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Negócio Jurídico - Apontamentos Iniciais Francisco Amaral

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Francisco Amaral
Professar Titular de Direito Civil e Romano na Faculdade 
de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro 
Da Academia Brasileira de Letras Jurídicas 
Da Accademia dei Giusprivatisti Europei 
Doutor Honoris Causa da Universidade Católica Portuguesa
Revista e A um entada de acordo 
com o novo Código Civil e leis posteriores
DIREITO CIVIL 
INTRODUÇÃO
6â Edição
BPDEA
R 6 N O V R R
Rio de Janeiro • São Paulo • Recife 
2006
EdUoriais c Autorais 
Rl-SPUtTC O AUTOH 
Na o F a ç a C o p ia
CAPÍTULO XI 
Teoria do Negócio Jurídico
Sumário: 1. O negócio jurídico. Conceito. Distinção do ato jurídico cm \en\o 
estrito. Importância. 2. Notícia histórica. Nascimento e evolução do conceito, 
Razão de ser e função ideológica. 3. Crítica e superação do conceito de nutfóriü 
jurídico. 4. A importância da vontade e da declaração na teoria do negócio 
jurídico. Concepções subjetiva e objetiva. 5. Ai teorias perceptiva e normativa.
6. O problema da norma ju rídica negociai. 7. A relação entre a vontade e seus 
objetivos. 8. Classificação dos negócios jurídicos.
1. O negócio jurídico. Conceito. Distinção do ato jurídico em senso estrito. 
Importância
Por negócio juríd ico deve-se en tender a declaração de vontade 
privada destinada a produzir efeitos que o agente pretende e o di­
reito reconhece. Tais efeitos são a constituição, modificação ou ex­
tinção de relações jurídicas, de m odo vinculante, obrigatório para 
as partes intervenientes.1
1 Do Autor. Negócio jurídico, p. 170; José de Abreu. O negócio jurídico e sua teoria 
geral, p. 72; Antonio Junqueira de Azevedo. Negócio jurídico, existência, validade, 
eficácia, p. 20; Eduardo Espínola. Sistema do Direito Civil Brasileiro, p. 236; Pontes 
de Miranda. Tratado de Direito Privado, p. 3; Vicente Ráo. Ato jurídico-, O rlando 
Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 237; Caio Mário da Silva Pereira. Instituições 
de Direito Civil, vol. I, p. 327; Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso de Direito Civil, 
p. 359; Maria H elena Diniz, Curso de Direito Civil brasileiro, l 2 vol., p. 212; Fábio
367
O Código Civil brasileiro ele 2002 acolhe expressamente ;i lij i^ii a 
do negócio ju r íd ic o , com o categoria geral com preensiva das 
declarações de vontade destinadas à criação, modificação e extinção 
das relações jurídicas. Afastou-se, assim, da concepção unitária do 
ato juríd ico perfilhada pelo Código Civil de 1916, art. 81, embora 
este artigo, referindo-se ao ato, definisse o negócio jurídico. Seguiu, 
também, o Código de 2002, a orientação, nesse particular, dos An 
teprojetos anteriores do Código de Obrigações.2
A formulação do conceito parte de dois elementos: a) um a von­
tade particular dirigida à produção de determ inados efeitos, com o 
que as pessoas regulam os seus interesses; e b) o reconhecim ento, 
pelo sistema legal, do poder que os particulares têm de regular, 
assim, os seus interesses (autonomia privada). Este princípio, embora 
fundam ental nos sistemas de direito privado de natureza liberal, 
não está expressamente previsto no direito civil brasileiro, salvo no 
seu pressuposto constitucional, que é a liberdade de iniciativa eco­
nômica (CF, art. I2, IV). De qualquer modo, o negócio juríd ico é o 
meio de realização da autonom ia privada,3 e o contrato, o seu sím­
bolo.
Ato juríd ico em senso estrito e negócio juríd ico são manifesta­
ções de vontade, mas diferem quanto à estrutura, à função e aos 
respectivos efeitos.
Q uanto à estrutura, enquanto no prim eiro temos uma ação e 
uma vontade simples, no segundo, temos uma ação e um a vontade 
qualificada, que é a de produzir um efeito juríd ico determ inado. No 
negócio juríd ico a vontade caracteriza-se por sua finalidade especí-
« > f n iM i tw v ju y o u
Maria de Mattia. Ato jurídico em senso estrito e negócio jurídico, p. 36; Manoel Do- 
mingues de Andrade. Teoria geral da relação jurídica, vol. II, p. 25; Carlos Alberto 
da Mota Pinto. Teoria geral do Direito Civil, p. 379; João de Castro Mendes. Direito 
Civil, teoria geral, vol. III, p. 29; Manuel Garcia Amigo. Instituciones de Derecho 
Civil, I, p. 654; Karl Larenz. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, p. 272; W arner 
Flume. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts. Des Rechtsgeschäft, p. 23; Francesco 
Galgano. Negozio giuridico, p. 932; Giuseppe Mirabelli. Negozio Giuridico (Teoria), 
p. I ; Stefano Rodotà. II diritto privato nella societä modema, p. 205 e segs.; Santos 
Cifuentes. Negócio jurídico, p. 126; Pietro Barcellona. Diritto privato e società moder­
na, p. 421 e segs.
'2 A nteprojeto de Código de Obrigações de Orozimbo Nonato, H ahnem ann Guima­
rães e Filadelfo Azevedo, 1941, e Projeto de Código de Obrigações de Caio Mário da 
Silva l’ereira, de 1965.
3 Larenz, p. 422; Flume, p. 48; do Autor, p. 175.
leoria ao Nogocia ju ria ico j o r y
Uca, que é a gênese, modificação ou extinção cie «lireiios.1 K cham a­
da vontade negociai, que tem objetivo próprio e e normativa e vin- 
culante, no sentido de estabelecer as normas reguladoras dos inte­
resses das partes. O negócio juríd ico é, portanto, exercício de auto­
nomia privada, tendo, por isso, conteúdo normativo. A sua essência 
está nos dois elementos, vontade e autonom ia privada. O atojuríd i- 
gjjíjco em senso estrito não tem esse conteúdo. A vontade que exprime 
II 'não se dirige ã produção de efeitos jurídicos específicos desejados 
pelo agente. Eles dependem da lei, na qual já estão previstos.
