Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
9 771981 752004 00141 LE MONDE diplomatique BRASIL R$ 14,90ANO 12 / NÚMERO 141 UMA NOVA ORDEM DEVEMOS TER MEDO DA CHINA? POR KISHORE MAHBUBANI MANIFESTO LÍNGUAS INDÍGENAS COMO PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE POR NOAM CHOMSKY E OUTROS 22 369 A GUERRA NA VIDA UMA ENTREVISTA COM MIA COUTO POR BEATRIZ BRANDÃO LE MONDE diplomatique BRASIL R$ 14,90 ed141-OK.indd 1 29/03/2019 16:43 2 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2019 EDITORIAL Adeus ao desenvolvimento POR SILVIO CACCIA BAVA © C la u d iu s D urante décadas, desde a cria- ção pelas Nações Unidas da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Ce- pal), em 1948, o continente sul-ameri- cano vem discutindo suas possibilida- des de desenvolvimento associadas a processos de industrialização e elabo- ração de tecnologias próprias. Quando da criação da Cepal, Raúl Prebisch liderava o debate, propondo um projeto nacional desenvolvimentis- ta baseado no modelo de industrializa- ção para substituição de importações. Celso Furtado participava dessa visão e discutiu a industrialização tardia da re- gião, abrindo campo para o debate so- bre o subdesenvolvimento e o aprofun- damento da desigualdade. Seu Plano de Metas atribuía ao Estado um papel es- tratégico para o desenvolvimento. A doutrina cepalina assumia que o Estado é o indutor do processo e do ti- po de desenvolvimento. Por meio de investimentos em infraestrutura, o Es- tado oferecia condições para a iniciati- va privada empreender a industriali- zação do país e afirmava seu papel de regulação da economia e do modelo de desenvolvimento. A estratégia de substituição de im- portações fez o Brasil crescer uma mé- dia de 6,31% ao ano de 1930 a 1980, uma das maiores taxas mundiais do período. Historiadores identificam a época como a Era Desenvolvimentis- ta. No mesmo período, a desigualdade se aprofundou porque, entre outros fa- tores, as elites empresariais não acei- tavam uma tributação corresponden- te aos seus ganhos.1 O Brasil construiu empresas estra- tégicas e competitivas nacional e in- ternacionalmente, como a Vale do Rio Doce, a Petrobras e a Telebras, com grande capacidade técnica, financeira e organizacional. Desde meados dos anos 1970, com a ascensão do neoliberalismo em es- cala mundial, a situação dos países pe- riféricos, ou subdesenvolvidos, foi se modificando para pior. Os termos de troca com os países centrais do capita- lismo se deterioraram, sua autonomia foi progressivamente reduzida e o Es- tado foi atacado em nome da liberdade de ação do capital. No Brasil, a ditadura que foi de 1964 a 1985 resistiu ao neoliberalismo, con- trapondo a ele um projeto de desenvol- vimento nacional abraçado pelos mili- tares e calcado na estratégia de tornar o país uma potência intermediária, regional. No entanto, a partir dos anos 1980 o Brasil passou a viver um processo de estagnação econômica que continua até hoje.2 De 1985 a 1994, o PIB cresceu apenas 2,8% ao ano e o crescimento do PIB per capita foi de apenas 1% ao ano. Tornava-se urgente a criação de ini- ciativas conjuntas entre os países da re- gião para intensificar suas trocas co- merciais e fazer face, em conjunto, ao avanço das desregulações do mercado impostas pelo neoliberalismo. Era pre- ciso defender a incipiente industrializa- ção onde ela já existia e criar maiores capacidades de negociação internacio- nal em relação aos Estados Unidos e aos demais países centrais do capitalismo. A Associação Latino-Americana de Integração (Aladi) foi criada em 1980, sendo um primeiro passo para a inte- gração econômica regional. Argenti- na, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, México, Panamá, Pa- raguai, Peru, Uruguai e Venezuela se uniram na perspectiva de fortalecer a integração econômica da região, ten- do como meta a criação de um merca- do comum latino-americano. A partir dos anos 1990, a pressão dos países centrais e dos organismos multilaterais aumentou. Globalmente, eles impuseram as regras estabeleci- das pelo chamado Consenso de Washington, que demandou abertura comercial, desregulamentação cam- bial e financeira, “flexibilização” das relações de trabalho e desmonte das políticas sociais de caráter universal. O impeachment de Collor retardou sua adoção no Brasil, a qual teve início no governo Fernando Henrique Cardoso. Nesse cenário, uma maior articu- lação entre Brasil e Argentina permi- tiu a criação do Mercosul, em 1991, in- corporando também Paraguai e Uruguai. A estratégia era intensificar as trocas comerciais entre os países participantes e buscar uma melhor negociação do bloco regional com ou- tros países e regiões. De 1990 a 1994, o comércio entre os países-membros aumentou 180%, atraindo a participa- ção de outras nações na condição de membros associados: Bolívia (1996), Chile (1996), Peru (2003), Equador (2004) e Colômbia (2004). Em 2012, a Venezuela entrou como membro ple- no e foi suspensa indefinidamente em 2016 pelos novos governantes de direi- ta. A situação atual paralisa as nego- ciações, já em estado avançado, de um acordo comercial do Mercosul com a União Europeia. O sucesso da iniciativa de constru- ção de um bloco regional, assim como a rejeição por parte dos governos sul- -americanos da proposta dos Estados Unidos de criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), em 2005, abriu uma perspectiva de maior autonomia regional e de construção de um mundo multipolar, estratégia perseguida também em outros conti- nentes com a formação de blocos re- gionais, inspirados na União Euro- peia, criada em 1993. A defesa das possibilidades de de- senvolvimento e de uma maior inte- gração regional passam a andar jun- tas. Nenhum país sozinho consegue negociar melhores condições de de- senvolvimento com os países centrais do capitalismo, especialmente com os Estados Unidos. ed141-OK.indd 2 29/03/2019 16:43 3ABRIL 2019 Le Monde Diplomatique Brasil © T u lip a R u iz A TÁTICA DA INFÂMIA O cordão sanitário POR SERGE HALIMI* 1 “Alain Finkielkraut: ‘Ich bin kein Opfer’” [Alain Fin- kielkraut: “Eu não sou uma vítima”], Die Zeit, Ham- burgo, 21 fev. 2019. 2 Bernard-Henri Lévy, “Il faut franchir le ‘point God- win’” [É preciso atravessar o “ponto Godwin”], Le Point, Paris, 7 mar. 2019. 1 Marcel Grillo Balassiano, Desempenho da econo- mia brasileira entre 1980 e 2015: uma análise da desaceleração brasileira pós-2010. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/hand- le/10438/18091>. 2 Ricardo Dathein, “Brasil: vinte e cinco anos de estag- nação econômica e as opções do desenvolvimento”. Disponível em: <www.ufrgs.br/fce/wp-content/ uploads/2015/02/TD08_2005_dathein.pdf>. D urante décadas, o poder eleito- ral da extrema direita serviu como política de segurança pa- ra os liberais de esquerda e de direita: qualquer burrico moderado facilmente cruzava a linha de chega- da, contanto que se opusesse a um partido político inadmissível, indese- jável, irrespirável. Nas eleições presi- denciais francesas de 2002, o resultado de Jean-Marie Le Pen estagnou entre os dois turnos, passando de 16,8% pa- ra 17,8%. Ao mesmo tempo, o de seu rival Jacques Chirac voou de 19,8% pa- ra 82,2% dos votos. A mesma operação permitiu que Emmanuel Macron ven- cesse em 2017, ainda que com margem menos espetacular. O que deu certo contra a extrema direita, os liberais pretendem usar contra a esquerda. Eles, portanto, pro- curam construir, contra sua eventual progressão, um muro de valores que por sua vez venha a torná-la suspeita e assim obrigar aqueles que não mais suportam as políticas do poder a se acomodar a elas apesar de tudo, posto que consideram ignóbeis seus adver-sários mais poderosos. Como que por acaso, a calúnia de uma esquerda tornada antissemita floresceu ao mesmo tempo na França, no Reino Unido e nos Estados Unidos. Uma vez designado o alvo, é suficiente encontrar um julgamento desastrado, ultrajante ou desprezível na página do Facebook ou na conta do Twitter de um membro da corrente política que se quer desonrar (o Partido Trabalhis- ta Britânico tem mais de 500 mil mem- bros). Então a mídia assume. Pode-se também buscar destruir um adversá- rio, atribuindo-lhe um fantasma an- tissemita que lhe seja estranho – do ti- po: a democracia, o jornalismo e o setor financeiro estão a serviço dos ju- deus – tão logo ele formule uma crítica à oligarquia, à mídia ou aos bancos. E pronto. “Se [Jeremy] Corbyn se mudasse para Downing Street, seria possível dizer que, pela primeira vez desde Hitler, um antissemita governa um país europeu”, finge alertar o aca- dêmico Alain Finkielkraut.1 A situação é igualmente ameaçadora nos Estados Unidos, já que, segundo o presidente Donald Trump, com a eleição para o Congresso de vários ativistas de es- querda, “o Partido Democrata tornou- -se um partido anti-Israel, um partido antijudaico”. “Os democratas odeiam o povo judeu”, acrescentou. Por sua par- te, Bernard-Henri Lévy acaba de asso- ciar o deputado e jornalista francês François Ruffin ao mesmo tempo a Lu- cien Rebatet, autor do panfleto antisse- mita Os escombros, a Xavier Vallat, co- missário-geral para questões judaicas sob o regime de Vichy, e a Robert Bra- sillach, colaborador fuzilado na Liber- tação. O mentiroso queridinho da mí- dia teria identificado em Ruffin uma “filiação consciente ou sub-reptícia com a prosa de Gringoire”,2 um sema- nário gotejante de ódio antissemita do qual uma das mais famosas campa- nhas de difamação