqüen te crítica ideológica do dog­
m a da vontade, p rinc ipalm en te pela d o u trin a m arxista. E os p rinc í­
pios e institutos fundam entais do d ire ito civil, a p ro p ried ad e , o con­
trato , o casam entoetc., em igram para o texto das Constituições, 
levando ju ristas de n om eada a falar na publicização do d ire ito pri­
vado.41
Todas essas m odificações alteram a fisionom ia tradicional do 
d ire ito civil, rep e rcu tin d o nas fontes e nos institutos fundam entais, 
enfim , em toda a m atéria do d ire ito privado.
No que tange às fontes, além das m odificações p ro fundas que o 
C ódigo Civil sofreu, em g rande parte derrogado p o r ab u n d an te le­
gislação específica que fragm en tou a un id ad e legal do d ire ito priva­
do, passando-se da e ra da codificação (século XIX) para a dos mi- 
crossistemas juríd icos (século X X ),42 há um aspecto de sum a rele­
v ância já aludido, que é a consagração cle p rincíp ios constitucionais 
p e rtin en tes ao d ireito privado, com o os princíp ios da liberdade, da 
p ro p ried ad e e da iniciativa econôm ica (CF, art. 52). Além de reco­
nhecidos com o princíp ios norm ativos, pois que inco rporados a tex­
tos constitucionais m odernos, com o o italiano, o português, o brasi­
leiro — o que os to rn a in teg ran tes do sistem a político e lhes confere 
um a im plícita garan tia con tra eventuais abusos do legislador o rd i­
nário — , têm o efeito de reduz ir o cam po das d iferenças e n tre o 
d ire ito público e o d ire ito privado, hoje conjugados na ação com um 
de prover ao bem -estar social. O ra, se p o r um lado vemos a redução 
do individualism o subjacente aos postulados liberais do d ire ito civil 
burguês, p o r ou tro lado, tem os o reconhec im en to constitucional 
desses m esm os postulados, revestidos, é certo, de um a dim ensão 
pública, geral e funcional, no sen tido de que, in tegrados na ordem 
econôm ica e social, servem com o instrum entos de desenvolvim ento 
e de ju stiça social.
R econhecida constitucionalm ente a liberdade de iniciativa eco­
nôm ica, in d ire tam en te se garan te a au tonom ia privada, em face da 
ín tim a relação de in strum en ta lidade existente en tre ambas. Concei­
41 Rcné Savatier. Du droit civil au droit public, p. 13.
42 O rlando Gomes. A caminho dos microssistemas, p. 40 e segs.; Natalino Irti. L'etá 
delia, decodifícazione. o. 27.
362 Direito Civil — Introdução
tos conexos, mas não coincidentes, a autonom ia privada tem caráter 
in s tru m en ta l em face da liberdade de iniciativa econôm ica, pelo 
que as lim itações que a esta se im põem tam bém atuam q uan to àque­
la. E esses lim ites são a ordem pública, na sua espécie de o rdem 
p ú b lic a e social de direção, sob a form a de intervencionism o neoli- 
beral o u de dirigism o econômico, e os bons costum es, as regras m o­
rais, s e n d o que o intervencionismo neoliberal não se opõe à libera­
lidade con tra tual nem à livre concorrência, apenas visa evitar a que 
for deslea l, e a p ro teger o consumidor, enquanto o dirigism o, opon- 
do-se à liberdade contratual, submete-se às exigências da planifica­
ção econôm ica , im perativa ou indicativa.43
T u d o isso im plica a redução do âm bito de atuação da au tonom ia 
p rivada . Com o princíp io fundam ental da o rdem ju ríd ica civil, teve 
m aior im portância nas épocas de mais acen tuado individualism o, 
mas, c o m as tendências sociais em m atéria de contrato , a pro lifera­
ção d a s leis especiais e as crescentes restrições à liberdade con tra ­
tual, assiste-se à redução de seu cam po, em bora perm an ecen d o 
com o p rinc íp io fundam ental do direito privado, aplicável nos seto­
res e m que o d ire ito estatal perm ite , basicam ente, o d ire ito das 
ob rigações. O problem a da autonom ia privada é, p o rtan to e som en­
te, u m problem a de limites que se estabelecem, por exem plo, com 
o d e v e r ou a proibição de contratar, a necessidade de aceitar regu­
lam e n to s predeterm inados, a inserção ou substituição de cláusulas 
co n tra tu a is , o princíp io daboa-fé, os preceitos de o rdem pública, os 
bons costum es, a justiça contratual, as disposições sobre abuso de 
d ire ito etc., tudo isso a representar as exigências crescentes de soli­
d a rie d a d e e de socialidade. Um bom exem plo das lim itações da au­
to n o m ia é o do Código de Defesa do C onsum idor (Lei n Q 8.078, de
11 de setem bro de 1990) nos dispositivos referen tes à responsabili­
dade civ il (cap. IV) às práticas com erciais (cap. V), à p ro teção con­
t ra tu a l (cap. VI, seções I e II).