Q uanto à função que podem exercer, o negócio juríd ico é o
I instrum ento com que o particular dispõe de seus direitos, o que não 
ti! se verifica com o ato juríd ico em senso estrito, cujos efeitos é a lei 
;|l; que estabelece. Diz-se, por isso, que este serve aos interesses gerais 
|| da com unidade, enquanto aquele se encontra a serviço dos interes- 
; ses privados.5
Q uanto aos efeitos, no ato jurídico em senso estrito é a própria 
- lei a determiná-los, enquanto no negócio jurídico é a vontade dos 
particulares. A eficácia do prim eiro está prevista em lei, não tendo 
íjll especial im portância a intenção do agente. Já o negócio, ao contrá-
II rio, não produz efeitos que o agente não tenha querido.6 No contra- 
| to, a espécie mais im portante do gênero negócio jurídico, os efeitos 
j: são os que as partes lhe conferem, no exercício de sua autonom ia,
desde que conforme à lei, à ordem pública e aos bons costumes. Já 
no casamento, ou na aquisição de propriedade móvel, por ocupa- 
í ção, confusão, comistão, adjunção ou usucapião, espécies de ato 
juríd ico em senso estrito, os efeitos são os que a própria lei, o Códi­
go Civil, estabelece para a declaração de vontade.
Certo é, também, que o mesmo evento, conforme a natureza da 
vontade expressa, pode ser um fato, ato ou negócio, por exemplo, a 
aquisição da p ropriedade imóvel. No caso de acessão (CC, art. 
1.248,1, II, III), existe um fato juríd ico, um acontecim ento natural 
conduzente à aquisição originária cia propriedade. A aquisição por 
ocupação prolongada (usucapião) (CC, art. 1.260), sendo com por­
tam ento voluntário, é ato jurídico em senso estrito. Já a aquisição 
derivada, por com pra e venda, ou doação, devidamente transcritas, 
é negócio jurídico.
4 Savigny. Sistema delDerecho Romano Atual, vol. III, p. 114.
5 Francisco Santoro-Passarelli. Alto giuridico, p. 209.
6 Galgano, p. 932.
3/0 Dirolto Civil — Introdução
Conclui-se, portanto, que no ato juríd ico em senso estrito ui 
efeitos são ex lege, enquanto no negócio juríd ico são ex voluntale 
Ainda como critério distintivo, pode acrescentar-se que no negócio 
jurídico, pela im portância de que se reveste a vontade, po r seu po 
derjurígeno, têm maior relevo os chamados vícios do consentim en­
to (erro, dolo e coação, estado de perigo, lesão) do que no ato jurí­
dico em senso estrito.
Em resumo, a diferençaespecífica entre as duas espécies reside 
na circunstância de o negócio juríd ico ser instrum ento da au tono­
mia privada, do que lhe advêm certas peculiaridades quanto à estru 
tura, função e efeitos.
Para finalizar, cabe dizer qual a utilidade do conceito de nego 
cio jurídico, sabido que os conceitos e as construções teóricas não 
têm valor em si mas como instrum ento de com preensão e realização 
do direito.
O conceito é útil porque está a serviço da liberdade e da auto 
nomia privada, desem penhando relevante papel na criação e modi­
ficação das relaçõesjurídicas e nos direitos subjetivos, servindo para 
distinguir os atos que pertencem à categoria do negócio dos outros 
que lhe são estranhos. Logo, onde não for adm itida a autonomia 
privada, como na quase totalidade dos atos de direito de família, 
não haverá negócio jurídico. Por outro lado, como categoria lógica, 
permite à doutrina reunir, classificar, definir,7 o que facilita a inter­
pretação dos atos mais comuns da vida hum ana, contratos, testa­
mentos, promessas etc. Além disso, como figura abstrata que é, reú­
ne os princípios comuns às várias espécies de manifestação de von­
tade com que as pessoas dispõem jurid icam ente de seus interesses. 
Temos na prática juríd ica diária muitos atos que não se encaixam 
nos tipos legais previstos. Vendas, em préstim os, acordos etc., 
manifestações volitivas que não correspondem ao que a lei estabele­
ce, criados pela necessidade de se dar forma juríd ica às mais diversas 
manifestações de vontade. Daí a vantagem de um a figura abstrata, 
como a do negócio jurídico, que reúne os elementos essenciais das 
variadíssimas manifestações de autonom ia privada, com um a disci­
plina comum para todas. E como os atos jurídicos em senso estrito 
não constituem um a categoria homogênea, não sendo, por isso, pos­
sível submetê-los a uma única disciplina, a eles se aplicam, no que 
couber, as disposições legais do negócio juríd ico (CC, art. 185).8
7 José Antonio Doral e Miguel Angel del Arco. El negocio jurídico, p. 34.
8 O rlando Gomes, n“ 170 e 171. “A importância da teoria do negócio jurídico
Teoria do Nogôclo Jurídico
1; Noticia histórica. Nascimento e evolução do conceito. Razão de ser e 
! junção ideológica
j A com preensão do significado, im portância, razão de ser e fun- 
IIMo ideológica do negócio juríd ico exige breve notícia histórica so- 
fp r e a sua gênese e evolução, 
fe O negócio juríd ico é categoria recente. Nasceu durante o século 
XVIII, como produto do grande esforço de abstração dos civilistas 
«lemães, que criaram um sistema de direito privado baseado na li­
berdade dos particulares, tendo ao centro o negócio juríd ico como 
figura típica da manifestação de vontade.9 Afirma-se, por isso, ser a 
teoria do negócio juríd ico a glória da ciência pandectística alemã.
Elabora-se a sua teoria a partir dos textos romanos de Justiniano, 
do Corpus iuris civilis, considerado direito comum, tendo como fun­
dam ento o princípio da autonom ia da vontade. O direito rom ano 
não conheceu o negócio juríd ico como categoria lógica, que seria 
fruto de um a abstração a que os juristas romanos, práticos e objeti­
vos, não se dedicaram. Mas já continha os elementos com que a 
pandectística alemã trabalharia na elaboração de tal conceito, isto 
e, a vontade hum ana e os efeitos que dela podem diretam ente deri­
var.
O term o negócio jurídico, de nec + otium, com o sentido de ati­
vidade que realize interesse de ordem patrimonial, deve-se a Nettel- 
bladt, em 1749,10 mas a sua com pleta formulação dá-se com Savig- 
ny,11 que o define como “espécie de fatos jurídicos que não são ape­
nas ações livres, mas em que a vontade dos sujeitos se dirige imedia­
tam ente à constituição ou extinção de uma relação ju ríd ica”.
A criação do conceito deve-se a razões de ordem filosófica, polí­
tica e econômica.
