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Le Monde Diplomatique Brasil - Edição 141 - Abril 2019

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9 771981 752004
00141
LE MONDE
diplomatique
BRASIL
R$ 14,90ANO 12 / NÚMERO 141
UMA NOVA ORDEM
DEVEMOS TER 
MEDO DA CHINA?
POR KISHORE MAHBUBANI
MANIFESTO 
LÍNGUAS INDÍGENAS COMO 
PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE
POR NOAM CHOMSKY E OUTROS 22 369
A GUERRA NA VIDA
UMA ENTREVISTA 
COM MIA COUTO
POR BEATRIZ BRANDÃO
LE MONDE
diplomatique
BRASIL
R$ 14,90
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2 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2019
EDITORIAL
Adeus ao desenvolvimento
POR SILVIO CACCIA BAVA
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urante décadas, desde a cria-
ção pelas Nações Unidas da 
Comissão Econômica para a 
América Latina e o Caribe (Ce-
pal), em 1948, o continente sul-ameri-
cano vem discutindo suas possibilida-
des de desenvolvimento associadas a 
processos de industrialização e elabo-
ração de tecnologias próprias. 
Quando da criação da Cepal, Raúl 
Prebisch liderava o debate, propondo 
um projeto nacional desenvolvimentis-
ta baseado no modelo de industrializa-
ção para substituição de importações. 
Celso Furtado participava dessa visão e 
discutiu a industrialização tardia da re-
gião, abrindo campo para o debate so-
bre o subdesenvolvimento e o aprofun-
damento da desigualdade. Seu Plano de 
Metas atribuía ao Estado um papel es-
tratégico para o desenvolvimento.
A doutrina cepalina assumia que o 
Estado é o indutor do processo e do ti-
po de desenvolvimento. Por meio de 
investimentos em infraestrutura, o Es-
tado oferecia condições para a iniciati-
va privada empreender a industriali-
zação do país e afirmava seu papel de 
regulação da economia e do modelo 
de desenvolvimento.
A estratégia de substituição de im-
portações fez o Brasil crescer uma mé-
dia de 6,31% ao ano de 1930 a 1980, 
uma das maiores taxas mundiais do 
período. Historiadores identificam a 
época como a Era Desenvolvimentis-
ta. No mesmo período, a desigualdade 
se aprofundou porque, entre outros fa-
tores, as elites empresariais não acei-
tavam uma tributação corresponden-
te aos seus ganhos.1
O Brasil construiu empresas estra-
tégicas e competitivas nacional e in-
ternacionalmente, como a Vale do Rio 
Doce, a Petrobras e a Telebras, com 
grande capacidade técnica, financeira 
e organizacional. 
Desde meados dos anos 1970, com 
a ascensão do neoliberalismo em es-
cala mundial, a situação dos países pe-
riféricos, ou subdesenvolvidos, foi se 
modificando para pior. Os termos de 
troca com os países centrais do capita-
lismo se deterioraram, sua autonomia 
foi progressivamente reduzida e o Es-
tado foi atacado em nome da liberdade 
de ação do capital. 
No Brasil, a ditadura que foi de 1964 
a 1985 resistiu ao neoliberalismo, con-
trapondo a ele um projeto de desenvol-
vimento nacional abraçado pelos mili-
tares e calcado na estratégia de tornar 
o país uma potência intermediária, 
regional. 
No entanto, a partir dos anos 1980 
o Brasil passou a viver um processo de 
estagnação econômica que continua 
até hoje.2 De 1985 a 1994, o PIB cresceu 
apenas 2,8% ao ano e o crescimento do 
PIB per capita foi de apenas 1% ao ano. 
Tornava-se urgente a criação de ini-
ciativas conjuntas entre os países da re-
gião para intensificar suas trocas co-
merciais e fazer face, em conjunto, ao 
avanço das desregulações do mercado 
impostas pelo neoliberalismo. Era pre-
ciso defender a incipiente industrializa-
ção onde ela já existia e criar maiores 
capacidades de negociação internacio-
nal em relação aos Estados Unidos e aos 
demais países centrais do capitalismo.
A Associação Latino-Americana de 
Integração (Aladi) foi criada em 1980, 
sendo um primeiro passo para a inte-
gração econômica regional. Argenti-
na, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, 
Cuba, Equador, México, Panamá, Pa-
raguai, Peru, Uruguai e Venezuela se 
uniram na perspectiva de fortalecer a 
integração econômica da região, ten-
do como meta a criação de um merca-
do comum latino-americano.
A partir dos anos 1990, a pressão 
dos países centrais e dos organismos 
multilaterais aumentou. Globalmente, 
eles impuseram as regras estabeleci-
das pelo chamado Consenso de 
Washington, que demandou abertura 
comercial, desregulamentação cam-
bial e financeira, “flexibilização” das 
relações de trabalho e desmonte das 
políticas sociais de caráter universal. O 
impeachment de Collor retardou sua 
adoção no Brasil, a qual teve início no 
governo Fernando Henrique Cardoso. 
Nesse cenário, uma maior articu-
lação entre Brasil e Argentina permi-
tiu a criação do Mercosul, em 1991, in-
corporando também Paraguai e 
Uruguai. A estratégia era intensificar 
as trocas comerciais entre os países 
participantes e buscar uma melhor 
negociação do bloco regional com ou-
tros países e regiões. De 1990 a 1994, o 
comércio entre os países-membros 
aumentou 180%, atraindo a participa-
ção de outras nações na condição de 
membros associados: Bolívia (1996), 
Chile (1996), Peru (2003), Equador 
(2004) e Colômbia (2004). Em 2012, a 
Venezuela entrou como membro ple-
no e foi suspensa indefinidamente em 
2016 pelos novos governantes de direi-
ta. A situação atual paralisa as nego-
ciações, já em estado avançado, de um 
acordo comercial do Mercosul com a 
União Europeia. 
O sucesso da iniciativa de constru-
ção de um bloco regional, assim como 
a rejeição por parte dos governos sul-
-americanos da proposta dos Estados 
Unidos de criação da Área de Livre 
Comércio das Américas (Alca), em 
2005, abriu uma perspectiva de maior 
autonomia regional e de construção 
de um mundo multipolar, estratégia 
perseguida também em outros conti-
nentes com a formação de blocos re-
gionais, inspirados na União Euro-
peia, criada em 1993.
A defesa das possibilidades de de-
senvolvimento e de uma maior inte-
gração regional passam a andar jun-
tas. Nenhum país sozinho consegue 
negociar melhores condições de de-
senvolvimento com os países centrais 
do capitalismo, especialmente com os 
Estados Unidos.
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3ABRIL 2019 Le Monde Diplomatique Brasil
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A TÁTICA DA INFÂMIA
O cordão sanitário
POR SERGE HALIMI*
1 “Alain Finkielkraut: ‘Ich bin kein Opfer’” [Alain Fin-
kielkraut: “Eu não sou uma vítima”], Die Zeit, Ham-
burgo, 21 fev. 2019. 
2 Bernard-Henri Lévy, “Il faut franchir le ‘point God-
win’” [É preciso atravessar o “ponto Godwin”], Le 
Point, Paris, 7 mar. 2019.
1 Marcel Grillo Balassiano, Desempenho da econo-
mia brasileira entre 1980 e 2015: uma análise da 
desaceleração brasileira pós-2010. Disponível em: 
<http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/hand-
le/10438/18091>.