11 .A Jüncionalização dos institutos de direito privado. A autonomia 
privada em uma perspectiva juncional
A specto novo a salientar no tratam ento desta m atéria é o da 
funcionalização dos principais institutos de d ireito civil, a p rop rie ­
dade c o con tra to e, conseqüentem ente, a au tonom ia privada.
■i:i W ashington Pd uso Albino dc Sou/.». Direito econômico, p. 189-195; Ghcstin,
Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 363
Q ue significa a funcionalização de tais institutos?
Para a concepção estru tu ra l, científica, do d ire ito , a ciência ju ­
ríd ica não deve ocupar-se com as funções que ele possa desem pe­
nh ar, mas som ente com os seus e lem entos estru turais, deixando-se 
a análise funcional pa ra a sociologia e a filosofia. O corre , porém , 
que o recurso às ciências sociais perm ite m elho r com preensão do 
fenôm eno ju ríd ico , revelando, outrossim , a ín tim a relação que exis­
te en tre a teoria estru tu ra l do d ire ito e a abordagem técnico-jurídi- 
ca, de um lado, e a teoria funcional e o estudo sociológico, de outro . 
Esta conexão é carac te rís tica dos estudos ju ríd ic o s co n tem p o râ ­
neos, considerando-se essencial pa ra o ju r is ta saber não apenas 
com o o d ire ito é feito mas tam bém para o que serve, vale dizer, a sua 
causa final. A parece assim o conceito de função em direito , signifi­
cando o papel que um princíp io , n o rm a ou institu to desem penha 
no in te rio r de um sistem a ou estru tu ra .44
A referência à função social ou econôm ico-social de um princí­
pio, um instituto, um a categoria ju ríd ica , neste caso a au tonom ia 
privada e o seu in strum en to de realização, o negócio ju ríd ico , signi­
fica a aproxim ação do d ire ito com as dem ais ciências sociais, com o 
a sociologia, a econom ia, a ciência política, an tropo log ia , em um 
processo in terd isc ip linar de resposta às questões que a sociedade 
con tem porânea ap resen ta ao ju ris ta , considerado não mais a “figura 
tradicional de cu lto r do d ire ito privado, ancorado aos dogm as das 
tradicionais características civilísticas”, mas a ten to à realidade do 
seu tem po, a exigir-lhe um a postura crítica em pro l de um a ordem 
mais ju sta na sociedade.45
44 Bobbio, p. 90; J. Durão Barroso. Função, p. 1.606.
45 Castanheira Neves. O direito como alternativa humana, p. 34. Para uma visão 
crítica do direito civil, utilizando categorias fundam entais do marxismo (como 
formação econômica e social, conflitos de classe etc.), e visando a construir uma 
ciência ju ríd ica própria do capitalismo contem porâneo, cf. O rlando Gomes. 
Transformações gerais do Direito das Obrigações, e novos temas de Direito Civil, O rlando 
de Carvalho. A teoria geral da relação jurídica', Vital Moreira, A ordem jurídica do 
capitalismo; Stefano Rodotà, II diritto privato nella societá moderna', Pietro Barcello- 
na, Diritto privato e società moderna', Francesco Galgano, Le istituzione delleconomia 
capitalisticœ, Francesco Galgano e Stefano Rodotà, Rapporti. economici', Francesco 
Lucarelli, Diritto civile e istituti privatisticr, Claudio Varrone, Ideologia e dogmatica 
nella teoria dei negozio giuridico', Karl Renner, Gli istituti dei diritto privato', André- 
Jean Arnaud, Essai d'analyse structurale du Code Civil français e Les juristes face à la 
société, Michel Miaille, Uma Introdução Críticado Direito-, Michael Tigar e Madelei­
ne R. Levy, O Direito e a Ascensão do Capitalismo-, Luiz Fernando Coelho. Teoria 
Crítica do Direito.