No plano filosófico, é produto do jusnaturalism o, que reafirma­
va a liberdade como princípio inato dos indivíduos, liberdade como
no processo de elaboração conceituai da m odernidade é notável; ela constitui 
a mais eficaz representação do princípio da liberdade juríd ica no campo das 
relações patrimoniais e, ao mesmo tempo, a inovação conceituai destinada a 
produzir as mais profundas modificações na organização das relações interin- 
dividuais.” Barcellona, p. 426-427.
9 Giuseppe Stolfi. Teoria dei negocio jurídico, p. XVIfl.
10 Francesco Calasso. II negozio giuridico, p. 340; Mirabelli, p. 1. nota 1; Pontes 
de Miranda, p. 4, de m odo diverso, indica Ritter Hugo, como o criador da 
expressão “Rechtsgeschäft".
11 Savigny, tomo II, p. 202.
podcr du a vontade aluar coin eficácia, Quod radix libertatis est vohm 
tas.1 - Nesse aspecto, é categoria elaborada dentro de tuna leoiln 
ju ríd ica que privilegia o sujeito de direito, e pensada em função <i < 
unidade desse sujeito.13
Ao lado da liberdade figurava outro valor — também fundameii' 
tal nesse período histórico —, a igualdade. Mas esta era merarncnh' 
formal, dos sujeitos perante o direito, independentem ente de nuíin 
condições pessoais de existência e de igualdade de oportunidades
O objetivo era, assim, criar um direito igual para todos, sem clislin 
ção de classes, o que se obtém com a obra dos pandectistas, que 
chegam a notável ponto de abstração, como o conceito de negocio 
jurídico, aplicável a todos os atos jurídicos em que o sujeito visasse 
determ inados fins.
O negócio juríd ico resulta, assim, de um processo de abstração, 
a partir da liberdade e da igualdade formal de todos perante o di 
reito, processo que se inicia com a Revolução Francesa e que tem 
por objetivo estabelecer um direito geral e abstrato, aplicável a lo 
clos, sem distinções de classe. Vontade e liberdade dentro do procès 
so social e do processo econômico, em que se reconhece a proprie 
dade privada dos bens de produção e a circulação dos bens como 
processo de cooperação entre os indivíduos.14
A esse aspecto ligava-se o político, que via na vontade particular 
um instrum ento de luta contra o feudalismo e seus privilégios. E o 
negócio jurídico, como instrum ento dessa vontade, firmava-se como 
conseqüência do princípio político da autonom ia privada, conside­
rada fonte e medida dos direitos subjetivos, força criadora do direi­
to, enfim. E na esteira das idéias filosóficas de Hobbes e Rousseau, 
que con trapunham os direitos individuais aos do Estado e das 
corporações, Emmanuel Kant confere ao dogma da vontade a sua 
formulação mais precisa e categórica, ao estabelecer que a vontade 
individual é a única fonte de toda obrigação jurídica.15
O direito reconhece, assim, eficácia ju ríd ica à declaração cle 
vontade individual destinada a produzir efeitos que o agente preten-
12 Federico de Castro y Bravo. El negocio jurídico, p. 57, citando S. Tomás tie 
Aquino. Suma Theologica 1, 2, ac, 9.17, I ad. 2. “Quod radix libertatis est voluntas" 
(a vontade é o que está na raiz da liberdade).
13 Galgano, p. 936.
14 Stolfi, p. XII.
15 Emmanuel Kant. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 144.
Teoria do Nciflôclo Jurídico m
ilt!, principalm ente no setor econômico. Tal declaração e o negócio 
jurídico, com função paralela à do direito subjetivo, pois ambos rs 
ião a serviço da liberdade e da autonom ia da vontade.11’ H cansa da 
dinâmica jurídica, como instrum ento de realização do princípio da
I liberdade no direito privado.17
A categoria do negócio juríd ico surge, assim, como produto d<‘ 
j u m a filosofia político-jurídica que, a partir de uma teoria do sujeito, 
gfeom base na sua liberdade e igualdade formal, constrói uma figura 
Hj:unitária capaz de englobar, reunir, todos os fenômenos jurídicos 
Rçlecorrentes das manifestações de vontade dos sujeitos no campo da 
t súa atividade jurídico-patrim onial. Artífices desse processo foram, 
nfclepois de Savigny, W indscheide D ernburg, inserindo-se tal figura 
| no Código Civil alem ão.18
Liberdade e igualdade constituem -se, assim, nos princípios 
Rf&rientadores do processo de criação ju ríd ica desse período, direta" 
| mente ligado ao processo econômico, de que o poder da vontade 
B nm o exercício de liberdade ju ríd ica era exigência essencial,1,1 pois 
|P ‘o desenvolvimento do comércio e da indústria, a divisão do trafia* 
I I lho e a especialização multiplicam o escambo”. A lei econômica da 
p ó fe r ta e da procura e a liberdade contratual atendem ao interesse
I cie todos e à justiça, de m odo que, para favorecer o intercâm bio e o 
«desenvolvim ento econômico, é necessário eliminar os obstáculos â 
ijjivre circulação dos bens. E o princípio do laissez-faire, laissez-passw
I que se completa com o laissez-contracter.20 São as convenções que 
Restabelecem o preço justo , sendo a “justiça contratual um fato deter- 
B m inado pela livre-concorrência, não um a exigência ideal”.
Surge assim, no campo econômico, e com evidente conotação
I ideológica, a idéia de que o negócio juríd ico foi o instrum ento cria- 
'!; do para facilitar à classe mercantil a circulação de bens e serviços, e 
| assim desenvolver o sistema de produção e consumo.21 Segundo tal 
perspectiva, o processo de produção e o de circulação de bens em
16 “O direito subjetivo é estático, conserva e protege, enquanto o negócio ju ­
rídico é dinâmico, produz e renova”, Manuel Albaladejo. El negocio jurídico, p. 
37; Emilio Betti. Negozio giuridico, p. 209.
17 Garcia Amigo, p. 654.
18 Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil alemão), Parte Geral, Seção Terceira.
19 Mirabelli, p. 2.
20 Jean Carbonnier. Drnit civil. Les obligations, Paris, p. 41.
21 Mirabelli, p. 15; Galgano, p. 936; Pietro Barcellona. Dirítto privato e processo 
economico, p. 195 e segs.
374 Direito Civil — Introdução
um m ercado de concorrência justificaria a criação de tal figura no 
quadro do sistema jurídico.
