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Fundamentos Filosóficos do Serviço Social CAPÍTULO 1 - EM QUE SE CONSTITUI O PENSAMENTO FILOSÓFICO? Introdução Dentre tantas áreas, tais como a história, a sociologia, o direito, a economia, a política, a psicologia e a educação, a filosofia tem um destaque imprescindível para o Serviço Social. Neste capítulo, você compreenderá em que se constitui o pensamento filosófico, o conceito de filosofia e a atitude filosófica como resultante do pensar crítico, bem como relacionará essas abordagens com o Serviço Social. Serão abordados os conceitos de diferentes tipos e as formas de conhecimento, como: pensar, pensamento, pensante e pensador, além do conceito de consciência e suas diferentes formas de apropriação. Em ato contínuo, você terá a oportunidade de refletir sobre as seguintes questões: em que se constitui conhecimento e consciência? Quais são os tipos e as formas de consciência? Para responder a essas indagações e buscar a apropriação de novos conhecimentos, você terá o auxílio de alguns autores da área da filosofia. O que entendemos por alteridade? Qual a importância da figura do Eu e do Outro, uma vez que se reconhece o direito à diferença? E o que a dignidade humana tem a ver com tudo isso? Todas essas respostas, com certeza, serão descobertas ao decorrer do estudo analítico e reflexivo deste capítulo. Querer e saber pensar e saber fazer são requisitos éticos necessários para a profissão que está inserida em um contexto social contraditório, bem como observar, conhecer, compreender e respeitar o lugar do Outro nas relações interpessoais, profissionais e sociais. Nesse sentido, perceberemos a importância da filosofia como uma forma de se conhecer, uma das atividades imprescindíveis para o assistente social. Desejamos um excelente estudo. 1.1 Introdução ao pensamento filosófico: conceito de filosofia O processo de compreensão e apropriação de novos conhecimentos sempre perpassa pelo entendimento e pela apropriação do sentido e do significado de cada vocábulo. Assim, para construir uma noção acerca do que seja o pensamento filosófico, bem como os diferentes tipos de conhecimento, é necessário observarmos em que se constituem algumas expressões, determinados vocábulos ou certas palavras. Nesse sentido, para compreendermos o processo de formação do pensamento filosófico, precisamos, antes de tudo, analisar o significado da palavra linguagem, que se tornou foco de atenção no pensamento social do século XX (MARCONDES, 2005). Ela possibilita a comunicação, a expressão e a interação entre as pessoas, é usada na comunicação para representar a realidade, sendo que é por seu intermédio que somos capazes de transpor nossos pensamentos em palavras, gestos e símbolos para nos comunicar com os outros na sociedade. “Em um sentido genérico, pode-se definir a linguagem como um sistema de signos convencionais que pretende representar a realidade e que é usado na comunicação humana” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 164, grifos nossos). Figura 1 - A linguagem, enquanto um sistema e processo de comunicação, faz parte da cultura humana. Se não fosse ela, como exporíamos os pensamentos e as ideias? Fonte: Jane0606, Shutterstock, 2018. Existe uma relação intrínseca entre pensamento e linguagem, do mesmo modo que há entre filosofia e linguagem: enquanto atividade da mente, o pensamento cria, reflete, memoriza, decora, imita, enfim, toma decisões para o agir. Nesse caso, cabe lembrarmos a contribuição de Marcondes (2005): é preciso analisar a construção do sentido e do significado daquilo que o sujeito pensa a partir do uso e do contexto da linguagem enquanto experiência humana. Japiassú; Marcondes (2001, p. 281) afirmam que o pensamento é a “Atividade da mente através da qual esta tematiza objetos ou toma decisões sobre a realização de uma ação. Atividade intelectual, raciocínio. Consciência”. Assim, o pensamento caracteriza-se como ato reflexivo que precede a realização de uma ação. Este mesmo raciocínio nos leva a observar e analisar o que significa ser um ser pensante e um pensador. Pensante é aquele ser que faz uso de sua razão, e pensador é aquele que, ao usar a razão, reflete, por meio de observações críticas, sobre as diferentes situações que se apresentam e exigem soluções. Somos todos pensadores, uma vez que o homem é um ser pensante, pois faz uso de sua razão. Contudo, nem todos exercem a função de pensador, uma vez que esta se distingue de outras funções. O filósofo, no entanto, pensa e age a partir dos conceitos de ontologia (compreensão do que existe em todos os entes) e da ética (reflexão crítica relativa a todas as formas de comportamento e vida em sociedade), segundo Boff (2011). Figura 2 - A ética significa desenvolver a prática da reflexão sobre si mesmo, se autoanalisar, voltar-se para dentro de si, pensar