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A Xilogravura de Mestre Noza_ um estudo preliminar

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Universidade de São Paulo 
Instituto de Estudos Brasileiros 
 
Disciplina: História, cultura popular e folhetos de cordel. 
Prof. Paulo Teixeira Iumatti 
 
 
 
Pedro Phelipe Pereira Alves 
 
 
 
 
A Xilogravura de Mestre Noza: um estudo preliminar 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São Paulo 
2018 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
1. Introdução 
 
Dentre inúmeras abordagens possíveis para se compreender significados e 
sentidos que revestem uma imagem ou um conjunto delas, e que revestem até mesmo 
seu criador, a historicidade é o primeiro patamar pelo qual a análise presente nesse texto 
vai ´prosseguir. De acordo com Pesavento (apud MELO, 2017, p. 1), podemos entender 
imagem enquanto produção e construção humana da representação do real, logo, os 
processos criativos que estão por trás da feitura da imagem envolvem diversas 
intencionalidades por parte do criador, bem como a concepção de símbolos, visto que a 
imagem não é mera cópia do real. Tais símbolos, que na verdade fazem parte de 
repertórios socioculturais de um determinado tempo evidenciam justamente a marca da 
historicidade e evidenciam o modo como as imagens podem dizer muito a respeito de 
determinado contexto histórico. 
É necessário ter em mente também o modo como essas imagens são apropriadas 
socialmente. Quando pensamos xilogravura popular nordestina, e este é o nosso intuito 
com este trabalho, estamos falando de imagens cuja potencialidade de comunicação é 
muito forte, sobretudo pelo modo como a xilogravura surge ilustrando as capas e 
contracapas dos folhetos de cordel, e que se popularizam intensamente no nordeste 
brasileiro, até desembocar nas obras de que dispomos, os álbuns de Mestre Noza. Para 
entender como a xilogravura é apropriada socialmente, precisamos levar em conta o fato 
de que o repertório sociocultural de cada indivíduo é crucial neste processo. A 
inteligibilidade da imagem é possível graças ao referencial humano que se constrói no 
tempo e no espaço e dota os indivíduos de distintas formas de sensibilidade, gosto 
estético e afinidades. 
Nestes termos, a centralidade temática do presente texto recai sobre a análise da 
obra de Mestre Noza, a saber, um conjunto de três álbuns de xilogravura concebidos por 
ele em meados da década de 1960: “A Vida de Lampião”, “A Via Sacra” e “Os 12 
Apóstolos”. O principal intuito deste trabalho consiste em tentar entender Mestre Noza 
em sua multiplicidade criativa, posto que temos diante de nós um multi criador, e buscar 
compreender não somente o que está por trás de suas criações mas também tentar 
entender os elementos responsáveis por sua popularização na década de publicação 
das obras citadas acima. 
O enfoque temático do trabalho que basicamente recai sobre xilogravura popular 
no Nordeste brasileiro é fruto do entendimento de que é necessário ter em mente a 
importante relação entre artista e seu contexto, sobretudo pelo fato de que é no interior 
do Ceará, principalmente em Juazeiro que Noza viveu e criou. Tendo em vista a relação 
de Noza com cenário nordestino, buscaremos partir daí para compreender a 
singularidade de suas obras. Quando falamos em cultura popular nordestina, é quase 
como que o nordeste tivesse uma vocação especial e singular para o “popular”, mas até 
que ponto basta enunciar essa vocação? Temos então como Norte, questionar o estatuto 
do popular que reveste essas obras. 
Tendo em vista a dificuldade em encontrar estudos mais aprofundados com 
enfoque para a temática “Mestre Noza”, o presente texto apresenta um caráter mais 
investigativo, inferencial e preliminar, no sentido de que a ideia não é propor uma grande 
tese, mas sim, desvelar alguns pontos importantes para o entendimento do caso. Ao se 
deparar com o estudo do objeto xilogravura inserido no grande rol de estudos da cultura 
popular, é muito frequente a ideia de que o “popular” é visto no meio intelectual em 
grande parte do século XX tal como entre os folcloristas, modernistas e regionalistas na 
forma de um universo da cultura cristalizada nas camadas mais baixas, e que portanto 
se remetem à rusticidade artesanal do “autêntico”, mas diversos questionamentos devem 
ser feitos dada a necessidade de se pensar a validade dessa chave teórica. A 
contemporaneidade exige novas interpretações a respeito do popular cujo grande 
propósito é conferi-lo um patamar de relevância que não o submeta ao erudito e o 
desafio de fazê-lo é nosso. 
Este trabalho tem como suporte metodológico três balizas principais. De forma 
combinada, buscamos realizar uma análise iconográfica dos três álbuns para entender 
seus possíveis significados e sentidos partindo da chave teórica da “pessoalização” 
desenvolvida por Rosilene Alves de Melo quando do estudo a respeito da cultura popular 
para os estudos de caso em Juazeiro. Também contamos com o referencial de estudos 
de cultura material a fim de traçar modos possíveis de agência entre obra e artista, e 
também para identificar as potencialidades iconológicas presentes nas gravuras. Para 
completar o corpo teórico metodológico, propomos a apreciação da imagem enquanto 
possibilidade de teste para a validade das hipóteses. 
 