levou ao suicídio um ministro da Frente Popular. Judeus foram assassinados na Fran- ça e nos Estados Unidos por antissemi- tas. Tal tragédia não deveria servir co- mo arma ideológica para Trump, para o governo israelense e para intelectuais falsários. Se é necessário construir um cordão sanitário, que ele nos proteja so- bretudo daqueles que imputam a seus adversários uma infâmia da qual sa- bem que são inocentes. *Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique. O sucesso do Mercosul e o interesse de outros países do continente em par- ticipar levaram, em 2008, muito em ra- zão de um esforço diplomático do Bra- sil, à criação da Unasul, uma associação de doze países da América do Sul que soma o Mercosul e a Comunidade An- dina, com a perspectiva de formar um bloco regional à semelhança da União Europeia. A proposta foi ratificada em 2010 e sua estratégia foi de integração econômica da região, mas também de uma maior integração social e política. Foram criados o Banco do Sul, o Parla- mento Sul-Americano, o Conselho de Defesa, entre outras iniciativas. Em 2008, os Estados Unidos reati- varam sua IV Frota, um impressionan- te conjunto de forças navais e aéreas, mais poderoso que qualquer força mi- litar da região, com a tarefa de patru- lhar as águas do Atlântico Sul, numa clara demonstração de força e poder. A estratégia de recuperar o controle da América Latina se explicitou em várias frentes, com tentativas de golpe e de- posição de presidentes, como ocorreu na Venezuela em 2002, na Bolívia em 2008, no Equador em 2010, no Paraguai em 2012, com a deposição do presiden- te Lugo, e no Brasil em 2016, com o im- peachment de Dilma Rousseff. Os esforços de desestabilização dos governos democráticos populares articularam as tradicionais oligar- quias locais contra os governos demo- cráticos e populares e também atua- ram nas eleições presidenciais da região, apoiando fortemente campa- nhas na sociedade civil para a crimi- nalização das esquerdas e a eleição de candidatos de direita. O desmonte do bloco regional em construção se deu pelos governos elei- tos de direita da Argentina, Brasil, Co- lômbia, Chile, Paraguai, Peru e Equa- dor, que se retiraram da Unasul e acabaram de criar o Foro para o Pro- gresso da América do Sul (Prosul), em substituição àquela. Em comum, par- tilham a cartilha neoliberal e um ali- nhamento incondicional às políticas dos Estados Unidos. Os países da América do Sul volta- ram à condição de economias subordi- nadas aos interesses norte-americanos. Seus regimes autoritários reforçam a atuação predatória das empresas multi- nacionais, que extraem do continente suas riquezas naturais e seus produtos primários, inibindo qualquer iniciativa de industrialização ou de políticas autô- nomas. É o novo colonialismo. ed141-OK.indd 3 29/03/2019 16:43 4 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2019 CAPA O propósito velado da “reforma” da Previdência O ardil da “reforma” é retirar da Constituição todas as regras do Regime Próprio de Previdência do Servidor (RPPS) e do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), e introduzir nela o regime de capitalização individual. Transformações de grande monte, sem debate com a sociedade, serão feitas por leis complementares POR EDUARDO FAGNANI* A justar periodicamente o siste- ma previdenciário é usual em nações desenvolvidas. Mas são ajustes que não destroem os respectivos regimes de bem-estar so- cial. O requisito para debater qualquer reforma previdenciária no Brasil é que o governo apresente um diagnóstico técnico qualificado dos reais proble- mas que precisam ser corrigidos. Esse diagnóstico não existe, porque, de fa- to, não se quer fazer nenhum ajuste. O real propósito da “reforma” da Previ- dência é soterrar o pacto social de 1988. Ela é peça do projeto ultraliberal que se pretende colocar em prática em marcha forçada. Os espertalhões que a formularam ocultam seu projeto real: forçar uma mudança estrutural na Constituição, sem nada debater com a sociedade. l m e o os do o e Nesse cenário, prevalece a superfi- cialidade da ideologia em detrimento do rigor técnico e do debate qualifica- do. O artifício para impor as mudan- ças estruturais pretendidas é o terro- rismo demográfico, financeiro e econômico. Para os financistas do mercado e do governo, os destinos da Nação dependeriam exclusivamente da reforma da Previdência. A desones- tidade intelectual irresponsável con- duz à profecia de que sem essa especí- fica reforma o Brasil “vai quebrar”. O VENTO QUE ANTECEDE A TEMPESTADE O ardil da “reforma” é retirar da Constituição todas as regras do Regi- me Próprio de Previdência do Servi- dor (RPPS) e do Regime Geral da Pre- vidência Social (RGPS), e introduzir nela o regime de capitalização indivi- dual. Portanto, a verdadeira “reforma” não é essa que hoje se discute, a qual apenas introduz meras diretrizes transitórias até que a verdadeira refor- ma seja feita por meio de dezenas de leis complementares de iniciativa do Poder Executivo. Essas mudanças são mais fáceis de ser aprovadas: enquan- to uma emenda constitucional exige o apoio de 308 deputados e 49 senado- res, em duas votações em cada casa, a legislação complementar demanda 257 votos de deputados, em duas vota- ções, e 41 de senadores, em uma vota- ção. É na tramitação dessas leis que se pretende acabar com o Estado social de 1988, e, posteriormente, a continui- dade desse processo poderá ser feita por atos normativos do Executivo e mesmo por medidas provisórias. Assim se vê que a “nova previdên- cia” é o vento que antecede a tempes- tade. Sob o “rolo compressor” do Con- gresso, o que é ruim pode ficar muito pior. Rechaçar essa trama é opção ine- vitável dos parlamentares, dos movi- mentos sociais e dos setores da socie- dade comprometidos com o propósito de evitar mais um retrocesso de gran- de monta no incipiente processo civi- lizatório brasileiro.PRINCÍPIOS ELEMENTARES DA SOCIAL-DEMOCRACIA SÃO INACEITÁVEIS Os “capitalistas” brasileiros, antis- sociais e antidemocráticos, não aceita- ram sequer a introdução no país de al- guns princípios basilares da social-democracia. Os constituintes se inspiraram nos êxitos dessa experiência internacional no período 1945-1975, quando políticas econômicas visando ao pleno emprego e instituições do Es- tado de bem-estar social passaram a ser aceitas como instrumentos para lidar com disfunções decorrentes da econo- mia de mercado. Os direitos sociais uni- versais, parte da cidadania plena, pas- saram a ser regidos pelo princípio da solidariedade social (seguridade) em detrimento da capacidade contributiva individual (seguro). Houve uma combi- nação virtuosa entre a tributação pro- gressiva e os regimes de bem-estar: a transferência da renda por essa via tor- nou-se requisito para o bom funciona- mento do Welfare State. É nesse contexto que se percebe o período iniciado pela Constituição Federal de 1988 como um ciclo inédito de restauração da democracia e de avanços formais na construção da ci- dadania social. A seguridade é o prin- cipal mecanismo brasileiro de prote- ção social. Além dos mais de 40 milhões de benefícios diretos (previ- dência urbana e rural, assistência so- cial e seguro-desemprego) transferi- dos para as famílias (a maior parte equivalente ao piso do salário míni- mo), a seguridade contempla a oferta de serviços universais proporciona- dos pelo Sistema Único de Saúde, pelo Sistema Único de Assistência Social e pelo Sistema Único de Segurança Ali- mentar e Nutricional. A previdência social (urbana e ru- ral) e o Benefício de Prestação Conti- nuada (BPC) protegem e provêm renda próxima do piso do salário mínimo para 82% dos idosos brasileiros, fo- mentam a agricultura familiar, com- batem o êxodo rural e regional e pro- movem a economia local. Segundo o Ipea, em 2014 apenas 8,8% das pessoas com 65 anos ou mais viviam com ren- da menor ou igual a meio salário míni- mo, o que demonstra que a pobreza entre idosos é hoje praticamente resi- dual no país. Caso não houvesse a pre- vidência e o BPC, o percentual de ido- sos pobres aos 75 anos superaria 65% do total. Estudo sobre a incidência da política fiscal na distribuição da renda realizado pela Cepal1 revela que, no Brasil, o coeficiente de Gini cai 16,4 pontos percentuais por conta do gasto com educação, seguido pelas aposen- tadorias e pensões públicas e pelo gas- to com saúde. DESTRUIÇÃO DO ESTADO SOCIAL No plano mais geral, o projeto libe- ralizante tem por propósito fazer a transição da proteção social em duas direções: da seguridade para o assis- tencialismo e da seguridade para o se- guro social. São transformações estru- turais de grande monta, que precisam ser debatidas pela sociedade. © A lla n S ie b er ed141-OK.indd 4 29/03/2019 16:43 5ABRIL 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 1. Da seguridade social para o assistencialismo A “reforma” tende a excluir uma massa considerável de trabalhadores porque cria regras severas que descon- sideram a realidade do mercado de trabalho. Cerca de 50 milhões de tra- balhadores adultos que compõem a população em idade ativa (PIA) não trabalham. Mais de 105 milhões de brasileiros fazem parte da população economicamente ativa (PEA). Entre- tanto, quase 13 milhões estão desem- pregados; outros 92 milhões estão ocupados, mas cerca de 35 milhões trabalham sem carteira ou têm algum vínculo precário. Portanto, aproxima- damente 100 milhões de trabalhado- res, que já não contribuem para a