bem para agir bem. Fonte: AJP, Shutterstock, 2018. Ainda a respeito da ética, o filósofo Morin (2007, p. 93) enriquece nosso pensar quando enfatiza que “O problema ético central, para cada indivíduo, é o de sua barbárie interior. [...] A auto-ética é, antes de tudo, uma ética de si para si que desemboca naturalmente numa ética para o outro”. Isso induz compreender-se, corrigir- se, analisar-se e comprometer-se, ou seja, um princípio de pensamento e uma necessidade de ética em sua totalidade. Desse modo, veja que atribuímos ao filósofo a capacidade de reflexão crítica e, evidentemente, propositiva; já ao intelectual damos a capacidade de perceber e sentir o sentido. Note que “sentir o sentido” não se configura como redundante, pois nem todos sentem da mesma forma aquilo que a inteligência torna capaz de intuir/sentir. Agora, o que entendemos por filosofia? Como ela surgiu? Qual o seu conceito? O que é necessário para sermos profissionais pensadores com reflexão crítica e propositiva? Cabe esclarecer que, na prática profissional, se o assistente social não tiver uma abordagem crítica, vamos concluir que “[...] enxerga-se a pobreza, mas não o movimento histórico-econômico que a engendra; conhece-se o adolescente infrator, mas não a dinâmica que o leva a se constituir enquanto tal etc.” (LACERDA, 2014, p. 23). É nessa perspectiva que precisamos evoluir e perceber a importância da filosofia para a profissão. Realizamos muitas perguntas, questões simples, porém as respostas são complexas, visto a dimensão da filosofia desde a sua origem. Vamos lá! As primeiras tentativas de reflexão, estudo, questionamento e análise a respeito de todas as coisas surgiram a partir da filosofia grega pré-socrática (durante os séculos VII a V a.C.) com os filósofos físicos e matemáticos Tales de Mileto, Pitágoras, Parmênides, Heráclito, entre outros (COTRIM; FERNANDES, 2013). Já os filósofos gregos pós-socráticos eram considerados amantes do saber, que tinham como compromisso instigar a reflexão, a discussão e a análise, além de propor meios para alcançar a felicidade em uma sociedade ideal. Do período da Antiguidade, vale ressaltarmos três deles que merecem nossa atenção, conforme Cotrim; Fernandes (2013): Sócrates (470 - 399 a.C.): de Atenas, para ele o saber fundamental é o saber a respeito de si mesmo. Assim, a maior virtude que o homem pode ter é o conhecimento (é necessário conhecer para agir retamente) e o maior vício é a ignorância. O método socrático para adquirir o autêntico conhecimento se realiza por meio do Diálogo (arte de conversar), a Ironia (a arte de perguntar) e a Maiêutica (a arte de fazer nascer novas ideias e novos conceitos). Foi condenado à morte por sua racionalidade, criticidade e por defender suas ideias, bem como por não acreditar na mitologia grega, e sim em sua intuição humana. Platão (427 - 347 a.C.): foi o maior discípulo de Sócrates e fundou a Academiade Atenas, primeira instituição de pesquisa e ensino, não apenas de investigações científicas e filosóficas, mas também de preparação para atuação política com base na verdade e na justiça. Descreveu sobre o Estado ideal governado por autênticos filósofos. Para ele, a ética desemboca necessariamente na política e é na comunidade que o homem se realiza. Em sua teoria das ideias, explica o processo do conhecimento, que se dá com a passagem do mundo sensível das sombras e aparências ao mundo das ideias e essências. Aristóteles (384 - 322 a.C.): maior discípulo de Platão, caracterizou que o fim para qual tende o homem ou bem absoluto é a felicidade, que não está na riqueza nem no prazer, mas sim em uma vida teórica contemplativa como atividade humana guiada pelo que há de mais elevado no ser humano: a razão. Sua ética, como a de Platão, está unida à filosofia política. Assim, o homem é, por natureza, um animal político, ou seja, social. Analisando a história da humanidade, além da filosofia, a religião influenciou (e muito) o homem, no sentido de ser, estar, pensar, sentir e agir em sociedade. Vemos que no período medieval, por exemplo, a filosofia ficou submetida à teologia, ou seja, o pensamento ficou sob o domínio da Igreja Católica (COTRIM, 1993). No livro “50 grandes filósofos: da Antiga Grécia ao século XX” (COLLINSON, 2006), é possível ter uma visão geral de 50 filósofos que marcaram a história da humanidade. Outra sugestão para aprofundar e conhecer outros filósofos é “O livro da filosofia” (KIM, 2011), que descreve mais de 90 pensadores. Vale a pena conferir. Imagine, então, a quantidade de filósofos desde a Grécia antiga até a atualidade, quantos modos diferentes de pensamentos, ideias, linguagens e conceitos, não é mesmo? Quantos pensamentos filosóficos! Quantos conceitos de filosofia! Qual é o conceito mais apropriado/verdadeiro? Quem, de fato, consegue responder a essas questões de forma precisa, objetiva e simples? Sabemos que filosofia não é precisa: ela é subjetiva e complexa, assim como é a sociedade e o próprio ser humano. E é exatamente isso que a faz existir enquanto atividade na busca incessante de respostas, que poderão ser sanadas com outras perguntas e o falar com outras linguagens e ações no mundo. Para uma compreensão maior do pensamento filosófico, veremos, na sequência, em que se constitui a filosofia e com o que ela se ocupa. 