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Francisco Amaral Professar Titular de Direito Civil e Romano na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro Da Academia Brasileira de Letras Jurídicas Da Accademia dei Giusprivatisti Europei Doutor Honoris Causa da Universidade Católica Portuguesa Revista e A um entada de acordo com o novo Código Civil e leis posteriores DIREITO CIVIL INTRODUÇÃO 6â Edição BPDEA R 6 N O V R R Rio de Janeiro • São Paulo • Recife 2006 EdUoriais c Autorais Rl-SPUtTC O AUTOH Na o F a ç a C o p ia CAPÍTULO XI Teoria do Negócio Jurídico Sumário: 1. O negócio jurídico. Conceito. Distinção do ato jurídico cm \en\o estrito. Importância. 2. Notícia histórica. Nascimento e evolução do conceito, Razão de ser e função ideológica. 3. Crítica e superação do conceito de nutfóriü jurídico. 4. A importância da vontade e da declaração na teoria do negócio jurídico. Concepções subjetiva e objetiva. 5. Ai teorias perceptiva e normativa. 6. O problema da norma ju rídica negociai. 7. A relação entre a vontade e seus objetivos. 8. Classificação dos negócios jurídicos. 1. O negócio jurídico. Conceito. Distinção do ato jurídico em senso estrito. Importância Por negócio juríd ico deve-se en tender a declaração de vontade privada destinada a produzir efeitos que o agente pretende e o di reito reconhece. Tais efeitos são a constituição, modificação ou ex tinção de relações jurídicas, de m odo vinculante, obrigatório para as partes intervenientes.1 1 Do Autor. Negócio jurídico, p. 170; José de Abreu. O negócio jurídico e sua teoria geral, p. 72; Antonio Junqueira de Azevedo. Negócio jurídico, existência, validade, eficácia, p. 20; Eduardo Espínola. Sistema do Direito Civil Brasileiro, p. 236; Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, p. 3; Vicente Ráo. Ato jurídico-, O rlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 237; Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, vol. I, p. 327; Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso de Direito Civil, p. 359; Maria H elena Diniz, Curso de Direito Civil brasileiro, l 2 vol., p. 212; Fábio 367 O Código Civil brasileiro ele 2002 acolhe expressamente ;i lij i^ii a do negócio ju r íd ic o , com o categoria geral com preensiva das declarações de vontade destinadas à criação, modificação e extinção das relações jurídicas. Afastou-se, assim, da concepção unitária do ato juríd ico perfilhada pelo Código Civil de 1916, art. 81, embora este artigo, referindo-se ao ato, definisse o negócio jurídico. Seguiu, também, o Código de 2002, a orientação, nesse particular, dos An teprojetos anteriores do Código de Obrigações.2 A formulação do conceito parte de dois elementos: a) um a von tade particular dirigida à produção de determ inados efeitos, com o que as pessoas regulam os seus interesses; e b) o reconhecim ento, pelo sistema legal, do poder que os particulares têm de regular, assim, os seus interesses (autonomia privada). Este princípio, embora fundam ental nos sistemas de direito privado de natureza liberal, não está expressamente previsto no direito civil brasileiro, salvo no seu pressuposto constitucional, que é a liberdade de iniciativa eco nômica (CF, art. I2, IV). De qualquer modo, o negócio juríd ico é o meio de realização da autonom ia privada,3 e o contrato, o seu sím bolo. Ato juríd ico em senso estrito e negócio juríd ico são manifesta ções de vontade, mas diferem quanto à estrutura, à função e aos respectivos efeitos. Q uanto à estrutura, enquanto no prim eiro temos uma ação e uma vontade simples, no segundo, temos uma ação e um a vontade qualificada, que é a de produzir um efeito juríd ico determ inado. No negócio juríd ico a vontade caracteriza-se por sua finalidade especí- « > f n iM i tw v ju y o u Maria de Mattia. Ato jurídico em senso estrito e negócio jurídico, p. 36; Manoel Do- mingues de Andrade. Teoria geral da relação jurídica, vol. II, p. 25; Carlos Alberto da Mota Pinto. Teoria geral do Direito Civil, p. 379; João de Castro Mendes. Direito Civil, teoria geral, vol. III, p. 29; Manuel Garcia Amigo. Instituciones de Derecho Civil, I, p. 654; Karl Larenz. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, p. 272; W arner Flume. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts. Des Rechtsgeschäft, p. 23; Francesco Galgano. Negozio giuridico, p. 932; Giuseppe Mirabelli. Negozio Giuridico (Teoria), p. I ; Stefano Rodotà. II diritto privato nella societä modema, p. 205 e segs.; Santos Cifuentes. Negócio jurídico, p. 126; Pietro Barcellona. Diritto privato e società moder na, p. 421 e segs. '2 A nteprojeto de Código de Obrigações de Orozimbo Nonato, H ahnem ann Guima rães e Filadelfo Azevedo, 1941, e Projeto de Código de Obrigações de Caio Mário da Silva l’ereira, de 1965. 3 Larenz, p. 422; Flume, p. 48; do Autor, p. 175. leoria ao Nogocia ju ria ico j o r y Uca, que é a gênese, modificação ou extinção cie «lireiios.1 K cham a da vontade negociai, que tem objetivo próprio e e normativa e vin- culante, no sentido de estabelecer as normas reguladoras dos inte resses das partes. O negócio juríd ico é, portanto, exercício de auto nomia privada, tendo, por isso, conteúdo normativo. A sua essência está nos dois elementos, vontade e autonom ia privada. O atojuríd i- gjjíjco em senso estrito não tem esse conteúdo. A vontade que exprime II 'não se dirige ã produção de efeitos jurídicos específicos desejados pelo agente. Eles dependem da lei, na qual já estão previstos. Q uanto à função que podem exercer, o negócio juríd ico é o I instrum ento com que o particular dispõe de seus direitos, o que não ti! se verifica com o ato juríd ico em senso estrito, cujos efeitos é a lei ;|l; que estabelece. Diz-se, por isso, que este serve aos interesses gerais || da com unidade, enquanto aquele se encontra a serviço dos interes- ; ses privados.5 Q uanto aos efeitos, no ato jurídico em senso estrito é a própria - lei a determiná-los, enquanto