pre- vidência, terão dificuldades para cumprir as novas regras e não conta- rão com essa proteção na velhice – quadro que tende a se agravar com o avanço da reforma trabalhista. Nesse cenário, poucos brasileiros comprovarão quarenta anos de contri- buição para ter direito à aposentadoria integral. A aposentadoria parcial ten- de a ser inacessível para mais de 35% dos brasileiros, que têm dificuldades de comprovar vinte anos de contribui- ção. Observe-se que, em 2015, em fun- ção da alta rotatividade do emprego, de um período de doze meses, só nove meses eram realmente trabalhados, em média. Assim, para completar vin- te anos de contribuição eram necessá- rios quase 27 anos de trabalho ininter- ruptos com carteira assinada. Com a reforma trabalhista, o período contri- butivo tende a encurtar, dificultando ainda mais o acúmulo de tempo de contribuição. As regras de transição da aposen- tadoria por tempo de contribuição são curtas e severas. Em uma das opções, em 2028, os homens passam dos atuais 96 para 105 pontos (65 anos de idade mais quarenta anos de contri- buição, por exemplo), um acréscimo de 9 pontos em dez anos; e as mulhe- res passam dos atuais 86 para 100 pontos, um acréscimo de 14 pontos em catorze anos. Entretanto, nessa “corrida de obs- táculos”, o “gatilho” demográfico colo- ca um desafio adicional: a idade míni- ma poderá ser de 67/64 em 2033, porque o texto prevê esse aumento sempre que se eleve a expectativa de sobrevida aos 65 anos. Na previdência rural, a idade míni- ma da mulher passa de 55 para 60 anos e impõe-se um tempo de contribuição monetária de vinte anos, desconhe- cendo-se a realidade de que 70% das mulheres do meio rural começam a trabalhar com até 14 anos de idade. A aposentadoria por invalidez será de primeira classe (acidente no traba- lho) e de segunda classe (acidente fora do trabalho), cujos valores de benefí- cio são distintos (respectivamente 100% e 60% da média de todas as con- tribuições). Também se cria a pensão por morte de primeira e de segunda classe (que pode ser inferior ao salário mínimo) e restringe-se o acúmulo de mais de uma aposentadoria e pensão. A “reforma” cria mais dificuldades para a aposentadoria das pessoas com deficiência, que “previamente” serão submetidas a uma “avaliação biopsi- cossocial”. Após essa avaliação, os be- nefícios serão concedidos desde que o segurado comprove: 35 anos de con- tribuição (“deficiência leve”), 25 anos de contribuição (“moderada”) e vinte anos de contribuição (“grave”). O acesso ao abono salarial será res- tringido apenas para quem recebe salá- rio mínimo, excluindo mais de 20 mi- lhões de trabalhadores que recebem entre um e dois salários mínimos. No futuro, os valores dos benefícios poderão ser reajustados abaixo da in- flação. A Constituição assegura “o rea- justamento dos benefícios para pre- servar-lhes, em caráter permanente, o valor real”. Mas o novo texto exclui o termo “valor real”. Com as novas regras, poucos brasi- leiros conseguirão ter proteção previ- denciária e pressionarão, em massa, a proteção assistencial, que não exige contribuição. Em decorrência, levan- ta-se um muro de contenção fiscal, re- baixando o valor do Benefício de Pres- tação Continuada (BPC) para R$ 400. Como se sabe, esse benefício é dirigido aos idosos e portadores de deficiência, socialmente mais vulneráveis. Atual- mente, o BPC beneficia mais de 5 mi- lhões de pessoas, garantindo renda mensal de cidadania, no valor de um salário mínimo, aos idosos (65 anos ou mais) e pessoas com deficiência com renda familiar per capita inferior a um quarto de salário mínimo. Caminha- remos assim da seguridade para o as- sistencialismo, pela via da reforma rea- lizada por legislação complementar. 2. Da seguridade social para o seguro social A seguridade se diferencia do segu- ro (contrato individual selado com o prestador de serviços). No caso da pre- vidência, a insegurança é máxima, pois esse contrato tem vigência por mais de trinta anos. No Brasil, esses riscos são extremos em função da de- sigualdade social, da heterogeneidade regional e da realidade do mercado detrabalho. A “reforma” determina a criação de “sistema obrigatório de capitalização individual” para o RPPS (União, esta- dos e municípios) e para o RGPS, onde se pretende criar a “carteira verde- -amarela”, portadora de escassos di- reitos trabalhistas. O jovem que come- ça a trabalhar poderá “optar” pela carteira e aderir ao regime de capitali- zação. Um ponto obscuro é o aceno para a possibilidade da criação de um “fundo solidário”, organizado e finan- ciado para a “garantia de piso básico, não inferior ao salário mínimo para benefícios”. Portanto, o próprio gover- no antevê que nem sequer o piso bási- co será garantido e não esclarece quem vai financiar o tal fundo. A “reforma” desconsidera o fracas- so desse modelo evidenciado pelo ca- so chileno e sua reversão em dezenas de países.2 O debate sobre esse tema não pode avançar sem que antes o go- verno apresente, de forma criteriosa, a estimativa do chamado “custo da transição” da seguridade social para o seguro social, bem como os parâme- tros utilizados para esse cálculo. Não podemos deixar que se repita aqui o que ocorreu no Chile: “Na prática, os custos de transição de um modelo de previdência para o outro são altíssi- mos. Os custos de transição começa- ram a ser pagos em 1981, e ainda esta- mos pagando. São 37 anos e ainda devemos, sobretudo, as pensões de pessoas que se aposentaram no siste- ma antigo. Atualmente, o governo chi- leno ainda subsidia o sistema previ- denciário do Chile com US$ 9 bilhões anuais”.3 REFORMA JUSTA? O governo estima que a “reforma” geraria economia de R$ 1,165 trilhão em dez anos.4 Seu caráter injusto tam- bém se reflete no fato de que, desse montante, R$ 715 bilhões serão “eco- nomizados” por cortes nos direitos dos trabalhadores rurais e urbanos inscritos no RGPS; e outros R$ 182 bi- lhões, por cortes no BPC e no abono salarial. Portanto, 75,6% da suposta economia decorre da subtração de di- reitos dos beneficiários desses progra- mas sociais. Observe-se que, em 2016, no RGPS, eram mais de 20 milhões de benefícios urbanos, dos quais 54% tinham valor igual ou menor do que um salário mí- nimo, e 86%, valor igual ou inferior a três salários mínimos; no segmento rural, foram concedidos mais de 10 mi- lhões de benefícios, 98,6% equivalen- tes ao piso do salário mínimo; no BPC, foram concedidos mais de 5 milhões de benefícios equivalentes ao piso; e mais de 20 milhões de “privilegiados” que recebem abono salarial também “pagarão o pato”. CRESCIMENTO E MAIOR EQUIDADE NA CONTRIBUIÇÃO DAS CLASSES DE MAIOR RENDA O crescimento econômico é requi- sito para o equilíbrio financeiro da previdência por seus impactos positi- vos nas receitas que incidem sobre a folha de salário, o faturamento e o lu- cro das empresas. O ajuste fiscal também pode ser al- cançado pela maior equidade na con- tribuição das classes de maior renda. É preciso enfrentar as inconsistências do regime macroeconômico, que não impõe limite para os gastos financei- ros, transferindo, dos pobres para os ricos, mais de R$ 400 bilhões de juros por ano (quase quatro anos da “econo- mia” que o governo espera da “nova previdência”). A saída para o Brasil não “quebrar” também pode ser alcançada mediante a reforma tributária. Amplo estudo5 mostra que é tecnicamente possível quase duplicar o atual patamar de re- ceitas da tributação da renda, patri- mônio e transações financeiras, de R$ 472 bilhões para R$ 830 bilhões, um incremento de R$ 357 bilhões (mais de três anos de “economia, nos termos da proposta encaminhada pelo governo Bolsonaro”). Esse estudo também aponta para a necessidade de rever as isenções fis- cais, pelas quais o governo federal to- do ano deixa de arrecadar cerca de 20% de suas receitas: em 2017, o mon- tante de isenções totalizou R$ 406 bi- lhões (mais de quatro anos de “econo- mia”). Também é necessário combater a sonegação de impostos, estimada em cerca de R$ 500 bilhões anuais (mais de cinco anos de “economia”). Em conjunto, esses recursos (isenções fiscais e sonegação) totalizam aproxi- madamente 12,8% do PIB, montante superior ao dispêndio da seguridade social (11,3% do PIB) que a “nova pre- vidência” planeja destruir. Portanto, há várias vias alternati- vas para o país não “quebrar”. Todas exigem que se desmonte, no Brasil, o maior programa mundial de transfe- rência de renda dos mais pobres para os ricos. *Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit) e coordenador da rede Plataforma Polí- tica Social (www.plataformapoliticasocial.com). 1 Cepal, Panorama Fiscal de América Latina y el Caribe 2015 – Dilemas y espacios de políticas, Santiago de Chile, 2015. 2 Isabel Ortiz, Fabio Durán-Valverde, Stefan Urban, Veronika Wodsak e Zhiming Yu, La reversión de la privatización de las pensiones: Reconstruyendo los sistemas públicos de pensiones en los países de Europa Oriental y América Latina (2000-2018), Documento de trabalho n.63, OIT, 2019. 3 Daniel Caseiro, “Os 10 mitos do sistema previden- ciário de Paulo Guedes, segundo Andras Uthoff”, Justificando, 18 dez. 2018. 4 Com a apresentação do projeto para a aposenta- doria dos militares, a economia pretendida caiu para pouco mais de R$ 1 trilhão. 