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Francisco Amaral Professor 'l'ilular de Direito Civil e Romano na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro Da Academia Brasileira de Letras Jurídicas Da Ac cade mia dei Giusprivatisti Europei Doutor Honoris Causa da Universidade Católica Portuguesa DIREITO CIVIL INTRODUÇÃO 6â Edição Revista e A um entada de acordo com o novo Código Civil e leis posteriores R6NOVRR Rio de Janeiro • São Paulo • Recife 2006 Editoriais c Autorais RUSPUITE O AUTOK Nao Fa ç a C o p i a CAPITULO X Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada I Sumário: 1. Os fatos jurídicos. 2. O papel da vontade na nomogênese jurídica. ! ' Vontade, liberdade, autonomia da vontade e autonomia privada. 3. Autonomia ffniiada. Conceito, natureza, âmbito de atuação e limites. 4. Perspectivas histórica, li lógica e funcional da autonomia privada. 5. Fundamentos da autonomia ^Êbrivada. A liberdade e o personalismo ético. 6. A formação histórica do conceito. Kjif''atores morais, políticos e econômicos na sua formação. 7. A função histórica da p autonomia privada. Fundamento ideológico. 8. Conseqüências jurídicas do princípio da autonomia privada. 9. As críticas à autonomia privada. Argumentos lie natureza filosófica, moral e econômica. 10. A intervenção do Estado e os limites ila autonomia privada. 11. A funcionalização dos institutos de direito privado. A autonomia privada em uma perspectiva funcional. I. Os fatos jurídicos ; Fatos ju ríd ico s são acontecim entos que produzem efeitos ju r íd i cos, causando o nascim ento, a m odificação ou a extinção de rela ções ju ríd icas e de seus d ire ito s.1 Os fa tosju ríd icos dizem-se positivos ((liando im plicam um a ação ou declaração de vontade, e negativos i(liando consistem em um a abstenção ou omissão, p o r exem plo, o ilào pagam ento , a p ro rrogação tácita de um con tra to , o silêncio circunstanciado etc.; simples, q u ando consistem em um único even- lo, com o o nascim ento, a m orte, e complexos, q u ando requerem o % Glóvis Beviláqua. Teoria Geral do Direito Civil, p. 210 e segs.; Eduardo Espíno la. Sistema do Direito Civil brasileiro, 2- vol.. n. 226 u m gnu w vu — introauçao concurso de vários acontecim entos sim ples, ou de vários elem entos, com o no caso de usucapião, de con tra to etc. No fato com plexo, s< os efeitos se contam desde o início, diz-se que a eficácia é ex tunc, se do fim, ex nunc. Tais acontecim entos podem constituir-se em simples m anifesta ção da natureza, sem qualquer participação da vontade hum ana. Sã« > acontecim entos naturais e chamam-se fatos jurídicos em senso estrito. I \ > dem ser ordinários, os m ais com uns e de m aio r im portânc ia , poi exem plo, o nascim ento, a m orte, o decurso cie tem po, a doença; <• extraordinários, com o o acaso, nas suas espécies de caso fortu ito ou força m aior. E podem consistir em m anifestações da vontade h um a na. Neste caso, são fatos voluntários e chamam-se atos jurídicos (ato, de agere, agir). Q uando tais atos consistem em simples declarações de vontade que produzem efeitos já estabelecidos na lei, dizem-se atos jurídicos em senso estrito, com o, po r exem plo, o casam ento, o reconhe cim ento de filho, a fixação de dom icílio, a apropriação de coisa aban donada, ou de n inguém , a comistão, a confusão, a adjunção, a espe cificação, a tradição, a percepção de frutos, a ocupação. Q uando tais atos consistem em declarações da vontade h um ana destinadas a p ro duzir determ inados efeitos, perm itidos em lei e desejados pelo agen te, isto é, quando contêm determ inada in tenção, chamam-se negócios jurídicos, com o os contratos, o testam ento, as declarações unilaterais de vontade. Tem os então que, no ato ju ríd ico , a eficácia decorre da lei, é ex lege, enquan to no negócio ju ríd ico decorre da p róp ria vonta de do agente, é ex voluntate. O u tra d iferença existe na circunstância de que o ato ju ríd ico em senso estrito é simples atuação de vontade, enquan to o negócio ju ríd ico é instrum ento da au tonom ia privada, poder que os particulares têm de criar as regras de seu p róp rio com portam ento para a realização de seus interesses. Com o terceira espécie de atuação da vontade h um ana ao lado do ato ju ríd ic o e do negócio ju ríd ico , que se constituem em com portam ento lícito, isto é, não violador do direito , tem os o ato ilícito, aquele que, p raticado com culpa, p roduz lesão a um bem ju ríd ico (CC, art. 186) e faz nascer a obrigação de inden izar (CC, art. 927). O Código Civil atual, d iversam ente do de 1916, que, no seu art. 81 excluía o ato ilícito da espécie ato ju ríd ico , po rque eivado de an tiju rid ic idade , qualidade do que é co n trá rio ao d ire ito , com preende na categoria dos fatos ju ríd icos o negócio jurídico, o ato jurí dico lícito e ato ilícito, considerando tam bém este ju ríd ico , pois que tam bém produz efeitos ju ríd ico s2. Aos atos ju ríd icos lícitos aplicam - 2 Cfr. M oreira Alves, A Parte Geral do Projeto de Código Civil Brasileiro, p. 85-86. 'li!*, ao que couber, as disposições legais p ertinen tes aos negócios juifclicos (CC, art. 185). I Num a classificação sistem ática e conclusiva, podem os en tão dis tinguir os fatos ju ríd icos em fatos naturais e fatos humanos ou volun tários, Os voluntários subdividem-se em fatos lícitos e fatos ilícitos. Os lí tos lícitos subdividem-se em negócios jurídicos e atos jurídicos lícitos,3 Os ilícitos referem -se no Código com o atos ilícitos (CC, art. 186) ijli Para alguns autores, ainda, os atos ju ríd ico s em senso estrito dividem-se em atos m ateriais e participações.4 Atos materiais são as m anifestações de vontade sem destinatário e sem finalidade específi ca, com o no caso de ocupação, derrelição, fixação de dom icílio, descoberta de tesouro, comissão, confusão, adjunção, especificação, pagam ento indevido etc. Sua execução e eficácia são sim ultâneas.5 participações são declarações de vontade para ciência de in tenções OU de fatos, com o a intim ação, a in terpelação , a notificação, a opo sição, o aviso, a confissão, a denúncia etc. 2. O papel da vontade na nomogênese jurídica. Vontade, liberdade, autonomia da vontade e autonomia privada6 A atividade espiritual do hom em desenvolve-se de dois m odos diversos: o conhecer e o querer. Pelo prim eiro , apreendem -se os 3 Acerca da possibilidade de distinção de espécies no ato juríd ico existem duas teorias: a unitária e a dualista. Para a primeira, a categoria básica e única j'fé o ato juríd ico como manifestação de vontade, inexistindo razão para distin gui-lo do negócio juríd ico nele com preendido. Para a segunda, o ato juríd ico com porta duas subespécies: o ato juríd ico em senso estrito e o negóciojurídico, Bambos manifestações cie vontade hum ana mas com características próprias que as tornam autônomas e distintas. Barbero apresenta interessante critério de distinção, conforme os elem entos que se reúnem , a saber: o fenôm eno, a von tade e a intenção. Q uando se verifica o fenôm eno com eficácia jurídica, temos o fato jurídico. Se acrescentarmos vontade, temos o ato jurídico, e se reunirm os o fenôm eno, a vontade e a intenção, configura-se o negóciojurídico. Cf. Dome- nico Barbero. Sistema det derecho privado, I, p. 422. Cf. ainda San Tiago Dantas, Programa de Direito Civil, p. 254. 4 O rlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 223; Maria Helena Diniz. Curso de Direito Civil brasileiro, p. 209. 5 O rlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, p. 255. 