2 Ricardo Dathein, “Brasil: vinte e cinco anos de estag-
nação econômica e as opções do desenvolvimento”. 
Disponível em: <www.ufrgs.br/fce/wp-content/
uploads/2015/02/TD08_2005_dathein.pdf>.
D
urante décadas, o poder eleito-
ral da extrema direita serviu 
como política de segurança pa-
ra os liberais de esquerda e de 
direita: qualquer burrico moderado 
facilmente cruzava a linha de chega-
da, contanto que se opusesse a um 
partido político inadmissível, indese-
jável, irrespirável. Nas eleições presi-
denciais francesas de 2002, o resultado 
de Jean-Marie Le Pen estagnou entre 
os dois turnos, passando de 16,8% pa-
ra 17,8%. Ao mesmo tempo, o de seu 
rival Jacques Chirac voou de 19,8% pa-
ra 82,2% dos votos. A mesma operação 
permitiu que Emmanuel Macron ven-
cesse em 2017, ainda que com margem 
menos espetacular.
O que deu certo contra a extrema 
direita, os liberais pretendem usar 
contra a esquerda. Eles, portanto, pro-
curam construir, contra sua eventual 
progressão, um muro de valores que 
por sua vez venha a torná-la suspeita e 
assim obrigar aqueles que não mais 
suportam as políticas do poder a se 
acomodar a elas apesar de tudo, posto 
que consideram ignóbeis seus adver-sários mais poderosos.
Como que por acaso, a calúnia de 
uma esquerda tornada antissemita 
floresceu ao mesmo tempo na França, 
no Reino Unido e nos Estados Unidos. 
Uma vez designado o alvo, é suficiente 
encontrar um julgamento desastrado, 
ultrajante ou desprezível na página do 
Facebook ou na conta do Twitter de 
um membro da corrente política que 
se quer desonrar (o Partido Trabalhis-
ta Britânico tem mais de 500 mil mem-
bros). Então a mídia assume. Pode-se 
também buscar destruir um adversá-
rio, atribuindo-lhe um fantasma an-
tissemita que lhe seja estranho – do ti-
po: a democracia, o jornalismo e o 
setor financeiro estão a serviço dos ju-
deus – tão logo ele formule uma crítica 
à oligarquia, à mídia ou aos bancos.
E pronto. “Se [Jeremy] Corbyn se 
mudasse para Downing Street, seria 
possível dizer que, pela primeira vez 
desde Hitler, um antissemita governa 
um país europeu”, finge alertar o aca-
dêmico Alain Finkielkraut.1 A situação 
é igualmente ameaçadora nos Estados 
Unidos, já que, segundo o presidente 
Donald Trump, com a eleição para o 
Congresso de vários ativistas de es-
querda, “o Partido Democrata tornou-
-se um partido anti-Israel, um partido 
antijudaico”. “Os democratas odeiam o 
povo judeu”, acrescentou. Por sua par-
te, Bernard-Henri Lévy acaba de asso-
ciar o deputado e jornalista francês 
François Ruffin ao mesmo tempo a Lu-
cien Rebatet, autor do panfleto antisse-
mita Os escombros, a Xavier Vallat, co-
missário-geral para questões judaicas 
sob o regime de Vichy, e a Robert Bra-
sillach, colaborador fuzilado na Liber-
tação. O mentiroso queridinho da mí-
dia teria identificado em Ruffin uma 
“filiação consciente ou sub-reptícia 
com a prosa de Gringoire”,2 um sema-
nário gotejante de ódio antissemita do 
qual uma das mais famosas campa-
nhas de difamação levou ao suicídio 
um ministro da Frente Popular.
Judeus foram assassinados na Fran-
ça e nos Estados Unidos por antissemi-
tas. Tal tragédia não deveria servir co-
mo arma ideológica para Trump, para o 
governo israelense e para intelectuais 
falsários. Se é necessário construir um 
cordão sanitário, que ele nos proteja so-
bretudo daqueles que imputam a seus 
adversários uma infâmia da qual sa-
bem que são inocentes. 
*Serge Halimi é diretor do Le Monde 
Diplomatique.
O sucesso do Mercosul e o interesse 
de outros países do continente em par-
ticipar levaram, em 2008, muito em ra-
zão de um esforço diplomático do Bra-
sil, à criação da Unasul, uma associação 
de doze países da América do Sul que 
soma o Mercosul e a Comunidade An-
dina, com a perspectiva de formar um 
bloco regional à semelhança da União 
Europeia. A proposta foi ratificada em 
2010 e sua estratégia foi de integração 
econômica da região, mas também de 
uma maior integração social e política. 
Foram criados o Banco do Sul, o Parla-
mento Sul-Americano, o Conselho de 
Defesa, entre outras iniciativas. 
Em 2008, os Estados Unidos reati-
varam sua IV Frota, um impressionan-
te conjunto de forças navais e aéreas, 
mais poderoso que qualquer força mi-
litar da região, com a tarefa de patru-
lhar as águas do Atlântico Sul, numa 
clara demonstração de força e poder. A 
estratégia de recuperar o controle da 
América Latina se explicitou em várias 
frentes, com tentativas de golpe e de-
posição de presidentes, como ocorreu 
na Venezuela em 2002, na Bolívia em 
2008, no Equador em 2010, no Paraguai 
em 2012, com a deposição do presiden-
te Lugo, e no Brasil em 2016, com o im-
peachment de Dilma Rousseff. 
Os esforços de desestabilização 
dos governos democráticos populares 
articularam as tradicionais oligar-
quias locais contra os governos demo-
cráticos e populares e também atua-
ram nas eleições presidenciais da 
região, apoiando fortemente campa-
nhas na sociedade civil para a crimi-
nalização das esquerdas e a eleição de 
candidatos de direita.
O desmonte do bloco regional em 
construção se deu pelos governos elei-
tos de direita da Argentina, Brasil, Co-
lômbia, Chile, Paraguai, Peru e Equa-
dor, que se retiraram da Unasul e 
acabaram de criar o Foro para o Pro-
gresso da América do Sul (Prosul), em 
substituição àquela. Em comum, par-
tilham a cartilha neoliberal e um ali-
nhamento incondicional às políticas 
dos Estados Unidos. 
Os países da América do Sul volta-
ram à condição de economias subordi-
nadas aos interesses norte-americanos. 
Seus regimes autoritários reforçam a 
atuação predatória das empresas multi-
nacionais, que extraem do continente 
suas riquezas naturais e seus produtos 
primários, inibindo qualquer iniciativa 
de industrialização ou de políticas autô-
nomas. É o novo colonialismo. 