no negócio jurídico é a vontade dos particulares. A eficácia do prim eiro está prevista em lei, não tendo íjll especial im portância a intenção do agente. Já o negócio, ao contrá- II rio, não produz efeitos que o agente não tenha querido.6 No contra- | to, a espécie mais im portante do gênero negócio jurídico, os efeitos j: são os que as partes lhe conferem, no exercício de sua autonom ia, desde que conforme à lei, à ordem pública e aos bons costumes. Já no casamento, ou na aquisição de propriedade móvel, por ocupa- í ção, confusão, comistão, adjunção ou usucapião, espécies de ato juríd ico em senso estrito, os efeitos são os que a própria lei, o Códi go Civil, estabelece para a declaração de vontade. Certo é, também, que o mesmo evento, conforme a natureza da vontade expressa, pode ser um fato, ato ou negócio, por exemplo, a aquisição da p ropriedade imóvel. No caso de acessão (CC, art. 1.248,1, II, III), existe um fato juríd ico, um acontecim ento natural conduzente à aquisição originária cia propriedade. A aquisição por ocupação prolongada (usucapião) (CC, art. 1.260), sendo com por tam ento voluntário, é ato jurídico em senso estrito. Já a aquisição derivada, por com pra e venda, ou doação, devidamente transcritas, é negócio jurídico. 4 Savigny. Sistema delDerecho Romano Atual, vol. III, p. 114. 5 Francisco Santoro-Passarelli. Alto giuridico, p. 209. 6 Galgano, p. 932. 3/0 Dirolto Civil — Introdução Conclui-se, portanto, que no ato juríd ico em senso estrito ui efeitos são ex lege, enquanto no negócio juríd ico são ex voluntale Ainda como critério distintivo, pode acrescentar-se que no negócio jurídico, pela im portância de que se reveste a vontade, po r seu po derjurígeno, têm maior relevo os chamados vícios do consentim en to (erro, dolo e coação, estado de perigo, lesão) do que no ato jurí dico em senso estrito. Em resumo, a diferençaespecífica entre as duas espécies reside na circunstância de o negócio juríd ico ser instrum ento da au tono mia privada, do que lhe advêm certas peculiaridades quanto à estru tura, função e efeitos. Para finalizar, cabe dizer qual a utilidade do conceito de nego cio jurídico, sabido que os conceitos e as construções teóricas não têm valor em si mas como instrum ento de com preensão e realização do direito. O conceito é útil porque está a serviço da liberdade e da auto nomia privada, desem penhando relevante papel na criação e modi ficação das relaçõesjurídicas e nos direitos subjetivos, servindo para distinguir os atos que pertencem à categoria do negócio dos outros que lhe são estranhos. Logo, onde não for adm itida a autonomia privada, como na quase totalidade dos atos de direito de família, não haverá negócio jurídico. Por outro lado, como categoria lógica, permite à doutrina reunir, classificar, definir,7 o que facilita a inter pretação dos atos mais comuns da vida hum ana, contratos, testa mentos, promessas etc. Além disso, como figura abstrata que é, reú ne os princípios comuns às várias espécies de manifestação de von tade com que as pessoas dispõem jurid icam ente de seus interesses. Temos na prática juríd ica diária muitos atos que não se encaixam nos tipos legais previstos. Vendas, em préstim os, acordos etc., manifestações volitivas que não correspondem ao que a lei estabele ce, criados pela necessidade de se dar forma juríd ica às mais diversas manifestações de vontade. Daí a vantagem de um a figura abstrata, como a do negócio jurídico, que reúne os elementos essenciais das variadíssimas manifestações de autonom ia privada, com um a disci plina comum para todas. E como os atos jurídicos em senso estrito não constituem um a categoria homogênea, não sendo, por isso, pos sível submetê-los a uma única disciplina, a eles se aplicam, no que couber, as disposições legais do negócio juríd ico (CC, art. 185).8 7 José Antonio Doral e Miguel Angel del Arco. El negocio jurídico, p. 34. 8 O rlando Gomes, n“ 170 e 171. “A importância da teoria do negócio jurídico Teoria do Nogôclo Jurídico 1; Noticia histórica. Nascimento e evolução do conceito. Razão de ser e ! junção ideológica j A com preensão do significado, im portância, razão de ser e fun- IIMo ideológica do negócio juríd ico exige breve notícia histórica so- fp r e a sua gênese e evolução, fe O negócio juríd ico é categoria recente. Nasceu durante o século XVIII, como produto do grande esforço de abstração dos civilistas «lemães, que criaram um sistema de direito privado baseado na li berdade dos particulares, tendo ao centro o negócio juríd ico como figura típica da manifestação de vontade.9 Afirma-se, por isso, ser a teoria do negócio juríd ico a glória da ciência pandectística alemã. Elabora-se a sua teoria a partir dos textos romanos de Justiniano, do Corpus iuris civilis, considerado direito comum, tendo como fun dam ento o princípio da autonom ia da vontade. O direito rom ano não conheceu o negócio juríd ico como categoria lógica, que seria fruto de um a abstração a que os juristas romanos, práticos e objeti vos, não se dedicaram. Mas já continha os elementos com que a pandectística alemã trabalharia na elaboração de tal conceito, isto e, a vontade hum ana e os efeitos que dela podem diretam ente deri var. O term o negócio jurídico, de nec + otium, com o sentido de ati vidade que realize interesse de ordem patrimonial, deve-se a Nettel- bladt, em 1749,10 mas a sua com pleta formulação dá-se com Savig- ny,11 que o define como “espécie de fatos jurídicos que não são ape nas ações livres, mas em que a vontade dos sujeitos se dirige imedia tam ente à constituição ou extinção de uma relação ju ríd ica”. A criação do conceito deve-se a razões de ordem filosófica, polí tica e econômica. No plano filosófico, é produto do jusnaturalism o, que reafirma va a liberdade como princípio inato dos indivíduos, liberdade como no processo de elaboração conceituai da m odernidade é notável; ela constitui a mais eficaz representação do princípio da liberdade juríd ica no campo das relações patrimoniais e, ao mesmo tempo, a inovação conceituai destinada a produzir as mais profundas modificações na organização das relações interin- dividuais.” Barcellona, p. 426-427. 