1.1.1 Pensamento filosófico e a filosofia Normalmente, quando ouvimos falar em filosofia ou pensamento filosófico, assim como nas diferentes formas e diversos tipos de conhecimento, devemos nos colocar em uma posição de quem está pensando, refletindo e, por consequência, procurando entendimento acerca de algo. O pensador, neste particular, representa, de forma objetiva, o lugar ou a posição em que nos colocamos e sentimos, pois, estando em sentido de reflexão, estamos desejosos de saber. É assim que buscaremos compreensão acerca do que se constitui e com o que a filosofia se ocupa. Figura 3 - O filósofo, por sua particular relação com a reflexão e a crítica, caracteriza-se como um pensador, um ser que usa o tempo para pensar criticamente. Fonte: Anastasios71, Shutterstock, 2018. O processo de compreensão do pensamento filosófico exige que, em um primeiro momento, você faça uma busca para saber em que se constitui a filosofia. Contudo, tenha em mente que conceituá-la não é uma tarefa fácil, uma vez que o conceito, durante todos os períodos históricos, sofreu mudanças de concepção e lhe foi acrescentado muitas especificidades. É importante dizer, todavia, que antes de ser um conceito propriamente dito, filosofia é uma palavra e, como tal, a partir do seu significado, nos dá elementos para construir e produzir conceitos. Sendo assim, observe que filosofia, de origem grega, é composta por outras duas palavras (CHAUÍ, 2012): philo (que deriva de philia: amizade, amor fraterno, respeito) e sophia (que deriva de sophos: sábio, sabedoria). Figura 4 - A filosofia nasce com os gregos, visto que naquela época o importante era saber pensar, refletir, criar, discutir e aprender, pois o conhecimento era o bem supremo. Fonte: Lefteris Papaulakis, Shutterstock, 2018. Não é tão simples dar uma definição universal “[...] de filosofia, já que esta varia não só quanto a cada filósofo ou corrente filosófica, mas também em relação a cada período histórico. Atribui-se a Pitágoras a distinção entre a sophia, o saber, e a philosophia, que seria a 'amizade ao saber, a busca do saber'" (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 77). Assim, fica evidente que, quando falamos em filosofia, estamos falando em amor e amizade pela sabedoria, pelo real e autêntico saber que provém de uma atitude crítico-reflexiva e questionadora. A atitude crítico-reflexiva, nesse sentido, alcança uma compreensão profunda acerca dos fundamentos que viabilizam a vida em sociedade, do ponto de vista da moral e da ética, considerando evidentemente todas as formas de pensar em si e na sociedade, conceber o indivíduo dentro dela e propor transformações, que podem ser tanto intelectuais quanto sociais, individuais e/ou coletivas. Vejamos, agora, reflexões de alguns pensadores renomados que deixaram um legado histórico filosófico de amor e amizade pela sabedoria, conforme Kim (2011). Platão: “Questionar é o atributo de um filósofo, porque não há outro início para a filosofia além desse”. Voltaire: “A superstição deixa o mundo em chamas, a filosofia as extingue”. Shakespeare: “Não há nada bom ou ruim, mas pensar torna-o assim”. Descartes: “Mas o que é isso que sou? Sou uma coisa que pensa”. Marx: “As ideias dominantes de cada época sempre foram as ideias de sua classe dominante”. Porém, a filosofia não é atributo somente de intelectuais importantes ou pessoas que foram destaque no mundo. Segundo Kim (2011, p. 12), “A filosofia não é apenas atividade de pensadores brilhantes porém excêntricos, como popularmente se pensa. Filosofia é o que todos fazemos quando estamos livres de nossas atividades cotidianas e temos uma chance de nos perguntar o que é a vida e o universo”. Assim, percebemos que qualquer pessoa pode ser filósofa, basta ter coragem e capacidade para pensar em uma modalidade crítico-reflexiva. Muitos pensadores, com suas teorias, contribuíram e ainda contribuem de forma significativa para o desenvolvimento da teoria do conhecimento e compreensão da realidade social. Aqui citamos poucos deles, porém agora priorizamos um brasileiro renomado: Leonardo Boff, que já mencionamos nos conceitos de ética e ontologia. O teólogo, professor e escritor brasileiro Leonardo Boff faz da filosofia sua arte de viver. Representante da teologia da libertação, é conhecido por sua defesa dos pobres, oprimidos e excluídos. É referência nacional e internacional na reflexão de temas como