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4 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2019
CAPA
O propósito velado da 
“reforma” da Previdência
O ardil da “reforma” é retirar da Constituição todas as regras do Regime Próprio de Previdência do Servidor (RPPS) 
e do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), e introduzir nela o regime de capitalização individual. Transformações de 
grande monte, sem debate com a sociedade, serão feitas por leis complementares
POR EDUARDO FAGNANI*
A
justar periodicamente o siste-
ma previdenciário é usual em 
nações desenvolvidas. Mas são 
ajustes que não destroem os 
respectivos regimes de bem-estar so-
cial. O requisito para debater qualquer 
reforma previdenciária no Brasil é que 
o governo apresente um diagnóstico 
técnico qualificado dos reais proble-
mas que precisam ser corrigidos. Esse 
diagnóstico não existe, porque, de fa-
to, não se quer fazer nenhum ajuste. O 
real propósito da “reforma” da Previ-
dência é soterrar o pacto social de 
1988. Ela é peça do projeto ultraliberal 
que se pretende colocar em prática em 
marcha forçada. Os espertalhões que 
a formularam ocultam seu projeto 
real: forçar uma mudança estrutural 
na Constituição, sem nada debater 
com a sociedade.
l 
m e 
o 
os 
do 
o e 
 
Nesse cenário, prevalece a superfi-
cialidade da ideologia em detrimento 
do rigor técnico e do debate qualifica-
do. O artifício para impor as mudan-
ças estruturais pretendidas é o terro-
rismo demográfico, financeiro e 
econômico. Para os financistas do 
mercado e do governo, os destinos da 
Nação dependeriam exclusivamente 
da reforma da Previdência. A desones-
tidade intelectual irresponsável con-
duz à profecia de que sem essa especí-
fica reforma o Brasil “vai quebrar”.
O VENTO QUE ANTECEDE A TEMPESTADE
O ardil da “reforma” é retirar da 
Constituição todas as regras do Regi-
me Próprio de Previdência do Servi-
dor (RPPS) e do Regime Geral da Pre-
vidência Social (RGPS), e introduzir 
nela o regime de capitalização indivi-
dual. Portanto, a verdadeira “reforma” 
não é essa que hoje se discute, a qual 
apenas introduz meras diretrizes 
transitórias até que a verdadeira refor-
ma seja feita por meio de dezenas de 
leis complementares de iniciativa do 
Poder Executivo. Essas mudanças são 
mais fáceis de ser aprovadas: enquan-
to uma emenda constitucional exige o 
apoio de 308 deputados e 49 senado-
res, em duas votações em cada casa, a 
legislação complementar demanda 
257 votos de deputados, em duas vota-
ções, e 41 de senadores, em uma vota-
ção. É na tramitação dessas leis que se 
pretende acabar com o Estado social 
de 1988, e, posteriormente, a continui-
dade desse processo poderá ser feita 
por atos normativos do Executivo e 
mesmo por medidas provisórias. 
Assim se vê que a “nova previdên-
cia” é o vento que antecede a tempes-
tade. Sob o “rolo compressor” do Con-
gresso, o que é ruim pode ficar muito 
pior. Rechaçar essa trama é opção ine-
vitável dos parlamentares, dos movi-
mentos sociais e dos setores da socie-
dade comprometidos com o propósito 
de evitar mais um retrocesso de gran-
de monta no incipiente processo civi-
lizatório brasileiro.PRINCÍPIOS ELEMENTARES DA 
SOCIAL-DEMOCRACIA SÃO INACEITÁVEIS
Os “capitalistas” brasileiros, antis-
sociais e antidemocráticos, não aceita-
ram sequer a introdução no país de al-
guns princípios basilares da 
social-democracia. Os constituintes se 
inspiraram nos êxitos dessa experiência 
internacional no período 1945-1975, 
quando políticas econômicas visando 
ao pleno emprego e instituições do Es-
tado de bem-estar social passaram a ser 
aceitas como instrumentos para lidar 
com disfunções decorrentes da econo-
mia de mercado. Os direitos sociais uni-
versais, parte da cidadania plena, pas-
saram a ser regidos pelo princípio da 
solidariedade social (seguridade) em 
detrimento da capacidade contributiva 
individual (seguro). Houve uma combi-
nação virtuosa entre a tributação pro-
gressiva e os regimes de bem-estar: a 
transferência da renda por essa via tor-
nou-se requisito para o bom funciona-
mento do Welfare State. 
É nesse contexto que se percebe o 
período iniciado pela Constituição 
Federal de 1988 como um ciclo inédito 
de restauração da democracia e de 
avanços formais na construção da ci-
dadania social. A seguridade é o prin-
cipal mecanismo brasileiro de prote-
ção social. Além dos mais de 40 
milhões de benefícios diretos (previ-
dência urbana e rural, assistência so-
cial e seguro-desemprego) transferi-
dos para as famílias (a maior parte 
equivalente ao piso do salário míni-
mo), a seguridade contempla a oferta 
de serviços universais proporciona-
dos pelo Sistema Único de Saúde, pelo 
Sistema Único de Assistência Social e 
pelo Sistema Único de Segurança Ali-
mentar e Nutricional. 
A previdência social (urbana e ru-
ral) e o Benefício de Prestação Conti-
nuada (BPC) protegem e provêm renda 
próxima do piso do salário mínimo 
para 82% dos idosos brasileiros, fo-
mentam a agricultura familiar, com-
batem o êxodo rural e regional e pro-
movem a economia local. Segundo o 
Ipea, em 2014 apenas 8,8% das pessoas 
com 65 anos ou mais viviam com ren-
da menor ou igual a meio salário míni-
mo, o que demonstra que a pobreza 
entre idosos é hoje praticamente resi-
dual no país. Caso não houvesse a pre-
vidência e o BPC, o percentual de ido-
sos pobres aos 75 anos superaria 65% 
do total. Estudo sobre a incidência da 
política fiscal na distribuição da renda 
realizado pela Cepal1 revela que, no 
Brasil, o coeficiente de Gini cai 16,4 
pontos percentuais por conta do gasto 
com educação, seguido pelas aposen-
tadorias e pensões públicas e pelo gas-
to com saúde.
DESTRUIÇÃO DO ESTADO SOCIAL
No plano mais geral, o projeto libe-
ralizante tem por propósito fazer a 
transição da proteção social em duas 
direções: da seguridade para o assis-
tencialismo e da seguridade para o se-
guro social. São transformações estru-
turais de grande monta, que precisam 
ser debatidas pela sociedade.
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5ABRIL 2019 Le Monde Diplomatique Brasil
1. Da seguridade social para 
 o assistencialismo
A “reforma” tende a excluir uma 
massa considerável de trabalhadores 
porque cria regras severas que descon-
sideram a realidade do mercado de 
trabalho. Cerca de 50 milhões de tra-
balhadores adultos que compõem a 
população em idade ativa (PIA) não 
trabalham. Mais de 105 milhões de 
brasileiros fazem parte da população 
economicamente ativa (PEA). Entre-
tanto, quase 13 milhões estão desem-
pregados; outros 92 milhões estão 
ocupados, mas cerca de 35 milhões 
trabalham sem carteira ou têm algum 
vínculo precário. Portanto, aproxima-
damente 100 milhões de trabalhado-
res, que já não contribuem para a pre-
vidência, terão dificuldades para 
cumprir as novas regras e não conta-
rão com essa proteção na velhice – 
quadro que tende a se agravar com o 
avanço da reforma trabalhista. 
Nesse cenário, poucos brasileiros 
comprovarão quarenta anos de contri-
buição para ter direito à aposentadoria 
integral. A aposentadoria parcial ten-
de a ser inacessível para mais de 35% 
dos brasileiros, que têm dificuldades 
de comprovar vinte anos de contribui-
ção. Observe-se que, em 2015, em fun-
ção da alta rotatividade do emprego, 
de um período de doze meses, só nove 
meses eram realmente trabalhados, 
em média. Assim, para completar vin-
te anos de contribuição eram necessá-
rios quase 27 anos de trabalho ininter-
ruptos com carteira assinada. Com a 
reforma trabalhista, o período contri-
butivo tende a encurtar, dificultando 
ainda mais o acúmulo de tempo de 
contribuição. 