9 Giuseppe Stolfi. Teoria dei negocio jurídico, p. XVIfl. 10 Francesco Calasso. II negozio giuridico, p. 340; Mirabelli, p. 1. nota 1; Pontes de Miranda, p. 4, de m odo diverso, indica Ritter Hugo, como o criador da expressão “Rechtsgeschäft". 11 Savigny, tomo II, p. 202. podcr du a vontade aluar coin eficácia, Quod radix libertatis est vohm tas.1 - Nesse aspecto, é categoria elaborada dentro de tuna leoiln ju ríd ica que privilegia o sujeito de direito, e pensada em função <i < unidade desse sujeito.13 Ao lado da liberdade figurava outro valor — também fundameii' tal nesse período histórico —, a igualdade. Mas esta era merarncnh' formal, dos sujeitos perante o direito, independentem ente de nuíin condições pessoais de existência e de igualdade de oportunidades O objetivo era, assim, criar um direito igual para todos, sem clislin ção de classes, o que se obtém com a obra dos pandectistas, que chegam a notável ponto de abstração, como o conceito de negocio jurídico, aplicável a todos os atos jurídicos em que o sujeito visasse determ inados fins. O negócio juríd ico resulta, assim, de um processo de abstração, a partir da liberdade e da igualdade formal de todos perante o di reito, processo que se inicia com a Revolução Francesa e que tem por objetivo estabelecer um direito geral e abstrato, aplicável a lo clos, sem distinções de classe. Vontade e liberdade dentro do procès so social e do processo econômico, em que se reconhece a proprie dade privada dos bens de produção e a circulação dos bens como processo de cooperação entre os indivíduos.14 A esse aspecto ligava-se o político, que via na vontade particular um instrum ento de luta contra o feudalismo e seus privilégios. E o negócio jurídico, como instrum ento dessa vontade, firmava-se como conseqüência do princípio político da autonom ia privada, conside rada fonte e medida dos direitos subjetivos, força criadora do direi to, enfim. E na esteira das idéias filosóficas de Hobbes e Rousseau, que con trapunham os direitos individuais aos do Estado e das corporações, Emmanuel Kant confere ao dogma da vontade a sua formulação mais precisa e categórica, ao estabelecer que a vontade individual é a única fonte de toda obrigação jurídica.15 O direito reconhece, assim, eficácia ju ríd ica à declaração cle vontade individual destinada a produzir efeitos que o agente preten- 12 Federico de Castro y Bravo. El negocio jurídico, p. 57, citando S. Tomás tie Aquino. Suma Theologica 1, 2, ac, 9.17, I ad. 2. “Quod radix libertatis est voluntas" (a vontade é o que está na raiz da liberdade). 13 Galgano, p. 936. 14 Stolfi, p. XII. 15 Emmanuel Kant. Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 144. Teoria do Nciflôclo Jurídico m ilt!, principalm ente no setor econômico. Tal declaração e o negócio jurídico, com função paralela à do direito subjetivo, pois ambos rs ião a serviço da liberdade e da autonom ia da vontade.11’ H cansa da dinâmica jurídica, como instrum ento de realização do princípio da I liberdade no direito privado.17 A categoria do negócio juríd ico surge, assim, como produto d<‘ j u m a filosofia político-jurídica que, a partir de uma teoria do sujeito, gfeom base na sua liberdade e igualdade formal, constrói uma figura Hj:unitária capaz de englobar, reunir, todos os fenômenos jurídicos Rçlecorrentes das manifestações de vontade dos sujeitos no campo da t súa atividade jurídico-patrim onial. Artífices desse processo foram, nfclepois de Savigny, W indscheide D ernburg, inserindo-se tal figura | no Código Civil alem ão.18 Liberdade e igualdade constituem -se, assim, nos princípios Rf&rientadores do processo de criação ju ríd ica desse período, direta" | mente ligado ao processo econômico, de que o poder da vontade B nm o exercício de liberdade ju ríd ica era exigência essencial,1,1 pois |P ‘o desenvolvimento do comércio e da indústria, a divisão do trafia* I I lho e a especialização multiplicam o escambo”. A lei econômica da p ó fe r ta e da procura e a liberdade contratual atendem ao interesse I cie todos e à justiça, de m odo que, para favorecer o intercâm bio e o «desenvolvim ento econômico, é necessário eliminar os obstáculos â ijjivre circulação dos bens. E o princípio do laissez-faire, laissez-passw I que se completa com o laissez-contracter.20 São as convenções que Restabelecem o preço justo , sendo a “justiça contratual um fato deter- B m inado pela livre-concorrência, não um a exigência ideal”. Surge assim, no campo econômico, e com evidente conotação I ideológica, a idéia de que o negócio juríd ico foi o instrum ento cria- '!; do para facilitar à classe mercantil a circulação de bens e serviços, e | assim desenvolver o sistema de produção e consumo.21 Segundo tal perspectiva, o processo de produção e o de circulação de bens em 16 “O direito subjetivo é estático, conserva e protege, enquanto o negócio ju rídico é dinâmico, produz e renova”, Manuel Albaladejo. El negocio jurídico, p. 37; Emilio Betti. Negozio giuridico, p. 209. 17 Garcia Amigo, p. 654. 18 Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil alemão), Parte Geral, Seção Terceira. 19 Mirabelli, p. 2. 20 Jean Carbonnier. Drnit civil. Les obligations, Paris, p. 41. 