 
2. Mestre Noza, a cultura popular e a xilogravura. 
 
Reservar uma parte do trabalho específica para o contexto de surgimento da 
xilogravura no nordeste brasileiro em relação a Mestre Noza é fruto do entendimento de 
que temos aqui o caso de um multi criador cuja própria história de vida se confunde com 
os rumos que tomou a xilogravura popular nordestina no Brasil e no mundo. Mestre 
Noza, que na verdade se chama Inocêncio Miguel da Costa Nick, cearense, em sua 
longa trajetória de quase 90 anos de vida, trabalhou as artes do entalhe e da gravação 
na madeira. De acordo com Jeová Franklin, a figura de Noza adquire relevância quando 
o mesmo decide tornar-se um “Imaginário”, é a partir de então que sua relação com a 
história da arte popular nordestina ganha destaque, em função de sua vasta produção 
em escultura e xilogravura (FRANKLIN, 2007). 
Para compreendermos o amplo significado de Mestre Noza para as artes 
populares do Nordeste vale a pena traçar grosso modo um quadro histórico com os 
antecedentes que marcam a popularização da xilogravura no nordeste brasileiro 
acompanhado de um debate historiográfico para corroborar a análise. Seu surgimento no 
Brasil remonta aos idos do período colonial. A técnica foi importada da Europa para ser 
empregada em diversos usos, desde estamparias em tecidos à impressão de rótulos 
para aguardentes. Porém, no caso do Nordeste, é no início do século XX que há uma 
primeira popularização da gravura, através dos jornais da época, como em ​O 
Mossoroense - o jornal paraibano mais antigo do interior nordestinodestacado por 
Franklin (Idem, 2007). Tem maior destaque ainda a Literatura de Cordel, que 
rapidamente se populariza entre grande parte das camadas de baixo letramento da 
época e que contará com a xilogravura para a ilustração de suas capas, tornando as 
gravuras mais conhecidas ainda. Vale lembrar também que não somente a xilogravura 
foi empregada na ilustração dos cordéis, na verdade há uma grande variedade: série de 
clichês, zincogravuras, litogravuras etc. 
De acordo com Everardo Ramos, tanto a história da xilogravura como a de seus 
criadores apresentam dois grandes momentos específicos: até meados do século XX os 
xilógrafos são enquadrados na categoria de artesãos, cuja produção é destinada a vários 
segmentos comerciais, e num segundo momento a partir de 1950 dá-se a construção do 
estatuto de artista que vai revestir esses nomes (RAMOS, 2009). O autor faz uso do 
referencial teórico proposto por Clarissa Diniz para entender o processo. Seguindo a 
ideia, a arte como um todo precisa passar pela autolegitimação do artista e pela 
legitimação externa presente em circuitos de arte e espaços expositivos e ou museais 
para que as obras adquiram relevância (DINIZ apud RAMOS, 2009). 
Isso ocorre por meio de um processo de construção e transcendência da 
xilogravura como obra de arte em si e Mestre Noza é um artista que, por sua 
longevidade e por sua ampla produção, vai vivenciar essa mudança de experiências, e 
vai sobretudo contribuir para essa transformação. Porém, estabelecer uma linha de 
desenvolvimento dual que vai de um ponto (artesanato) a outro (arte legitimada), não 
basta para entender a complexidade do processo. 
A autora Rosilene Alves de Melo, após realizar estudo de campo em Juazeiro 
procura afirmar que artesanato pode ser entendido enquanto uma prática múltipla de 
sentidos. Trata-se de uma prática que faz parte da própria história de Juazeiro, terra em 
que Noza viveu, sobretudo pela escassez e carestia de suprimentos básicos. Nesse 
contexto de pobreza que marcou a região por muito tempo, os ofício do couro, da 
madeira e do barro são marcas indeléveis da história de Juazeiro e dos múltiplos 
processos de adaptação criativa (MELO, 2010). Nestes termos, o enquadramento da 
obra de Mestre Noza da primeira metade do século XX em artesanato enquanto prática 
cotidiana não se restringe a uma dimensão meramente funcional utilitária, mas também 
assume dimensão de encanto pela sua própria potência e pela apropriação que é feita 
por parte da população, e os santeiros de Padre Cícero são a prova disso. 
 