5 Eduardo Fagnani (org.), A reforma tributária neces- sária – justiça fiscal é possível: subsídios para o debate democrático sobre o novo desenho da tri- butação brasileira (documento completo), Anfip/ Fenafisco/Plataforma Política Social, Brasília/São Paulo, 2018. Disponível em: <http://plataformapo- liticasocial.com.br/justica-fiscal-e-possivel-subsi- dios-para-o-debate-democratico-sobre-o-novo- -desenho-da-tributacao-brasileira/>. ed141-OK.indd 5 29/03/2019 16:43 6 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2019 © A lla n S ie b e r CAPA A desestruturação do mercado de trabalho Q ualquer que seja a perspectiva em que se analise a reforma previdenciária, ela aponta ne- cessariamente para novas for- mas de exclusão social e desigualdade que afetam toda a sociedade e de ma- neira particular as mulheres – bran- cas, negras, trabalhadoras rurais, as trabalhadoras domésticas e a popula- ção jovem –, condenando-as à preca- riedade e à desproteção social. A pro- posta de desmonte despreza as desigualdades estruturais na socieda- de e no mercado de trabalho, bem co- mo os diferenciais de gênero, e promo- ve um desmonte dos direitos e do acesso à previdência pública em um contexto em que se recriam e se ex- pandem novas modalidades de exclu- são e de segregação no mercado de trabalho com a ampliação de novas formas de contratação advindas da re- forma trabalhista. Uma das grandes virtudes do siste- ma de seguridade social brasileiro é precisamente a diferenciação das re- gras de acesso, que vem permitindo ampliar o número de pessoas benefi- ciadas e compensar, dessa forma, al- gumas das desigualdades estruturais do mercado de trabalho. Apesar de to- dos os avanços conquistados nas duas últimas décadas, a sociedade e o mer- cado de trabalho ainda são marcados por profundas desigualdades, sejam elas de gênero, de raça, regionais ou uma combinação dessas dimensões. A reforma da Previdência só fará agravar ainda mais o frágil mercado de trabalho brasileiro, em que a for- malização e a proteção social convi- vem lado a lado com a ilegalidade, a precariedade e a vulnerabilidade so- cial. São milhões de pessoas que tran- sitam entre o desemprego aberto e oculto e trabalhos com jornadas insu- ficientes, por conta própria ou infor- mais. A impossibilidade de manter contribuições regulares por umperío- do mais longo de tempo por aqueles que circulam no mercado de trabalho mostra o quanto já é difícil para a maioria conseguir cumprir o atual mí- nimo de quinze anos de contribuição. De acordo com os dados da Previ- dência Social1 de 2014, as mulheres aposentadas pelo Regime Geral da Pre- vidência Social (RGPS), seja por tempo de contribuição ou idade, se aposen- tam em média tendo cumprido 22,4 anos de contribuição. Se considerar- mos o número médio de contribuições ao ano, que é de nove meses de contri- buição, uma mulher precisará perfazer uma vida laboral de 29,8 anos para con- seguir acumular 22,4 anos de contri- buição cheios. Por idade, as mulheres alcançam, em média, 18,2 anos de con- tribuição; pelas novas regras propostas pela reforma, serão necessários, no mí- nimo, vinte anos de contribuição, o que inviabilizaria o acesso à aposentadoria aos 60 anos ou mesmo aos 62 anos de idade. Portanto, recuar da idade míni- ma para as mulheres sem alterar o tem- po de contribuição é falácia! Em janeiro de 2019, do total de bene- fícios concedidos para as mulheres (ur- banas e rurais), 60% foram por idade, e os demais 40%, por invalidez e tempo de contribuição. O valor médio das apo- sentadorias concedidas corresponde a R$ 1.144,72 por idade e R$ 2.178,49 por tempo de contribuição. Esses são os pri- vilegiados da previdência social! O FRÁGIL MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO Em 2018, conforme últimos dados disponíveis da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), a popu- lação em idade ativa no Brasil com 14 anos ou mais totalizava 170.565.689 pessoas. Desse total, 105.197.114 repre- sentavam a população economica- mente ativa (PEA), e 65.368.574, a po- pulação fora da força de trabalho ou não economicamente ativa (Pnea). As mulheres representavam 65% desse to- tal, e as mulheres negras, 57% sobre o total de mulheres. Surpreende o elevado percentual de mulheres entre 20 e 39 anos na Pnea, 22%, enquanto que, entre os homens, para a mesma faixa etária, o percen- tual era de 15%. A condição de maior pobreza tem sido um obstáculo à in- clusão das mulheres no mercado de trabalho. Dependendo da situação so- cioeconômica e da faixa etária, a taxa de participação das mulheres em rela- ção à dos homens pode variar. Isso de- monstra o quanto a condição de pobre- za afeta sobretudo esse gênero. Para domicílio com renda per capita de até um quarto de salário mínimo, a dife- rença de taxa de participação entre os sexos pode alcançar 37,1 pontos entre 25 e 29 anos. No entanto, quando a ren- da é de mais de cinco salários mínimos, a diferença entre os sexos é de apenas 5,4% para a mesma faixa etária. A situa- ção socioeconômica das mulheres é um fator decisivo para sua entrada e per- manência no mercado de trabalho. Quanto mais pobres, mais tempo elas estarão afastadas do mercado de traba- lho. Essa interrupção comprometerá de forma definitiva sua vida laboral. As tarefas de cuidados são um grande limitador para as mulheres mais pobres. Em parte, o afastamento delas do mercado de trabalho, entre 25 e 29 anos, está associado à maternida- de e à ausência de equipamentos pú- blicos, o que impele as mais pobres a se afastarem temporariamente de al- guma atividade remunerada para se dedicarem às atividades de cuidados, que envolvem grande quantidade de trabalho e não estão restritas ao cuida- do das crianças, incluindo também idosos, enfermos etc. Precisamente, é em razão da dupla jornada que as mulheres se inserem em piores condições para cumprir com as tarefas de reprodução social. Portanto, é absolutamente relevante o debate so- bre a necessidade de preservar o dife- rencial de tempo de contribuição e ida- de para mulheres e homens. Além de receberem remuneração que corres- ponde a 75% dos homens quando na ativa, se negras, seus salários equiva- lem, em média, a 44% dos do sexo mas- culino. Nos benefícios também há uma permanência desse hiato: as mulheres percebem, em média, o corresponden- te a 85% dos benefícios masculinos. Esses condicionantes vão se refletir na presença das mulheres entre a popu- lação ocupada. Elas representavam 44% do total; no entanto, são maioria entre as pessoas desempregadas – havia 12,94 milhões de desempregados no quarto trimestre de 2018, e as mulheres perfaziam 52%. O desemprego entre as mulheres praticamente dobrou, cres- cendo 90% na comparação entre os úl- timos trimestres de 2014 e 2018. Se desa- gregarmos ainda mais os dados, veremos que as mulheres negras consti- tuem maioria: elas representavam 33% sobre o total de pessoas desemprega- das. Ou seja, em cada dez desemprega- dos no Brasil, entre três a quatro são mulheres negras. A faixa etária em que o desemprego mais se ampliou foi entre as pessoas com 60 anos ou mais: mu- lheres, 199,3%, e homens, 147,2%, entre 2012 e 2018. A reforma promete empre- go até os 80 anos de idade! Se ampliarmos o conceito de deso- cupação incorporando o desemprego aberto, a subocupação (insuficiência de horas efetivamente trabalhadas – em média, as pessoas que estão nessa condição trabalham em torno de 19 ho- ras semanais) e a força de trabalho po- tencial, chegaremos a 26.976.159 pes- soas. Esse é efetivamente o total de pessoas fora do mercado de trabalho ou em horas insuficientes. Desse total, as mulheres negras são maioria, 36%. O desemprego é o dobro entre os menos escolarizados. Entre as pessoas com até o ensino fundamental completo, 12% estão desempregadas; entre os de nível superior, o percentual é de 6%. O propósito da reforma, entre ou- tros, é postergar a saída do mercado de A reforma da Previdência só fará agravar ainda mais o frágil mercado de trabalho brasileiro, em que a formalização e a proteção social convivem lado a lado com a ilegalidade, a precariedade e a vulnerabilidade social POR MARILANE OLIVEIRA TEIXEIRA* ed141-OK.indd 6 29/03/2019 16:43 7ABRIL 2019 Le Monde Diplomatique Brasil trabalho, o que coloca uma pressão so- bre os jovens, que enfrentarão maiores barreiras à entrada no mercado de tra- balho. Por causa da dificuldade de in- gressar no mercado formal, reforçada pela proposta da carteira verde-ama- rela, esses jovens terão suas primeiras experiências na informalidade e no trabalho precário, gerando um círculo vicioso de precariedade que os acom- panhará durante a maior parte de sua vida laboral. Dados de 2018 indicam que, do total de pessoas desemprega- das, 54% são jovens entre 14 e 29 anos. Por outro lado, é manifesta a resis- tência dos empregadores em contratar pessoas a partir de determinada faixa etária, quando são consideradas “ve- lhas” para o mercado de trabalho. Com isso, cresce a inserção em empregos atí- picos para as faixas acima dos 55 anos: na maior parte, são empregos em do- micílio e singularizados pela precarie- dade – no caso das mulheres, vem cres- cendo sua presença como cuidadoras. A INFORMALIDADE E A NÃO CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA A análise do perfil das pessoas ocu- padas do ponto de vista dos rendimen- tos também nos oferece um retrato da precariedade de nosso mercado de trabalho, uma vez que a maioria está concentrada em ocupações de baixa produtividade e baixos salários que variam entre um e dois salários míni- mos: 82% das mulheres negras, 63,4% das mulheres brancas, 72,6% dos ho- mens negros e 50,5% dos homens brancos recebiam até dois salários