6 Este item e os seguintes reproduzem , com algumas modificações, o artigo A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica. Perspectivas estrutural e funcional, escrito para o livro em hom enagem aoProf. D outor Antonio Ferrer Correia, Reitor Emérito da Universidade de Coimbra, em 1989. ■ tr tn m v v/ ivm IlIlIUVIU^tiU objetos, faz-se a sua captação m ental; pelo segundo, exercita-se tmui faculdade e m direção a um fim ou valor. O estudo deste d ireciona m en to in teressa à psicologia, à ética, à filosofia e ao direito . Para a psicologia, a vontade é um a faculdade espiritual do ho m e m que tra d u z um a tendência, um im pulso para algo, a realizaçao d e um valor intelectualm ente conhecido. Para a ética, represenlít u m a atitude o u disposição m oral para q u ere r algo. M etafísica ou filosoficam ente, é um a “entidade a que se atribui absoluta subsistên c ia e se converte, p o r isso, em substrato de todos os fenôm enos”. A vontade aparece, assim, com o um m otor, im pulsionando e d irig indo o m ov im en to em todo o re ino das faculdades. Em razão d o fim proposto , a vontade move-se p o r si mesma. Para o d ire ito , a vontade tem especial im portância p o rq u e é um d o s elem entos fundam entais do ato ju ríd ico . M anifestando-se de a c o rd o com o s preceitos legais, a vontade p roduz determ inados efei to s , criando, m odificando ou ex tinguindo relações juríd icas. Vontade psicológica e vontade ju ríd ica não coincidem , porém . E nquan to a psico logia conhece a vontade com o “tipo especial de tendência p síqu ica , associada à representação consciente de um fim e cie meios e fic ien tes para realizá-lo”, estudando-a no cam po do ser, o direito ap recia-a no campo do dever ser, reconhecendo-a com o f a to r de eficácia ju ríd ica nos limites e na form a que ele m esm o esta- h e lece . Para o d ireito , portanto, a vontade tem g rande im portância n a gênese d o s d ireitos subjetivos, sendo critério d iferenciador dos fa to s e atos ju r íd ic o s , e critério dou trinário de justificação desses m esm os direitos. A possibilidade de a pessoa agir de acordo com sua vontade, p o d e n d o fazer ou deixar de fazer algo, chama-se liberdade, que, s e n d o conceito plurívoco, extrem am ente com plexo, com preende várias espécies, com o a liberdade natural, a social ou política, a pes so a l e a ju ríd ica , que é a que nos interessa.7 A liberdade ju ríd ica é a possibilidade de a pessoa a tu a r com eficácia ju ríd ica .8 Do pon to de vista do sujeito, realiza-se no poder de criar, m odificar ou extinguir relações juríd icas. E ncarada objeti vam ente, é o p o d e r de regular ju rid icam en te tais relações, dando- lh e s conteúdo e efeitos determinados, com o reconhecim en to e a p ro teção do d ire ito . 7 Joaquim de Souza Teixeira. Liberdade, p. 1.099 e segs. 8 M anuel Garcia Amigo. Instituciones de derecho civil, I, parte general, p. 207. Os Fatos Jurídicos A Autonomia Hrivaaa A esfera de liberdade de que o agente d ispõe no âm bito do di- Ifreito privado chama-se au tonom ia, d ire ito de reger-se p o r suas pró- gjípjias leis. A utonom ia da vontade é, assim, o p rinc íp io de d ireito plivado pelo qual o agen te tem a possibilidade de p ra ticar um ato jurídico, de te rm inando-lhe o con teúdo , a fo rm a e os efeitos. Seu |É ;am po de aplicação é, p o r excelência, o d ire ito obrigacional, aquele |. cm que o agente pode d ispor com o lhe aprouver, salvo disposição líílCOgente em contrário. E q u ando nos referim os especificamente ao mifjoder que o particu lar tem de estabelecer as regras ju ríd icas de seu I; próprio com portam en to , dizem os, em vez de au tonom ia da vonta de, au tonom ia privada. A utonom ia da vontade, com o m anifestação j: de liberdade individual no cam po do d ireito , e au tonom ia privada, 1; como p o d er de criar, nos lim ites da lei, norm as ju ríd icas, vale dizer, §§0 p o d e r de alguém de d a r a si p ró p rio um o rd en am en to ju ríd ico e, li;objetivam ente, o cará te r p róp rio desse o rd en am en to , constitu ído pípelo agente, diversa mas com plem en tarm en te ao o rd en am en to es- I talai.9 |!; A au tonom ia privada constitui-se, p o rtan to , em um a esfera de 1 atuação do sujeito no âm bito do d ire ito privado, mais p rop riam en te Bjjum espaço que lhe é conced ido para exercer a sua atividade ju ríd i- ca. Os particu lares tornam -se, desse m odo, e nessas condições, legis- | ladores sobre seus p róprios interesses. P |3. Autonomia privada. Conceito, natureza, âmbito de atuação e limites A au tonom ia privada é o p o d er que os particu lares têm de regu- [j lar, pelo exercício de sua p ró p ria vontade, as relações de que parti- [•; cipam , estabelecendo-lhes o con teú d o e a respectiva d isc ip lina ju rí- ! dica. S inônim o de au to n o m ia da vontade para g rande p a rte da dou- Í ! trina con tem porânea , com ela po rém não se confunde, existindo f en tre am bas sensível d iferença. A expressão “au tonom ia da vonta- : d e” tem um a conotação subjetiva, psicológica, en q u an to a autono- I m ia privada m arca o p o d e r da vontade no d ire ito de um m odo ob- I jetivo, concre to e real. Do p o n to de vista institucional e estru tural, d om inan te na teoria I geral do direito , a au tonom ia privada constitui-se em um dos prin- 9 Luigi Ferri. L'autonomiaprivata, p. 5; Santi Romano. Frammenti di un diziona- rio giuridico, p. 24 e segs. 346 Direito Civil — Introdução cípios fundam enta is do sistema de d ire ito privado10 num reco n h e cim ento da existência de um âm bito particu lar de atuação com efi cácia norm ativa. Trata-se da projeção, no direito , do personalism o ético, concepção axiológica da pessoa com o cen tro e destinatário da o rdem ju ríd ic a privada,11 sem o que a pessoa hum ana, em bora for m alm ente revestida de titu laridade ju ríd ica , nada mais seria do que m ero in strum en to a serviço da sociedade.12 Do p o n to de vista técnico, que revela a im portância prática do princíp io , a au tonom ia privada funciona com o verdadeiro p oder ju ríd ico particu lar de criar, m odificar ou ex tinguir situações ju r íd i cas próprias ou de outrem . Funciona, tam bém , com o princíp io in fo rm ador do sistem a ju ríd ico , isto é, com o princíp io aberto , no sen tido de que não se apresen ta com o norm a de direito , mas com o idéia d ire triz ou justificado ra da configuração e funcionam en to do p róprio sistem a ju ríd ic o .13 E funciona ainda com o critério in terp re- tativo, j á que ap o n ta o cam inho a seguir na pesquisa do sen tido e alcance da no rm a jurídica, e de que são exem plos, no d ire ito brasi leiro, os arts. 112, 114, 819 e 1.899 do Código Civil. Por o u tro lado, o p rincíp io da au tonom ia privada faz presum ir que, em m atéria de d ireito patrim onial, cam po p o r excelência de aplicação desse p rin cípio, as norm as ju ríd icas são de natu reza dispositiva ou supletiva. No caso de serem cogentes, sua in terp re tação é restritiva (po r exem plo, as norm as do art. 497 do CC). Tal p o d er não é, porem , orig inário e ilim itado. Deriva do o rde n am en to ju ríd ic o estatal, que o reconhece, e exerce-se nos limites que esse fixa, lim ites esses crescentes, com a passagem do Estado de d ireito para o Estado intervencionista ou assistencial.14 10 W erner Flume. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts. Das Rechtsgeschäft, p. I; Antonio Menezes Cordeiro. Teoria Geral do Direito Civil, p. 343 e segs. 11 Larenz. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, p. 29. 12 José Antonio Doral e Miguel Angel del Arco. El Negocio Jurídico, p. 11. 13 Larenz. Metodologia da Ciência do Direito, p. 576. 14 Estado de direito era o Estado liberal ou burguês, do século XVIII, caracte rizado por ser um sistema jurídico baseadona separação de poderes, na limita ção do poder político e na garantia dos direitos individuais. Sua finalidade era proteger esses direitos, principalm ente a liberdade e a propriedade. Cf. Salva- toro Valitutti, Liberalismo, in Enciclopédia del diritto, vol. XXIV, p. 210. Estado social é o que se serve do direito não para garantir o status quo mas como instrumento de reform a social, caracterizando-se, precisamente, pelo primado que com ede ;to Item comum e à justiça social como seus objetivos. Cf. Paulo it/iniivl/li-w Du KxtnAn Liberal, no Estado Social, n, 208. Cf. ainda fosé Afonso da Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 347 Sua esfera de aplicação é, basicam ente, o d ire ito patrim onial, aquela parte do d ire ito civil afeta à disciplina das atividades econô micas da pessoa. Não se aplica, assim, a au tonom ia, ou aplica-se de m odo restritíssim o, em m atéria de estado e capacidade das pessoas e fam ília. Seu cam po de realização é o d ire ito das obrigações p o r • excelência, o n d e o co n tra to é a lei, nas suas diversas espécies de liberdade con tra tual, nas prom essas de con tra tar, nas cláusulas ge- ji rais, nas garantias etc. No d ire ito sucessório, realiza-se n o testam en- j] to, negócio ju ríd ic o com que a pessoa dispõe de seus bens ou esta- ; belece outras prescrições pa ra depois de sua m orte. Os lim ites da au tonom ia privada são a o rdem pública, os bons costum es e a boa-fé. O rdem pública, com o con jun to de norm as ju- jj rídicas que regulam e pro tegem os interesses fundam entais da socie dade e do Estado e as que, no d ire ito privado, estabelecem as bases i ju ríd icas fundam entais da o rdem econôm ica. Bons costum es, com o I o con jun to de regras m orais que form am a m en ta lidade de um povo e que se expressam em princíp ios com o o da lealdade con tra tual, da p ro ib ição de lenocín io , dos con tratos m atrim oniais, do jo g o etc. E boa-fé, com o lealdade no com portam ento . A au tonom ia privada distingue-se da au tonom ia pública pelo fato de esta ser um p o d e r a trib u íd o ao Estado, ou a seus órgãos, de criar d ire ito nos lim ites de sua com petência, para p ro teção dos in teresses fundam enta is da sociedade. Seu objetivo é de na tu reza pú blica e seu p o d e r é o rig inário e d iscricionário. Já na au tonom ia pri- j vada, os interesses são particu lares e seu exercício é m anifestação de liberdade, derivado e reconhec ido pela o rdem estatal. Seu instru m ento é o negócio jurídico. E m bora reco n h ecen d o que o p rob lem a da au tonom ia privada transcenda o cam po do d ire ito civil e d ire tam en te se ligue à tem áti ca das fontes do d ireito , lim itam o-nos aqui à m atéria cível, cuja base I e fun d am en to é a pessoa h u m an a ,15 e no capítu lo seguinte, ao seu in strum en to de realização, que é o negócio ju ríd ico , em que se le vanta, p recisam ente, o p rob lem a fundam en ta l de sua eficácia e de seus lim ites, isto é, a au tonom ia privada com o princíp io e o negócio ju ríd ico com o instrum en to ou processo de sua realização. Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 99 e segs.; e Jorge Miranda, Teoria do Estado e da Constituição, p. 49 e segs. 15 H ernandez Gil. El concepto del derecho civil, apud Federico Pnig Pena, Compen dio de derecho civil espanol, I, p. 21. 348 Direito Civil — Introdução 4. Perspectivas histórica, lógica e funcional da autonomia privada Para com preenderm os o significado, a im portância e a função da au tonom ia privada, devemos estudá-la em um a perspectiva histó rica, com o expressão de um a experiência que se desenvolve ao lon go dos tem pos e que nos dá os elem entos necessários ã percepção da gênese, desenvolvim ento, cristalização e, finalm ente, declín io do conceito , para depois chegar a um a perspectiva lógica, em que se considere a h ipótese de um o rdenam en to jurídico que privilegie ou se baseie na vontade particular. Isto com preende a cham ada au to nom ia negociai, que pressupõe o negócio jurídico com o ato e com o instrum ento da au tonom ia privada. Além desses aspectos, levantando o fio de con tinu idade históri ca de sucessivas experiências ju ríd icas, que levaram ao nascim ento do conceito de au tonom ia com o expressão do p o d er ju r íg e n o dos particulares, devemos considerar tam bém um a perspectiva funcio nal, na qual o d ireito surge com o p rodu to de um a experiência ju r í dica geral (e não de um a classe), livre, inovadora, e, acim a de tudo, pluralística, na eleição e na concretização norm ativa de seus valores. O ra, num sistema aberto assim, têm cada vez mais im portância as fontes extralegislativas,16 o q u e vai con tra um dos mais caros dogm as do positivismo, o da lei com o única fonte do direito. E abrem -se as portas para os pluralism os sociais, políticos e ju ríd icos expressos em correlatos subsistemas, todos in ter e com plexam ente relacionados en tre si.17 É nesse aspecto de vinculações que situam os a au tonom ia privada, p rinc íp io norm ativo-juríd ico , fu n d am en to da civilística contem porânea. O que está em crise não é p ropriam en te a au to n o m ia em si, mas um a sua determ inada concepção ou perspectiva. Q uanto à im portância do tem a e do seu estudo, a au tonom ia privada constitui-se em categoria lógica e p rincíp io fundam en ta l do direito civil e do d ire ito constitucional (na versão da liberdade de iniciativa econôm ica), e tam bém em categoria histórica e dogm áti ca, consagrada que foi com o expressão da liberdade individual, es pecialm ente em m atéria de contratos. E, se po r um lado, a tão falada crise do direito a afeta, não só quanto à sua p rópria existência, mas tam bém quanto à p rópria eficácia e limites, devido à crescente in- l(i Caslanheira Neves. Fontes do direito, p. 1.566; Noberto Bobbio. Dalla strutura alia funtionit. Nuovi studi di teoria dei diritlo, p. 51. 17 Paul < )riunnc. Introduction nu systhnr juriilique, p. 145 e segs. Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 349 tervenção do Estado no dom ín io privado, p o r ou tro lado, reafirm a- se a sua im portância e função com o “recrudesc im en to da m ística co n tra tu a l” e o uso crescente do negócio ju ríd ic o com o instrum en to de sua realização e a inda com o faculdade de institu ir ju ízo arbitrai p a ra d irim ir litígios relativos a direitos patrim oniais disponíveis (Lei n B 9.307, de 23 de setem bro de 1996). 5. Fundamentos da autonomia privada. A liberdade e o personalismo ético F undam en to ou pressuposto da au tonom ia privada é, em term os im ediatos, a liberdade com o valor ju ríd ico , e, m ediatam ente , a con cepção de que a pessoa é causa do sistem a social e ju ríd ic o e de que a sua vontade, livrem ente m anifestada, pode ser in strum en to de rea lização de justiça. C orolário dessa concepção é o negócio ju ríd ico com o fon te principal de obrigações. O d ire ito civil é o o rd en am en to juríd ico dos interesses e das relações ju ríd icas privadas, fundado no p rincíp io da igualdade dos hom ens pe ran te a lei e e laborado histórica e co n tinuadam en te em to rn o do reconhec im en to de um a esfera de soberan ia individual que tem suas m anifestações no p rincíp io da liberdade, com refe rên cia à pessoa, na propriedade, com referência aos bens, e no contrato, jl com referência à atividade econôm ica das pessoas.18 Pode assim ca racterizar-se com o sendo aquele setor do o rd en am en to ju ríd ic o em que se exercita ou realiza a au tonom ia reconhec ida aos sujeitos de d ireito , aceita com o p rinc íp io fundam en ta l mas lim itada pelas exi gências da ordem pública e do bem com um . O p rinc íp io da au tonom ia privada baseia-se, p o rtan to , ou tem , com o pressuposto, a liberdade individual, que, filosoficam ente, se e n ten d e com o a possibilidade de opção, com o liberdade de fazer ou de não fazer, e, sociologicam ente, com o ausência de cond iciona m entos m ateriais e sociais. Do p o n to de vista ju ríd ico , a liberdade é o p o d e r de p raticar ou não, ao a rb ítrio do sujeito, todo ato não o rd en ad o nem pro ib ido p o r lei, e, de m odo positivo, é o p oder que as pessoas têm de op tar en tre o exercício e o não-exercício de seus direitos subjetivos.19 A liberdade, com o valor jurídico, perm ite ao indivíduo a atuação com eficácia ju ríd ica , que se concretiza em duas m anifestações fun- 18 Giuseppe Stolfi. Teoria dei negozio jurídico, p. XXI, Rosario Nicolò, p. 907. 19 Eduardo Garcia Mayncz. Filosofia dei derecho, p. 389 e 391. 350 Direito Civil — Introdução dam entais: um a subjetiva, que é o estabelecim ento, m odificação ou extinção de relações juríd icas; c ou tra objetiva, que é a normativiza- ção ou regulação ju ríd ica dessas mesmas relações. Configuram-se, desse m odo, duas facetas da liberdade ju ríd ica : um a, a liberdade de criar, m odificar ou ex tinguir relações; ou tra , a de estabelecer as n o r mas ju ríd icas disciplinadoras dessa atividade, no exercício do seu poder ju ríd ico de criar, nos lim ites legalm ente estabelecidos, n o r mas de direito. A au tonom ia privada significa, assim, o espaço livre que o o rde nam ento estatal deixa ao p o d e r ju ríd ico dos particulares, um a ver dadeira esfera de atuação com eficáciajuríd ica, reconhecendo que, tratando-se de relações de d ire ito privado, são os particulares os m elhores a saber de seus interesses e da m elhor form a de regulá-los juridicam ente. O princíp io da au tonom ia privada subm eteu-se nas últim as dé cadas a um processo de revisão crítica, reduzindo-se o cam po de sua atuação com a in tervenção do Estado, em bora perm aneça com o essência do negócio ju ríd ico , particu larm en te de sua principal cate goria, o contrato . Por ou tro lado, a m undialização da econom ia, com o uso crescente dos m odelos contratuais, e o reconhecim en to de um a p lu ralidade nas fontes de d ire ito e nos m eios de com posição de conflitos (v.g., a arbitragem ) apon tam para o recrudescim ento de sua u tilidade e aum ento do seu cam po de aplicação. 