 
 
 
3. Perscrutando Noza e sua obra. 
 
A trajetória de Mestre Noza como artista ganha seu primeiro ​impulso com a 
chegada de um artista italiano chamado Agostini no Ceará, contratado para esculpir as 
portas da Igreja da Matriz de Juazeiro do Norte. O entalhador estabelece um ateliê onde 
Mestre Noza e diversos artistas vão estudar as artes na madeira na década de 1920. 
Sua produção inicial como criador já denota uma forte ligação com a religiosidade, pois 
Noza começa produzindo santeiros, estátuas de santos em madeira muito desejadas 
pelos peregrinos, e principalmente os romeiros de Padre Cícero. Produziu também para 
encomendas de rótulos de bebidas e cigarros, porém é a xilogravura em formato de 
álbum que irá consagrá-lo já em vida como um grande artista (FRANKLIN, 2007). 
A nossa investigação conta com os 3 conjuntos mais representativos da obra de 
xilogravura em formato de álbum do Mestre Noza, popularizadas mundialmente em 
diversas exposições pelo mundo: “a Via Sacra” que representa o caminho dos 14 passos 
da condenação de Jesus até a sua crucificação perante Pôncio Pilatos, “a Vida de 
Lampião” representando a vida do cangaceiro até sua morte e “os Doze Apóstolos” 
representando os evangelistas de Jesus. 
As obras manifestam um artista múltiplo, sendo impossível enquadrá-lo em uma 
única tipologia como já delineamos. Diferentemente do cordel, que busca condensar toda 
a narrativa numa imagem de capa ou contra capa, os álbuns de Mestre Noza, tais como 
“a Via Sacra” ou “a Vida de Lampião”, apresentam um esforço maior de composição e 
trazem narrativas particulares inteiras, cujo sentido de cada uma se dá no conjunto das 
xilogravuras. O que temos aqui é o caso de obras que manifestam poéticas que 
envolvem processos criativos específicos. Para o nosso caso, a análise das imagens não 
deve restringir-se às fontes icônicas, é preciso colocá-las em diálogo com outras fontes, 
tais como a escrita que pode ser observada em quase todas as peças de xilogravura 
analisadas. 
A análise não será feita em blocos separados, tentaremos mesclar os elementos 
apontando especificidades e compartilhamentos. ​Começando então por duas delas: a 
Via Sacra, um conjunto de 15 gravuras, cuja primeira edição foi publicada em Paris 
(1965), pelo editor Robert Morel, com apresentação de Sérvulo Esmeraldo e A vida de 
Lampião (22 pranchas), todas editadas também pelo Museu de Arte da Universidade 
Federal do Ceará (MAUC) e reeditadas por Julio Pacello, edição de que dispomos para o 
estudo. Como já mencionado, trata-se de obras não somente imagéticas mas também 
narrativas, o que evidencia o processo múltiplo de criação. Mestre Noza elabora sua 
própria representação da condenação e crucificação de Jesus pelo imperador romano 
Pôncio Pilatos, e da trajetória de vida do cangaceiro Lampião. 
Apesar da rusticidade do traço e isso vale para os três álbuns, os elementos 
iconológicos são muito elucidativos de um artista que representa aquilo que de uma 
forma ou de outra está muito presente ecoando em seu cotidiano, e neste sentido, os 
feitos do famoso cangaceiro, e os momentos finais de vida de um dos ícones religiosos 
mais importantes para o Nordeste brasileiro são prova disso. Os elementos de 
identificação mencionados são vários e estão presentes em todas as obras. No caso da 