ética, filosofia, filosofia da religião, ecologia e espiritualidade (BOFF, 2011). Sabemos que aquele que faz da filosofia um princípio ético como Leonardo Boff se torna um pensador crítico, um profissional propositivo, pois sente a necessidade de querer saber cada vez mais para poder fazer cada mais, tanto teoricamente quanto na prática. Compreendida desse modo, a filosofia visa contribuir e dialogar com os diferentes campos do saber, a fim de suscitar uma análise crítica da totalidade e da complexidade da realidade social e dos seus movimentos históricos. A respeito da complexidade social e seus movimentos históricos, citaremos a seguir os períodos da história em que alguns dos filósofos se debruçaram intelectualmente sobre o mundo com intuito de compreender, analisar, discutir e propor argumentações e possibilidades de transformações, com base em Kim (2011). Vejamos:Quadro 1 - As diferentes concepções e ideias de alguns pensadores filósofos importantes e os períodos históricos correspondentes aos seus tempos. Fonte: Elaborado pela autora, 2018, baseado em KIM, 2011. Uma análise crítica requer reflexão, questionamentos e proposições em relação à totalidade histórica, que diz respeito aos grandes temas que inquietam a humanidade, bem como ao processo de produção e busca do conhecimento. Constitui-se em uma ação de tomada de consciência de si, seu lugar e do lugar do outro no mundo. Pensadores críticos trabalham na perspectiva de tentar, de alguma forma, contribuir para melhorar e transformar o mundo no qual estão inseridos, tanto em função de si quanto dos outros. 1.2 Os tipos e as formas de conhecimento: empírico, filosófico, religioso e científico É importante salientar que o processo de compreensão e de produção do conhecimento foi, por muitos séculos, alvo de atenção dos debates filosóficos, tanto é que se criou uma disciplina a respeito: “A teoria do conhecimento é uma disciplina filosófica que visa estudar os problemas levantados pela relação entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 40, grifos nossos). A teoria do conhecimento também é caracterizada como epistemologia, ou seja, “O termo grego episteme, que significa ciência, por oposição a doxa (opinião) e a techné (arte, habilidade), [...]. epistemologia (do gr. episteme: ciência, e logos: teoria) Disciplina que toma as ciências como objeto de investigação [...]”(JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 63, grifos nossos). Conhecimento significa procurar saber, conhecer, ou seja, “1. Função ou ato da vida psíquica que tem por efeito tornar um objeto presente aos sentidos ou à inteligência. 2. Apropriação intelectual de determinado campo empírico ou ideal de dados, tendo em vista dominá-los e utilizá-los” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 40). Nesse sentido, conhecimento é, ainda, a capacidade de conscientemente produzir e reproduzir novos saberes, novas teorias e novos valores. Figura 5 - Conhecimento é aquilo que temos a partir da nossa visão, que às vezes pode ser obscura e, assim, é necessário “clarear” para poder ver o que não víamos. Fonte: Murat Baysan, Shutterstock, 2018. Pensar criticamente é necessário para ver o que não enxergamos, pois às vezes as representações são falsas. O pensamento moderno concebe o conhecimento como representação: “Isso quer dizer que conhecer seria representar o que é exterior à mente. Seria obter uma ‘imagem’ ou ‘reprodução’ do mundo externo, projetada na consciência” (COTRIM; FERNANDES, 2010, p. 157). Em resumo, podemos dizer que conhecimento é o ato ou a capacidade de saber, para conhecer e sentir o mundo, sendo que a partir dele teremos, precisamente, a produção e a transmissão de novos saberes pela humanidade por meio da linguagem. Os indivíduos, ao longo de suas vivências, acumulam em sua consciência uma diversidade de informações: lembranças, sensações e experiências incontáveis, fruto tanto de sua vivência pessoal quanto das experiências adquiridas no contato e no convívio com o grupo e a sociedade. Isso possibilita acumular uma diversidade de saberes, dos mais variados tipos, sendo os principais caracterizados como: empírico, científico, religioso e filosófico, os quais analisaremos a seguir. Conhecimento empírico: caracteriza-se pela aquisição a partir das relações interpessoais e sociais transmitidas de geração em geração, por meio da observação, das vivências e das experiências dos indivíduos. É um conhecimento que, por não ser científico, não precisa ser comprovado, sendo aquele saber que tem como referência a experiência, ou seja, a partir da prática experimental. Aqui, não há aplicação de um método nem reflexão ou sistematização: ele é superficial, acrítico e subjetivo. Exemplos de crenças e mitos do senso comum ou da tradição popular: o uso frequente de roupas escuras atrai energias negativas, o número 13 dá azar, ferradura