6. A formação histórica do conceito. Fatores morais, políticos e econômicos na sua formação O princíp io da au tonom ia privada é h istórico e relativo, no sen tido de que fatores de o rdem m oral, política e econôm ica con tribu í ram para a sua configuração ao longo do tem po, transform ando-o em um dos princípios fundam entais da o rdem ju ríd ica privada. A com preensão de sua natu reza e função exige, assim, o conhecim en to prévio dessas condições históricas e culturais em que se form ou. Pode-se considerar, de m aneira geralm ente aceita, que seu an teceden te im ediato é o individualismo, do u trin a segundo a qual se concede à pessoa hum ana um prim ado relativam ente à sociedade, o indivíduo com o fonte e causa final de todo direito. D iferentes aspectos ou vertentes podem -se visualizar nessa dou trina. Filosoficamente, o individualism o explica os fenôm enos his tóricos v. sociais com o decorrência da atividade “consciente e in te ressada dos indivíduos”. I Os Fatos Juríd icos. A Autonom ia Privada 351 Politicam ente, opõe-se ao estatismo, à in tervenção do Estado. Por ou tro lado opõe-se tam bém ao conform ism o e ao tradicionalism o. Para ele, a sociedade não é um fim em si m esm o, nem o in strum en to de um fim superio r aos indivíduos que a com põem , devendo as instituições sociais te r p o r fim a felicidade e a perfeição dos indiví duos. Significa, en tão , o individualism o um a “tendência a colocar as ; instituições políticas, ju ríd icas e sociais de um país a serviço dos interesses particu lares dos indivíduos que com põem a população, I de p referência aos interesses coletivos”. Do pon to de vista econôm i- j í i co, considera que o indivíduo deve ter a m áxim a liberdade de atua- | ção no cam po da econom ia, opondo-se, assim, ao dirigism o estatal jÉ e, nesse particu lar, confunde-se com o liberalism o. D efende o “livre 1 jogo da atividade econôm ica individual”, com o m ínim o de in ter- Pi venção do Estado, que deve limitar-se a garan tir a liberdade de tra balho e do com ércio, e a p rop riedade dos bens. Ju rid icam en te con- jí sidera que “as norm as ju ríd icas são ob ra dos indivíduos e não da íi; sociedade, ou, mais exatam ente , um sistem a ju ríd ico que resu lta da j;: atividade individual”. E finalm ente, na perspectiva da teoria das fon- ; tes e dos fins do direito , é “um sistema em que se adm ite ser o ind i víduo a ún ica fon te das regras do d ire ito e a causa final de toda atividade ju ríd ic a das instituições, no tadam en te do E stado”.20 A ntecedentes encontram -se ainda, mais rem otam en te , no p ró prio d ireito rom ano, no d ireito canônico e no d ireito in ternacional privado, e m ais recen tem en te na escola de d ire ito natu ra l, na filoso- •: fia política do con tra to social, na filosofia de Kant, e no liberalism o econôm ico. No direito romano tem os a lex privata com o prim eira form a de expressão do “ius civile”. A lex era um a declaração solene com valor de no rm a ju ríd ica , baseada em um acordo en tre declaran te e desti- | natário . T in h a po r base um negócio particu lar, que se realizava $ quando alguém d ispunha de um a coisa sua (lex rei suae dieta). A lex privata era, assim, form a de expressão do d ire ito privado, conform e disposto na Lei das XII Tábuas: “ati lingua nuncupassit, ita ius esto”.21 Depois da lex privata é que surge a lex publica, quando aprovada pelo 20 Mareei Walline. L ’individualisme et le droit, p. 14, 18 e 20. 21 Q uando alguém celebrar um contrato, “conform e o que for deliberado, seja direito, tenha força de lei”. Lei das XII Tábuas, Tábua Sexta, De domínio et possessione (do direito de propriedade e da posse). Sebastião Cruz. Direito Roma no, p. 202. 352 Direito Civil — Introdução povo, nos com ícios, uma proposta do m agistrado. Consagrava-se, desse m odo, o p o d e r ju rígeno da vontade individual. Em seguida vem o cristianismo, que coloca o hom em n o cen tro das reflexões de o rd em religiosa, filosófica e social, e dogm atiza, no d ireito canônico, a declaração de vontade com o fon te de obrigações juríd icas. O con tra tan te é obrigado, po r sua p róp ria consciência, a respeitar a palavra dada, o que im plica a necessidade de o consenti m ento dos con tra tan tes não estar viciado, do n d e a im portância dos vícios do consentim ento na teoria do negócio ju ríd ico . E im portan te, tam bém , que n ã o se configure o en riquecim en to injusto, donde as idéias de lesão e de usura consagradas pelos canonistas. E preciso, enfim , que não se tenha dado a palavra p o r nada ou po r um a causa ilícita ou im oral, d o n d e a origem da teoria da causa, tão im portan te 110 regim e dos contratos. R econhecendo com o pecado a violação da palavra dada, o d ire ito canônico consagra a inda o acordo de vonta des com o fonte d e obrigações morais e religiosas.22 Com os glosadores, principalm ente Bartolo de Saxoferrato ,23 fir ma-se o p rin c íp io da autonom ia da vontade no d ire ito in ternacional privado, reconhec ido aos particulares o p oder de escolher a lei apli cável aos seus contratos. A vontade particu lar passa a estabelecer o critério de solução dos conflitosde leis em m atéria con tra tual e, assim, a ser fo n te de direito, o que vem a ser aceito no d ire ito civil, que tam bém reconhece a vontade particu lar com o p oder de estabe lecer as regras d e sua atuação ju ríd ica , pelo m enos no cam po das obrigações, co m o disposto no art. 1.134 do Código francês, segundo o qual “as convenções legalm ente estabelecidas fazem lei en tre as partes”. O que e ra para os in ternacionalistas um a noção pu ram en te técnica passou a ser para os civilistas um conceito teórico, traduzin do a convicção d e que “a vontade pode, com o o Estado, criar d irei to”.24 22 O direito canônico é o direito da Igreja latina. Seu nom e deriva do fato de, no O riente, as leis eclesiásticas chamarem-se cânones. Constitui-se das normas estabelecidas pelo papa e pelos concílios ecumênicos, das concordatas entre a Santa Sé e os Estados e as leis e decretos de autoridades eclesiásticas inferiores. Seu principal instrum ento é o Código de Direito Canônico, prom ulgado o lílii mo pelo papa Jo ão Paulo II, a 25 de janeiro de 1983, para viger a partir de 27 de novembro do mesmo ano. ü:i iku lolo de Saxoferrato (1314-1357), o mais célebre dos pós-glosadores, um dos coiiNlrulm es <lo direito internacional privado, com os princípios locus regil artum t fax m útar. Cl, 1 laroldo Valladão. Autonomia da vontade no direito interna rir mal Mtmdo, I). !M. Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 353 Com a escola do direito natural, a idéia da origem divina do d irei to substitui-se pela das liberdades naturais, que se consideram fun d am en to e fim do d ireito . “Declara-se que existem leis da natu reza descobertas pela razão que devem d om inar as legislações. Essas leis fundam en tam e favorecem a sociedade dos hom ens. O ra, não há regra mais favorável à sociedade dos hom ens que aquela que consis te em dizer que se é obrigado pelo con tra to e po rque se quis isso. O con tra to é a m anifestação da vontade hum ana, e a liberdade con tra tual, um a das liberdades natu ra is.”25 T am bém a teoria do contrato social, de Jean-Jacques Rousseau, con tribu i, 110 p lano filosófico, pa ra a teoria da au tonom ia da vonta de. O hom em é na tu ra lm en te livre; a vida em sociedade exige, toda via, um certo ab an d o n o desta liberdade, mas este ab an d o n o não se concede senão q u ando livrem ente consen tido , nos lim ites e nas condições que este con tra to social d e te rm in o u .26 Segundo essa teo ria, a au to rid ad e pública tem por base a concordânc ia dos sujeitos de d ire ito , que se unem para fo rm ar a sociedade, aband o n an d o , pelo con tra to social, um a parte dos d ireitos que a na tu reza lhe tinha dado. A vida em sociedade não seria possível se cada um quisesse exercer ao m áxim o sua liberdade, sendo preciso ren u n c iar a alguns direitos pelo con tra to social. A convenção, o acordo, é a base de toda au to ridade en tre os hom ens, sendo que a p rópria au to ridade pública extrai o seu p o d e r de urna convenção. Com a filosofia de Kant, que teve definitiva influência, a au tono mia da vontade adqu ire cono tação dogm ática, passando a im perati vo categórico de o rdem m oral, afirm ando-se na Metafísica do Direito (1796) que “a vontade individual é a ún ica fon te de toda obrigação ju ríd ica”.27 Na A lem anha, suas idéias serviram de substrato à fam osa Willenstheorie, 2 8 e 11a França, a tradução do seu livro consagra defini- 24 Véronique Ranouil. L'autonomie de ta volonté,. Naissance et évolution d ’un con- i; çept, p. 68. 25 Alex Weil et François Terré. Droit civil. Les obligations, p. 51. §6 Boris Stark. Obligations, p. 341. 27 Emmanuel Kant. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 144. Sobre a ; origem da expressão, Cf. V eronique Ranouil, p. 42, 76 e 84. I 28 Willenstheorie (teoria da vontade), segundo a qual, nas declarações de vonta de, o intérprete deve atender mais à vontade subjetiva do agente do que ao nspecto formal de sua declaração. 