mí- nimos no quarto trimestrede 2018. Es- sa característica é determinante para a definição dos benefícios em um fu- turo próximo. Em janeiro de 2019, 63,4% do valor dos benefícios concedi- dos para os trabalhadores urbanos e 99% para os rurais eram de até dois sa- lários mínimos. Uma das maiores conquistas nas duas últimas décadas foi a ampliação do emprego formal para ambos os se- xos. Entretanto, desde 2015 observa-se uma reversão dessa tendência, de for- ma que chegamos a 2018 (quarto tri- mestre) com 44.529.429 pessoas na in- formalidade (empregos sem carteira, trabalho doméstico sem carteira, con- ta própria e trabalhadores familiares), o que já corresponde a 50,3% do total de ocupados, uma evolução de 8% en- tre 2014 e 2018, enquanto o emprego formal recuou na mesma proporção (–8%). Entre as pessoas ocupadas, tem-se 37,3% sem contribuição previ- denciária. Com impactos sobre a con- tribuição previdenciária! Entre os trabalhadores por conta própria, do total de 23.496.249 pes- soas, 70% não contribuem para a pre- vidência; no trabalho sem carteira as- sinada, são 11.542.064 pessoas, e 84% destas não contribuem para a previ- dência; no trabalho doméstico sem carteira, tem-se 4.492.548 pessoas (maioria mulheres), e 85% não contri- buem para a previdência; e 29% dos empregadores e 31% dos trabalhadores do setor público sem carteira também não contribuem para a previdência. Esses totalizam 34.268.995 milhões de pessoas (ver tabela). Se considerarmos as pessoas que estão em uma condição de subutili- zação da força de trabalho, que so- mam 26.976.159, teremos 61.244.154 milhões de pessoas no Brasil que es- Negros Brancos Mulheres Homens Mulheres Homens Empregado no setor privado com carteira Total 6.388.873 10.611.255 6.856.379 8.803.027 Sem contribuição – – – – Empregado no setor privado sem carteira Total 2.070.487 5.037.153 1.624.846 2.685.336 Sem contribuição 84,6% 90,7% 74,4% 78,5% Trabalhadora doméstica com carteira Total 1.005.521 122.133 571.266 67.375 Sem contribuição – – – – Trabalhadora doméstica sem carteira Total 2.810.706 188.632 1.368.444 91.513 Sem contribuição 87,9% 88,6% 78,8% 86,7% Empregado no setor público com carteira Total 293.119 232.122 397.161 290.819 Sem contribuição – – – – Empregado no setor público sem carteira Total 943.450 579.814 586.078 335.529 Sem contribuição 27,8% 31,3% 32,0% 36,1% Militar e servidor estatutário Total 2.139.902 1.783.850 2.291.709 1.639.158 Sem contribuição – – – – Empregador Total 420.976 1.100.753 950.684 1.953.300 Sem contribuição 31,2% 41,5% 21,0% 25,2% Conta própria Total 4.490.478 8.787.684 3.787.466 6.503.634 Sem contribuição 76,8% 77,9% 57,7% 58,4% Trabalhadora familiar auxiliar Total 761.814 485.159 585.859 310.077 Sem contribuição 99,9% 99,9% 99,7% 99,7% Total Total 21.325.326 28.806.422 19.019.892 22.679.768 Sem contribuição 41,4% 44,2% 29,5% 30,4% 1 Elaborados por Joana Mostafa e Mário Theodoro, Boletim Legislativo do Senado Federal, n.65, jun. 2017. TOTAL DAS PESSOAS OCUPADAS COM 14 ANOS OU MAIS, POR POSIÇÃO NA OCUPAÇÃO E SEM CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA, POR SEXO E RAÇA (4º TRIMESTRE DE 2018) – BRASIL Fonte: PNADC/IBGE – Microdados. Elaboração própria. tão fora do sistema de proteção so- cial. Para a recomposição das recei- tas previdenciárias, é essencial criar empregos melhores e com direitos, combater a sonegação, eliminar a in- formalidade, formalizar os vínculos, reduzir a rotatividade. Isso, em con- junto com outras medidas, criará as condições necessárias para a susten- tabilidade do sistema. *Marilane Oliveira Teixeira é economista e pesquisadora do Cesit-Unicamp. A falácia dos argumentos pela reforma A saída apontada é privatizar, transformar um regime de solidariedade em mecanismos especulativos. Os fundos de previdência vão elevar a captação líquida e seus patrimônios e, o que é importante, vão desobrigar os empregadores de pagar contribuições sociais, livrando-os de participar da solução dos problemas sociais do país, o que entregará cada um à própria sorte POR DENISE LOBATO GENTIL* A reforma da Previdência do go- verno Bolsonaro vem sendo jus- tificada por argumentos econô- micos elaborados para gerar conformismo e adesões sem questio- namentos. São ideias manipuladoras, reforçadas por representantes do mer- cado financeiro e propagadas ampla e tediosamente pela mídia para fidelizar seguidores e aterrorizar a população com verdades absolutas e inquestio- náveis. Vou aqui eleger algumas frases retiradas da exposição de motivos que acompanhou a PEC n. 6/2019. O carro-chefe é a ideia de que “nos- so nó fiscal é a razão primeira para a limitação do nosso crescimento eco- nômico sustentável. Esse nó fiscal tem uma raiz: a despesa previdenciária”. Uma investigação atenta e honesta so- bre as contas públicas faz saltar aos olhos que o nó fiscal são os juros. Nes- sa rubrica, o país gastou, em média, 6% do PIB ao ano entre 2016 e 2018, o que equivale a aproximadamente R$ 400 bilhões/ano, montante mais de duas vezes superior ao alegado déficit da Previdência, que, nos cálculos questionáveis do governo, teria chega- do a R$ 195 bilhões em 2018. Com um agravante: juros beneficiam fundos especulativos, bancos, corporações não financeiras e pessoas com elevado nível de renda, enquanto a previdência alcança cerca de 28 milhões de pes- soas e, desse total, 23,3 milhões ga- ed141-OK.indd 7 29/03/2019 16:43 8 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2019 nham apenas um salário mínimo. O requinte de crueldade da comparação entre os dois tipos de gasto deveria causar vergonha e repúdio. Mas os meios de comunicação e o governo fa- zem profundo silêncio sobre o monu- mental gasto financeiro, como se essa anomalia da economia brasileira nem sequer existisse. O governo costuma ameaçar com outra frase escolhida para causar impacto, calar os opositores e obs- curecer o debate: “Enquanto nos re- cusarmos a enfrentar o desafio pre- videnciário, a dívida pública subirá implacavelmente e asfixiará a eco- nomia”. Não obstante, seria real- mente o déficit da Previdência a cau- sa do crescimento da dívida? Cabe, de partida, esclarecer que apenas uma parte da dívida pública é de responsabilidade do Tesouro Na- cional, e isso acontece sempre que ocorrem déficits primários. A outra parte da dívida, a maior delas, é cria- da e gerenciada pelo Banco Central. Isso significa que a dívida tem se ex- pandido substancialmente em fun- ção dos elevados juros praticados pe- lo regime de metas de inflação, das variações no câmbio e das operações financeiras que implicam emissões líquidas de títulos públicos. Estas úl- timas compreendem o que se chama de operações compromissadas do Banco Central, isto é, compras e ven- das de títulos que se destinam às aquisições de reservas internacionais e à regulação das condições de liqui- dez da economia, de forma a garantir que a taxa de juros de mercado seja compatível com a meta estabelecida pelo Copom. O estoque dessas opera- ções cresceu exponencialmente, pas- sando de 0,5% do PIB, em 2000, para 16,4%, em 2018, quando alcançou R$ 1,13 trilhão. Esses números apontam que são os gerenciamentos dos juros e das re- servas as duas principais causas do crescimento da dívida pública, não a previdência. O Banco Central, por meio das operações compromissa- das, atende, ao mesmo tempo, à de- manda de papéis de curto prazo dos bancos, tanto para remunerar seus excessos diários de caixa como para compor os ativos dos fundos de in- vestimento quepossuem. Portanto, o crescimento da dívida pública não corresponde exatamente ao déficit fiscal do Tesouro supostamente ali- mentado pelo gasto social, como cos- tuma alardear o governo, mas ao rit- mo de expansão das operações de valorização financeira do capital es- peculativo comandada pela política monetária do Banco Central. Os números da Nota Técnica n. 47 do Banco Central, de setembro de 2018, não poderiam ser mais elucidati- vos. Entre 2014 e 2017, a dívida líquida do setor público passou de 32,6% do PIB para 53,8%. Os juros incorporados nesse período representaram, em ter- mos acumulados, 26,4 pontos percen- tuais (p.p.), enquanto os déficits pri- mários, apenas 6,6 p.p. Está na hora de colocar a nu o velho discurso acusató- rio do gasto previdenciário e mostrar que a verdadeira reforma que precisa ser feita é a da política monetária. Outra frase proferida para gerar resignação popular com a reforma da Previdência merece destaque: “A dí- vida está em uma trajetória arrisca- da. Esse risco é devidamente cobrado pelos credores por meio de juros al- tos”. Para os porta-vozes do mercado financeiro e do governo, a reforma da Previdência teria, portanto, o poder de, ao reduzir a dívida pública, dimi- nuir também os juros. É de descon- fiar que os representantes do merca- do proponham a reforma com o objetivo de reduzir juros, já que a queda da Selic limitaria a rentabili- dade dos capitais investidos em títu- los públicos, ainda mais em um mo- mento de baixíssimo crescimento e elevada incerteza, quando justamen- te a fuga para os juros se torna um re- fúgio para os capitais. Ora, ainda que essa fosse uma motivação real para a reforma da Previdência, é inevitável concluir que não seria necessário fazê-la, porque a Selic iniciou uma trajetória de queda desde fins de 2016 e atingiu seu mais baixo patamar nominal em 6,5% desde abril de 2018, mantendo- -se nesse nível até o presente. A que- da da meta de juros e da taxa de ju- ros implícita