As regras de transição da aposen-
tadoria por tempo de contribuição são 
curtas e severas. Em uma das opções, 
em 2028, os homens passam dos 
atuais 96 para 105 pontos (65 anos de 
idade mais quarenta anos de contri-
buição, por exemplo), um acréscimo 
de 9 pontos em dez anos; e as mulhe-
res passam dos atuais 86 para 100 
pontos, um acréscimo de 14 pontos 
em catorze anos. 
Entretanto, nessa “corrida de obs-
táculos”, o “gatilho” demográfico colo-
ca um desafio adicional: a idade míni-
ma poderá ser de 67/64 em 2033, 
porque o texto prevê esse aumento 
sempre que se eleve a expectativa de 
sobrevida aos 65 anos. 
Na previdência rural, a idade míni-
ma da mulher passa de 55 para 60 anos 
e impõe-se um tempo de contribuição 
monetária de vinte anos, desconhe-
cendo-se a realidade de que 70% das 
mulheres do meio rural começam a 
trabalhar com até 14 anos de idade. 
A aposentadoria por invalidez será 
de primeira classe (acidente no traba-
lho) e de segunda classe (acidente fora 
do trabalho), cujos valores de benefí-
cio são distintos (respectivamente 
100% e 60% da média de todas as con-
tribuições). Também se cria a pensão 
por morte de primeira e de segunda 
classe (que pode ser inferior ao salário 
mínimo) e restringe-se o acúmulo de 
mais de uma aposentadoria e pensão. 
A “reforma” cria mais dificuldades 
para a aposentadoria das pessoas com 
deficiência, que “previamente” serão 
submetidas a uma “avaliação biopsi-
cossocial”. Após essa avaliação, os be-
nefícios serão concedidos desde que o 
segurado comprove: 35 anos de con-
tribuição (“deficiência leve”), 25 anos 
de contribuição (“moderada”) e vinte 
anos de contribuição (“grave”). 
O acesso ao abono salarial será res-
tringido apenas para quem recebe salá-
rio mínimo, excluindo mais de 20 mi-
lhões de trabalhadores que recebem 
entre um e dois salários mínimos. 
No futuro, os valores dos benefícios 
poderão ser reajustados abaixo da in-
flação. A Constituição assegura “o rea-
justamento dos benefícios para pre-
servar-lhes, em caráter permanente, o 
valor real”. Mas o novo texto exclui o 
termo “valor real”.
Com as novas regras, poucos brasi-
leiros conseguirão ter proteção previ-
denciária e pressionarão, em massa, a 
proteção assistencial, que não exige 
contribuição. Em decorrência, levan-
ta-se um muro de contenção fiscal, re-
baixando o valor do Benefício de Pres-
tação Continuada (BPC) para R$ 400. 
Como se sabe, esse benefício é dirigido 
aos idosos e portadores de deficiência, 
socialmente mais vulneráveis. Atual-
mente, o BPC beneficia mais de 5 mi-
lhões de pessoas, garantindo renda 
mensal de cidadania, no valor de um 
salário mínimo, aos idosos (65 anos ou 
mais) e pessoas com deficiência com 
renda familiar per capita inferior a um 
quarto de salário mínimo. Caminha-
remos assim da seguridade para o as-
sistencialismo, pela via da reforma rea-
lizada por legislação complementar.
2. Da seguridade social para 
 o seguro social
A seguridade se diferencia do segu-
ro (contrato individual selado com o 
prestador de serviços). No caso da pre-
vidência, a insegurança é máxima, 
pois esse contrato tem vigência por 
mais de trinta anos. No Brasil, esses 
riscos são extremos em função da de-
sigualdade social, da heterogeneidade 
regional e da realidade do mercado detrabalho. 
A “reforma” determina a criação de 
“sistema obrigatório de capitalização 
individual” para o RPPS (União, esta-
dos e municípios) e para o RGPS, onde 
se pretende criar a “carteira verde-
-amarela”, portadora de escassos di-
reitos trabalhistas. O jovem que come-
ça a trabalhar poderá “optar” pela 
carteira e aderir ao regime de capitali-
zação. Um ponto obscuro é o aceno 
para a possibilidade da criação de um 
“fundo solidário”, organizado e finan-
ciado para a “garantia de piso básico, 
não inferior ao salário mínimo para 
benefícios”. Portanto, o próprio gover-
no antevê que nem sequer o piso bási-
co será garantido e não esclarece 
quem vai financiar o tal fundo. 
A “reforma” desconsidera o fracas-
so desse modelo evidenciado pelo ca-
so chileno e sua reversão em dezenas 
de países.2 O debate sobre esse tema 
não pode avançar sem que antes o go-
verno apresente, de forma criteriosa, a 
estimativa do chamado “custo da 
transição” da seguridade social para o 
seguro social, bem como os parâme-
tros utilizados para esse cálculo. Não 
podemos deixar que se repita aqui o 
que ocorreu no Chile: “Na prática, os 
custos de transição de um modelo de 
previdência para o outro são altíssi-
mos. Os custos de transição começa-
ram a ser pagos em 1981, e ainda esta-
mos pagando. São 37 anos e ainda 
devemos, sobretudo, as pensões de 
pessoas que se aposentaram no siste-
ma antigo. Atualmente, o governo chi-
leno ainda subsidia o sistema previ-
denciário do Chile com US$ 9 bilhões 
anuais”.3
REFORMA JUSTA? 
O governo estima que a “reforma” 
geraria economia de R$ 1,165 trilhão 
em dez anos.4 Seu caráter injusto tam-
bém se reflete no fato de que, desse 
montante, R$ 715 bilhões serão “eco-
nomizados” por cortes nos direitos 
dos trabalhadores rurais e urbanos 
inscritos no RGPS; e outros R$ 182 bi-
lhões, por cortes no BPC e no abono 
salarial. Portanto, 75,6% da suposta 
economia decorre da subtração de di-
reitos dos beneficiários desses progra-
mas sociais. 
Observe-se que, em 2016, no RGPS, 
eram mais de 20 milhões de benefícios 
urbanos, dos quais 54% tinham valor 
igual ou menor do que um salário mí-
nimo, e 86%, valor igual ou inferior a 
três salários mínimos; no segmento 
rural, foram concedidos mais de 10 mi-
lhões de benefícios, 98,6% equivalen-
tes ao piso do salário mínimo; no BPC, 
foram concedidos mais de 5 milhões 
de benefícios equivalentes ao piso; e 
mais de 20 milhões de “privilegiados” 
que recebem abono salarial também 
“pagarão o pato”.
CRESCIMENTO E MAIOR EQUIDADE NA
CONTRIBUIÇÃO DAS CLASSES DE MAIOR RENDA
O crescimento econômico é requi-
sito para o equilíbrio financeiro da 
previdência por seus impactos positi-
vos nas receitas que incidem sobre a 
folha de salário, o faturamento e o lu-
cro das empresas. 