354 Direito Civil — Introdução tivam ente a au tonom ia da vontade, expressão tirada da sua ob ra Crítica da razão prática. Argum entos decisivos da au tonom ia da vontade com o princíp io e form a de p o d e r ju ríd ic o encontram -se a inda no cam po econôm i co, im pondo-se em toda a sua p len itude com a d o u trin a do libera lismo “pelo qual o livre jo g o das vontades particu lares assegura o m áxim o de p rodução e os preços mais baixos, com o efeito da livre concorrência”. O seu in strum en to é o con tra to que deve ser p re servado com o p ro d u to da liberdade in tegral de suas partes, afasta dos os obstáculos ã livre circulação dos bens. E o p rincíp io do lais- sez-faire, laissez-passer, laissez-contracter, que vem a ser ju rid icam en te form alizado no art. 1.334 do Código Civil francês, com o acim a re ferido. Na A lem anha e na Itália, o notável desenvolvim ento da do u trin a leva o p rincíp io da au tonom ia da vontade a nova dim ensão, com significado até diverso pa ra alguns juristas, que passaram a conside rá-lo, objetivam ente, verdadeiro p o d er ju ríd ico dos particu lares, de nom inando-se, p o r isso, au tonom ia privada,29 p o d er de estabelecer norm as ju ríd icas individuais para regu lam en tar sua p ró p ria ativida d e juríd ica, m anifestada a vontade p o r m eio de figura específica, o negócio ju ríd ico . No d ire ito civil brasileiro não tivemos até agora m aior receptividade para essa dou trina , o que se com preende à luz d a evolução política da sociedade brasileira, em que os valores do individualism o e do liberalism o sem pre fo ram postergados pela atuação de um Estado h isto ricam ente un itário , cen tralizador, au to crático e intervencionista.30 Diversa é, todavia, a op in ião no cam po d a filosofia do direito , em que se reconhece o poder e a legitim ida d e da vontade particu lar com o fon te do d ire ito31. 29 Hans Kelsen. Teoria generale del diritío e dello stato, p. 139; Luigi Ferri. L 'auto nomia privata, p. 5; Ana Prata. A tutela constitucional da autonomia privada, p. 5; Mário Bigotte Chorão. Temas fundamentais de direito, p. 254 e segs.; O rlando Gomes. Autonomia privada, p. 258; Do autor. Da irretroatividade da condição sus pensiva, p. 43 e segs. E ainda, A autonomia privada como poder jurídico, p. 286; W erner Flume. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, p. 1 e segs.; Rodolfo Sacco, A utonomia nel diritto privato, p. 517. SO R. A. Amaral Vieira. Intervencionismo e autoritarismo no Brasil, p. 15 e 20; Emi lia Viol 1.1 (lit Gosta. Da Monarquia à República. Momentos decisivos, p. 6, 9 e 27. m i Mlinii-I Itafile. / .ienes /»eliminares do Direito, p. 179. Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 355 1. A função histórica da autonomia privada. Fundamento ideológico A concepção teórica da au tonom ia privada é p ro d u to do indivi dualism o que reúne e consolida tendências an terio res já verificadas 110 d ire ito rom ano, no d ire ito canônico , na teoria do con tra to social e no liberalism o econôm ico, e que se m anifesta, h istoricam ente, no ju sna tu ra lism o e, filosoficam ente, na d o u trin a de Kant, cujo pensa m en to é um a das expressões mais rigorosas do estado liberal.32 Seu fundam en to básico é a liberdade com o p o d e rju ríd ico , e sua função se deduz das condições econôm icas e sociais em que se afir m ou com o p o d e rju r íd ic o . Im portan te , pois, para explicitar-se tal função, o processo econôm ico em que nasceu e se desenvolveu o p rinc íp io da liberdade, ou m elhor, do p o d e r individual com o fonte norm ativa. Com o desenvolvim ento do com ércio e da indústria , da divisão do trabalho e da especialização,aum en ta o in tercâm bio de bens e serviços, e o p rincíp io da au tonom ia da vontade torna-se ex trem a m en te útil para o desenvolvim ento desse processo, acred itando o pensam en to econôm ico liberal, na sua expressão mais pura, que a lei cla oferta e da p ro cu ra responde aos interesses da sociedade. Nessa perspectiva econôm ica, um a breve revisão histórica m os tra-nos que o dogm a da vontade nasce tam bém do d ire ito de p ro priedade. Na Idade M édia, a fon te p rincipal da riqueza e p rodução era a terra, e o d ire ito principal, a p rop riedade. A evolução política e econôm ica to rna, porém , d istin ta a p rop riedade da terra da dos dem ais bens de p rodução , estes a base do com ércio e da indústria , de que eram titulares os constru to res da econom ia capitalista, os burgueses, interessados no desenvolvim ento do in tercâm bio com er cial. Esse processo leva à jurisdicização das relações de troca, isto é, a um d ireito que perm ite a livre circulação dos bens e dos sujeitos, na dinâm ica do p róp rio sistema. A generalização das trocas configu ra um a nova força, um novo poder, que se destaca do d ire ito de p rop riedade , e que é, precisam ente, o p o d e r da vontade que se rea liza na liberdade de troca e na liberdade de atuação no m ercado, co rresponden te ao que hoje denom inam os liberdade de iniciativa econôm ica. A au tonom ia da von tade traduz, po rtan to , um p o d er de disposi ção d ire tam en te ligado ao d ire ito de p rop riedade , d e n tro do siste m a de m ercado da circulação dos bens p o r m eio de troca, e de que 32 Noberto Bobbio. Diritto e status nel pensiero di Emmanuel Kant, p. 1. 356 Direito Civil — Introdução o instrum en to ju ríd ico p róp rio é o negócio ju ríd ico . Essa au tono m ia significa, conseqüen tem en te , que o sujeito é livre pa ra con tra tar, esco lher com quem con tra ta r e estabelecer o con teúdo do con trato. A au tonom ia privada teria, assim, com o fundam en to prático, a p ro p rie d ad e p articu la r e, com o função, a livre c irculação dos bens,33 o que pressupõe, tam bém , a igualdade formal dos sujeitos, isto é, a igualdade de todos peran te a lei. A au tonom ia privada revela-se, po rtan to , com o p ro d u to e com o instrum ento de um processo político e econôm ico baseado na liber dade e na igualdade form al, com positivação ju ríd ica nos direitos subjetivos de p ro p ried ad e e de liberdade de iniciativa econôm ica. Seu fundam en to ideológico é, portan to , o liberalism o, com o dou tri na que, e n tre ou tras fo rm ulações, faz da lib e rd ad e o p rin c íp io o rien tad o r da criação ju ríd ic a no âm bito do d ireito privado, pelo m enos no seu cam po m aior, que é o do d ire ito das obrigações. Com a in tervenção posterio r do Estado, e a respectiva legislação especial, limita-se a au tonom ia da vontade e visa-se estabelecer o u tro tipo de igualdade, a material, esta referen te à possibilidade de acesso a todos os bens e às oportun idades da vida econômico-social. O princíp io da au tonom ia p erde seu absolutism o, mas persiste a inda com o p rin cípio básico da o rdem ju ríd ica privada.34 O interesse geral e a justiça põem-se acim a da liberdade individual, mas o d ireito objetivo res peita o d ire ito subjetivo, pois a superioridade daquele não im pede o reconhec im en to da au tonom ia ou, m elhor d izendo, cle um verda deiro d ireito dos particulares. A questão é, apenas, cle limites. Per m anece, com o regra, a liberdade de con tra ta r e de estabelecer o con teúdo do con trato , devendo ser excepcional a in tervenção do Estado ao estabelecer a obrigatoriedade de certos con tratos e de cláusulas e preços prefixados.35 8. Conseqüências jurídicas do princípio da autonomia privada Conseqüências im ediatas do reconhecim en to da au tonom ia pri vada são, no d ire ito civil, que é o seu cam po p o r excelência, os p rin cípios da liberdade contratual, da força obrigatória dos contratos, !l!t Pietro llarccllona. Diritto privato eprocesso economico, p. 201, e ainda, Formazio- nc c sviluppo dd diritto privato moderno, p. 274. :í I |a< (|UCH Cilicslin. Obligations. Lecontrat, p. 119. 35 Hiiirellona, Diritto jmvato eprocesso economico, p. 22(5. Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 357 do efeito relativo dos contratos, do consensualism o e da natu reza supletiva ou dispositiva da m aioria das norm as estatais do d ire ito das obrigações, e ainda a teoria dos vícios do consen tim ento . No cam po sucessório, a liberdade de testar e de estabelecer o con teúdo do testam ento . E para os que aceitam a vontade com o p o d er juríd ico , a concepção norm ativa do negócio ju ríd ico , isto é, a consideração do negócio com o fon te de norm as ju ríd icas, m atéria que se inclui no âm bito da filosofia e da teoria geral do direito . A liberdade de iniciativa econôm ica é a fonte leg itim adora da au tonom ia privada no cam po constitucional, com o p rinc íp io básico da o rdem econôm ica e social. São conceitos correla tos m as não co incidentes, na m ed ida em que a prim eira focaliza o aspecto eco nôm ico, e a segunda, o ju ríd ico , do m esm o fenôm eno , havendo, en tre eles, um a relação in strum en ta l.36 A liberdade con tra tual manifesta-se nos seguintes aspectos: li berdade de con tra ta r, cle escolher as partes com quem con tra ta r, de estabelecer o tipo, o con teúdo , a form a e os efeitos do con tra to . O princípio do consensualismo significa que basta o consen tim en to , o acordo de vontades, para que o con tra to se estabeleça e as obriga ções nasçam , não sendo preciso form a especial. Sendo assim, o re conhecim en to da au tonom ia privada con tribu i para a redução ou até o desaparecim ento do form alism o típ ico dos prim eiros tem pos do direito . A vontade deve ser, porém , livrem ente m anifestada, pelo que os vícios do consen tim ento revestem-se de g rande im portância. Se o consen tim ento não é livre, a m anifestação de vontade é defei tuosa e, po rtan to , anulável. Por o u tro lado, não interessam os m oti vos da declaração de vontade. Sendo o con tra to m anifestação de liberdade, não im portam os motivos que levaram a tal m anifestação. 