identificação de Jesus, o principal elemento distintivo é a cruz em que ele é representado 
carregando; através do chicote Noza demarca o imperador Pôncio Pilatos. No caso de 
Lampião, a espingarda e o chapéu é o que o distingue. 
Tais considerações são importantes na medida em que revelam o modo como o 
suporte para representação das personagens se dá em elementos materiais, posto que 
seria impossível identificar algum personagem sem eles. Mestre Noza reproduz os 
objetos de maneira que possa ecoar facilmente pelos possíveis apreciadores, afinal 
artista e público compartilham em parte de um mesmo universo de apropriação, e não 
podemos esquecer que um dos intuitos para com as obras de Noza era a venda. 
Num contexto sociocultural onde as fronteiras entre religião e vida mundana são 
difusas, pode-se dizer que tratam-se de esferas da vida que fazem parte de uma mesma 
prática existencial, e o modo característico de feitura de Nozaé símbolo disso. A 
extensa obra de caráter religioso de Noza atesta este ponto, tal como a série de quadros 
representando os evangelistas de Jesus e a própria “via sacra”. Ambas as obras 
encontram eco no cotidiano nordestino, os 12 apóstolos que em todos os cantos do 
Brasil provavelmente possuem devotos, e a “via sacra” que se trata de um ritual 
imortalizado em inúmeros eventos religiosos que se repetem periodicamente até os 
nossos dias, em que inúmeros peregrinos tentam reproduzir de diversas formas 
ritualizadas o caminho sofrido de Jesus até sua crucificação. 
Como foi bem assinalado por Jeová Franklin, em seu livro há uma passagem 
muito bonita em que ​Ariano Suassuna diria que ​para esses artistas de xilogravura, a 
realidade é apenas um ponto de partida a ser transfigurada pelo poético no entalhe da 
madeira, num processo que se manifesta justamente no estilo rústico desprovido de 
perspectiva, com figuras achatadas e contornos fortes (FRANKLIN, 2007), um estilo que 
permite ao xilógrafo mesclar elementos e realidades de maneira ilimitada, afinal é a 
imaginação que os move. Tendo em vista essas considerações, Mestre Noza não é um 
mero retratista, na verdade ele reveste suas obras de uma lógica própria, portanto 
constrói representações suas do real e do religioso em narrativas poéticas. Além de tudo 
Mestre Noza não deixa de ser um contador de história e um mediador, posto que 
organiza com uma linguagem própria a representação imagética desse real, tal como as 
descrições nas xilogravuras de Lampião. Utilizamos de forma complementar o termo 
pessoalização cunhado por Rosilene Alves de Melo para entender os processos criativos 
por trás dos artesão de Juazeiro, no qual Noza se insere: 
“Figuras que remetem às experiências individuais do 
escultor e, ao mesmo tempo , às experiências e o 
imaginário coletivos, recriados numa interpretação lúdica. 
[...] ocorre a pessoalização de processos culturais cujo 
movimento inclui a reprodução em série, manual, e outra 
instância, na qual os objetos se tornam narrativa; 
fabulações nas quais a imaginação, o imaginário e a 
individuação das vivências coletivas permitiu aos artistas 
ascender a outras experiências: as peças não são 
pedaços fragmentados e inertes da natureza: são corpos 
que possuem agência porque não mais reproduzem o 
mundo, mas “falam” deste mundo.” (MELO, 2010, p.8) 
 