O ajuste fiscal também pode ser al-
cançado pela maior equidade na con-
tribuição das classes de maior renda. É 
preciso enfrentar as inconsistências 
do regime macroeconômico, que não 
impõe limite para os gastos financei-
ros, transferindo, dos pobres para os 
ricos, mais de R$ 400 bilhões de juros 
por ano (quase quatro anos da “econo-
mia” que o governo espera da “nova 
previdência”). 
A saída para o Brasil não “quebrar” 
também pode ser alcançada mediante 
a reforma tributária. Amplo estudo5 
mostra que é tecnicamente possível 
quase duplicar o atual patamar de re-
ceitas da tributação da renda, patri-
mônio e transações financeiras, de R$ 
472 bilhões para R$ 830 bilhões, um 
incremento de R$ 357 bilhões (mais de 
três anos de “economia, nos termos da 
proposta encaminhada pelo governo 
Bolsonaro”). 
Esse estudo também aponta para a 
necessidade de rever as isenções fis-
cais, pelas quais o governo federal to-
do ano deixa de arrecadar cerca de 
20% de suas receitas: em 2017, o mon-
tante de isenções totalizou R$ 406 bi-
lhões (mais de quatro anos de “econo-
mia”). Também é necessário combater 
a sonegação de impostos, estimada 
em cerca de R$ 500 bilhões anuais 
(mais de cinco anos de “economia”). 
Em conjunto, esses recursos (isenções 
fiscais e sonegação) totalizam aproxi-
madamente 12,8% do PIB, montante 
superior ao dispêndio da seguridade 
social (11,3% do PIB) que a “nova pre-
vidência” planeja destruir.
Portanto, há várias vias alternati-
vas para o país não “quebrar”. Todas 
exigem que se desmonte, no Brasil, o 
maior programa mundial de transfe-
rência de renda dos mais pobres para 
os ricos. 
*Eduardo Fagnani é professor do Instituto 
de Economia da Unicamp, pesquisador do 
Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho 
(Cesit) e coordenador da rede Plataforma Polí-
tica Social (www.plataformapoliticasocial.com).
1 Cepal, Panorama Fiscal de América Latina y el 
Caribe 2015 – Dilemas y espacios de políticas, 
Santiago de Chile, 2015.
2 Isabel Ortiz, Fabio Durán-Valverde, Stefan Urban, 
Veronika Wodsak e Zhiming Yu, La reversión de la 
privatización de las pensiones: Reconstruyendo 
los sistemas públicos de pensiones en los países 
de Europa Oriental y América Latina (2000-2018), 
Documento de trabalho n.63, OIT, 2019.
3 Daniel Caseiro, “Os 10 mitos do sistema previden-
ciário de Paulo Guedes, segundo Andras Uthoff”, 
Justificando, 18 dez. 2018.
4 Com a apresentação do projeto para a aposenta-
doria dos militares, a economia pretendida caiu 
para pouco mais de R$ 1 trilhão. 
5 Eduardo Fagnani (org.), A reforma tributária neces-
sária – justiça fiscal é possível: subsídios para o 
debate democrático sobre o novo desenho da tri-
butação brasileira (documento completo), Anfip/
Fenafisco/Plataforma Política Social, Brasília/São 
Paulo, 2018. Disponível em: <http://plataformapo-
liticasocial.com.br/justica-fiscal-e-possivel-subsi-
dios-para-o-debate-democratico-sobre-o-novo-
-desenho-da-tributacao-brasileira/>.
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6 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2019
©
 A
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e
r
CAPA
A desestruturação do 
mercado de trabalho
Q
ualquer que seja a perspectiva 
em que se analise a reforma 
previdenciária, ela aponta ne-
cessariamente para novas for-
mas de exclusão social e desigualdade 
que afetam toda a sociedade e de ma-
neira particular as mulheres – bran-
cas, negras, trabalhadoras rurais, as 
trabalhadoras domésticas e a popula-
ção jovem –, condenando-as à preca-
riedade e à desproteção social. A pro-
posta de desmonte despreza as 
desigualdades estruturais na socieda-
de e no mercado de trabalho, bem co-
mo os diferenciais de gênero, e promo-
ve um desmonte dos direitos e do 
acesso à previdência pública em um 
contexto em que se recriam e se ex-
pandem novas modalidades de exclu-
são e de segregação no mercado de 
trabalho com a ampliação de novas 
formas de contratação advindas da re-
forma trabalhista. 
Uma das grandes virtudes do siste-
ma de seguridade social brasileiro é 
precisamente a diferenciação das re-
gras de acesso, que vem permitindo 
ampliar o número de pessoas benefi-
ciadas e compensar, dessa forma, al-
gumas das desigualdades estruturais 
do mercado de trabalho. Apesar de to-
dos os avanços conquistados nas duas 
últimas décadas, a sociedade e o mer-
cado de trabalho ainda são marcados 
por profundas desigualdades, sejam 
elas de gênero, de raça, regionais ou 
uma combinação dessas dimensões. 
A reforma da Previdência só fará 
agravar ainda mais o frágil mercado 
de trabalho brasileiro, em que a for-
malização e a proteção social convi-
vem lado a lado com a ilegalidade, a 
precariedade e a vulnerabilidade so-
cial. São milhões de pessoas que tran-
sitam entre o desemprego aberto e 
oculto e trabalhos com jornadas insu-
ficientes, por conta própria ou infor-
mais. A impossibilidade de manter 
contribuições regulares por umperío-
do mais longo de tempo por aqueles 
 
 
 
que circulam no mercado de trabalho 
mostra o quanto já é difícil para a 
maioria conseguir cumprir o atual mí-
nimo de quinze anos de contribuição. 
De acordo com os dados da Previ-
dência Social1 de 2014, as mulheres 
aposentadas pelo Regime Geral da Pre-
vidência Social (RGPS), seja por tempo 
de contribuição ou idade, se aposen-
tam em média tendo cumprido 22,4 
anos de contribuição. Se considerar-
mos o número médio de contribuições 
ao ano, que é de nove meses de contri-
buição, uma mulher precisará perfazer 
uma vida laboral de 29,8 anos para con-
seguir acumular 22,4 anos de contri-
buição cheios. Por idade, as mulheres 
alcançam, em média, 18,2 anos de con-
tribuição; pelas novas regras propostas 
pela reforma, serão necessários, no mí-
nimo, vinte anos de contribuição, o que 
inviabilizaria o acesso à aposentadoria 
aos 60 anos ou mesmo aos 62 anos de 
idade. Portanto, recuar da idade míni-
ma para as mulheres sem alterar o tem-
po de contribuição é falácia! 
Em janeiro de 2019, do total de bene-
fícios concedidos para as mulheres (ur-
banas e rurais), 60% foram por idade, e 
os demais 40%, por invalidez e tempo 
de contribuição. O valor médio das apo-
sentadorias concedidas corresponde a 
R$ 1.144,72 por idade e R$ 2.178,49 por 
tempo de contribuição. Esses são os pri-
vilegiados da previdência social!
O FRÁGIL MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO
Em 2018, conforme últimos dados 
disponíveis da Pesquisa Nacional por 
Amostra de Domicílios (Pnad), a popu-
lação em idade ativa no Brasil com 14 
anos ou mais totalizava 170.565.689 
pessoas. Desse total, 105.197.114 repre-
sentavam a população economica-
mente ativa (PEA), e 65.368.574, a po-
pulação fora da força de trabalho ou 
não economicamente ativa (Pnea). As 
mulheres representavam 65% desse to-
tal, e as mulheres negras, 57% sobre o 
total de mulheres. 