ocorreu justamente em um período de crescimento da dívi- da pública. É, portanto, obrigatório desconfiar que os juros são determi- nados por outros fatores. Retirar o foco do gasto, da dívida e da previ- dência é um bom caminho. O discurso de apresentação da re- forma ao Congresso Nacional contém outros argumentos que carecem de ex- plicações minimamente críveis. Se- gundo a narrativa do governo, a refor- ma da Previdência gerará uma economia de recursos de R$ 1 trilhão em dez anos e de R$ 3,4 trilhões em vinte anos. Até o momento, não se sabe como o governo chegou a esses núme- ros, porque a memória de cálculo não está disponível. Entretanto, esse resul- tado é, obviamente, uma miragem. O coração da proposta do minis- tro Paulo Guedes é o regime de capi- talização. Essa transformação estru- tural do regime previdenciário brasileiro, além de implodir o siste- ma de proteção social do país, pro- vocará um gigantesco déficit. Isso porque há um custo de transição pa- ra sua implantação, que decorrerá da perda de receita que sofrerá o sis- tema de repartição, existente hoje, quando as contribuições dos novos ingressantes passarem a se destinar às contas individuais do regime de capitalização. As receitas cairão ao mesmo tempo que será necessário continuar a pagar o estoque de apo- sentados existente. Portanto, a curto e longo prazos, um regime de capita- lização não gera economia; ao con- trário, aumenta perigosamente o dé- ficit da Previdência. Esse custo de transição costuma ser muito eleva- do. No Chile, o déficit previdenciário passou de 3,8% do PIB em 1981, ano da implantação da capitalização, para um patamar acima de 5% do PIB nos vinte anos seguintes. A equi- pe econômica não mostrou nenhu- ma estimativa desse prejuízo para a sociedade brasileira. Há, portanto, um vácuo de informações que com- prometem os rumos do país. Além disso, o regime de capitalização pro- duzirá um resultado que já se sabe nocivo para grande parte da popula- ção que não conseguirá poupar, em função de salários baixos, informa- lidade, desemprego e trabalhos in- termitentes. Poucos se aposentarão, e os que conseguirem receberão be- nefícios de valores baixos, que aca- bam em poucos anos, como de- monstra a experiência de todos os países da América Latina que adota- ram esse caminho. Criou-se um enorme contingente de idosos na pobreza extrema. Os fundos de capi- talização tendem a derrubar o valor das aposentadorias, porque a taxa de administração anual é elevada, estando, no Brasil, entre 0,8% e 2% e, em certos casos, pode haver mais uma taxa de carregamento em torno de 2% sobre cada depósito feito pelo contribuinte. As administradoras acabam abocanhando grande parte do que é poupado. O regime de capitalização, além de muito mais caro para os trabalha- dores, expõe a população a um risco financeiro elevado que costuma ser subestimado. Os fundos aplicarão a poupança das pessoas em ações, tí- tulos públicos, imóveis, derivativos e outros produtos financeiros cujos preços e taxas de retorno sofrem grandes oscilações e dependem, em parte, do próprio comportamento imprevisível e compulsivo dos agen- tes desse mercado. Perdas rápidas e profundas são muito comuns. Há um risco financeiro sistêmico não con- trolável pela regulação dos fundos de previdência. A desproteção é o que menos im- porta. A saída apontada é privatizar, transformar um regime de solidarie- dade em mecanismos especulativos. Os fundos de previdência vão elevar enormemente a captação líquida e seus patrimônios e, o que é importan- te, vão desobrigar os empregadores de pagar contribuições sociais, livrando- -os de participar da solução dos pro- blemas sociais do país, o que entrega- rá cada um à própria sorte. Por fim, há no discurso oficial do governo a criação da falsa noção de que o regime de capitalização per- mitirá “a construção de um novo modelo que fortalece a poupança e o desenvolvimento no futuro”. Nada mais descolado da realidade brasi- leira. A “nova” previdência não favo- recerá a poupança porque, segundo dados da Anbima, 92% do patrimô- nio dos fundos de previdência se destinam à aquisição de títulos de renda fixa do próprio governo. De fa- to, os fundos de previdência apare- cem como os maiores proprietários de títulos nas estatísticas do Banco Central (25,5% do total). Assim, com o regime de capitalização, o governo vai deixar de pagar diretamente aposentadorias e pensões para os trabalhadores, para pagá-los indire- tamente, a custos elevadíssimos, via intermediação dos fundos por meio da dívida mobiliária do Estado. Um péssimo negócio para a ampla maio- ria dos brasileiros. Como se vê, a reforma da Previdên- cia não tem nada a ver com ajuste fis- cal ou com a eliminação de privilégios. É a exacerbação de uma ordem políti- ca e econômica que serve ao aprofun- damento da acumulação financeira e condena o país ao retrocesso, à dete- rioração das desigualdades sociais e à ausência de democracia. *Denise Lobato Gentil é doutora em Eco- nomia e professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O regime de capitalização, além de muito mais caro para os trabalhadores, expõe a população a um risco financeiro elevado A previdência alcança cerca de 28 milhões de pessoas e, desse total, 23,3 milhões ganham apenas um salário mínimo ed141-OK.indd 8 29/03/2019 16:43 9ABRIL 2019 Le Monde Diplomatique Brasil Devemos ter medo da China? A ofensiva partiu dos Estados Unidos antes de se estender para a maioria dos países ocidentais: a China, com seus produtos, espiões e ambições militares, estaria tentando desestabilizar a ordem internacional estabelecida após a Segunda Guerra Mundial. Pequimse defende. Xi Jinping montou uma operação de sedução em sua viagem à Europa, entre 21 e 26 de março. Essa ameaça chinesa existe mesmo? POR KISHORE MAHBUBANI* UMA NOVA ORDEM GEOPOLÍTICA D entro de quinze anos, a econo- mia chinesa terá ultrapassado a dos Estados Unidos, tornando- -se a mais poderosa do mundo. Com a aproximação dessa virada, um consenso domina Washington: a Chi- na pode prejudicar muito os interes- ses e o bem-estar dos norte-america- nos. O general Joseph Dunford, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, afirma sem rodeios: em 2025, a China deverá ser “a maior ameaça” (audiên- cia do Senado, 26 set. 2017). Na estra- tégia de defesa nacional dos Estados Unidos de 2018, a China e a Rússia são citadas como “potências revisionis- tas”, que procuram “forjar um mundo compatível com seu modelo autoritá- rio – obtendo direito de veto sobre as decisões econômicas, diplomáticas e de segurança de outras nações”.1 “A ameaça chinesa”, declara o diretor do FBI, Christopher Wray, “não está rela- cionada apenas às questões estratégi- cas e do conjunto do governo; ela afeta o conjunto da sociedade, e eu acho que vamos precisar de uma resposta na escala do conjunto da sociedade.” Essa ideia está tão difundida que, quando o presidente Donald Trump iniciou sua guerra comercial contra a China, em janeiro de 2018, ele recebeu o apoio até mesmo de personalidades moderadas, como o senador demo- crata Chuck Schumer. Duas preocupações alimentam es- sa inquietação. A primeira é econômi- ca: a China teria enfraquecido os Esta- dos Unidos por meio de práticas comerciais desleais, exigindo transfe- rências de tecnologia, violando o direi- to de propriedade intelectual e impon- do barreiras não tarifárias que impedem o acesso a seus mercados. A segunda é política: seu desenvolvi- mento econômico não estaria sendo acompanhado pelas reformas demo- cráticas liberais previstas pelos gover- nos ocidentais, principalmente o dos Estados Unidos. A China estaria se mostrando muito agressiva em suas relações com as outras nações. Con- vencido de tais análises, o cientista po- lítico Graham Allison chega, em um livro intitulado Vers la guerre,2 à depri- mente conclusão de que um conflito armado entre os dois países parece mais do que provável. No entanto, a China não está orga- nizando uma força militar capaz de ameaçar ou invadir a América, não tenta intervir nos assuntos domésticos dos Estados Unidos e não está em campanha para destruir a economia norte-americana. Apesar dos clamo- res a respeito do perigo chinês, deveria ser possível, entretanto, para os Esta- dos Unidos encontrar um meio pacífi- co de lidar com o país que, dentro de uma década, será a maior potência econômica, talvez até geopolítica, do mundo. E fazer isso defendendo seus próprios interesses, mesmo quando eles são contrários aos de Pequim. Ainda é preciso começar questio- nando uma antiga crença sobre o sis- tema político chinês. Desde o fim da União Soviética, os dirigentes dos Es- tados Unidos estão convencidos de que o destino do Partido Comunista Chinês (PCC) é ser enterrado junto com o Partido Comunista soviético. De um extremo a outro do espectro político, eles aceitaram, mais ou me- nos explicitamente, a tese apresentada por Francis Fukuyama em 1992: “Não somos testemunhas apenas do fim da Guerra Fria, [...] mas do fim da própria história como tal: a saber, o ponto final da evolução ideológica da humanida- de e a universalização da democracia liberal ocidental como uma forma fi- nal de governança humana”.3 Quando, em março de 2000, Bill Clinton explicou por que apoiava a adesão da China à Organização Mun- dial do Comércio (OMC), ele assegurou que a liberalização política seguiria a liberalização econômica, como a cau- da de uma serpente segue sua cabeça. E pediu a seus colegas: “Se você acredi- ta