36 Francesco Galgano. Rapporti economia, p. 5. A eficácia juríd ica da autonom ia privada no âmbito constitucional liga-se diretam ente ao problem a da organiza ção econômica da sociedade que encontra a sua fonte suprem a na cham ada Cons tituição Econômica, orientada pelos seguintes princípios: 1) reconhecim ento e garantia da propriedade privada (CF, arts. 52 art. 170, II); 2) da liberdade de iniciativa econômica dos particulares (CF, arts. I 2, IV, e 170); 3) a iniciativa pública econômica do Estado quando necessária por motivo de segurança na cional ou de relevante interesse coletivo; e 4) o reconhecim ento do poder nor mativo e regulador do Estado, de caráter indicativo para os particulares. E nesse contexto que se conform am os institutos civis da autonom ia privada, a proprie dade, o contrato, o testamento, a associação e a fundação. Limites da autonom ia privada são a ordem pública e os bons costumes. Cfr. A. Lopez/V.L. Monies, Derecho civil, parte general, p, 561 e segs. 358 Direito Civil — Introdução A vontade vale p o r si mesma, se lícito o respectivo objeto. O princípio da força obrigatória dos con tratos significa que a vontade particular, autônom a, estabelece um a le i entre as partes con tratan tes que se vinculam ao cum prim ento das obrigações estabelecidas p o r essa vontade. Já o efeito relativo dos contratos significa, po r sua vez, que a eficácia do contrato, isto é, as obrigações e as regras estabelecidas para o seucum prim ento, produzem efeitos apenas en tre as respec tivas partes, não afetando terceiros. Para os que vêem na vontade individual um p o d er ju ríg en o , o negócio ju ríd ico , seu instrum ento, tem eficácia norm ativa, vale di zer, a m anifestação de von tade é fonte de regras ju ríd icas que, ao lado das estabelecidas em lei, disciplinam as obrigações nascidas desse negócio. As normas que nascem da declaração de vontade são juríd icas, ao lado das que nascem do p oder estatal, ou dos costumes, ou dos princípios gerais do direito. “Q ualitativam ente não há dife rença en tre as distintas fontes normativas que in tegram o com plexo regulador da relaçãojurídica concreta, ainda que se estabeleça um a h ierarqu ia en tre a norma proceden te de cada fon te .”37 E no proces so de revisão da teoria das fontes de direito , o negócio ju ríd ico , com o expressão da autonom ia privada, é tido com o “ato constituti vo de norm ativ idadejuríd ica” , subordinado à lei mas não dela nor- m ativam ente derivado.38 Em face disso, as norm as ju ríd icas que a lei estabelece no campo da autonom ia privada, que é p o r excelência o das obrigações, são em g ran d e maioria, salvo disposição expressa em contrário ou em virtude d e sua natu reza de o rdem pública ou de bons costum es, dispositivas ou supletivas. 9. As críticas à autonomia privada. Argumentos de natureza filosófica moral e econômica As m udanças econômicas e sociais decorren tes da revolução in dustrial e tecnológica, com a passagem de um a econom ia agrícola <• rural para um a industrial e urbana, causaram grandes alterações 110 sistem a de d ire ito privado. Surgiram novos institu tos ju ríd ico s , com o a em presa, os contratos-tipos, os de adesão e outras figuras contratuais próprias do desenvolvim ento econôm ico e capitalístico. .“17 Clareia A m ig o , p . 215. .18 Cuittnnhdru Neve», p. 1.566. Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 359 T udo isso provoca restrições à liberdade ju ríd ic a da parte do Estado intervencionista, que dirige a econom ia e organiza a p ro d u ção, dan d o m argem a críticas à au tonom ia privada que tem p ro fu n dam en te reduzido o seu cam po de atuação, lim itado aos pequenos negócios da m icroeconom ia. Tais críticas são, tam bém , com o os fa tores que a fizeram crescer, de o rdem filosófica, m oral e econôm ica. Do p on to de vista filosófico, constata-se facilm ente que ao indi vidualism o se con trapõem as tendências sociais da idade con tem po rânea. O hom em é um ser social, vive necessariam ente em grupo, do que lhe advêm inevitáveis restrições e cond icionam entos na sua capacidade de agir. Do p on to de vista m oral, tem-se dem onstrado que os princíp ios da liberdade e da igualdade não se realizam harm onicam ente . A igualdade pe ran te a lei é m eram en te form al; no cam po m aterial, vale dizei, no cam po das relações sociais e das o p o rtun idades de progresso econôm ico, as desigualdades são profundas. O exercício da liberdade con tra tual, p o r exem plo, p o d e levar os segm entos so ciais mais caren tes de recursos e, p o r isso m esm o, desprovidos do p o d e r de confron to ou de negociação, a acen tuados desníveis eco nôm icos, do que é exem plo a m iséria das classes m enos favorecidas, o que leva o Estado a intervir para equ ilib rar o p o d er das partes con tratan tes, estabelecendo norm as im perativas em m atéria de o r dem pública ou de bons costum es. O legislador lim ita, assim, a au tonom ia privada, para o fim de p ro teg er os pólos mais fracos da relação ju ríd ic a patrim onial, p rinc ipalm en te em m atéria de con tra tos (locação, em préstim os, seguros, operações financeiras típicas etc.). Do pon to de vista econôm ico, justifica-se a in tervenção do Esta do n a organização e disciplina dos setores básicos da econom ia, ale gando-se a inconveniência, a im possibilidade até, de se deixar às forças do m ercado a condução da econom ia nacional, p rinc ipal m en te nos países em vias de desenvolvim ento, o n d e são mais fla grantes as disparidades econôm icas e sociais. A realização dos valo res fundam enta is da o rdem ju ríd ica , a segurança, a justiça, o bem com um , a liberdade, a igualdade e a paz social exigem um a p resen ça cada vez m aior do Estado no sentido de equ ilib rar as forças eco nôm icas e sociais em conflito. Não mais se adm ite a econom ia libe ral do século XIX, que se substitui p o r um a econom ia concertada, com um a in tervenção crescente do Estado pa ra o fim de p ro teger as categorias sociais m enos favorecidas, com o os trabalhadores assala riados, e o rgan izar a produção e d istribu ição dos bens e serviços p o r 360 Direito Civil — Introdução m eio de um conjunto de m edidas cuja disciplina ju ríd ic a tom a o nom e de o rdem pública econômica. F inalm ente, um argum ento de natu reza ideológica. O princíp io da au tonom ia privada encontra sua razão de ser na expressão mais pura do liberalism o econômico, na época em que o Estado tinha um a função mais política do que econôm ica ou social. Era o Estado de d ireito , organizado jurid icam ente para g a ran tir o respeito aos direitos individuais que encontravam nesse p rincíp io o in strum en to de sua p lena realização. Com a revolução industrial e tecnológica, e os problem as sociais dela decorren tes, com guerras m undiais de perm eio, surge o Estado social, in tervencionista, pa ra o rien ta r a vida econôm ica, protegendo os mais desfavorecidos e p rom ovendo iguais oportun idades de acesso aos bens e vantagens da sociedade contem porânea. No campo do d ire ito privado, dá-se a socialização do direito civil,39 o que representa o p rim ado dos interesses sociais sobre os individuais e, conseqüentem ente, a redução do âm bito de atuação soberana da pessoa hum ana 110 cam po do d ireito . 10. A intervenção do Estado e os limites da autonomia privada Constata-se então que o individualism o do século XIX — resul tan te das concepçõesjusnaturalistas e ilum inistas que se positivaram 110 Código de Napoleão e no Código Civil alem ão (BGB), nos quais a pessoa hum ana, com sua liberdade e au tonom ia, e ra o cen tro p o r excelência do universojurídico, e o d ireito civil, “a garan tia dos fins individuais relativos à família e aos bens”40 — foi-se reduzindo gra- dativam ente a partir do começo do século e, acentuaclam ente, com a Segunda G uerra Mundial, m ercê dum a progressiva intervenção do Estado, que limita a autonom ia privada quando não a elim ina totalm ente. A intervenção estatal na m atéria econôm ico-jurídica de m onstra, assim, a superação do liberalism o econôm ico e político do século XIX, intervindo o Estado com princíp ios au toritários na eco nom ia privada e na vida juríd ica em geral. Advoga-se o p redom ín io dos interesses gerais sobre os particulares e sobrepõe-se o espírito da socialidade e da justiça social ao do p u ro individualism o dos có digos civis, exigindo-se destes, não a tradicional postura dogm ática .Hl JtNtu Ciii homiior. Droil civil, |>. 