Surpreende o elevado percentual 
de mulheres entre 20 e 39 anos na Pnea, 
22%, enquanto que, entre os homens, 
para a mesma faixa etária, o percen-
tual era de 15%. A condição de maior 
pobreza tem sido um obstáculo à in-
clusão das mulheres no mercado de 
trabalho. Dependendo da situação so-
cioeconômica e da faixa etária, a taxa 
de participação das mulheres em rela-
ção à dos homens pode variar. Isso de-
monstra o quanto a condição de pobre-
za afeta sobretudo esse gênero. Para 
domicílio com renda per capita de até 
um quarto de salário mínimo, a dife-
rença de taxa de participação entre os 
sexos pode alcançar 37,1 pontos entre 
25 e 29 anos. No entanto, quando a ren-
da é de mais de cinco salários mínimos, 
a diferença entre os sexos é de apenas 
5,4% para a mesma faixa etária. A situa-
ção socioeconômica das mulheres é um 
fator decisivo para sua entrada e per-
manência no mercado de trabalho. 
Quanto mais pobres, mais tempo elas 
estarão afastadas do mercado de traba-
lho. Essa interrupção comprometerá de 
forma definitiva sua vida laboral.
As tarefas de cuidados são um 
grande limitador para as mulheres 
mais pobres. Em parte, o afastamento 
delas do mercado de trabalho, entre 25 
e 29 anos, está associado à maternida-
de e à ausência de equipamentos pú-
blicos, o que impele as mais pobres a 
se afastarem temporariamente de al-
guma atividade remunerada para se 
dedicarem às atividades de cuidados, 
que envolvem grande quantidade de 
trabalho e não estão restritas ao cuida-
do das crianças, incluindo também 
idosos, enfermos etc. 
Precisamente, é em razão da dupla 
jornada que as mulheres se inserem em 
piores condições para cumprir com as 
tarefas de reprodução social. Portanto, 
é absolutamente relevante o debate so-
bre a necessidade de preservar o dife-
rencial de tempo de contribuição e ida-
de para mulheres e homens. Além de 
receberem remuneração que corres-
ponde a 75% dos homens quando na 
ativa, se negras, seus salários equiva-
lem, em média, a 44% dos do sexo mas-
culino. Nos benefícios também há uma 
permanência desse hiato: as mulheres 
percebem, em média, o corresponden-
te a 85% dos benefícios masculinos.
Esses condicionantes vão se refletir 
na presença das mulheres entre a popu-
lação ocupada. Elas representavam 
44% do total; no entanto, são maioria 
entre as pessoas desempregadas – havia 
12,94 milhões de desempregados no 
quarto trimestre de 2018, e as mulheres 
perfaziam 52%. O desemprego entre as 
mulheres praticamente dobrou, cres-
cendo 90% na comparação entre os úl-
timos trimestres de 2014 e 2018. Se desa-
gregarmos ainda mais os dados, 
veremos que as mulheres negras consti-
tuem maioria: elas representavam 33% 
sobre o total de pessoas desemprega-
das. Ou seja, em cada dez desemprega-
dos no Brasil, entre três a quatro são 
mulheres negras. A faixa etária em que 
o desemprego mais se ampliou foi entre 
as pessoas com 60 anos ou mais: mu-
lheres, 199,3%, e homens, 147,2%, entre 
2012 e 2018. A reforma promete empre-
go até os 80 anos de idade!
Se ampliarmos o conceito de deso-
cupação incorporando o desemprego 
aberto, a subocupação (insuficiência 
de horas efetivamente trabalhadas – 
em média, as pessoas que estão nessa 
condição trabalham em torno de 19 ho-
ras semanais) e a força de trabalho po-
tencial, chegaremos a 26.976.159 pes-
soas. Esse é efetivamente o total de 
pessoas fora do mercado de trabalho 
ou em horas insuficientes. Desse total, 
as mulheres negras são maioria, 36%. O 
desemprego é o dobro entre os menos 
escolarizados. Entre as pessoas com até 
o ensino fundamental completo, 12% 
estão desempregadas; entre os de nível 
superior, o percentual é de 6%. 
O propósito da reforma, entre ou-
tros, é postergar a saída do mercado de 
A reforma da Previdência só fará agravar ainda mais 
o frágil mercado de trabalho brasileiro, em que a 
formalização e a proteção social convivem lado a lado com 
a ilegalidade, a precariedade e a vulnerabilidade social
POR MARILANE OLIVEIRA TEIXEIRA*
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7ABRIL 2019 Le Monde Diplomatique Brasil
trabalho, o que coloca uma pressão so-
bre os jovens, que enfrentarão maiores 
barreiras à entrada no mercado de tra-
balho. Por causa da dificuldade de in-
gressar no mercado formal, reforçada 
pela proposta da carteira verde-ama-
rela, esses jovens terão suas primeiras 
experiências na informalidade e no 
trabalho precário, gerando um círculo 
vicioso de precariedade que os acom-
panhará durante a maior parte de sua 
vida laboral. Dados de 2018 indicam 
que, do total de pessoas desemprega-
das, 54% são jovens entre 14 e 29 anos. 
Por outro lado, é manifesta a resis-
tência dos empregadores em contratar 
pessoas a partir de determinada faixa 
etária, quando são consideradas “ve-
lhas” para o mercado de trabalho. Com 
isso, cresce a inserção em empregos atí-
picos para as faixas acima dos 55 anos: 
na maior parte, são empregos em do-
micílio e singularizados pela precarie-
dade – no caso das mulheres, vem cres-
cendo sua presença como cuidadoras. 
A INFORMALIDADE E A NÃO CONTRIBUIÇÃO 
PREVIDENCIÁRIA 
A análise do perfil das pessoas ocu-
padas do ponto de vista dos rendimen-
tos também nos oferece um retrato da 
precariedade de nosso mercado de 
trabalho, uma vez que a maioria está 
concentrada em ocupações de baixa 
produtividade e baixos salários que 
variam entre um e dois salários míni-
mos: 82% das mulheres negras, 63,4% 
das mulheres brancas, 72,6% dos ho-
mens negros e 50,5% dos homens 
brancos recebiam até dois salários mí-
nimos no quarto trimestrede 2018. Es-
sa característica é determinante para 
a definição dos benefícios em um fu-
turo próximo. Em janeiro de 2019, 
63,4% do valor dos benefícios concedi-
dos para os trabalhadores urbanos e 
99% para os rurais eram de até dois sa-
lários mínimos. 
Uma das maiores conquistas nas 
duas últimas décadas foi a ampliação 
do emprego formal para ambos os se-
xos. Entretanto, desde 2015 observa-se 
uma reversão dessa tendência, de for-
ma que chegamos a 2018 (quarto tri-
mestre) com 44.529.429 pessoas na in-
formalidade (empregos sem carteira, 
trabalho doméstico sem carteira, con-
ta própria e trabalhadores familiares), 
o que já corresponde a 50,3% do total 
de ocupados, uma evolução de 8% en-
tre 2014 e 2018, enquanto o emprego 
formal recuou na mesma proporção 
(–8%). Entre as pessoas ocupadas, 
tem-se 37,3% sem contribuição previ-
denciária. Com impactos sobre a con-
tribuição previdenciária!