em um futuro mais aberto e mais li- vre para o povo chinês, você deve apro- var este acordo”. Seu sucessor, George W. Bush, tinha as mesmas convicções. Na Estratégia de Defesa Nacional de 2002, ele afirmou que, “com o tempo, a China perceberá que as liberdades so- ciais e políticas são a única fonte de grandeza de uma nação”. Hillary Clin- ton foi ainda mais explícita. Estenden- do o reinado do PCC, os chineses ten- tam, segundo ela, “impedir o curso dos acontecimentos; em vão. Eles não se- rão capazes de fazer isso. Mas tentarão desacelerá-lo o quanto puderem”. PLUTOCRACIA CONTRA MERITOCRACIA Pode-se questionar a confiança dos tomadores de decisão norte-america- nos, que se consideram em posição de ed141-OK.indd 9 29/03/2019 16:43 10 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2019 dar recomendações políticas à China. Ainda que nenhum império tenha acu- mulado tanto poder econômico, políti- co e militar como os Estados Unidos, a assinatura de sua Declaração de Inde- pendência (1776) tem menos de 250 anos. A história da China começou muito antes. Ao longo dos milênios, seu povo aprendeu que os maiores so- frimentos sobrevêm quando seu go- verno central está fraco e dividido, co- mo no século após a Guerra do Ópio (1842), ao longo do qual a China foi as- solada por invasões estrangeiras, guer- ras civis, fome e muitos outros males. Desde 1978, o país tirou 800 milhões de pessoas da pobreza e criou a maior classe média do mundo. Como escre- veu Graham Allison em um editorial para o China Daily, jornal estatal chi- nês, “é possível afirmar que houve, em quarenta anos de crescimento mila- groso, uma melhoria no bem-estar hu- mano mais rápida do que durante os 4 mil anos de história da China”. Tudo isso aconteceu enquanto o PCC estava no poder. E os chineses não deixaram de notar que o fim do Partido Comu- nista soviético foi acompanhado, na Rússia, por uma redução da expectati- va de vida, pelo aumento da mortalida- de infantil e pela queda da renda. Aos olhos dos norte-americanos, a luta entre seu sistema político e o da China se resume ao enfrentamento entre uma democracia, onde as pes- soas escolhem livremente o governo, podem falar o que quiserem e prati- cam a religião de sua escolha, e uma autocracia, onde elas são privadas des- sas liberdades. Mas, para observado- res menos militantes, a clivagem se apresenta de outra forma: ela opõe uma plutocracia norte-americana – na qual as decisões políticas acabam por favorecer os ricos em detrimento das massas – e uma meritocracia chinesa – na qual as decisões políticas, toma- das por funcionários escolhidos pelo partido com base em suas competên- cias, ajudaram a reduzir a pobreza de maneira espetacular. Nos últimos trinta anos, a renda mediana do traba- lhador norte-americano estagnou: en- tre 1979 e 2013, o salário horário real mediano aumentou apenas 6% – me- nos de 0,2% ao ano.4 Isso não significa que o sistema po- lítico chinês deva persistir em sua for- ma atual. As violações dos direitos hu- manos, principalmente a detenção de centenas de milhares de uigures,5 con- tinuam sendo um grande problema. Muitas vozes se elevam na China para exigir reformas. Entre elas, a do pro- fessor Xu Jilin,6 que reserva suas críti- cas mais agudas aos colegas do mundo acadêmico. Ele os acusa de dar exces- siva centralidade ao Estado-nação e muito destaque às diferenças cultu- rais e históricas fundamentais com os modelos políticos ocidentais. Xu argu- menta que essa insistência nos parti- cularismos marca uma ruptura com a cultura chinesa tradicional, que, como ilustra a noção histórica de tianxia, era um sistema universal e aberto. Criti- cando a rejeiçãoradical, por alguns de seus pares “nacionalistas extremis- tas”, de “tudo o que foi criado pelos ocidentais”, ele afirma, ao contrário, que a China sempre teve sucesso por- que sempre esteve aberta. No entanto, mesmo um progressis- ta como Xu não gostaria que seu país reproduzisse o sistema político norte- -americano. Pelo contrário, o profes- sor acha que a China deveria “explorar suas próprias tradições culturais” a fim de promover uma “nova tianxia”. Na frente interna, “os hans e as nume- rosas minorias nacionais devem gozar de plena igualdade no plano jurídico e em termos de sua situação social; as especificidades culturais das diversas nacionalidades devem ser respeitadas e protegidas”. No nível diplomático, as relações com os outros países “devem ser definidas pelos princípios do res- peito pela independência soberana do outro, da igualdade de tratamento e da convivência pacífica”. O sistema político chinês deverá evoluir junto com a situação econômi- ca e social. E, em muitos aspectos, já se transformou consideravelmente – abrindo-se. Por exemplo, em 1980, ne- nhum habitante da China estava auto- rizado a viajar para o exterior como turista. No ano passado, quase 134 mi- lhões de pessoas foram para o exterior e voltaram para casa por vontade pró- pria. Da mesma forma, milhões de jo- vens com mentes brilhantes puderam experimentar a liberdade das univer- sidades norte-americanas. Em 2017, oito em cada dez estudantes quiseram voltar para casa. NENHUM TIRO NOS ÚLTIMOS TRINTA ANOS No entanto, uma questão perma- nece: se as coisas vão bem, por que Xi Jinping impõe uma disciplina mais rigorosa aos comunistas e por que acabou com o limite de mandatos pre- sidenciais?7 Podemos dar a seu ante- cessor, Hu Jintao, o crédito por um crescimento econômico espetacular. Mas seu mandato também foi marca- do pelo recrudescimento da corrupção e do divisionismo, particularmente da parte de Bo Xilai, líder de Chongqing (30,5 milhões de habitantes), e Zhou Yongkang, ex-chefe todo-poderoso da segurança interna. Xi está convencido de que essas tendências podem desle- gitimar o PCC e atrapalhar a revitaliza- ção do país. Para enfrentar esses terrí- veis desafios, considera necessário restaurar um poder central forte. Ape- sar disso (ou graças a isso?), ele conti- nua extremamente popular. No mundo ocidental, muita gente se preocupa com seu enorme poder e vê nisso um sinal premonitório de con- flito armado. Mas essa mudança na li- derança do país não transformou de maneira fundamental a estratégia geo- política de longo prazo da China. Esta sempre evitou guerras inúteis. Ao con- trário dos Estados Unidos, que têm a sorte de ter dois vizinhos pacíficos – Canadá e México –, ela tem um relacio- namento difícil com vários vizinhos poderosos e altamente nacionalistas, entre eles a Índia, o Japão, a Coreia do Sul e o Vietnã. Dos cinco membros per- manentes do Conselho de Segurança da ONU, a China é o único que não dis- parou nenhum tiro fora de suas fron- teiras nos últimos trinta anos, desde a breve batalha naval com o Vietnã em 1988. Em compensação, mesmo sob o governo do presidente Barack Obama, considerado pacifista, as Forças Arma- das dos Estados Unidos lançaram em um único ano, 2016, 26 mil bombas so- bre sete países. É bastante evidente que os chineses dominam a arte da contenção estratégica. Claro que em alguns momentos eles estiveram à beira da guerra.8 Com o Japão, por exemplo, por causa das ilhas Senkaku/Diaoyu. Muito se tem falado também sobre a possibilidade de um conflito no Mar da China Meri- dional, pelo qual passa, todo ano, cerca de um quinto do transporte marítimo mundial. Em um contexto de sobera- nia contestada em algumas porções dessas águas, a China converteu reci- fes isolados e baixios nelas localizados em instalações militares. Mas, ao con- trário do que levam a crer as análises ocidentais, o país, cuja posição na re- gião é inegavelmente mais afirmada no plano político, não se tornou mais agressivo do ponto de vista militar. In- clusive, ele poderia facilmente expul- sar pequenos rivais, como a Malásia, as Filipinas e o Vietnã – mas não fez isso. BATALHA PELA SUPREMACIA INDUSTRIAL A rotineira narrativa da “agressão chinesa” nessa área geralmente deixa de mencionar que os Estados Unidos perderam muitas oportunidades de ali- viar as tensões na região. Um ex-embai- xador na China, J. Stapleton Roy, decla- rou que, em uma coletiva de imprensa conjunta com o presidente Obama, no dia 25 de setembro de 2015, Xi fez pro- postas sobre o Mar da China Meridional que incluíam a aprovação de declara- ções apoiadas pelos dez membros da Associação das Nações do Sudeste Asiá- tico (Anase). Ele acrescentou que não pretendia militarizar as Ilhas Spratley, onde obras gigantescas estavam em curso. A administração Obama não fez nenhum esforço para dar prossegui- mento a essa proposta conciliatória; ao contrário, intensificou as patrulhas de sua Marinha. Em resposta, a China ace- lerou a construção de instalações de- fensivas nessas ilhas. Quanto às questões econômicas, elas não requerem menos habilidade que os assuntos militares e diplomáti- cos. Esse não é o caminho escolhido por Trump. Mesmo com suas justifica- tivas duvidosas, a guerra comercial que ele desencadeou contra a China lhe valeram um amplo apoio do gran- de público, fenômeno que certamente põe em evidência um erro chinês: não levar em conta as crescentes críticas suscitadas por certas práticas desleais. No entanto, tais práticas explicam, por si só, a atitude de Trump? Na China e em toda parte, cada vez menos se acre- dita nisso. O que os Estados Unidos desejam é minar a ambição da China de se tornar um líder tecnológico. Co- mo observou Martin Feldstein, ex-pre- sidente do Comitê de Conselheiros Econômicos de Ronald Reagan, os Es- tados Unidos