Nascida no direito alemão, prim eiro na doutrina, depois objeti­
vada no Código Civil (BGB), a teoria do negócio juríd ico passa à 
doutrina italiana, à espanhola e à portuguesa.22 O direito francês 
perm anece, porém, com a figura unitária do ato jurídico, não dis­
tinguindo o Código os atos jurídicos em senso estrito do negócio 
jurídico. O Código Civil de 1916 não adotava expressamente a figu­
ra, seguindo a posição unitária francesa, em bora seu art. 81, dedica­
do ao ato jurídico, já contivesse a definição de negócio. O Código 
Civil de 2002 já consagra, porém , a posição dualista, com referência 
expressa aos negócios e aos atos jurídicos lícitos deles diversos,23 de 
acordo com a doutrina brasileira contem porânea, que é dominante: 
no preferir esta concepção.
De tudo isto se conclui que o conceito de negócio juríd ico é um 
fato histórico24 e uma categoria lógica. Como fato histórico repre­
senta o envolver de uma experiência em que se reuniram circuns­
tâncias de natureza filosófica, política e econômica, até o surgimen­
to, a cristalização do conceito. Como categoria lógica, p roduto desse 
fato histórico, representa um a síntese, uma “redução à unidade” das 
diversas posições subjetivas que se podem configurar na atividade 
jurídica, de que a declaração de vontade é uma das causas imediatas. 
“Construída com a noção de negócio um a figura concreta, compos­
ta de elementos especificamente individualizáveis, essenciais, aci­
dentais e naturais, podem-se reconduzir a este esquema todas as 
modalidades cla atividade hum ana e estudá-las com critérios e mé­
todos unitários.”25
3. Crítica e superação do conceito de negócio jurídico
O negócio juríd ico perm anece ainda hoje como instrum ento 
unitário do poder da vontade individual no campo da dinâmica jii 
rídica, isto é, como poder criador de efeitos jurídicos. Tem sido, 
porém, objeto de alguma oposição, dirigida tanto ao caráter abstra­
to da figura — que os críticos consideram incapaz de englobar uni
22 Cf. nota 1.
üm Código Civil, art. 185.
ü-l Calasso, p. 345.
11.1 M i m b e l l i . n . ü .
Teoria do Negócio Jurídico 375
Sj! tariamente figuras diversas como os contratos, testamentos, promes- 
| sas, convenções etc. — quanto à sua função ideológica, que o carac- 
terizou como símbolo de um liberalismo econômico juríd ico supe- 
| rado pela presença crescente do Estado na organização e direção da
I economia. Essa intervenção reduz o campo da autonom ia privada e, 
|; conseqüentem ente, a im portância do negócio jurídico, como cate- 
i; goria, não obstante a utilidade crescente de um a de suas espécies, o 
| | i contrato, em todos os regimes — capitalistas ou socialistas.
O conceito de negócio juríd ico é uma categoria técnico-jurídica 
ij que tem sua razão de ser em argum entos de natureza filosófica, 
política e econômica, como já visto. E, assim, um a categoria históri-
I ca e lógica. E, como categoria lógica, ou se a aceita ou se a recusa.26
Como categoria lógica, é instrum ento de atuação dos interesses 
ji econômicos individuais, dentro do sistema de produção e distribui- 
!!• ção de bens, traduzindo a concepção de um direito igual para todos,
I capaz de realizar, na igualdade, os interesses contrapostos das diver- 
| ; sas classes sociais, form ulado pelos juristas que eram, à época, os 
intérpretes privilegiados cla realidade social e econôm ica,27
Mudaram porém as condições favoráveis ou determ inantes des- 
| | se notável trabalho intelectual, que foi o esforço de abstração jurí- 
|i dica que resultou no conceito de negócio jurídico. Não mais exis- 
|j tem as condições políticas e econômicas que justificaram essa cria- 
| ção, assim como os juristas que a fizeram não mais detêm o m ono­
pólio da reflexão e da disciplina da vida social. O direito comparti- 
j í j i lha hoje, com outras ciências sociais (a sociologia, a antropologia, a 
jv psicologia etc.), o universo sócio-cultural que até o início do século 
l i i ; XX lhe competia como campo de atuação e controle.
M udando tais circunstâncias, muda-se a construção juríd ica cor­
respondente, o negócio jurídico, surgindo dúvidas quanto à conve­
niência atual dessa figura, dúvidas essas de natureza sistêmica e de 
natureza político-social.
Do ponto de vista sistêmico, contesta-se a possibilidade de redu­
ção a um a única figura, de todas as espécies de declarações de von­
tade. Afirma-se a “impossibilidade de reduzir à unidade as posições 
subjetivas dos contratantes”.
Do ponto de vista político-social, que suscita o problem a da cor­
respondência en tre a categoria do negócio juríd ico e as exigências
26 Calasso, p. 345, nota 41.
y? M;irir> Itcllomo. Neeozio eiuridico (Diritto intermedio) , p. 931.
376 Direito Civil — Introdução
da sociedade, considera-se ter sido essa figura, no nascim ento da 
m oderna sociedade industrial, o instrum ento da classe proprietária 
dos bens de produção e da burguesia comercial, para transferência 
do seu direito de propriedade por simples declaração cle vontade, 
sem necessidade de forma especial. Nessa época, o indivíduo era um 
ser isolado, protegido pelos ideais de liberdade e de igualdade que
o Estado de direito garantia com o reconhecim ento de um a esfera 
cle ampla autonomia. Hoje as condições são diversas. Os indivíduos 
não se situam como átomos isolados, em regime de concorrência 
que a publicidade e os acordos entre os grupos econômicos elimi­
naram. Suas relações têm secundária im portância em face dos con­
flitos de interesses entre os grupos privados, entre empresários e 
trabalhadores, en tre empresários e consumidores. E os interesses 
que atualm ente o direito protege são os das pessoas que desem pe­
nham funções na sociedade, não os indivíduos em si, isolados, áto­
mos da vida social. Cai por terra o mito do sujeito juríd ico como 
figura unitária e abstrata, assim como o da igualdade de todospe­
ran te o direito (igualdade form al), que procura hoje realizar a 
igualdade material, isto é, a igualdade de oportunidade para satisfa ­
ção das necessidades fundamentais. E não sendo mais o ato indivi­
dual de troca o “fenôm eno central das relações econômico-sociais”, 
estaria superada a figura do negócio juríd ico e destinada ao ocaso, 
jun tam ente com o mito da unidade do sujeito juríd ico e com a ilu­
são da igualdade formal de direito.28
De tudo isto se conclui que, sendo o negócio juríd ico um a cate­
goria histórica e lógica, foi válida e útil enquanto vigentes as condi­
ções que a determ inaram . Mudadas as condições e destituído o con­
ceito de sua função ideológica, não se justificaria a sua m anutenção.