21 Mirabelli, p. 15; Galgano, p. 936; Pietro Barcellona. Dirítto privato e processo economico, p. 195 e segs. 374 Direito Civil — Introdução um m ercado de concorrência justificaria a criação de tal figura no quadro do sistema jurídico. Nascida no direito alemão, prim eiro na doutrina, depois objeti vada no Código Civil (BGB), a teoria do negócio juríd ico passa à doutrina italiana, à espanhola e à portuguesa.22 O direito francês perm anece, porém, com a figura unitária do ato jurídico, não dis tinguindo o Código os atos jurídicos em senso estrito do negócio jurídico. O Código Civil de 1916 não adotava expressamente a figu ra, seguindo a posição unitária francesa, em bora seu art. 81, dedica do ao ato jurídico, já contivesse a definição de negócio. O Código Civil de 2002 já consagra, porém , a posição dualista, com referência expressa aos negócios e aos atos jurídicos lícitos deles diversos,23 de acordo com a doutrina brasileira contem porânea, que é dominante: no preferir esta concepção. De tudo isto se conclui que o conceito de negócio juríd ico é um fato histórico24 e uma categoria lógica. Como fato histórico repre senta o envolver de uma experiência em que se reuniram circuns tâncias de natureza filosófica, política e econômica, até o surgimen to, a cristalização do conceito. Como categoria lógica, p roduto desse fato histórico, representa um a síntese, uma “redução à unidade” das diversas posições subjetivas que se podem configurar na atividade jurídica, de que a declaração de vontade é uma das causas imediatas. “Construída com a noção de negócio um a figura concreta, compos ta de elementos especificamente individualizáveis, essenciais, aci dentais e naturais, podem-se reconduzir a este esquema todas as modalidades cla atividade hum ana e estudá-las com critérios e mé todos unitários.”25 3. Crítica e superação do conceito de negócio jurídico O negócio juríd ico perm anece ainda hoje como instrum ento unitário do poder da vontade individual no campo da dinâmica jii rídica, isto é, como poder criador de efeitos jurídicos. Tem sido, porém, objeto de alguma oposição, dirigida tanto ao caráter abstra to da figura — que os críticos consideram incapaz de englobar uni 22 Cf. nota 1. üm Código Civil, art. 185. ü-l Calasso, p. 345. 11.1 M i m b e l l i . n . ü . Teoria do Negócio Jurídico 375 Sj! tariamente figuras diversas como os contratos, testamentos, promes- | sas, convenções etc. — quanto à sua função ideológica, que o carac- terizou como símbolo de um liberalismo econômico juríd ico supe- | rado pela presença crescente do Estado na organização e direção da I economia. Essa intervenção reduz o campo da autonom ia privada e, |; conseqüentem ente, a im portância do negócio jurídico, como cate- i; goria, não obstante a utilidade crescente de um a de suas espécies, o | | i contrato, em todos os regimes — capitalistas ou socialistas. O conceito de negócio juríd ico é uma categoria técnico-jurídica ij que tem sua razão de ser em argum entos de natureza filosófica, política e econômica, como já visto. E, assim, um a categoria históri- I ca e lógica. E, como categoria lógica, ou se a aceita ou se a recusa.26 Como categoria lógica, é instrum ento de atuação dos interesses ji econômicos individuais, dentro do sistema de produção e distribui- !!• ção de bens, traduzindo a concepção de um direito igual para todos, I capaz de realizar, na igualdade, os interesses contrapostos das diver- | ; sas classes sociais, form ulado pelos juristas que eram, à época, os intérpretes privilegiados cla realidade social e econôm ica,27 Mudaram porém as condições favoráveis ou determ inantes des- | | se notável trabalho intelectual, que foi o esforço de abstração jurí- |i dica que resultou no conceito de negócio jurídico. Não mais exis- |j tem as condições políticas e econômicas que justificaram essa cria- | ção, assim como os juristas que a fizeram não mais detêm o m ono pólio da reflexão e da disciplina da vida social. O direito comparti- j í j i lha hoje, com outras ciências sociais (a sociologia, a antropologia, a jv psicologia etc.), o universo sócio-cultural que até o início do século l i i ; XX lhe competia como campo de atuação e controle. M udando tais circunstâncias, muda-se a construção juríd ica cor respondente, o negócio jurídico, surgindo dúvidas quanto à conve niência atual dessa figura, dúvidas essas de natureza sistêmica e de natureza político-social. Do ponto de vista sistêmico, contesta-se a possibilidade de redu ção a um a única figura, de todas as espécies de declarações de von tade. Afirma-se a “impossibilidade de reduzir à unidade as posições subjetivas dos contratantes”. Do ponto de vista político-social, que suscita o problem a da cor respondência en tre a categoria do negócio juríd ico e as exigências 26 Calasso, p. 345, nota 41. y? M;irir> Itcllomo. Neeozio eiuridico (Diritto intermedio) , p. 931. 376 Direito Civil — Introdução da sociedade, considera-se ter sido essa figura, no nascim ento da m oderna sociedade industrial, o instrum ento da classe proprietária dos bens de produção e da burguesia comercial, para transferência do seu direito de propriedade por simples declaração cle vontade, sem necessidade de forma especial. Nessa época, o indivíduo era um ser isolado, protegido pelos ideais de liberdade e de igualdade que o Estado de direito garantia com o reconhecim ento de um a esfera cle ampla autonomia. Hoje as condições são diversas. Os indivíduos não se situam como átomos isolados, em regime de concorrência que a publicidade e os acordos entre os grupos econômicos elimi naram. Suas relações têm secundária im portância em face dos con flitos de interesses entre os grupos privados, entre empresários e trabalhadores, en tre empresários e consumidores. E os interesses que atualm ente o direito protege são os das pessoas que desem pe nham funções na sociedade, não os indivíduos em si, isolados, áto mos da vida social. Cai por terra o mito do sujeito juríd ico como figura unitária e abstrata, assim como o da igualdade de todospe ran te o direito (igualdade form al), que procura hoje realizar a igualdade material, isto é, a igualdade de oportunidade para satisfa ção das necessidades fundamentais. E não sendo mais o ato indivi dual de troca o “fenôm eno central das relações econômico-sociais”, estaria superada a figura do negócio juríd ico e destinada ao ocaso, jun tam ente com o mito da unidade do sujeito juríd ico