têm todo o direito de co- locar em prática políticas para impe- dir o roubo de suas tecnologias, mas isso não os autoriza a bloquear o plano estratégico nacional “Made in China 2025” – um projeto concebido para de- senvolver indústrias de ponta, como a de carros elétricos, a robótica avança- da e a inteligência artificial. Para manter sua supremacia nas indústrias de alta tecnologia, como a aeroespacial e a robótica, os Estados Unidos não podem se contentar em impor barreiras alfandegárias a seus parceiros. Eles precisam investir em ensino superior, pesquisa e desenvol- vimento; em outras palavras, preci- sam desenvolver sua própria estraté- gia econômica de longo prazo para responder à da China. Tanto no plano político como no plano retórico, o governo chinês tem uma visão clara do futuro de sua eco- nomia e de sua população. Programas como o “Made in China 2025” ou o “Novas Rotas da Seda” (Belt and Road Initiative, BRI), com seus projetos de infraestrutura, ilustram o desejo de se tornar um ator de primeira linha nas novas indústrias. Aliás, os dirigentes chineses insistem no fato de que seu país não pode prosseguir na busca pe- lo crescimento ignorando seu custo social: a desigualdade e a poluição ambiental. Xi reconheceu, em 2017, a necessidade de resolver a tensão “en- tre um desenvolvimento desequilibra- do e inadequado e a necessidade cada vez maior de uma vida melhor para os cidadãos”.9 Ninguém sabe se o gover- no será capaz de responder a isso. Mas pelo menos ele tomou consciência do problema. Nada impede que os Esta- dos Unidos façam o mesmo. Ocorre que, para desenvolver uma estratégia de longo prazo, os Estados Unidos precisam resolver uma contra- dição fundamental em seus próprios princípios. Seus maiores economistas acreditam que as políticas industriais conduzidas sob a liderança dos Esta- ed141-OK.indd 10 29/03/2019 16:43 11ABRIL2019 Le Monde Diplomatique Brasil dos não funcionam e defendem um capitalismo de livre mercado. Se tal crença tem fundamento, então o prin- cipal negociador comercial de Trump, Robert Lighthizer, não deveria ficar alarmado por causa dos esforços de Pequim para melhorar suas capacida- des tecnológicas. Ele deveria acomo- dar-se confortavelmente e aguardar até que a iniciativa industrial da China desmorone por si mesma, saboreando o espetáculo de seu fracasso. No entanto, se Lighthizer acredita que o plano de 2025 pode ter sucesso, cabe a ele pedir que seus concidadãos revejam seus postulados ideológicos. Eles poderiam, então, desenvolver uma estratégia de longo prazo equiva- lente. A Alemanha, aliás, provavel- mente a maior potência industrial do mundo, já conta com um roteiro como esse, chamado Industry 4.0. PRESENTE ESTRATÉGICO PARA PEQUIM Ironia do destino: a colaboração mais vantajosa para os Estados Uni- dos seria justamente aquela que eles poderiam estabelecer com a China. Esta quer apenas utilizar suas reser- vas de US$ 3 trilhões para investir mais nos Estados Unidos, que pode- riam considerar uma participação no BRI, para grande satisfação dos países envolvidos no projeto, muito interes- sados em moderar a preponderância chinesa. Em suma, há muitas oportu- nidades para serem aproveitadas. As- sim como a Boeing e a General Elec- tric tiraram proveito da explosão do mercado de aviação chinês, empresas como a Caterpillar e a Bechtel pode- riam se beneficiar das grandes obras realizadas nesses países. Até o mo- mento, porém, a aversão ideológica dos Estados Unidos ao intervencionis- mo estatal na economia torna esses cenários improváveis. Fazia sentido que os Estados Uni- dos tivessem o maior orçamento de de- fesa do mundo quando seu poder eco- nômico deixava em segundo plano todas as outras nações. Faria sentido que a segunda maior economia do mundo ainda tivesse o maior orça- mento de defesa do planeta? Agarrar- -se a essa supremacia não seria um presente estratégico para a China? Esta aprendeu uma importante lição com o colapso do bloco soviético: o cresci- mento econômico deve vir antes das despesas com armamentos. Nessas condições, Pequim só pode se alegrar 1 “Summary of the National Defense Strategy of the United States 2018” [Resumo da Estratégia Nacio- nal de Defesa dos Estados Unidos 2018], Depar- tamento de Defesa, Washington, DC. Disponível em: <https://dod.defense.gov>. 2 Graham Allison, Vers la guerre. L’Amérique et la Chine dans le piège de Thucydide? [Rumo à guer- ra. América e China na armadilha de Tucídides?], Odile Jacob, Paris, 2019. 3 Francis Fukuyama, La Fin de l’histoire et le dernier homme [O fim da História e o último homem], Flammarion, Paris, 2009 (1. ed.: 1992). 4 Lawrence Mishel, Elise Gould e Josh Bivens, “Wage stagnation in nine charts” [A estagnação salarial em nove gráficos], Economic Policy Institu- te, Washington, DC, 6 jan. 2015. Disponível em: <www.epi.org>. 5 Ler Remi Castets, “A repressão contra os uigures no controlado mundo do ‘sonho chinês’”, Le Mon- de Diplomatique Brasil, mar. 2019. 6 Cf. Xu Jilin, Rethinking China’s Rise: A Liberal Cri- tique [Repensando a ascensão da China: uma crí- tica liberal], Cambridge University Press, 2018. 7 Até março de 2018, o presidente da República não podia ter mais do que dois mandatos. 8 Cf. Richard McGregor, Asia’s Reckoning: China, Japan, and the Fate of US Power in the Pacific Century [O acerto de contas da Ásia: China, Japão e o destino do poder dos Estados Unidos no Sécu- lo do Pacífico], Viking, Nova York, 2017. 9 Discurso no XIX Congresso do PCC, Xinhua, 18 out. 2017. ao ver Washington desperdiçando seu dinheiro em gastos militares inúteis. Se os Estados Unidos conseguissem mudar sua visão sobre a China, eles des- cobririam que é possível desenvolver uma estratégia capaz de freá-la e de fa- zer avançar seus próprios interesses. Em um discurso pronunciado na Uni- versidade de Yale em 2003, Clinton enunciou a filosofia por trás dessa estra- tégia, explicando, essencialmente, que a única maneira de conter a próxima su- perpotência é criando regras multilate- rais e parcerias que a limitem. Sob o reinado de Xi, a China conti- nua favorável ao fortalecimento da ar- quitetura multilateral mundial criada pelos Estados Unidos, incluindo o FMI, o Banco Mundial, a ONU e a OMC. Ela forneceu mais forças de manutenção da paz do que os outros quatro mem- bros permanentes do Conselho de Se- gurança. Novas oportunidades de coo- peração surgirão, portanto, em fóruns multilaterais. Mas, para aproveitá-las, os dirigentes dos Estados Unidos preci- sam aceitar uma realidade: a ascensão da China (e da Índia) é inevitável. *Kishore Mahbubani é ex-embaixador de Cingapura nas Nações Unidas, professor de Políticas Públicas da Universidade de Cin- gapura e autor de L’Occident (s’)est-il per- du? [O Ocidente (se) perdeu?], Fayard, Pa- ris, 2019. Este artigo é parte de um texto publicado na revista Harper’s, em fevereiro de 2019. KARL MARX FRIEDRICH ENGELS ADAPTAÇÃO DE MARTIN ROWSON MANIFESTO EM QUADRINHOS COMUNISTA ed141-OK.indd 11 29/03/2019 16:43 12 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2019 A ESTRATÉGIA POPULISTA EM QUESTÃO A Espanha vota, o Podemos hesita Há muito pouco tempo, cada eleição espanhola parecia confirmar o avanço do Podemos. Contudo, são poucos os que esperam uma vitória do partido nas eleições gerais de 28 de abril. Enquanto a extrema direita avança, como explicar a retração de uma formação que parecia ter recuperado a esperança dos progressistas europeus? POR JOSÉ ANTÓNIO GARCÍA SIMON E JAIME VINDEL* S urgido do nada há cinco anos, com a ambição de chegar ao to- po (da Espanha), o Podemos parecia ter regenerado a forma de falar e de fazer política na Europa. Cinco anos depois, ninguém acredita na vitória das promessas de ontem, e o partido parece ameaçado de se nor- malizar no seio de uma paisagem polí- tica que o rejeita em bloco. Sua retra- ção atual é uma fase, comum a todas as lutas desse tipo? Ou reflete o recrudes- cimento das tensões que persistiam no momento em que o partido nasceu? Quando o Podemos irrompeu na cena política espanhola, em 17 de ja- neiro de 2014, seus fundadores enten- diam levar adiante as exigências da “democracia real” reivindicada pelo movimento dos “indignados”, que ocupou as ruas do país em maio de 2011.1 Suas reivindicações se desdo- braram em um grande espectro de slo- gans e propostas, com um denomina- dor comum: o questionamento da ordem política (e, em menor medida, da econômica) derivada da passagem da ditadura franquista (1936-1977) à democracia liberal. Em grandes li- nhas, essa contestação se organizou em torno de dois projetos distintos: de um lado, um ímpeto de regenerar o sistema; de outro, uma ambição maior de transformação social. Reformar ou transformar: “A tensão entre essas duas opções se refletirá em seguida nos debates internos do partido”, res- salta Brais Fernández, cientista políti- co, secretário de redação da Viento Sur e membro do Anticapitalistas, uma or- ganização trotskista que foi um dos fundadores do Podemos. Para a primeira corrente dos “in- dignados”, portanto, “a prioridade é renovar as pessoas da política”, afirma Fernández. Em certa medida, as mobi- lizações de rua revelaram o descon- tentamento das classes médias no im- passe, com suas ambições de ascensão social abaladas pela crise de 2008. No poder, o Partido Socialista Operário Espanhol (Psoe), principal pilar do imaginário progressista na Espanha pós-transição, optou pela austeridade – escolha que simboliza a modifica-
Compartilhar