O que perm anece com pleno vigor, como causa da dinâmica ju ríd i­
ca, é o ato jurídico como gênero, e, como categoria específica de 
crescente im portância, o contrato.
A doutrina, no entanto, divide-se, sendo ainda majoritária a cor­
rente que acredita na utilidade do conceito e na possibilidade de
28 “Eis por que, tanto do ponto de vista teórico como prático, político, ou 
técnico, a conservação da categoria negócio ju ríd ico é a consagração dc um 
retrocesso, e o propósito de reentronizá-lo num a parte geral do Código Civil 
despropositada não passa de vã tentativa para salvar valores agonizantes do 
capitalismo adolescente, quando não seja crassa ignorância em doutores dc qut' 
a categoria pandectística foi elaborada num contexto juríd ico ultrapassado, c 
para atender às exigências de um a ordem econôm ica e social que deixou d r 
existir." O rlando Gomes. Novos temas de Direito Civil, p. 89.
Kl j;
jj sua reconstrução,29 tanto que essa figura foi adotada no Código Civil 
de 2.002, com precisa justificativa do legislador.30
:! 4. A importância da vontade e da declaração na teoria do negócio
II jurídico. Concepções subjetiva e objetiva
O negócio juríd ico é declaração de vontade que se destina ã 
produção de certos efeitos jurídicos que o sujeito pretende e o di- 
í reito reconhece. Seu elem ento essencial é a vontade, que se dá a 
conhecer pela respectiva declaração e que tem, por isso, relevante 
| significado econôm ico e social, por ser meio de se alcançar o efeito 
juríd ico pretendido.
No caso de a vontade exteriorizada ser diversa da vontade real,
I consciente ou inconscientem ente por parte do declarante, surge o
I problem a de saber-se o que deve prevalecer — a vontade ou a decla­
ração —, isto é, qual o elem ento que na verdade produz os efeitos 
ji jurídicos, matéria de significativa im portância para as partes, para 
jj! terceiros e para o com ércio juríd ico em geral.
Acerca do predom ínio de um destes elementos, a vontade ou a 
declaração, existem duas concepções opostas: a subjetiva, que dá
I realce à vontade, e a objetiva, que enfatiza a declaração, levando, 
respectivamente, à teoria da vontade e à teoria da declaração. Para a 
prim eira, subjetiva, voluntarista,31 de Savigny e seus imediatos segui­
dores (Windscheid, D ernburg, Unger, O ertm ann, Enneccerus), o 
negócio juríd ico é essencialmente vontade, a que deve correspon­
der exatam ente a sua form a de declaração, que é simples instrum en­
to de manifestação dessa vontade.
Essa teoria protege, naturalm ente, os interesses do declarante. 
Por isso, todas as questões acerca da formação ou do conteúdo do 
ato levam à pesquisa da real intenção do agente. E no âmbito dessa 
teoria que surge o problem a e a discussão dogmática em torno do 
que deve prevalecer, no caso dc divergência — a vontade ou a de­
claração —, independentem ente do declarado ser ou não o preten-
Teoria do Negócio Jurídico 377
29 Mirabelli, p. 16. Caio Mário da Silva Pereira. Reformulação da ordem jurídica e 
outros temas, p. 221; José Abreu, p. XI; Maria H elena Diniz, p. 212; Serpa Lopes, 
p. 358.
30 José Carlos Moreira Alves. A Parte Geral do Projeto de Código Civil brasileiro, p. 
101.
81 E a cham ada WillmHlmne (teoria da vontade).
378 Direito Civil — Introdução
dido. Para a Willenstheorie, havendo divergência, deve prevalecer a 
vontade, podendo até, em casos extremos, anular-se o negócio ju r í­
dico, não valendo nem a vontade real nem a declarada.
Pela especial im portância da vontade, procura-se defendê-la dos 
chamados vícios (erro, dolo, coação, simulação, reserva m ental), 
assim como também cresce em im portância a interpretação, quer 
do ato, quer das normas que o regulam, para o fim de se averiguai 
qual a intenção do agente, a partir, naturalm ente, do instrum ento 
de declaração. Preocupa-se ainda essa teoria com os motivos, razões 
psicológicas da prática do negócio, objeto dos chamados elementos 
acidentais (a condição, o term o e o encargo), com os quais o agente 
procura adequar os efeitos do ato a tais motivos.
Para a teoria da declaração,32 a eficácia do ato depende exclusiva­
mente da declaração, independentem ente desta corresponder ou 
não à vontade do agente. A natureza e as características do negócio 
ju ríd ico residem fundam entalm ente no com portam ento objetivo 
do agente, como auto-regulam ento de seus próprios interesses. Para 
essa teoria não tem maior im portância a divergência entre a vontade 
e a declaração, já que esta é sempre o ponto de referência, salvo se 
desprovida de sentido ou conteúdo; os motivos são irrelevantes e o 
que se in terpreta não é o pretendido pelo agente mas o perceptível 
pela declaração. Com ela protege-se não mais o sujeito declarante, 
mas o destinatário e terceiros de boa-fé e, conseqüentem ente, a cir­
culação de direitos.
Ambas as teorias são inaceitáveis em suas posições extremas, que 
seriam, quanto à eventual divergência entre a vontade e a declara­
ção, no caso da teoria subjetiva, a nulidade do negócio, e no caso da 
objetiva, a validade, desde que de boa-fé o destinatário. Para evitai 
os extremos, tem perando a oposição, surgiram concepções interm e­
diárias: a teoria da responsabilidade e a teoria da confiança. Para a pri­
meira, mais ligada à vontade, havendo divergência entre essa e a 
declaração, responde o declarante pelos danos que causar, se tiver 
culpa na divergência. “Quem emite declaração de vontade no co­
mércio ju ríd ico sujeita-se às conseqüências disso decorrentes.”s:l 
Para a teoria da confiança, m odalidade mais próxima da declaração, 
“esta prevalece sobre a efetiva vontade quando tenha suscitado legí­
tima expectativa no destinatário, conform e as circunstâncias objeti-
S2 l;. a cham ada Erklàrungstheorie (teoria da declaração).
K o princípio da auto-responsabilidade, C. Massimo Bianca. Diritto civile, II 
contralto, p. 21,
Teoria do Negócio Jurídico 379
vas”. Verificada a boa-fé do destinatário, a declaração é válida con­
forme a confiança que nele tenha despertado. Não havendo boa-fé 
do destinatário, não prevalece a declaração e o negócio é anulado. 