69. " • * • » -------a a J . . . . I l i * O Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 361 adequada ao Estado de d ire ito , mas o cará te r instrum enta l de utili dade p ró p rio do Estado social. A passagem do Estado liberal para o Estado in tervencionista, com a sua crescente ingerência na o rgan i zação da vida econôm ica, conduz assim ao declín io da concepção liberal da econom ia e a um a conseqüen te crítica ideológica do dog m a da vontade, p rinc ipalm en te pela d o u trin a m arxista. E os p rinc í pios e institutos fundam entais do d ire ito civil, a p ro p ried ad e , o con trato , o casam entoetc., em igram para o texto das Constituições, levando ju ristas de n om eada a falar na publicização do d ire ito pri vado.41 Todas essas m odificações alteram a fisionom ia tradicional do d ire ito civil, rep e rcu tin d o nas fontes e nos institutos fundam entais, enfim , em toda a m atéria do d ire ito privado. No que tange às fontes, além das m odificações p ro fundas que o C ódigo Civil sofreu, em g rande parte derrogado p o r ab u n d an te le gislação específica que fragm en tou a un id ad e legal do d ire ito priva do, passando-se da e ra da codificação (século XIX) para a dos mi- crossistemas juríd icos (século X X ),42 há um aspecto de sum a rele v ância já aludido, que é a consagração cle p rincíp ios constitucionais p e rtin en tes ao d ireito privado, com o os princíp ios da liberdade, da p ro p ried ad e e da iniciativa econôm ica (CF, art. 52). Além de reco nhecidos com o princíp ios norm ativos, pois que inco rporados a tex tos constitucionais m odernos, com o o italiano, o português, o brasi leiro — o que os to rn a in teg ran tes do sistem a político e lhes confere um a im plícita garan tia con tra eventuais abusos do legislador o rd i nário — , têm o efeito de reduz ir o cam po das d iferenças e n tre o d ire ito público e o d ire ito privado, hoje conjugados na ação com um de prover ao bem -estar social. O ra, se p o r um lado vemos a redução do individualism o subjacente aos postulados liberais do d ire ito civil burguês, p o r ou tro lado, tem os o reconhec im en to constitucional desses m esm os postulados, revestidos, é certo, de um a dim ensão pública, geral e funcional, no sen tido de que, in tegrados na ordem econôm ica e social, servem com o instrum entos de desenvolvim ento e de ju stiça social. R econhecida constitucionalm ente a liberdade de iniciativa eco nôm ica, in d ire tam en te se garan te a au tonom ia privada, em face da ín tim a relação de in strum en ta lidade existente en tre ambas. Concei 41 Rcné Savatier. Du droit civil au droit public, p. 13. 42 O rlando Gomes. A caminho dos microssistemas, p. 40 e segs.; Natalino Irti. L'etá delia, decodifícazione. o. 27. 362 Direito Civil — Introdução tos conexos, mas não coincidentes, a autonom ia privada tem caráter in s tru m en ta l em face da liberdade de iniciativa econôm ica, pelo que as lim itações que a esta se im põem tam bém atuam q uan to àque la. E esses lim ites são a ordem pública, na sua espécie de o rdem p ú b lic a e social de direção, sob a form a de intervencionism o neoli- beral o u de dirigism o econômico, e os bons costum es, as regras m o rais, s e n d o que o intervencionismo neoliberal não se opõe à libera lidade con tra tual nem à livre concorrência, apenas visa evitar a que for deslea l, e a p ro teger o consumidor, enquanto o dirigism o, opon- do-se à liberdade contratual, submete-se às exigências da planifica ção econôm ica , im perativa ou indicativa.43 T u d o isso im plica a redução do âm bito de atuação da au tonom ia p rivada . Com o princíp io fundam ental da o rdem ju ríd ica civil, teve m aior im portância nas épocas de mais acen tuado individualism o, mas, c o m as tendências sociais em m atéria de contrato , a pro lifera ção d a s leis especiais e as crescentes restrições à liberdade con tra tual, assiste-se à redução de seu cam po, em bora perm an ecen d o com o p rinc íp io fundam ental do direito privado, aplicável nos seto res e m que o d ire ito estatal perm ite , basicam ente, o d ire ito das ob rigações. O problem a da autonom ia privada é, p o rtan to e som en te, u m problem a de limites que se estabelecem, por exem plo, com o d e v e r ou a proibição de contratar, a necessidade de aceitar regu lam e n to s predeterm inados, a inserção ou substituição de cláusulas co n tra tu a is , o princíp io daboa-fé, os preceitos de o rdem pública, os bons costum es, a justiça contratual, as disposições sobre abuso de d ire ito etc., tudo isso a representar as exigências crescentes de soli d a rie d a d e e de socialidade. Um bom exem plo das lim itações da au to n o m ia é o do Código de Defesa do C onsum idor (Lei n Q 8.078, de 11 de setem bro de 1990) nos dispositivos referen tes à responsabili dade civ il (cap. IV) às práticas com erciais (cap. V), à p ro teção con t ra tu a l (cap. VI, seções I e II). 11 .A Jüncionalização dos institutos de direito privado. A autonomia privada em uma perspectiva juncional A specto novo a salientar no tratam ento desta m atéria é o da funcionalização dos principais institutos de d ireito civil, a p rop rie dade c o con tra to e, conseqüentem ente, a au tonom ia privada. ■i:i W ashington Pd uso Albino dc Sou/.». Direito econômico, p. 189-195; Ghcstin, Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 363 Q ue significa a funcionalização de tais institutos? Para a concepção estru tu ra l, científica, do d ire ito , a ciência ju ríd ica não deve ocupar-se com as funções que ele possa desem pe nh ar, mas som ente com os seus e lem entos estru turais, deixando-se a análise funcional pa ra a sociologia e a filosofia. O corre , porém , que o recurso às ciências sociais perm ite m elho r com preensão do fenôm eno ju ríd ico , revelando, outrossim , a ín tim a relação que exis te en tre a teoria estru tu ra l do d ire ito e a abordagem técnico-jurídi- ca, de um lado, e a teoria funcional e o estudo sociológico, de outro . Esta conexão é carac te rís tica dos estudos ju ríd ic o s co n tem p o râ neos, considerando-se essencial pa ra o ju r is ta saber não apenas com o o d ire ito é feito mas tam bém para o que serve, vale dizer, a sua causa final. A parece assim o conceito de função em direito , signifi cando o papel que um princíp io , n o rm a ou institu to desem penha no in te rio r de um sistem a ou estru tu ra .44 A referência à função social ou econôm ico-social de um princí pio, um instituto, um a categoria ju ríd ica , neste caso a au tonom ia privada e o seu in strum en to de realização, o negócio ju ríd ico , signi fica a aproxim ação do d ire ito com as dem ais ciências sociais, com o a sociologia, a econom ia, a ciência política, an tropo log ia , em um processo in terd isc ip linar de resposta às questões que a sociedade con tem porânea ap resen ta ao ju ris ta , considerado não mais a “figura tradicional de cu lto r do d ire ito privado, ancorado aos dogm as das tradicionais características civilísticas”, mas a ten to à realidade do seu tem po, a exigir-lhe um a postura crítica em pro l de um a ordem mais ju sta na sociedade.45 44 Bobbio, p. 90; J. Durão Barroso. Função, p. 1.606. 45 Castanheira Neves. O direito como alternativa humana, p. 34. Para uma visão crítica do direito civil, utilizando categorias fundam entais do marxismo (como formação econômica e social, conflitos de classe etc.), e visando a construir uma ciência ju ríd ica própria do capitalismo contem porâneo, cf. O rlando Gomes. Transformações gerais do Direito das Obrigações, e novos temas de Direito Civil, O rlando de Carvalho. A teoria geral da relação jurídica', Vital Moreira, A ordem jurídica do capitalismo; Stefano Rodotà, II diritto privato nella societá moderna', Pietro Barcello- na, Diritto privato e società moderna', Francesco Galgano, Le istituzione delleconomia capitalisticœ, Francesco Galgano e Stefano Rodotà, Rapporti. economici', Francesco Lucarelli, Diritto civile e istituti privatisticr, Claudio Varrone, Ideologia e dogmatica nella teoria dei negozio giuridico', Karl Renner, Gli istituti dei diritto privato', André- Jean Arnaud, Essai d'analyse structurale du Code Civil français e Les juristes face à la société, Michel Miaille, Uma Introdução Críticado Direito-, Michael Tigar e Madelei ne R. Levy, O Direito e a Ascensão do Capitalismo-, Luiz Fernando Coelho. Teoria Crítica do Direito. 