e com a ilu são da igualdade formal de direito.28 De tudo isto se conclui que, sendo o negócio juríd ico um a cate goria histórica e lógica, foi válida e útil enquanto vigentes as condi ções que a determ inaram . Mudadas as condições e destituído o con ceito de sua função ideológica, não se justificaria a sua m anutenção. O que perm anece com pleno vigor, como causa da dinâmica ju ríd i ca, é o ato jurídico como gênero, e, como categoria específica de crescente im portância, o contrato. A doutrina, no entanto, divide-se, sendo ainda majoritária a cor rente que acredita na utilidade do conceito e na possibilidade de 28 “Eis por que, tanto do ponto de vista teórico como prático, político, ou técnico, a conservação da categoria negócio ju ríd ico é a consagração dc um retrocesso, e o propósito de reentronizá-lo num a parte geral do Código Civil despropositada não passa de vã tentativa para salvar valores agonizantes do capitalismo adolescente, quando não seja crassa ignorância em doutores dc qut' a categoria pandectística foi elaborada num contexto juríd ico ultrapassado, c para atender às exigências de um a ordem econôm ica e social que deixou d r existir." O rlando Gomes. Novos temas de Direito Civil, p. 89. Kl j; jj sua reconstrução,29 tanto que essa figura foi adotada no Código Civil de 2.002, com precisa justificativa do legislador.30 :! 4. A importância da vontade e da declaração na teoria do negócio II jurídico. Concepções subjetiva e objetiva O negócio juríd ico é declaração de vontade que se destina ã produção de certos efeitos jurídicos que o sujeito pretende e o di- í reito reconhece. Seu elem ento essencial é a vontade, que se dá a conhecer pela respectiva declaração e que tem, por isso, relevante | significado econôm ico e social, por ser meio de se alcançar o efeito juríd ico pretendido. No caso de a vontade exteriorizada ser diversa da vontade real, I consciente ou inconscientem ente por parte do declarante, surge o I problem a de saber-se o que deve prevalecer — a vontade ou a decla ração —, isto é, qual o elem ento que na verdade produz os efeitos ji jurídicos, matéria de significativa im portância para as partes, para jj! terceiros e para o com ércio juríd ico em geral. Acerca do predom ínio de um destes elementos, a vontade ou a declaração, existem duas concepções opostas: a subjetiva, que dá I realce à vontade, e a objetiva, que enfatiza a declaração, levando, respectivamente, à teoria da vontade e à teoria da declaração. Para a prim eira, subjetiva, voluntarista,31 de Savigny e seus imediatos segui dores (Windscheid, D ernburg, Unger, O ertm ann, Enneccerus), o negócio juríd ico é essencialmente vontade, a que deve correspon der exatam ente a sua form a de declaração, que é simples instrum en to de manifestação dessa vontade. Essa teoria protege, naturalm ente, os interesses do declarante. Por isso, todas as questões acerca da formação ou do conteúdo do ato levam à pesquisa da real intenção do agente. E no âmbito dessa teoria que surge o problem a e a discussão dogmática em torno do que deve prevalecer, no caso dc divergência — a vontade ou a de claração —, independentem ente do declarado ser ou não o preten- Teoria do Negócio Jurídico 377 29 Mirabelli, p. 16. Caio Mário da Silva Pereira. Reformulação da ordem jurídica e outros temas, p. 221; José Abreu, p. XI; Maria H elena Diniz, p. 212; Serpa Lopes, p. 358. 30 José Carlos Moreira Alves. A Parte Geral do Projeto de Código Civil brasileiro, p. 101. 81 E a cham ada WillmHlmne (teoria da vontade). 378 Direito Civil — Introdução dido. Para a Willenstheorie, havendo divergência, deve prevalecer a vontade, podendo até, em casos extremos, anular-se o negócio ju r í dico, não valendo nem a vontade real nem a declarada. Pela especial im portância da vontade, procura-se defendê-la dos chamados vícios (erro, dolo, coação, simulação, reserva m ental), assim como também cresce em im portância a interpretação, quer do ato, quer das normas que o regulam, para o fim de se averiguai qual a intenção do agente, a partir, naturalm ente, do instrum ento de declaração. Preocupa-se ainda essa teoria com os motivos, razões psicológicas da prática do negócio, objeto dos chamados elementos acidentais (a condição, o term o e o encargo), com os quais o agente procura adequar os efeitos do ato a tais motivos. Para a teoria da declaração,32 a eficácia do ato depende exclusiva mente da declaração, independentem ente desta corresponder ou não à vontade do agente. A natureza e as características do negócio ju ríd ico residem fundam entalm ente no com portam ento objetivo do agente, como auto-regulam ento de seus próprios interesses. Para essa teoria não tem maior im portância a divergência entre a vontade e a declaração, já que esta é sempre o ponto de referência, salvo se desprovida de sentido ou conteúdo; os motivos são irrelevantes e o que se in terpreta não é o pretendido pelo agente mas o perceptível pela declaração. Com ela protege-se não mais o sujeito declarante, mas o destinatário e terceiros de boa-fé e, conseqüentem ente, a cir culação de direitos. Ambas as teorias são inaceitáveis em suas posições extremas, que seriam, quanto à eventual divergência entre a vontade e a declara ção, no caso da teoria subjetiva, a nulidade do negócio, e no caso da objetiva, a validade, desde que de boa-fé o destinatário. Para evitai os extremos, tem perando a oposição, surgiram concepções interm e diárias: a teoria da responsabilidade e a teoria da confiança. Para a pri meira, mais ligada à vontade, havendo divergência entre essa e a declaração, responde o declarante pelos danos que causar, se tiver culpa na divergência. “Quem emite declaração de vontade no co mércio ju ríd ico sujeita-se às conseqüências disso decorrentes.”s:l Para a teoria da confiança, m odalidade mais próxima da declaração, “esta prevalece sobre a efetiva vontade quando tenha suscitado legí tima expectativa no