ou pé de coelho atrai a sorte, entre outros. Conhecimento científico: suas características, basicamente, são opostas àquelas apresentadas pelo conhecimento empírico ou de senso comum, pois sua fundamentação e produção exigem comprovação científica. Por sua natureza, ele faz parte dos processos analíticos e lógicos que envolvem a produção de novos conhecimentos e, precisamente por isso, seus resultados devem ser comprovados. É racional, objetivo, não intuitivo, sistemático, crítico, relativo, experimental, verificável, observável, dentre outras características. Exemplos: comprovação do uso de medicamentos testados, da Lei da Gravidade, avanços tecnológicos, entre outros diversos. Conhecimento religioso: difere-se tanto do conhecimento empírico quanto do conhecimento científico, uma vez que sua crença, para além de não exigir qualquer tipo de comprovação, está fundamentada na fé religiosa. Este tipo de conhecimento procura explicar os mistérios da existência humana e se caracteriza pela concepção que a fé explica os mistérios que envolvem a vida e a morte. É uma forma de conhecer o mundo e de se relacionar com a realidade por intermédio da crença, e não por meio da razão. Por isso, ele é inspiracional, e não verificável. Exemplos: crença da existência de Deus, ressurreição, salvação eterna em outro mundo, fé no sobrenatural, cura divina, entre outros. Conhecimento filosófico: fundamenta-se na reflexão e na busca por explicações relativas a questões subjetivas e imateriais da existência humana e sua complexidade, não exige comprovações, mas requer rigor filosófico propriamente dito de análise crítica para responder às grandes angústias humanas e produzir novos conhecimentos e conceitos. Não tem como premissa estabelecer uma verdade absoluta, mas sim de propor questionamentos e, continuamente, reflexões sobre todas coisas de modo racional, visto que seus conceitos são formados e desenvolvidos a partir da reflexão sobre a realidade ou o contexto social. Este tipo de conhecimento é valorativo (pois seu ponto de partida consiste em formulações de hipóteses e suposições que se baseiam na experiência humana) e não emerge, portanto, da experimentação. Exemplos: análises e discussões a respeito de termos e conceitos, tais como justiça, democracia, política, ideologia, alienação, ética, moral, estética, lógica, direito e linguagem. Temos, também, outro modo de conhecer. Todavia é preciso considerar que o sujeito apreende o conhecimento real também pela intuição. Mas o que é a intuição? Sabe quando pressentimos algo ou, diante da necessidade de pensar e sugerir alguma coisa, falamos: "acendeu uma luz”? Pois é, isso pode ser um insight ou uma intuição. Aranha; Martins (2002), dizem que intuição é uma forma de conhecimento imediato, pois acontece sem intermediário por ser um pensamento presente no espírito – ela é uma visão súbita; assim, se faz presente no ponto de partida do conhecimento, possibilitando o afloramento do desejo da invenção e da descoberta. Como podemos ver, os tipos de conhecimento possuem características específicas e a diferença entre eles está na especificidade do modo como concebem e explicam o mundo. É interessante verificar como cada um vai dar respostas ou interpretações distintas sobre o que julga serem verdadeiras a respeito de determinado tema, dada situação ou condição social. Por exemplo, se analisarmos um tema relacionado ao Serviço Social, tal como a pobreza humana, teremos várias respostas dependendo do tipo do conhecimento que fundamenta a consciência da pessoa. O conhecimento empírico vai fundamentar de maneira vulgar e pessoal: com juízo de valor, afirmará que o cidadão precisa deixar de ser “vagabundo, malandro”; o científico vai fundamentar demodo crítico e racional: frente às causas dessa situação, bem como a sua superação, não fará julgamento, e sim intervenção; o religioso abordará de uma forma acrítica e divina: enfatizará que a pobreza ou riqueza, castigo ou benção, vem de Deus; e o filosófico abordará de forma reflexiva e analítica: sem nenhuma intervenção prática, mas essencialmente teórica e subjetiva, verificará a pobreza de modo interpretativo fornecendo outros conceitos, outras ideias, outras reflexões. Figura 6 - Cada um tem dentro de si certa fundamentação dos conhecimentos abordados: empíricos, filosóficos, religiosos e/ou científicos. Fonte: Sangoiri, Shutterstock, 2018. Seguindo o raciocínio, vamos nos deparar com dois conceitos que estão relacionados com os tipos de conhecimento: o ceticismo e o dogmatismo. Agora, você sabe o conceito e a diferença entre esses dois termos? Vejamos o que Japiassú; Marcondes (2001, p. 34; 56, grifos nossos) nos trazem: ceticismo é uma “concepção segundo a qual o conhecimento do real é impossível à razão humana. Portanto o homem deve renunciar à certeza, suspender seu juízo sobre as coisas e