Entre os trabalhadores por conta 
própria, do total de 23.496.249 pes-
soas, 70% não contribuem para a pre-
vidência; no trabalho sem carteira as-
sinada, são 11.542.064 pessoas, e 84% 
destas não contribuem para a previ-
dência; no trabalho doméstico sem 
carteira, tem-se 4.492.548 pessoas 
(maioria mulheres), e 85% não contri-
buem para a previdência; e 29% dos 
empregadores e 31% dos trabalhadores 
do setor público sem carteira também 
não contribuem para a previdência. 
Esses totalizam 34.268.995 milhões de 
pessoas (ver tabela).
Se considerarmos as pessoas que 
estão em uma condição de subutili-
zação da força de trabalho, que so-
mam 26.976.159, teremos 61.244.154 
milhões de pessoas no Brasil que es-
 
 
 
 
Negros Brancos 
Mulheres Homens Mulheres Homens 
Empregado no setor 
privado com carteira
Total 6.388.873 10.611.255 6.856.379 8.803.027
Sem contribuição – – – –
Empregado no setor 
privado sem carteira
Total 2.070.487 5.037.153 1.624.846 2.685.336
Sem contribuição 84,6% 90,7% 74,4% 78,5%
Trabalhadora 
doméstica com 
carteira
Total 1.005.521 122.133 571.266 67.375
Sem contribuição – – – –
Trabalhadora 
doméstica sem 
carteira
Total 2.810.706 188.632 1.368.444 91.513
Sem contribuição 87,9% 88,6% 78,8% 86,7%
Empregado no setor 
público com carteira
Total 293.119 232.122 397.161 290.819
Sem contribuição – – – –
Empregado no setor 
público sem carteira
Total 943.450 579.814 586.078 335.529
Sem contribuição 27,8% 31,3% 32,0% 36,1%
Militar e servidor 
estatutário
Total 2.139.902 1.783.850 2.291.709 1.639.158
Sem contribuição – – – –
Empregador
Total 420.976 1.100.753 950.684 1.953.300
Sem contribuição 31,2% 41,5% 21,0% 25,2%
Conta própria
Total 4.490.478 8.787.684 3.787.466 6.503.634
Sem contribuição 76,8% 77,9% 57,7% 58,4%
Trabalhadora 
familiar auxiliar
Total 761.814 485.159 585.859 310.077
Sem contribuição 99,9% 99,9% 99,7% 99,7%
Total 
Total 21.325.326 28.806.422 19.019.892 22.679.768
Sem contribuição 41,4% 44,2% 29,5% 30,4%
1 Elaborados por Joana Mostafa e Mário Theodoro, 
Boletim Legislativo do Senado Federal, n.65, jun. 
2017. 
TOTAL DAS PESSOAS OCUPADAS 
COM 14 ANOS OU MAIS, POR POSIÇÃO 
NA OCUPAÇÃO E SEM CONTRIBUIÇÃO 
PREVIDENCIÁRIA, POR SEXO E RAÇA 
(4º TRIMESTRE DE 2018) – BRASIL
Fonte: PNADC/IBGE – Microdados. Elaboração própria.
tão fora do sistema de proteção so-
cial. Para a recomposição das recei-
tas previdenciárias, é essencial criar 
empregos melhores e com direitos, 
combater a sonegação, eliminar a in-
formalidade, formalizar os vínculos, 
reduzir a rotatividade. Isso, em con-
junto com outras medidas, criará as 
condições necessárias para a susten-
tabilidade do sistema. 
*Marilane Oliveira Teixeira é economista e 
pesquisadora do Cesit-Unicamp.
A falácia dos argumentos pela reforma
A saída apontada é privatizar, transformar um regime de solidariedade em mecanismos especulativos. Os fundos de previdência 
vão elevar a captação líquida e seus patrimônios e, o que é importante, vão desobrigar os empregadores de pagar contribuições 
sociais, livrando-os de participar da solução dos problemas sociais do país, o que entregará cada um à própria sorte
POR DENISE LOBATO GENTIL*
A 
reforma da Previdência do go-
verno Bolsonaro vem sendo jus-
tificada por argumentos econô-
micos elaborados para gerar 
conformismo e adesões sem questio-
namentos. São ideias manipuladoras, 
reforçadas por representantes do mer-
cado financeiro e propagadas ampla e 
tediosamente pela mídia para fidelizar 
seguidores e aterrorizar a população 
com verdades absolutas e inquestio-
náveis. Vou aqui eleger algumas frases 
retiradas da exposição de motivos que 
acompanhou a PEC n. 6/2019.
O carro-chefe é a ideia de que “nos-
so nó fiscal é a razão primeira para a 
limitação do nosso crescimento eco-
nômico sustentável. Esse nó fiscal tem 
uma raiz: a despesa previdenciária”. 
Uma investigação atenta e honesta so-
bre as contas públicas faz saltar aos 
olhos que o nó fiscal são os juros. Nes-
sa rubrica, o país gastou, em média, 
6% do PIB ao ano entre 2016 e 2018, o 
que equivale a aproximadamente R$ 
400 bilhões/ano, montante mais de 
duas vezes superior ao alegado déficit 
da Previdência, que, nos cálculos 
questionáveis do governo, teria chega-
do a R$ 195 bilhões em 2018. Com um 
agravante: juros beneficiam fundos 
especulativos, bancos, corporações 
não financeiras e pessoas com elevado 
nível de renda, enquanto a previdência 
alcança cerca de 28 milhões de pes-
soas e, desse total, 23,3 milhões ga-
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8 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2019
nham apenas um salário mínimo. O 
requinte de crueldade da comparação 
entre os dois tipos de gasto deveria 
causar vergonha e repúdio. Mas os 
meios de comunicação e o governo fa-
zem profundo silêncio sobre o monu-
mental gasto financeiro, como se essa 
anomalia da economia brasileira nem 
sequer existisse. 
O governo costuma ameaçar com 
outra frase escolhida para causar 
impacto, calar os opositores e obs-
curecer o debate: “Enquanto nos re-
cusarmos a enfrentar o desafio pre-
videnciário, a dívida pública subirá 
implacavelmente e asfixiará a eco-
nomia”. Não obstante, seria real-
mente o déficit da Previdência a cau-
sa do crescimento da dívida? 
Cabe, de partida, esclarecer que 
apenas uma parte da dívida pública é 
de responsabilidade do Tesouro Na-
cional, e isso acontece sempre que 
ocorrem déficits primários. A outra 
parte da dívida, a maior delas, é cria-
da e gerenciada pelo Banco Central. 
Isso significa que a dívida tem se ex-
pandido substancialmente em fun-
ção dos elevados juros praticados pe-
lo regime de metas de inflação, das 
variações no câmbio e das operações 
financeiras que implicam emissões 
líquidas de títulos públicos. Estas úl-
timas compreendem o que se chama 
de operações compromissadas do 
Banco Central, isto é, compras e ven-
das de títulos que se destinam às 
aquisições de reservas internacionais 
e à regulação das condições de liqui-
dez da economia, de forma a garantir 
que a taxa de juros de mercado seja 
compatível com a meta estabelecida 
pelo Copom. O estoque dessas opera-
ções cresceu exponencialmente, pas-
sando de 0,5% do PIB, em 2000, para 
16,4%, em 2018, quando alcançou R$ 
1,13 trilhão. 