destinatário, conform e as circunstâncias objeti- S2 l;. a cham ada Erklàrungstheorie (teoria da declaração). K o princípio da auto-responsabilidade, C. Massimo Bianca. Diritto civile, II contralto, p. 21, Teoria do Negócio Jurídico 379 vas”. Verificada a boa-fé do destinatário, a declaração é válida con forme a confiança que nele tenha despertado. Não havendo boa-fé do destinatário, não prevalece a declaração e o negócio é anulado. Nesta teoria, portanto, transfere-se ao destinatário o elem ento cul pa, enquanto na teoria da responsabilidade fica essa a cargo do de- clarante.34 Qual a opção do direito brasileiro? O problem a do predom ínio da vontade ou da declaração como elem ento determ inante da eficácia do negóciojurídico manifesta-se principalm ente em matéria de interpretação e de erro. Q uanto à primeira, o art. 112 do Código Civil, estabelecendo a regra geral, dispõe que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem", em uma apa- rente opção pela teoria da vontade, o que faz compreensível a ten dência doutrinária por essa tese.35 Creio, porém , ser mais acertado dizer que o sistema do Código Civil de 2002, tom ando como ponto de partida a declaração de vontade (na qual a intenção se consubs tancia) e como critério de interpretação a boa-fé e os usos do lugar (art. 113), optou pela concepção objetiva e, conseqüentem ente, pelateoria da declaração. Já em matéria de erro, é dom inante a teoria subjetiva.36 5. A.v teorias preceptiva e normativa Dentro da teoria objetiva do negóciojurídico, pela qual a vonta de só tem relevância jurídica por meio da sua declaração, destacam- se as concepções preceptiva e normativa. Para a teoria preceptiva de Betti37, o negóciojurídico é meio dinâ mico de realização de interesses privados, dotado de tanto significa do que deve sair da concepção tradicional de mero fato psicológico para ser considerado im portante fato social, instrum ento da auto nomia privada. Seu conteúdo forma-se de regras que o direito con sidera e que se constituem em preceitos dirigidos aos participantes da 34 Cifuentes, p. 91. 35 Cf. O rlando Gomes e Antunes Varela. Direito econômico, p. 146. 3t> Antonio Junqueira de Azevedo, p. 128; Silvio Rodrigues. Dos vícios do consen timento, p. 51. 37 Teoria generale del. negozio giuridico, trad, de Fernando de Miranda, Goiinlna, Coimbra Editora. 1969. 380 Direito Civil — Introdução relação jurídica. O negócio juríd ico não é, então, simples manifes tação da vontade subjetiva, mas dispositivo com que o particular disciplina suas próprias relações. A teoria normativa vai mais longe e o considera ato criador de normas jurídicas, disciplinadoras das relações estabelecidas. Tal concepção baseia-se na existência de duas vontades distintas no negócio. Uma, subjetiva, psicológica, que se esgota no mom ento da prática do ato;38 outra, objetiva, exteriori zada pela declaração, que se configura exatamente quando termina o processo volitivo, acom panhando o negócio em sua existência concreta.39 A vontade que se faz exterior e se objetiva na norma negociai não se identifica com a outra, psicológica, que fez nascer o negócio. Essa vontade objetiva, aliás, é que é objeto da in terpreta ção. A concepção normativa não é nova. No direito rom ano, Ulpiano já reconhecia que “legem enim contractus dedit”40 e que “contractus enim legem ex conventione accipiunt..."41 Os canonistas ressaltavam o valor da palavra dada (pacta sunt servanda), e antes, entre os com entadores e os glosadores, Giovanni D’Andrea já dizia; “Quilibet in domo sua dicitur rex” e Andrea D’Isernia: “in re sua quilibet etiam privatus es! moderador et arbiter ut sibi placet, ”.42 No direito medieval, os aforismos da época: mi palabra es ley, Ein Man, ein Wort, convenances vainquent loys.4$ E como exemplo de direito positivo, os arts. 1.134, do Código Civil francês, 1.123, do italiano de 1865, 1.372, do atual, e o 1.091, do espanhol. A luz da evolução histórica e da existência de textos legais que consagram tal teoria, inexistem razões para que não se considere a autonom ia privada poder jurídico, e o negócio, instrum ento e ex pressão desse poder. 38 E m ilio B e tti. Interpretazione della legge e degli atli giuridici, p . 274. 39 Luigi Ferri. L ’autonomia privata, p. 56. 40 Digesto Ulpiano, 50, 17, 23. Legem enim contractus dedit (a lei resulta do con tra to ). 41 D. 1, 1, 16. Contractus enim legem ex conventione accipiunt (os contratos consi deram-se lei a partir da convenção). 42 Francesco Calasso, Autonomia (storia), p. 355. Quilibet in domo sua dicitur mv (qualquer um em sua casa é considerado rei). In re sua quilibet etiam privatus rst moderator H arbiter ut sibi placet (naquilo que é seu, qualquer um é m oderadoi e árbitro, como lhe aprouver). ‘IH Garcia Amigo, p. 213. “Um homem, uma palavra.” “As conveniências supe Teoria do Negócio Jurídico 381 O negócio juríd ico é, por isso, modo de expressão das regras jurídicas estabelecidas pela vontade dos particulares. E fonte formal de direito, ou, também, fato de produção ju ríd ica.44 A existência de relações jurídicas e dos respectivos direitos sub- jj jetivos pressupõe a existência de uma norm a jurídica. Aceitando como indiscutível que o negócio juríd ico é fonte de relações jurídi- cas, conclui-se que o negócio é fonte de direito objetivo.45 Neganclo- í se ao negócio jurídico a função criadora de direito objetivo, também ! se lhe nega a função de criar relações jurídicas. Não há incom patibilidade entre a vontade individual e a vonta- de legal. O negócio juríd ico pode ser ato regulado pelo direito e ; conter direito. As fontes criam norm as e são reguladas por normas, j;! A própria lei é ato juríd ico ,4(> regulada na sua criação e eficácia pela | Constituição. O negócio é um fato que contém em si direito. Kelsen afirma | i que o negócio juríd ico é um fato produtor de normas, na medida i' em que a o rdem jurídica confere a tal fato essa possibilidade. Afirma | também que é im portante peculiaridade do direito, a cle regular sua própria criação, o que se aplica ao negócio jurídico. No mesmo : sentido, Miguel Reale.4' O negócio juríd ico como fonte normativa leva à questão da hie- I rarquia das fontes. O sistem ajurídico não se com põe de normas de igual grau. Assim como o negócio juríd ico é fattispecie, também a lei Hi. !i 44 Tom aso Perassi. Introduzione alie• scienze giuridiche, p. 57; Miguel Reale. Lições I, Preliminares de Direito, p. 179. 