Na obra dedicada a Lampião está presente não somente uma sucessão de fatos 
que envolvem a trajetória do cangaceiro, na verdade Noza compõe uma narrativa na 
qual estão presentes as diversas facetas de Lampião. É possível que a enumeração que 
Noza faz nas xilogravuras pode ser decorrente de um projeto que vai além da mera 
sequencialização, pode representar Lampião não como uma personagem acabada, mas 
sim em construção, por isso o ritmo ditado pelos números em cada chapa. Essa trajetória 
pode ser identificada em cenários e feitos. Primeiramente num primeiro plano podemos 
ver a composição do cenário, que pode ser através da descrição do lugar (tais como 
“lampiao em casa”, “lampiao na matinha”, lampiao na brigada”) ou então paisagens mais 
elaboradas que tomam grande parte da xilogravura em si (tais como “lampiao na s. 
grande”, “lampiao na caieira”, “lampiao na favela”, ”lampiao no r do sangue”). Apostamos 
na ideia de que o Nordeste assume aqui não somente a função de elemento crucial para 
a inteligibilidade da obra, porque é o cenário nordestino que constrói a figura mítica de 
Lampião. É da relação do cangaceiro com o sertão que Noza elabora essa construção 
narrativa e imagética, por isso que a descrição “lampiao” é acompanhada da descrição 
de lugares específicos, facilmente reconhecidos por qualquer um que conheça 
minimamente o interior do nordeste brasileiro. 
Em segundo lugar estão aquilo que podemos chamar de feitos. Para entendê-los 
vale a pena retomar uma questão: a representação de objetos materiais que permitem a 
identificação das personagens acompanhadas das fontes escritas presentes nas xilos. 
Além de identificar as personagens, acabam dando-lhe uma certa substância. Como já 
foi dito, a caracterização de Lampião com chapéu e espingarda é importante pois é aí 
que jaz a identidade de Virgulino enquanto cangaceiro, porque como já foi dito, são 
representadas várias faces, e isso fica evidente nas xilos “lampiao duente” em que é 
representado totalmente descaracterizado, e em “o pai lampiao morto” em que é 
representado sem a espingarda. Apesar das inúmeras construções anti heróicas que 
fazem de Lampião, Noza compõe uma narrativa, que, pelo modo com que representa as 
reviravoltas do bandido (doença, o romance com “maria bunita”, fugas, assassinatos, 
devoção a Padre Cícero, morte), acaba sendo criada uma ambiguidade na figura de 
Lampião, em que a personagem pode oscilar tanto entre planos terrenos de 
representação como em planos transcendentais, e neste ponto “lampiao morto”, “lampiao 
degolado” e por fim “lampiao inferno” selam essa ambivalência. Se por uma lado, a ida 
de Lampião ao inferno pode ser entendida como a sua condenação, a representação de 
Lampião totalmente caracterizado e de certa forma em pé de igualdade com o próprio 
Diabo, marca a própria imortalidade da personagem. 
Quando Noza representa Lampião no inferno totalmente caracterizado, fica 
evidente para nós que p que está em questão aqui é a representação de Lampião 
enquanto ideia e que por isso é capaz de transpor diferentes níveis de realidade. Essa 
imbricação de fronteiras do real na obra de Mestre Noza pode ser entendida como 
reflexo do próprio modo como o imaginário de Noza desvirtua a realidade concreta. A 
obra dedicada a Lampião, que tem a imaginação como força motriz, e que sem dúvida 
expressa a relevância das personagens e do cenário do interior nordestino para Mestre 
Noza é outro exemplo muito singular que nos permite entender a construção daquilo que 
se pode chamar de um nordeste fantástico ​(BRENNAND, 1974)​. Mas o estatuto desse 
fantástico não poderá ser avançado neste trabalho, fica a expectativa de realizá-lo num 
futuro próximo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
4. Considerações Finais. 
 