submeter toda afirmação a uma dúvida constante”; dogmatismo é uma doutrina que acredita que o homem possa atingir a certeza absoluta, uma verdade universal, “por oposição ao ceticismo, o dogmatismo é a atitude que consiste em admitir a possibilidade, para a razão humana, de chegar a verdades absolutamente certas e seguras”. Sempre nos depararemos com pessoas dogmáticas ou com as céticas, sendo que cada uma irá querer prevalecer em sua linha de pensamento e seu tipo de conhecimento, ambos adquiridos nas relações sociais a partir da linguagem. No vídeo Teoria do conhecimento: uma introdução (BORGES, 2015), há uma explanação sobre os principais ramos da filosofia, bem como a preocupação com o conhecimento desde a filosofia na Grécia Antiga até hoje. Para assistir ao vídeo, acesse: <https://www.youtube.com/watch?v=FLmXYm8oVsY>. As pessoas, de um modo geral, vivem e convivem com todos os tipos de conhecimento ao mesmo tempo, pois existem vários saberes que nos rodeiam. Todavia, cabe ressaltarmos que, no exercício das nossas profissões, o conhecimento técnico-científico é o apropriado e o determinante nas ações interventivas e relações sociais que exigem competência profissional. 1.3 Conhecimento e consciência Para darmos continuidade ao processo de compreensão do pensamento filosófico, discutiremos agora outro importante conceito: a consciência. Analisando a nossa consciência, ela tem relação com tudo: pensamento, identidade, memória, moral, inconsciente, linguagem, enfim com o mundo. Ter consciência do mundo, do que fazemos, onde estamos, do perigo, das consequências e outras coisas a mais fazem de nós, seres pensantes, ter capacidades inatas humanas. Para Cotrim; Fernandes (2013), ter consciência é ter em mente alguma esfera na qual ocorrem diversos processos psíquicos importantes, tais como: o pensamento, a imaginação, a emoção, as recordações, a criatividade e, especialmente, o conhecimento e o domínio de si mesmo e dos próprios impulsos. Sendo assim, quando falamos na necessidade de tomar consciência de algo, estamos dizendo que é preciso compreender os fenômenos em sua particularidade e, sobretudo, em sua totalidade e complexidade. A partir disso, agora veremos as diversas formas com as quais ela aparece. 1.3.1 As diferentes formas de consciência: política, moral, religiosa, científica e artístico-cultural Sabemos que o conhecimento, a percepção e a consciência são dados pelo sujeito de acordo com aquilo que se passa com ele, tanto interna quanto externamente, e isso não envolve apenas uma questão, mas sim uma infinidade de temas e complexidades do sujeito no mundo. Existem diferentes formas de consciência, relacionadas a diversos fenômenos pessoais, sociais, culturais, políticos e vários outros. Com base em Cotrim (1993); Chauí (2012); Cotrim; Fernandes (2013), citaremos algumas delas. Consciência política: é concebida como sendo o próprio cidadão, pois em um só tempo ele se constitui como indivíduo e como sujeito participante das relações sociais. Trata-se de um sujeito portador de direitos e deveres. Estamos nos referindo a um sujeito que, por sua percepção e capacidade de análise e compreensão dos diferentes fenômenos sociais, é capaz de perceber o mundo e se perceber nele de forma crítica e participativa. Consciência moral: diz respeito à formação humana a partir das vivências que o sujeito estabelece com a sociedade da qual recebe normas, princípios e valores. A moral determina práticas comportamentais de vivências de virtudes, obrigações e deveres. Para Chauí (2012), a consciência moral diz respeito à forma como os sujeitos se relacionam uns com os outros, por meio de comportamentos determinados por códigos, valores e cultura. Consciência religiosa: constitui-se como algo que vai para além daquilo que podemos determinar como sendo completamente racional. Dito de outra forma, atinge um pensamento que entendemos como sobrenatural. Trata-se de uma concepção de consciência que alcança os limites ou então supera os limites da fé. Consciência científica: é aquela que se baseia no conhecimento produzido pela ciência. Trata-se do dar conta de si e do mundo considerando aquilo que a ciência, pelo seu rigor, produz e determina. Nossa referência está relacionada à consciência, que considera a ciência como uma forma de produção de novos conhecimentos e, portanto, explica e compreende o mundo por meio dela a partir de dados comprovados. Consciência artístico-cultural: produz conhecimento e percebe o mundo considerando a arte e a cultura, as quais são instrumentos de convivência e de construção de consciência crítica. Trata-se de uma consciência que tem compromisso com a sensibilidade e a percepção a partir daquilo que a sociedade comunica ou reproduz como sendo valores e princípios culturais. O processo de caracterização de cada uma das formas de consciência mostra que, para além