45 Ferri, p. 19. !,; 46 Cf. Caio Mário da Silva Pereira. Projeto de Código de Obrigações, p. XII, na linha p de Duguit. Traité de droit constitucionnel I, p. 30 e segs. | 47 Hans Kelsen. Teoria pura do direito, p. 350; Miguel Reale, p. 179. Segundo !i Ferri, enquanto para o negóciojurídico se tem posto em evidência sua natureza de fattispecie, deixando de lado seu aspecto normativo, para a lei se tem caído 1 no excesso oposto, só se vendo a norma, esquecendo-se de que a norm ajuríd ica é também fattispecie de um a norm a superior. O problem a de validade é comum a todas as normas jurídicas, qualquer que seja sua fonte de produção. Em con- ji clusão, o negócio que não for conform e ã lei não será fonte normativa. Admi- j: tindo-se, com Kelsen, que a validade de um a norm a reside em outra, não há por í que se excluir o caráter de fonte normativa do negóciojuríd ico somente pelo !íato de ele se basear no direito objetivo. A objeção teria sentido se considerássemos o negócio fonte de direito autônom a e originária, o que não é o caso (autônoma, aqui, no sonticlo de totalm ente independente de qualquer outra ■Sí! norma"!. 382 Direito Civil — Introdução ordinária é fattispecie de um a norm a superior, de natureza constidi cional. Como diz Ferri, a exemplo de inúm eros juristas,48 não há motivo para que não se considere o negócio juríd ico fonte de direito, e a autonom ia privada, de que ele é expressão, verdadeiro poder nor mativo. Aceitar a autonom ia privada como poder de criar regras jurídi cas é, aliás, estabelecer mais um critério para distinguir os atos ju r í dicos, em senso estrito, dos negócios jurídicos. Estes, ao contrário daqueles, criam regras jurídicas. A principal característica do negócio juríd ico é, desse modo, a criação de normas jurídicas. Seu conteúdo é, portanto, normativo, o que os distingue dos demais atos jurídicos não-negociais. Para es tes, é a lei a fonte im ediata dos efeitos jurídicos, que, muitas vezes, o próprio agente desconhece, o que torna menos relevante o erro, a direção da vontade, a interpretação. Na maioria das vezes, os negócios jurídicos criam normas ju ríd i cas individuais e concretas. Eventualmente, normas gerais e abstni- tas, como nos estatutos das grandes associações, empresas, clubes etc. Essas normas, uma vez criado o negócio juríd ico com os requi sitos legais, adquirem existência própria, separando-se dos sujeitos e da sua vontade, tal como ocorre com as leis, os atos administrati vos, a sentença judicial. A vontade subjetiva esgota-se no m om ento em que o negócio se realiza, mas a normatividade começa quando o processo volitivo acaba. Os próprios sujeitos podem, inclusive, nadamais querer, e, todavia, a declaração de vontade perm anece eficaz e normativa. () testamento dem onstra que a força vinculante do negócio jurídico não está na vontade subjetiva da parte, mas na vontade objetivada nas normas jurídicas que dele nascem. 48 Na doutrina italiana, são adeptos da concepção normativa do negócio jm í dico, isto é, o negócio ju ríd ico como fonte normativa, entre outros: Ascarelli. Esposito, Tedeschi, Carnelutti, Pergolesi, Santi Romano, D’Eufemia, Salvatore Romano e Passerin D’Entrèves; na Alemanha, Büllow, Danz, Kelsen, Manigk, Nawiasky, Alexeiev. Têm opinião contrária: Betti, Trimarchi, Scognamiglio, Mcssinco, Stolli, Cariota-Ferrara. Cf. Ferri, p. 33. No Brasil, a concepção dom inante é a tradicional, que não vê o negócio ju ríd i co como fonte normativa. Cf. Walküre Lopes Ribeiro da Silva, A autonomia pii nada corno font* dr normas jurídicas trabalhistas, na 44, p. 64. [ 6. O problema da norma jurídica negociai Reconhecem-se como habituais características da norm a jurídi- § ca, ou da lei, a estatalidade, a bilateralidade, a generalidade ou uni- | versalidade, a abstração, a imperatividade e a coatividade.49 A estatalidade significa que as normas jurídicas são normas de igeornportam ento que em anam do Estado, que lhes garante o respec- J tivo cum prim ento. Seu objetivo é a segurança, a ordem e a justiça, e seus destinatários, aqueles a quem disser respeito. Pressupõe a giexistência do Estado como ente superior à com unidade e como cria- | dor da ordem jurídica. Essa concepção é unilateral, pois todos são iguais perante o di- gtreito, inclusive o Estado. A tese de supremacia ou relação de subor- : dinação entre sujeitos vinculados jurid icam ente não é aceita pela maioria doutrinária. Como diz Rudolf Stammler, não se pode esta- belecer uma relação de dependência do direito ao Estado. “Sendo | | a noção de direito o prius lógico do conceito de Estado, e não vice- §i versa, aquele, como m odalidade peculiar da vontade vinculatória, não pode basear-se neste.”50 Não se confunda soberania com a supe- 1 rioridade do direito objetivo. A soberania do Estado manifesta-se em face dos outros Estados e dos particulares, mas não em face das normas estabelecidas por eles. O fato de o Estado limitar ou revogar a norm a privada não é obra dele, como ente soberano, porém obra do ordenam ento juríd ico que ele criou. Há hierarquia de normas, não de sujeitos. Assim como o Estado se submete ao sistem ajurídico vigente, também os particulares o fazem. Isso não im pede a existên cia da autonom ia privada ao lado da autonom ia estatal. A bilateralidade significa que a norm a jurídica, ao aplicar-se, H f atribui poderes a um sujeito e deveres a outro. Transforma a relação social em relação jurídica. Bilateralidade significa abertura para dois lados, para dois sujeitos, unidos por uma relação juríd ica.51 A norm a juríd ica privada apresenta a mesma característica. As regras contidas em um contrato, espécie mais comum no gênero jurídico, contêm poderes e deveres, atribuídos aos respectivos cre dores e devedores. Teoria do Negócio Jurídico 383 49 Mário Aliara. Lc nozione fondamentali dei diritto civile, I, p. 20 e 21. no Rudolf Staminlvr. Tratado de filosofia dei derecho, p. 342. 