364 Direito Civil — Introdução A funo io iia li/ação dos institutos ju ríd icos significa, en tão , que o d ire ito cm pari ia ila r c a sociedade cm geral com eçam a interessar- se pela eficácia d a s normas e dos institutos vigentes, não só no to cante a o controle o u disciplina social, mas tam bém no que cliz res peito à organização e direção da sociedade, abandonando-se a cos tum eira função repressiva tradicionalm ente a tribu ída ao d ireito , em favor d e novas funções, de natureza distributiva, prom ocional e ino vadora, p rinc ipalm en te na relação do d ireito com a econom ia. Sur ge, assim , o conceito de função no direito , ou m elhor, dos institutos juríd icos,46 in ic ia lm ente em m atéria de p rop riedade e, depois, de c o n tra to . R epresen ta, assim, a função econôm ico-social, a preocu pação com a eficácia social do instituto, e, no caso particu lar da au tonom ia privada, significa que o reconhecim en to e o exercício desse p o d e r, ao realizar-se na prom oção da livre circulação de bens e de prestação de serviços e na auto-regulam entação das relações disso decorren tes, condicionam -se aos efeitos sociais que tal circula ção possa causar, is to é, a eficácia relativam ente a terceiros, tendo em vista o bem com u m e a igualdade m aterial, idéia que “se desen volve p a ra le lam en te à evolução do Estado m oderno com o en te ou legislador racional” . De tu d o isso resu lta que afuncionalização de um princípio , no r ma, in stitu to ou d ire ito implica, na sua positivação norm ativa, o re conhecim en to de lim ites que o o rdenam en to ju ríd ico , ou algum de seus p rincíp ios vinculantes, estabelece para o exercício das faculda des subjetivas (em fa c e de situações concretas) que possa caracteri zar abuso de direito. E m prestar ao d ire ito um a função social significa considerar que os interesses da soc iedade se sobrepõem aos do indivíduo, sem que isso im plique , necessariam ente, a anulação da pessoa hum ana, jus tificando-se a ação d o Estado pela necessidade de acabar com as injustiças sociais. F u n ção social significa não-individual, sendo crité rio de valoração de situações jurídicas conexas ao desenvolvim ento das atividades da o rd e m econômica. Seu objetivo é o bem com um , o bem -estar econôm ico coletivo. A idéia de função social deve en tender-se, portanto, em relação ao quadro ideológico e sistemático em que se desenvolve,47 abrindo a discussão em to rno da possibi 1 i 4(> Karl R enner. Gli istituti dei diritto privato, p. 46. •17 Galgano, p. 95. “Historicamente, o recurso à função social serve para destacai tinia dim ensão segundo a qual o aumento da compressão dos poderes dos pro prietários p o r el eito da intervenção do Estado é acom panhado da convicção de c|iie tal aconiet e pela necessidade de realizarem-se interesses públicos de modo Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada 365 dade de se realizarem os interesses sociais, sem desconsiderar ou elim inar os do indivíduo. Sistem aticam ente, a tua no âm bito dos fins básicos da p rop riedade , da garantia de liberdade e, conseqüen te m ente , da afirm ação da pessoa. E ainda, h istoricam ente, o recurso à função social dem onstra a consciência político-juríd ica de se rea lizarem os interesses públicos de m odo diverso do até en tão p ropos to pela ciência trad icional do d ire ito privado, liberal e capitalista. Neste particu lar, pode-se dizer que “revoga um dos pontos cardeais do sistem a privatista, o d ire ito subjetivo m odelado sobre a estru tu ra da p rop riedade absolu ta”, o que poderia sugerir um a certa incom patib ilidade en tre a idéia de função social e a p róp ria na tu reza do d ire ito subjetivo. Mas o que se assenta é que a função social se con figura com o princíp io superio r o rd en ad o r d a disciplina da p rop rie dade c do con tra to , leg itim ando a in tervenção do estado por m eio de norm as excepcionais, o p e ran d o a inda com o critério de in te rp re tação ju ríd ica . A função social é, p o r tudo isso, um p rinc íp io geral, um verdadeiro standard ju ríd ico , um a diretiva mais ou m enos flexí vel, um a indicação program ática que não colide nem to rn a inefica zes os direitos subjetivos, orien tando-lhes o respectivo exercício na d ireção mais consen tânea com o bem com um e a ju stiça social. E é p recisam ente o con tra to , in strum en to da au tonom ia privada, o cam po de m aior aceitação dessa teoria, aco lh ida p rim eiram en te no Có digo Civil italiano, art. 1.322, segundo o qual podem as partes determi nar livremente o conteúdo do contraio nos limites impostos por lei e celebrar contratos atípicos ou inominados, desde que destinados a realizar interesses dignos de tutela, segundo o ordenamento jurídico. Do m esm o m odo e de form a idêntica a consagra o Código Civil po rtuguês 110 seu art. 405a, ao d ispor que as partes podem livrem ente fixar o con teúdo do con trato, nos limites da lei, e ce lebrar con tra tos d iferen tes dos previstos no m esm o Código, com pletando-se esse com o art. 280-, que fixa limites ao exercício da au tonom ia privada, estabelecendo a nulida de do negócio ju ríd ic o con trá rio à o rdem pública ou aos bons cos tumes. Consagrada, assim, a função econôm ico-social dos institutos j u rídicos e, im plicitam ente, da au tonom ia privada, tem os que o exer cício deste poder ju ríd ic o deve limitar-se, de m odo geral, pela or- diverso do tradicional. Conceitualmente, revoga um dos eixos da dogmática pri vada, o do direito subjetivo, modelado precisam ente sobre a estrutura da socie dade absoluta. Ideologicamente, abre a discussão em (orno da possibilidade de realização verdadeira de interesses sociais sem eliminar-se integralm ente a prn priedade privada dos bens.” Stefano Rodolà. Happmti nonowici, p. 112. 366 Direito Civil — Introdução dem pública c pelos bons costum es e, em particu lar, pela u tilidade que possa ter na consecução dos interesses gerais da com unidade, com vistas ao desenvolvim ento econôm ico e ao seu bem -estar social. O que se p re ten d e , enfim , é a realização da ju stiça social, sem pre ju ízo da liberdade da pessoa hum ana. E precisam ente com esse en ten d im en to que a au tonom ia priva da pode e deve direcionar-se. A idéia de justiça que se realiza na d im ensão com utativa, en tre particulares, iguais nos seus direitos, e distributiva, en tre esses e o Estado, aparece agora com nova d im en são, a ju stiça social, q u e se insere em um a ou tra categoria, a justiça geral, que diz respeito aos deveres das pessoas em relação à socieda de ,48 superando-se o individualism o ju ríd ic o em favor dos interesses com unitários e corrigindo-se os excessos da au tonom ia da vontade dos p rim órd ios do liberalism o e do capitalism o. O d ireito é, assim, cham ado a exercer u m a função co rre to ra e de equilíbrio dos in te resses dos vários setores da sociedade, para o que lim ita, em m aior ou m en o r grau de in tensidade , o p o d e rju ríd ico do sujeito, mas sem desconsiderá-lo , já que ele é, em ú ltim a análise, o substrato político- ju ríd ic o do sistema em vigor nas sociedades dem ocráticas e desen volvidas do m undo con tem p o rân eo que se caracterizam , precisa m ente , pela con junção da liberdade individual com a justiça social e a rac ionalidade econôm ica. E m bora, do p on to de vista técnico-jurídico, o p rinc íp io da auto nom ia privada se ap resen te bastante lim itado nas possibilidades de seu exercício pela ingerênciado Estado na econom ia, hoje em dia m en o r pela tendênc ia à privatização e à desregulam entação que perpassa pelas nações desenvolvidas do m undo ocidental, p o r ou tro lado, do p o n to de vista político, constitui-se em um âm bito de atua ção político-jurídico individual com eficácia ju ríd ica , garantia de sobrevivência e de realização dos postulados básicos da liberdade e do valor ju ríd ic o da pessoa hum ana. Exem plo do reconhecim en to e da lim itação funcional da autono m ia privada no d ireito brasileiro é o disposto no art. 421 do Código Civil, segundo o qual a liberdade de con tra ta r será exercida nos limi tes da função social do contrato . Significa isso que esse p o d e r só pode exercer-se em consonância com os fins sociais do contrato , implicai» do os valores prim ordiais da boa-fé e da p rob idade49, e levando em con ta os efeitos que se possam produzir em face de terceiros. 48 Bigolle Chorão. Justiça, p. 914. 49 M itn i r l R íía Ií*. O h rn iv ln H.n ftJmm O A ditn í n 71