dos elementos particulares que as determinam, há em evidência uma concepção de ser humano e sociedade. E é justamente isso que as tornam específicas e, em certo grau, as aproximam. Além da consciência individual, temos a consciência histórica: são as diferentes representações sociais que uma coletividade adquire/desenvolve a partir do lugar e do tempo/espaço em que vive (e que também herda de seus antepassados). Isso se constitui, portanto, em um elemento de compreensão de sua própria história – saber quem é e aquilo que já aconteceu. Em resumo, a consciência diz respeito à capacidade humana de se sentir no mundo, perceber a realidade, conseguir analisá-la e julgá-la, considerando a história da humanidade e sua própria condição de indivíduo. As diferentes formas de consciência se referem, ainda, à capacidade de autoavaliação: saber-se no mundo, saber o que, por que e como tudo deve ser feito. Para dar continuidade ao processo de estudo e compreensão acerca do que se constitui o pensamento filosófico, analisaremos e entenderemos o que constitui a alteridade. 1.4 Consciência e alteridade Já vimos como podemos conceituar e compreender consciência, porém nossa proposta agora é, em um primeiro momento, compreender em que se constitui a alteridade e, em uma segunda oportunidade, demonstrar como a consciência está interligada com esse princípio. A consciência e a alteridade são conceitos indissociáveis ou pelo menos deveriam ser, pois na vida prática eles coexistem e é agravante quando notamos a falta de consciência e alteridade na sociedade de modo geral, que é demonstrada a partir das relações sociais de conflito e contradição. É precisosaber que a falta de respeito na sociedade é um fato notório e cada vez mais evidente, sendo visualizada e sentida nas mais diversas maneiras e formas de concepções e ações, por meio de preconceitos, discriminações, desvalorizações e não reconhecimentos. Desse modo, já vale dizermos que a alteridade tem a ver com o respeito à existência e ao modo de ser e viver do outro. 1.4.1 Alteridade Normalmente, quando queremos dizer o que é alteridade, usamos a frase: “é a capacidade de se colocar no lugar do Outro”. Isso está correto? Sim. Contudo não é o suficiente para dizer e para entender esse termo. A alteridade constitui-se, na verdade, como um conceito um tanto complexo para ser apreendido por muitas pessoas. Complexo porque o “se colocar no lugar do Outro” exige, para além de imaginar ou pensar que se entende a situação do outro, a necessidade de compreendê-lo e aceitá-lo em sua condição de ser social diferente. Um dos pensadores mais importantes que descreve sobre a alteridade é o filósofo Emmanuel Lévinas. Seu pensamento filosófico é desenvolvido em uma perspectiva na qual propõe uma nova filosofia a partir da ética: o conceito de alteridade se torna um princípio ético, de atenção e cuidado pelo outro (SOUZA, 2009). Ainda nas contribuições de Lévinas, “Para o filósofo a Alteridade, na contemporaneidade, torna um fator contribuinte para a busca de uma forma mais humana de se viver em sociedade, onde cada um deve ter responsabilidade pelo próximo” (COSTA; CAETANO, 2014, p. 196). A alteridade perpassa, necessariamente, pela aceitação e tolerância do Outro, mas é necessário observar profundamente em que sentido o termo tolerância é utilizado: tolerar ou ser tolerante pode significar apenas a capacidade de desculpar o Outro por ser diferente. Neste viés, o Eu será o sujeito que tolera o Outro, fazendo com que a convivência na sociedade seja de respeito e consideração. Toda essa reflexão pode ser transportada para o campo profissional (como entre o assistente social e os usuários) que, por vezes, prevalece julgamentos e carece de respeito. O livro “Sentido e alteridade: dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Lévinas” (SOUZA, 2009) é imprescindível para quem deseja aprofundar o pensamento filosófico em uma perspectiva ética. A obra também é importante para a formação, visto que a ética norteia nossas ações pessoais e profissionais. Vale a pena ler e se aprofundar. Cabe lembrarmos que o nosso Código de Ética Profissional (CFESS, 2012) ressalta a importância do respeito às correntes profissionais democráticas existentes e suas expressões teóricas; à denúncia de casos de violação de direitos, discriminação, preconceito, abuso de autoridade ou qualquer forma de agressão ou falta de respeito à integridade física, social e mental à pessoa; à autonomia dos movimentos populares e das organizações das classes trabalhadoras; à autonomia de classes ou grupos em situação de discriminação por etnia, gênero, orientação sexual, opção pessoal, faixa etária, estarem em desvantagem, terem redução da capacidade física ou mental, serem negligenciados, dentre outras situações de vulnerabilidade. Aceitar o outro significa valorizá-lo e respeitá-lo em sua