51 Norberio llolibio. Norma puridica, p. 1.333. 384 Direito Civil — Introdução A generalidade ou universalidade consiste na indeterm inação dos sujeitos a que se aplica a lei.52 A abstração significa que a norm a se destina a casos típicos inde terminados. G eneralidade e abstração seriam a garantia de igualda de e de imparcialidade na aplicação ao direito.53 Na generalidade, as norm as são universais com respeito ao destinatário; na abstração, são universais com respeito à ação.54 Aliás, o reconhecim ento d;i generalidade como atributo da norm a juríd ica resulta da sua falsa identificação com a lei. Esta é geral; aquela, não, necessariamente. Além disso, a teoria do direito reconhece a existência de normas individuais, dirigidas a um a só pessoa, e de normas concretas, que regulam um a só ação. Por exemplo, sentenças, ordens ou autoriza ções judiciais ou administrativas (licenças, permissões, autorizações etc.) O direito objetivo constitui-se, portanto, também de normas individuais. Nada há assim a opor à validade ou vigência das normas que em anam do negócio jurídico. São proposições normativas com estrutura igual à das legais. Q uanto à imperatividade, tem foros de antigüidade a doutrina segundo a qual a norm a juríd ica é um imperativo, um com ando.” Contrariam ente a essa tese, há teorias que negam serem as normas jurídicas imperativos. Para essas, as proposições jurídicas são juízos hipotéticos (se é A, deve ser B), e juízos hipotéticos não são coman dos. Kelsen e seus seguidores defendem esta última concepção. A teoria da norm a como imperativo é, todavia, dom inante na Alema nha.56 No Brasil, encontra-se em Goffredo Telles Júnior uma refor mulação, ao ser definida a norm a juríd ica como “imperativo autori- zante” harm onizado com a ordenação ética vigente.57 Concepções intermediárias, como a de Bianca,58 consideram a imperatividade característica não-essencial da norm a jurídica, pois existem normas imperativas e normas não imperativas (dispositivas e supletivas). 52 Lex est commune praeceptum, Digesto, 1, 2, 3. 53 Aliara, p. 14. 54 N orberto Bobbio. Teoria delia norma giuridica, p. 231. 55 I.egis virtus haec est imperare, vetare, permittere, punire, D. 1, 7,1, 3. E a communis opinio. Sua formulação clássica é de Augusto Thon. Norma giuridica e diritto sog getivo, p. 187. 5(5 Karl Larenz. Metodologia da ciência do direito, p. 219. 57 Goffredo Telles [únior. Direito quântico, p. 262. Idem. Iniciação na ciência do direito, p. 103. 58 Bianca, p. 12. A discussão sobre a imperadvidade com o característica da nor ma jurídica ou não e o reconhecim ento de que, efetivamente, ela p |lã o é atributo essencial da proposição jurídica é indiferente à ques- |!"tão da norma negociai. Esta, em princípio, é sempre imperativa.™ ||; í A coatividade consiste na possibilidade de se obrigar o infrator IJjjtla proposição jurídica, usando-se da sanção. A coatividade (não Ijcoercibilidade) significa, portanto, a possibilidade de a norma ser Ijcumprida de m odo não espontâneo pelo devedor. Ora, tanto a nor- |j ma estatal quanto a norma negociai dispõem de sanção. As críticas feitas à idéia da norma jurídica negociai não têm, i' assim, maior fundamento. As características reconhecidas na norma | jurídica estatal, com o a bilateralidade, encontram-se também nos !í: preceitos emanados do negócio jurídico, que faz nascer 0 1 1 modifi- car as relações jurídicas, expressão dos poderes e deveres que tradu- | zem a bilateralidade. j| 7. A relação entre a vontade e seus objetivos Acerca da relação entre a vontade e seus objetivos, vale dizer, a | | yontade e seus efeitos, existem duas teorias: a dos efeitos jurídicos e a | dos efeitos práticos?0 Pela primeira, de Savigny, Windscheid, Zittelman, a vontade visa I produzir determinados efeitos jurídicos, sendo necessária perfeita ];| conjugação entre a vontade e os efeitos do negócio. Como conse- í qüência, a falta de vontade leva à inexistência ou à invalidade do negócio. Nessa concepção baseia-se uma das notas que diferenciam o negócio do ato jurídico em senso estrito. Neste, os efeitos são ex Hp lege, enquanto naqueles são ex voluntate. A teoria dos efeitos práticos, seguida pela maior parte da doutri- I fcn a italiana (Coviello, Fadda, De Ruggiero, Santoro-Passarelli, D ’A- H iyanzo, Branca etc.), combate a primeira concepção, alegando seus m defensores que as pessoas, ao praticar negócios jurídicos, fazem-no J íj i visando fins práticos, econôm icos, desconhecendo norm almente os efeitos jurídicos que poderão surgir. A vontade do declarante cliri- ge-se a resultados válidos para o direito. Teoria do Negocio Jurídico 385 Í;í 50 Bobbio. Norma giuridina, p. 1.333. p 60 São as conhecidas teorias do direito alemão. Rechsfolgentheorie (teoria cios I efeitos jurídicos) e a (Imndfolgmtheorie (teoria dos efeitos práticos). 386 Direito Civil — Introdução Teoria interm ediária, de Manuel Domingues de Andrade, <lc fende a tese de que a vontade dirige-se aos efeitos práticos que ,11 partes tenham querido, sob a proteção do direito, em bora sem iki ■■ ção exata do caráter ju ríd ico de tais efeitos. “Contenta-se com qnr' os declarantes, visando em prim eira linha certos resultados práti» o*», tenham querido para ela a sanção das leis, isto é, se tenham propo* to alcançá-los por via jurídica, sem todavia ser necessário que tc nham form ado idéia exata e com pleta desses efeitos.”61
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