Nesta teoria, portanto, transfere-se ao destinatário o elem ento cul­
pa, enquanto na teoria da responsabilidade fica essa a cargo do de- 
clarante.34
Qual a opção do direito brasileiro?
O problem a do predom ínio da vontade ou da declaração como 
elem ento determ inante da eficácia do negóciojurídico manifesta-se 
principalm ente em matéria de interpretação e de erro. Q uanto à 
primeira, o art. 112 do Código Civil, estabelecendo a regra geral, 
dispõe que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas 
consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem", em uma apa- 
rente opção pela teoria da vontade, o que faz compreensível a ten­
dência doutrinária por essa tese.35 Creio, porém , ser mais acertado 
dizer que o sistema do Código Civil de 2002, tom ando como ponto 
de partida a declaração de vontade (na qual a intenção se consubs­
tancia) e como critério de interpretação a boa-fé e os usos do lugar 
(art. 113), optou pela concepção objetiva e, conseqüentem ente, 
pelateoria da declaração. Já em matéria de erro, é dom inante a 
teoria subjetiva.36
5. A.v teorias preceptiva e normativa
Dentro da teoria objetiva do negóciojurídico, pela qual a vonta­
de só tem relevância jurídica por meio da sua declaração, destacam- 
se as concepções preceptiva e normativa.
Para a teoria preceptiva de Betti37, o negóciojurídico é meio dinâ­
mico de realização de interesses privados, dotado de tanto significa­
do que deve sair da concepção tradicional de mero fato psicológico 
para ser considerado im portante fato social, instrum ento da auto­
nomia privada. Seu conteúdo forma-se de regras que o direito con­
sidera e que se constituem em preceitos dirigidos aos participantes da
34 Cifuentes, p. 91.
35 Cf. O rlando Gomes e Antunes Varela. Direito econômico, p. 146.
3t> Antonio Junqueira de Azevedo, p. 128; Silvio Rodrigues. Dos vícios do consen­
timento, p. 51.
37 Teoria generale del. negozio giuridico, trad, de Fernando de Miranda, Goiinlna, 
Coimbra Editora. 1969.
380 Direito Civil — Introdução
relação jurídica. O negócio juríd ico não é, então, simples manifes­
tação da vontade subjetiva, mas dispositivo com que o particular 
disciplina suas próprias relações. A teoria normativa vai mais longe e 
o considera ato criador de normas jurídicas, disciplinadoras das 
relações estabelecidas. Tal concepção baseia-se na existência de 
duas vontades distintas no negócio. Uma, subjetiva, psicológica, que 
se esgota no mom ento da prática do ato;38 outra, objetiva, exteriori­
zada pela declaração, que se configura exatamente quando termina
o processo volitivo, acom panhando o negócio em sua existência 
concreta.39 A vontade que se faz exterior e se objetiva na norma 
negociai não se identifica com a outra, psicológica, que fez nascer o 
negócio. Essa vontade objetiva, aliás, é que é objeto da in terpreta­
ção.
A concepção normativa não é nova. No direito rom ano, Ulpiano 
já reconhecia que “legem enim contractus dedit”40 e que “contractus enim 
legem ex conventione accipiunt..."41 Os canonistas ressaltavam o valor 
da palavra dada (pacta sunt servanda), e antes, entre os com entadores 
e os glosadores, Giovanni D’Andrea já dizia; “Quilibet in domo sua 
dicitur rex” e Andrea D’Isernia: “in re sua quilibet etiam privatus es! 
moderador et arbiter ut sibi placet, ”.42 No direito medieval, os aforismos 
da época: mi palabra es ley, Ein Man, ein Wort, convenances vainquent 
loys.4$ E como exemplo de direito positivo, os arts. 1.134, do Código 
Civil francês, 1.123, do italiano de 1865, 1.372, do atual, e o 1.091, 
do espanhol.
A luz da evolução histórica e da existência de textos legais que 
consagram tal teoria, inexistem razões para que não se considere a 
autonom ia privada poder jurídico, e o negócio, instrum ento e ex­
pressão desse poder.
38 E m ilio B e tti. Interpretazione della legge e degli atli giuridici, p . 274.
39 Luigi Ferri. L ’autonomia privata, p. 56.
40 Digesto Ulpiano, 50, 17, 23. Legem enim contractus dedit (a lei resulta do con 
tra to ).
41 D. 1, 1, 16. Contractus enim legem ex conventione accipiunt (os contratos consi 
deram-se lei a partir da convenção).
42 Francesco Calasso, Autonomia (storia), p. 355. Quilibet in domo sua dicitur mv 
(qualquer um em sua casa é considerado rei). In re sua quilibet etiam privatus rst 
moderator H arbiter ut sibi placet (naquilo que é seu, qualquer um é m oderadoi e 
árbitro, como lhe aprouver).
‘IH Garcia Amigo, p. 213. “Um homem, uma palavra.” “As conveniências supe
Teoria do Negócio Jurídico 381
O negócio juríd ico é, por isso, modo de expressão das regras 
jurídicas estabelecidas pela vontade dos particulares. E fonte formal 
de direito, ou, também, fato de produção ju ríd ica.44
A existência de relações jurídicas e dos respectivos direitos sub- 
jj jetivos pressupõe a existência de uma norm a jurídica. Aceitando 
como indiscutível que o negócio juríd ico é fonte de relações jurídi- 
cas, conclui-se que o negócio é fonte de direito objetivo.45 Neganclo- 
í se ao negócio jurídico a função criadora de direito objetivo, também 
! se lhe nega a função de criar relações jurídicas.
Não há incom patibilidade entre a vontade individual e a vonta- 
de legal. O negócio juríd ico pode ser ato regulado pelo direito e 
; conter direito. As fontes criam norm as e são reguladas por normas, 
j;! A própria lei é ato juríd ico ,4(> regulada na sua criação e eficácia pela 
| Constituição.
O negócio é um fato que contém em si direito. Kelsen afirma 
| i que o negócio juríd ico é um fato produtor de normas, na medida 
i' em que a o rdem jurídica confere a tal fato essa possibilidade. Afirma 
| também que é im portante peculiaridade do direito, a cle regular sua 
própria criação, o que se aplica ao negócio jurídico. No mesmo 
: sentido, Miguel Reale.4'
O negócio juríd ico como fonte normativa leva à questão da hie-
I rarquia das fontes. O sistem ajurídico não se com põe de normas de 
igual grau. Assim como o negócio juríd ico é fattispecie, também a lei
Hi.