O referencial teórico proposto por Rosilene intitulado pessoalização, aplicado às 
obras de mestre Noza, pode revelar abordagens mais aprofundadas e frutíferas. Quando 
falamos em agência, precisamos ter em mente que as obras de Mestre Noza 
principalmente as esculturas que não foram estudadas aqui podem ser apropriadas de 
diversas formas, englobando dimensões tanto artísticas quanto utilitárias e devocionais. 
Por se tratarem de álbuns de xilogravura encomendados por Robert Morel e Sérvulo 
Esmeraldo para serem expostos no exterior, as obras ganham contornos específicos. 
Isso não quer dizer que a finalidade da obra reduza o nível de relação obra/autor, porque 
ambos estãoinseridos num sistema de fluxos de significação. O próprio modo como 
compreendemos a obra está ligado a uma força dialética de significados que recai sobre 
a relação autor e obra, quando nos deparamos, afinal um significa o outro 
E são diversos os níveis de recepção por parte de quem aprecia a obra. É 
possível dizer que esse movimento de significado entre obra e artista está por trás da 
apreciação do Mestre Noza nos circuitos de arte da década de 1960-70. É possível que 
tenham reconhecido em Noza uma ligação com a sua obra que vai além do ofício e do 
acabamento, é uma obra que mesmo depois de acabada, carrega algo do mestre, 
porque as obras são revestidas por uma lógica de sentidos que é unicamente dele. E 
que por ter um suporte material da umburana carrega também parte do processo criativo 
do autor. Ou seja, acreditamos que não basta dizer que o sucesso de Noza é fruto da 
idealização de um autêntico artesanal como proposto por Everardo Ramos. 
Ramos concentrou seu estudo focado exclusivamente em um seleto grupo de 
intelectuais da década de 1960 para entender a popularização de Mestre Noza e suas 
obras, e não deu conta de analisar as posteriores obras que igualmente obtiveram 
sucesso. Tome-se por exemplo o trabalho de Francisco Brennand. O autor talvez perca 
um pouco o fio porque afirma sem contrastar com processos de valorização do popular 
antes e nem depois, não há uma variação histórica que possa aprofundar tal ideia de 
maneira conclusiva. 
Acreditamos que no contexto atual de efervescência e proliferação de vozes e 
espaços construindo conhecimento e cultura popular com artistas em todo o Brasil, tais 
como os centros culturais que pululam por todo o país e que conquistam através da 
resistência cada vez mais espaço de atuação, estudos de campo realizados em conjunto 
com esses artistas revelam-se como alternativas muito frutíferas para investigação do 
“popular” hoje. Fica aqui a expectativa que os estudos nesse universo se multipliquem. 
Novos e mais sistemáticos estudos precisam ser feitos para encontrar chaves teóricas 
úteis para o estudo do caso, mas por hora, essa é a contribuição que temos. 
 
Referências Bibliográficas 
 
BRENNAND, Francisco. ​“Doze gravadores populares do Nordeste.” Recife: Guariba, 
1974 
 
FRANKLIN, Jeová.​ “Xilogravura popular na literatura de cordel.”​ Brasília: LGE, 2007. 
 
MELO, Rosilene Alves de. ​“Artes de Juazeiro: imagens e criação no centro de 
cultura popular Mestre Noza.” In: X encontro nacional de história oral. Testemunhos, 
história e política. Recife: 2010. 
 
MELO, Rosilene Alves de. ​“Memória visual do cordel no Brasil: uma análise 
transdisciplinar”. ​In: Éscritures d’Amérique Latine: n.10, jun 2017, pp. 1-11. 
 
RAMOS, Everardo. ​“Do mercado ao museu. A legitimação artística da gravura 
popular”. ​Visualidades - revista do programa e mestrado em cultura visual. V. 8., n.1, 
2010. 
 
 
 
Fontes​: 
 
Os doze apóstolos: gravado por Mestre Noza, Juazeiro, CE, Brasil, 1962. Fortaleza: 
Imprensa Universitária da UFCE, 1962. 
 
Via Sacra: xilogravuras populares; texto: Maria Eugenia Franco. São Paulo: Julio. 
Pacello, 1967. 
 
 
Vida de Lampião por Mestre Noza. São Paulo: Julio Pacello (sem data). 
 
 
 
 
 
 
Anexo 1. 
 
Via Sacra: xilogravuras populares; texto: Maria Eugenia Franco. São Paulo: Julio. 
Pacello, 1967. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Anexo 2. 
 
Vida de Lampião por Mestre Noza. São Paulo: Julio Pacello (sem data).