364 Direito Civil — Introdução
A funo io iia li/ação dos institutos ju ríd icos significa, en tão , que o 
d ire ito cm pari ia ila r c a sociedade cm geral com eçam a interessar- 
se pela eficácia d a s normas e dos institutos vigentes, não só no to­
cante a o controle o u disciplina social, mas tam bém no que cliz res­
peito à organização e direção da sociedade, abandonando-se a cos­
tum eira função repressiva tradicionalm ente a tribu ída ao d ireito , em 
favor d e novas funções, de natureza distributiva, prom ocional e ino­
vadora, p rinc ipalm en te na relação do d ireito com a econom ia. Sur­
ge, assim , o conceito de função no direito , ou m elhor, dos institutos 
juríd icos,46 in ic ia lm ente em m atéria de p rop riedade e, depois, de 
c o n tra to . R epresen ta, assim, a função econôm ico-social, a preocu­
pação com a eficácia social do instituto, e, no caso particu lar da 
au tonom ia privada, significa que o reconhecim en to e o exercício 
desse p o d e r, ao realizar-se na prom oção da livre circulação de bens 
e de prestação de serviços e na auto-regulam entação das relações 
disso decorren tes, condicionam -se aos efeitos sociais que tal circula­
ção possa causar, is to é, a eficácia relativam ente a terceiros, tendo 
em vista o bem com u m e a igualdade m aterial, idéia que “se desen­
volve p a ra le lam en te à evolução do Estado m oderno com o en te ou 
legislador racional” .
De tu d o isso resu lta que afuncionalização de um princípio , no r­
ma, in stitu to ou d ire ito implica, na sua positivação norm ativa, o re­
conhecim en to de lim ites que o o rdenam en to ju ríd ico , ou algum de 
seus p rincíp ios vinculantes, estabelece para o exercício das faculda­
des subjetivas (em fa c e de situações concretas) que possa caracteri­
zar abuso de direito.
E m prestar ao d ire ito um a função social significa considerar que 
os interesses da soc iedade se sobrepõem aos do indivíduo, sem que 
isso im plique , necessariam ente, a anulação da pessoa hum ana, jus­
tificando-se a ação d o Estado pela necessidade de acabar com as 
injustiças sociais. F u n ção social significa não-individual, sendo crité­
rio de valoração de situações jurídicas conexas ao desenvolvim ento 
das atividades da o rd e m econômica. Seu objetivo é o bem com um , 
o bem -estar econôm ico coletivo. A idéia de função social deve en­
tender-se, portanto, em relação ao quadro ideológico e sistemático 
em que se desenvolve,47 abrindo a discussão em to rno da possibi 1 i­
4(> Karl R enner. Gli istituti dei diritto privato, p. 46.
•17 Galgano, p. 95. “Historicamente, o recurso à função social serve para destacai 
tinia dim ensão segundo a qual o aumento da compressão dos poderes dos pro­
prietários p o r el eito da intervenção do Estado é acom panhado da convicção de 
c|iie tal aconiet e pela necessidade de realizarem-se interesses públicos de modo
Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 365
dade de se realizarem os interesses sociais, sem desconsiderar ou 
elim inar os do indivíduo. Sistem aticam ente, a tua no âm bito dos fins 
básicos da p rop riedade , da garantia de liberdade e, conseqüen te­
m ente , da afirm ação da pessoa. E ainda, h istoricam ente, o recurso 
à função social dem onstra a consciência político-juríd ica de se rea­
lizarem os interesses públicos de m odo diverso do até en tão p ropos­
to pela ciência trad icional do d ire ito privado, liberal e capitalista. 
Neste particu lar, pode-se dizer que “revoga um dos pontos cardeais 
do sistem a privatista, o d ire ito subjetivo m odelado sobre a estru tu ra 
da p rop riedade absolu ta”, o que poderia sugerir um a certa incom ­
patib ilidade en tre a idéia de função social e a p róp ria na tu reza do 
d ire ito subjetivo. Mas o que se assenta é que a função social se con­
figura com o princíp io superio r o rd en ad o r d a disciplina da p rop rie ­
dade c do con tra to , leg itim ando a in tervenção do estado por m eio 
de norm as excepcionais, o p e ran d o a inda com o critério de in te rp re ­
tação ju ríd ica . A função social é, p o r tudo isso, um p rinc íp io geral, 
um verdadeiro standard ju ríd ico , um a diretiva mais ou m enos flexí­
vel, um a indicação program ática que não colide nem to rn a inefica­
zes os direitos subjetivos, orien tando-lhes o respectivo exercício na 
d ireção mais consen tânea com o bem com um e a ju stiça social. E é 
p recisam ente o con tra to , in strum en to da au tonom ia privada, o cam ­
po de m aior aceitação dessa teoria, aco lh ida p rim eiram en te no Có­
digo Civil italiano, art. 1.322, segundo o qual podem as partes determi­
nar livremente o conteúdo do contraio nos limites impostos por lei e celebrar 
contratos atípicos ou inominados, desde que destinados a realizar interesses 
dignos de tutela, segundo o ordenamento jurídico. Do m esm o m odo e de 
form a idêntica a consagra o Código Civil po rtuguês 110 seu art. 405a, 
ao d ispor que as partes podem livrem ente fixar o con teúdo do con­
trato, nos limites da lei, e ce lebrar con tra tos d iferen tes dos previstos 
no m esm o Código, com pletando-se esse com o art. 280-, que fixa 
limites ao exercício da au tonom ia privada, estabelecendo a nulida­
de do negócio ju ríd ic o con trá rio à o rdem pública ou aos bons cos­
tumes.