!i 44 Tom aso Perassi. Introduzione alie• scienze giuridiche, p. 57; Miguel Reale. Lições 
I, Preliminares de Direito, p. 179.
45 Ferri, p. 19.
!,; 46 Cf. Caio Mário da Silva Pereira. Projeto de Código de Obrigações, p. XII, na linha 
p de Duguit. Traité de droit constitucionnel I, p. 30 e segs.
| 47 Hans Kelsen. Teoria pura do direito, p. 350; Miguel Reale, p. 179. Segundo 
!i Ferri, enquanto para o negóciojurídico se tem posto em evidência sua natureza 
de fattispecie, deixando de lado seu aspecto normativo, para a lei se tem caído 
1 no excesso oposto, só se vendo a norma, esquecendo-se de que a norm ajuríd ica 
é também fattispecie de um a norm a superior. O problem a de validade é comum 
a todas as normas jurídicas, qualquer que seja sua fonte de produção. Em con- 
ji clusão, o negócio que não for conform e ã lei não será fonte normativa. Admi- 
j: tindo-se, com Kelsen, que a validade de um a norm a reside em outra, não há por 
í que se excluir o caráter de fonte normativa do negóciojuríd ico somente pelo
!íato de ele se basear no direito objetivo. A objeção teria sentido se considerás­semos o negócio fonte de direito autônom a e originária, o que não é o caso (autônoma, aqui, no sonticlo de totalm ente independente de qualquer outra ■Sí! norma"!.
382 Direito Civil — Introdução
ordinária é fattispecie de um a norm a superior, de natureza constidi 
cional.
Como diz Ferri, a exemplo de inúm eros juristas,48 não há motivo 
para que não se considere o negócio juríd ico fonte de direito, e a 
autonom ia privada, de que ele é expressão, verdadeiro poder nor­
mativo.
Aceitar a autonom ia privada como poder de criar regras jurídi­
cas é, aliás, estabelecer mais um critério para distinguir os atos ju r í­
dicos, em senso estrito, dos negócios jurídicos. Estes, ao contrário 
daqueles, criam regras jurídicas.
A principal característica do negócio juríd ico é, desse modo, a 
criação de normas jurídicas. Seu conteúdo é, portanto, normativo,
o que os distingue dos demais atos jurídicos não-negociais. Para es­
tes, é a lei a fonte im ediata dos efeitos jurídicos, que, muitas vezes,
o próprio agente desconhece, o que torna menos relevante o erro, 
a direção da vontade, a interpretação.
Na maioria das vezes, os negócios jurídicos criam normas ju ríd i­
cas individuais e concretas. Eventualmente, normas gerais e abstni- 
tas, como nos estatutos das grandes associações, empresas, clubes 
etc. Essas normas, uma vez criado o negócio juríd ico com os requi 
sitos legais, adquirem existência própria, separando-se dos sujeitos 
e da sua vontade, tal como ocorre com as leis, os atos administrati ­
vos, a sentença judicial.
A vontade subjetiva esgota-se no m om ento em que o negócio se 
realiza, mas a normatividade começa quando o processo volitivo 
acaba. Os próprios sujeitos podem, inclusive, nadamais querer, e, 
todavia, a declaração de vontade perm anece eficaz e normativa. () 
testamento dem onstra que a força vinculante do negócio jurídico 
não está na vontade subjetiva da parte, mas na vontade objetivada 
nas normas jurídicas que dele nascem.
48 Na doutrina italiana, são adeptos da concepção normativa do negócio jm í 
dico, isto é, o negócio ju ríd ico como fonte normativa, entre outros: Ascarelli. 
Esposito, Tedeschi, Carnelutti, Pergolesi, Santi Romano, D’Eufemia, Salvatore 
Romano e Passerin D’Entrèves; na Alemanha, Büllow, Danz, Kelsen, Manigk, 
Nawiasky, Alexeiev. Têm opinião contrária: Betti, Trimarchi, Scognamiglio, 
Mcssinco, Stolli, Cariota-Ferrara. Cf. Ferri, p. 33.
No Brasil, a concepção dom inante é a tradicional, que não vê o negócio ju ríd i­
co como fonte normativa. Cf. Walküre Lopes Ribeiro da Silva, A autonomia pii 
nada corno font* dr normas jurídicas trabalhistas, na 44, p. 64.
[ 6. O problema da norma jurídica negociai
Reconhecem-se como habituais características da norm a jurídi- 
§ ca, ou da lei, a estatalidade, a bilateralidade, a generalidade ou uni- 
| versalidade, a abstração, a imperatividade e a coatividade.49
A estatalidade significa que as normas jurídicas são normas de 
igeornportam ento que em anam do Estado, que lhes garante o respec- 
J tivo cum prim ento. Seu objetivo é a segurança, a ordem e a justiça, 
e seus destinatários, aqueles a quem disser respeito. Pressupõe a 
giexistência do Estado como ente superior à com unidade e como cria- 
| dor da ordem jurídica.
Essa concepção é unilateral, pois todos são iguais perante o di- 
gtreito, inclusive o Estado. A tese de supremacia ou relação de subor- 
: dinação entre sujeitos vinculados jurid icam ente não é aceita pela 
maioria doutrinária. Como diz Rudolf Stammler, não se pode esta- 
belecer uma relação de dependência do direito ao Estado. “Sendo 
| | a noção de direito o prius lógico do conceito de Estado, e não vice- 
§i versa, aquele, como m odalidade peculiar da vontade vinculatória, 
não pode basear-se neste.”50 Não se confunda soberania com a supe-
1 rioridade do direito objetivo. A soberania do Estado manifesta-se 
em face dos outros Estados e dos particulares, mas não em face das 
normas estabelecidas por eles. O fato de o Estado limitar ou revogar 
a norm a privada não é obra dele, como ente soberano, porém obra 
do ordenam ento juríd ico que ele criou. Há hierarquia de normas, 
não de sujeitos. Assim como o Estado se submete ao sistem ajurídico 
vigente, também os particulares o fazem. Isso não im pede a existên­
cia da autonom ia privada ao lado da autonom ia estatal.
A bilateralidade significa que a norm a jurídica, ao aplicar-se, 
H f atribui poderes a um sujeito e deveres a outro. Transforma a relação 
social em relação jurídica. Bilateralidade significa abertura para 
dois lados, para dois sujeitos, unidos por uma relação juríd ica.51
A norm a juríd ica privada apresenta a mesma característica. As 
regras contidas em um contrato, espécie mais comum no gênero 
jurídico, contêm poderes e deveres, atribuídos aos respectivos cre­
dores e devedores.