condição de ser histórico. Essa aceitação se constitui como um processo que valoriza as diferenças étnicas, políticas, religiosas, culturais, de opção sexual etc., pois as relações interpessoais e sociais se estabelecem a partir da ideia de que é exatamente aquilo que nos faz diferentes é o que nos enriquece em modos de ser e viver. No artigo “A concepção de alteridade em Lévinas: caminhos para uma formação mais humana no mundo contemporâneo” (COSTA; CAETANO, 2014), os autores discutem o conceito de alteridade na sociedade contemporânea, a partir da obra “Humanismo do outro homem” (LÉVINAS, 1993). Essa abordagem é feita na realidade contemporânea, no sentido de superar as barbáries de nosso tempo. Para ler, acesse: <http://www.periodicos.unir.br/index.php/igarape/article/viewFile/861/865>. A filosofia procura fazer esforços significativos por intermédio de seus pensadores, no sentido de contribuir como pode, a partir de suas análises e interpretações, almejar uma sociedade mais filosófica, humana, justa e ética. Assim, segundo Costa; Caetano (2014, p. 205), “No âmbito da ética da Alteridade, o ser humano se torna acolhedor de todo Outro que ao Eu se apresenta interpelando a responsabilidade. A dimensão da Alteridade pensada por Lévinas, provoca uma mudança interior, aspirando uma sociedade melhor para se viver”. O processo de reconhecimento se caracteriza pela capacidade de conhecer o outro e se ver nele. Portanto, isso significa que a interação social deve se dar a partir da ideia de que somos iguais, porém diferentes – por isso a necessidade de considerar a alteridade, de acordo com Lévinas (1993), como princípio ético para a concretização de uma sociedade mais humana e menos desigual, menos preconceituosa, menos discriminatória, menos homofóbica, menos machista, menos racista etc. O filme Histórias cruzadas (STOCKETT; TAYLOR, 2011) é um drama que demonstra a realidade da discriminação racial nos EUA, os conflitos existentes na sociedade que permeiam a relação racial entre negros e brancos, a desigualdade social, a diferença de classe social e a questão da origem étnica das pessoas. Vale a pena assistir para correlacionar com o tema da alteridade como princípio ético na sociedade. Cabe destacarmos, também, o diálogo como outro elemento que precisa ser considerado neste processo de interação humana, uma vez que, em seu sentido pleno, significa a possibilidade de construir entendimentos entre pontos de vista divergentes. Ele pressupõe, portanto, a existência de uma relação horizontal em que há a necessidade de ouvir antes mesmo de falar. Saber ouvir e falar acontece somente quando há respeito entre as pessoas, que fazem da ética um princípio. O assistente social desenvolve sua prática interventiva também junto às famílias, e um dos espaços sócio- ocupacionais é o Programa de Atenção Integral à Família (PAIF). Esse programa tem como perspectiva fortalecer as famílias em casos de situação de vulnerabilidade social, ou seja, em situações nas quais elas estão enfrentando desafios além de suas capacidades para superação. Nesses casos, é necessário que o assistente social se aproprie do pensamento filosófico, tenha uma linguagem acessível, desenvolva uma atitude crítico- reflexiva, tenha consciência política-científica, não seja um pensante, mas sim um pensador que, ao usar a razão, reflita por meio de observações críticas às diferentes situações que se evidenciam propondo soluções, se apropriando do conhecimento filosófico e científico, tendo ética, autoética e princípio da alteridade. Assim, na intervenção profissional junto às famílias trabalhadoras ou desempregadas, é imprescindível que a percepção do profissional de Serviço Social seja ampliada para além do que se vê, para a comunidade, para o contexto sócio-histórico e atual no âmbito das complexidades do sistema capitalista, que impõem condições precárias de vida, situações de desagregação familiar, distorção de valores e desemprego. Assim, de acordo com Lacerda (2014, p. 31), [...] para um jovem bombardeado por propagandas, diante das condições precárias de empregabilidade da juventude e um processo de socialização no qual a vida humana é desvalorizada diante do valor das “coisas”, o tráfico de drogas não parece uma má opção. Constataremos, nos colocando no lugar do Outro, que não se trata de um desvio de personalidade ou de caráter, mas sim de indução por uma lógica capitalista de dominação, alienação e fragmentação da família e de seus membros, no sentido de impulsionar, incentivar subjetivamenteao tráfico e uso de drogas, ao crime e a outras diversas situações. Finalizando, entendemos, por esse viés do pensamento filosófico, que quando a ética e o respeito se materializam, estamos diante de uma relação em que a dignidade humana existe. E isso se chama alteridade.
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