Consagrada, assim, a função econôm ico-social dos institutos j u ­
rídicos e, im plicitam ente, da au tonom ia privada, tem os que o exer­
cício deste poder ju ríd ic o deve limitar-se, de m odo geral, pela or-
diverso do tradicional. Conceitualmente, revoga um dos eixos da dogmática pri­
vada, o do direito subjetivo, modelado precisam ente sobre a estrutura da socie­
dade absoluta. Ideologicamente, abre a discussão em (orno da possibilidade de 
realização verdadeira de interesses sociais sem eliminar-se integralm ente a prn 
priedade privada dos bens.” Stefano Rodolà. Happmti nonowici, p. 112.
366 Direito Civil — Introdução
dem pública c pelos bons costum es e, em particu lar, pela u tilidade 
que possa ter na consecução dos interesses gerais da com unidade, 
com vistas ao desenvolvim ento econôm ico e ao seu bem -estar social. 
O que se p re ten d e , enfim , é a realização da ju stiça social, sem pre­
ju ízo da liberdade da pessoa hum ana.
E precisam ente com esse en ten d im en to que a au tonom ia priva­
da pode e deve direcionar-se. A idéia de justiça que se realiza na 
d im ensão com utativa, en tre particulares, iguais nos seus direitos, e 
distributiva, en tre esses e o Estado, aparece agora com nova d im en­
são, a ju stiça social, q u e se insere em um a ou tra categoria, a justiça 
geral, que diz respeito aos deveres das pessoas em relação à socieda­
de ,48 superando-se o individualism o ju ríd ic o em favor dos interesses 
com unitários e corrigindo-se os excessos da au tonom ia da vontade 
dos p rim órd ios do liberalism o e do capitalism o. O d ireito é, assim, 
cham ado a exercer u m a função co rre to ra e de equilíbrio dos in te­
resses dos vários setores da sociedade, para o que lim ita, em m aior 
ou m en o r grau de in tensidade , o p o d e rju ríd ico do sujeito, mas sem 
desconsiderá-lo , já que ele é, em ú ltim a análise, o substrato político- 
ju ríd ic o do sistema em vigor nas sociedades dem ocráticas e desen­
volvidas do m undo con tem p o rân eo que se caracterizam , precisa 
m ente , pela con junção da liberdade individual com a justiça social 
e a rac ionalidade econôm ica.
E m bora, do p on to de vista técnico-jurídico, o p rinc íp io da auto 
nom ia privada se ap resen te bastante lim itado nas possibilidades de 
seu exercício pela ingerênciado Estado na econom ia, hoje em dia 
m en o r pela tendênc ia à privatização e à desregulam entação que 
perpassa pelas nações desenvolvidas do m undo ocidental, p o r ou tro 
lado, do p o n to de vista político, constitui-se em um âm bito de atua 
ção político-jurídico individual com eficácia ju ríd ica , garantia de 
sobrevivência e de realização dos postulados básicos da liberdade e 
do valor ju ríd ic o da pessoa hum ana.
Exem plo do reconhecim en to e da lim itação funcional da autono 
m ia privada no d ireito brasileiro é o disposto no art. 421 do Código 
Civil, segundo o qual a liberdade de con tra ta r será exercida nos limi­
tes da função social do contrato . Significa isso que esse p o d e r só pode 
exercer-se em consonância com os fins sociais do contrato , implicai» 
do os valores prim ordiais da boa-fé e da p rob idade49, e levando em 
con ta os efeitos que se possam produzir em face de terceiros.
48 Bigolle Chorão. Justiça, p. 914.
49 M itn i r l R íía Ií*. O h rn iv ln H.n ftJmm O A ditn í n 71