Teoria do Negócio Jurídico 383
49 Mário Aliara. Lc nozione fondamentali dei diritto civile, I, p. 20 e 21.
no Rudolf Staminlvr. Tratado de filosofia dei derecho, p. 342.
51 Norberio llolibio. Norma puridica, p. 1.333.
384 Direito Civil — Introdução
A generalidade ou universalidade consiste na indeterm inação 
dos sujeitos a que se aplica a lei.52
A abstração significa que a norm a se destina a casos típicos inde­
terminados. G eneralidade e abstração seriam a garantia de igualda­
de e de imparcialidade na aplicação ao direito.53 Na generalidade, 
as norm as são universais com respeito ao destinatário; na abstração, 
são universais com respeito à ação.54 Aliás, o reconhecim ento d;i 
generalidade como atributo da norm a juríd ica resulta da sua falsa 
identificação com a lei. Esta é geral; aquela, não, necessariamente. 
Além disso, a teoria do direito reconhece a existência de normas 
individuais, dirigidas a um a só pessoa, e de normas concretas, que 
regulam um a só ação. Por exemplo, sentenças, ordens ou autoriza­
ções judiciais ou administrativas (licenças, permissões, autorizações 
etc.) O direito objetivo constitui-se, portanto, também de normas 
individuais. Nada há assim a opor à validade ou vigência das normas 
que em anam do negócio jurídico. São proposições normativas com 
estrutura igual à das legais.
Q uanto à imperatividade, tem foros de antigüidade a doutrina 
segundo a qual a norm a juríd ica é um imperativo, um com ando.” 
Contrariam ente a essa tese, há teorias que negam serem as normas 
jurídicas imperativos. Para essas, as proposições jurídicas são juízos 
hipotéticos (se é A, deve ser B), e juízos hipotéticos não são coman­
dos. Kelsen e seus seguidores defendem esta última concepção. A 
teoria da norm a como imperativo é, todavia, dom inante na Alema­
nha.56 No Brasil, encontra-se em Goffredo Telles Júnior uma refor­
mulação, ao ser definida a norm a juríd ica como “imperativo autori- 
zante” harm onizado com a ordenação ética vigente.57 Concepções 
intermediárias, como a de Bianca,58 consideram a imperatividade 
característica não-essencial da norm a jurídica, pois existem normas 
imperativas e normas não imperativas (dispositivas e supletivas).
52 Lex est commune praeceptum, Digesto, 1, 2, 3.
53 Aliara, p. 14.
54 N orberto Bobbio. Teoria delia norma giuridica, p. 231.
55 I.egis virtus haec est imperare, vetare, permittere, punire, D. 1, 7,1, 3. E a communis 
opinio. Sua formulação clássica é de Augusto Thon. Norma giuridica e diritto sog 
getivo, p. 187.
5(5 Karl Larenz. Metodologia da ciência do direito, p. 219.
57 Goffredo Telles [únior. Direito quântico, p. 262. Idem. Iniciação na ciência do 
direito, p. 103.
58 Bianca, p. 12.
A discussão sobre a imperadvidade com o característica da nor­
ma jurídica ou não e o reconhecim ento de que, efetivamente, ela 
p |lã o é atributo essencial da proposição jurídica é indiferente à ques- 
|!"tão da norma negociai. Esta, em princípio, é sempre imperativa.™ 
||; í A coatividade consiste na possibilidade de se obrigar o infrator 
IJjjtla proposição jurídica, usando-se da sanção. A coatividade (não 
Ijcoercibilidade) significa, portanto, a possibilidade de a norma ser 
Ijcumprida de m odo não espontâneo pelo devedor. Ora, tanto a nor- 
|j ma estatal quanto a norma negociai dispõem de sanção.
As críticas feitas à idéia da norma jurídica negociai não têm, 
i' assim, maior fundamento. As características reconhecidas na norma 
| jurídica estatal, com o a bilateralidade, encontram-se também nos 
!í: preceitos emanados do negócio jurídico, que faz nascer 0 1 1 modifi- 
car as relações jurídicas, expressão dos poderes e deveres que tradu- 
| zem a bilateralidade.
j| 7. A relação entre a vontade e seus objetivos
Acerca da relação entre a vontade e seus objetivos, vale dizer, a 
| | yontade e seus efeitos, existem duas teorias: a dos efeitos jurídicos e a 
| dos efeitos práticos?0
Pela primeira, de Savigny, Windscheid, Zittelman, a vontade visa
I produzir determinados efeitos jurídicos, sendo necessária perfeita 
];| conjugação entre a vontade e os efeitos do negócio. Como conse- 
í qüência, a falta de vontade leva à inexistência ou à invalidade do 
negócio. Nessa concepção baseia-se uma das notas que diferenciam
o negócio do ato jurídico em senso estrito. Neste, os efeitos são ex 
Hp lege, enquanto naqueles são ex voluntate.
A teoria dos efeitos práticos, seguida pela maior parte da doutri- 
I fcn a italiana (Coviello, Fadda, De Ruggiero, Santoro-Passarelli, D ’A- 
H iyanzo, Branca etc.), combate a primeira concepção, alegando seus 
m defensores que as pessoas, ao praticar negócios jurídicos, fazem-no 
J íj i visando fins práticos, econôm icos, desconhecendo norm almente os 
efeitos jurídicos que poderão surgir. A vontade do declarante cliri- 
ge-se a resultados válidos para o direito.
Teoria do Negocio Jurídico 385
Í;í 50 Bobbio. Norma giuridina, p. 1.333.
p 60 São as conhecidas teorias do direito alemão. Rechsfolgentheorie (teoria cios
I efeitos jurídicos) e a (Imndfolgmtheorie (teoria dos efeitos práticos).
386 Direito Civil — Introdução
Teoria interm ediária, de Manuel Domingues de Andrade, <lc 
fende a tese de que a vontade dirige-se aos efeitos práticos que ,11 
partes tenham querido, sob a proteção do direito, em bora sem iki ■■ 
ção exata do caráter ju ríd ico de tais efeitos. “Contenta-se com qnr' 
os declarantes, visando em prim eira linha certos resultados práti» o*», 
tenham querido para ela a sanção das leis, isto é, se tenham propo* 
to alcançá-los por via jurídica, sem todavia ser necessário que tc 
nham form ado idéia exata e com pleta desses efeitos.”61

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