Esses números apontam que são 
os gerenciamentos dos juros e das re-
servas as duas principais causas do 
crescimento da dívida pública, não a 
previdência. O Banco Central, por 
meio das operações compromissa-
das, atende, ao mesmo tempo, à de-
manda de papéis de curto prazo dos 
bancos, tanto para remunerar seus 
excessos diários de caixa como para 
compor os ativos dos fundos de in-
vestimento quepossuem. Portanto, o 
crescimento da dívida pública não 
corresponde exatamente ao déficit 
fiscal do Tesouro supostamente ali-
mentado pelo gasto social, como cos-
tuma alardear o governo, mas ao rit-
mo de expansão das operações de 
valorização financeira do capital es-
peculativo comandada pela política 
monetária do Banco Central.
Os números da Nota Técnica n. 47 
do Banco Central, de setembro de 
2018, não poderiam ser mais elucidati-
vos. Entre 2014 e 2017, a dívida líquida 
do setor público passou de 32,6% do 
PIB para 53,8%. Os juros incorporados 
nesse período representaram, em ter-
mos acumulados, 26,4 pontos percen-
tuais (p.p.), enquanto os déficits pri-
mários, apenas 6,6 p.p. Está na hora de 
colocar a nu o velho discurso acusató-
rio do gasto previdenciário e mostrar 
que a verdadeira reforma que precisa 
ser feita é a da política monetária.
Outra frase proferida para gerar 
resignação popular com a reforma da 
Previdência merece destaque: “A dí-
vida está em uma trajetória arrisca-
da. Esse risco é devidamente cobrado 
pelos credores por meio de juros al-
tos”. Para os porta-vozes do mercado 
financeiro e do governo, a reforma da 
Previdência teria, portanto, o poder 
de, ao reduzir a dívida pública, dimi-
nuir também os juros. É de descon-
fiar que os representantes do merca-
do proponham a reforma com o 
objetivo de reduzir juros, já que a 
queda da Selic limitaria a rentabili-
dade dos capitais investidos em títu-
los públicos, ainda mais em um mo-
mento de baixíssimo crescimento e 
elevada incerteza, quando justamen-
te a fuga para os juros se torna um re-
fúgio para os capitais. 
Ora, ainda que essa fosse uma 
motivação real para a reforma da 
Previdência, é inevitável concluir 
que não seria necessário fazê-la, 
porque a Selic iniciou uma trajetória 
de queda desde fins de 2016 e atingiu 
seu mais baixo patamar nominal em 
6,5% desde abril de 2018, mantendo-
-se nesse nível até o presente. A que-
da da meta de juros e da taxa de ju-
ros implícita ocorreu justamente em 
um período de crescimento da dívi-
da pública. É, portanto, obrigatório 
desconfiar que os juros são determi-
nados por outros fatores. Retirar o 
foco do gasto, da dívida e da previ-
dência é um bom caminho. 
O discurso de apresentação da re-
forma ao Congresso Nacional contém 
outros argumentos que carecem de ex-
plicações minimamente críveis. Se-
gundo a narrativa do governo, a refor-
ma da Previdência gerará uma 
economia de recursos de R$ 1 trilhão 
em dez anos e de R$ 3,4 trilhões em 
vinte anos. Até o momento, não se sabe 
como o governo chegou a esses núme-
ros, porque a memória de cálculo não 
está disponível. Entretanto, esse resul-
tado é, obviamente, uma miragem. 
O coração da proposta do minis-
tro Paulo Guedes é o regime de capi-
talização. Essa transformação estru-
tural do regime previdenciário 
brasileiro, além de implodir o siste-
ma de proteção social do país, pro-
vocará um gigantesco déficit. Isso 
porque há um custo de transição pa-
ra sua implantação, que decorrerá 
da perda de receita que sofrerá o sis-
tema de repartição, existente hoje, 
quando as contribuições dos novos 
ingressantes passarem a se destinar 
às contas individuais do regime de 
capitalização. As receitas cairão ao 
mesmo tempo que será necessário 
continuar a pagar o estoque de apo-
sentados existente. Portanto, a curto 
e longo prazos, um regime de capita-
lização não gera economia; ao con-
trário, aumenta perigosamente o dé-
ficit da Previdência. Esse custo de 
transição costuma ser muito eleva-
do. No Chile, o déficit previdenciário 
passou de 3,8% do PIB em 1981, ano 
da implantação da capitalização, 
para um patamar acima de 5% do 
PIB nos vinte anos seguintes. A equi-
pe econômica não mostrou nenhu-
ma estimativa desse prejuízo para a 
sociedade brasileira. Há, portanto, 
um vácuo de informações que com-
prometem os rumos do país. Além 
disso, o regime de capitalização pro-
duzirá um resultado que já se sabe 
nocivo para grande parte da popula-
ção que não conseguirá poupar, em 
função de salários baixos, informa-
lidade, desemprego e trabalhos in-
termitentes. Poucos se aposentarão, 
e os que conseguirem receberão be-
nefícios de valores baixos, que aca-
bam em poucos anos, como de-
monstra a experiência de todos os 
países da América Latina que adota-
ram esse caminho. Criou-se um 
enorme contingente de idosos na 
pobreza extrema. Os fundos de capi-
talização tendem a derrubar o valor 
das aposentadorias, porque a taxa 
de administração anual é elevada, 
estando, no Brasil, entre 0,8% e 2% e, 
em certos casos, pode haver mais 
uma taxa de carregamento em torno 
de 2% sobre cada depósito feito pelo 
contribuinte. As administradoras 
acabam abocanhando grande parte 
do que é poupado. 
O regime de capitalização, além 
de muito mais caro para os trabalha-
dores, expõe a população a um risco 
financeiro elevado que costuma ser 
subestimado. Os fundos aplicarão a 
poupança das pessoas em ações, tí-
tulos públicos, imóveis, derivativos e 
outros produtos financeiros cujos 
preços e taxas de retorno sofrem 
grandes oscilações e dependem, em 
parte, do próprio comportamento 
imprevisível e compulsivo dos agen-
tes desse mercado. Perdas rápidas e 
profundas são muito comuns. Há um 
risco financeiro sistêmico não con-
trolável pela regulação dos fundos de 
previdência. 
A desproteção é o que menos im-
porta. A saída apontada é privatizar, 
transformar um regime de solidarie-
dade em mecanismos especulativos. 
Os fundos de previdência vão elevar 
enormemente a captação líquida e 
seus patrimônios e, o que é importan-
te, vão desobrigar os empregadores de 
pagar contribuições sociais, livrando-
-os de participar da solução dos pro-
blemas sociais do país, o que entrega-
rá cada um à própria sorte. 
Por fim, há no discurso oficial do 
governo a criação da falsa noção de 
que o regime de capitalização per-
mitirá “a construção de um novo 
modelo que fortalece a poupança e o 
desenvolvimento no futuro”. Nada 
mais descolado da realidade brasi-
leira. A “nova” previdência não favo-
recerá a poupança porque, segundo 
dados da Anbima, 92% do patrimô-
nio dos fundos de previdência se 
destinam à aquisição de títulos de 
renda fixa do próprio governo. De fa-
to, os fundos de previdência apare-
cem como os maiores proprietários 
de títulos nas estatísticas do Banco 
Central (25,5% do total). Assim, com 
o regime de capitalização, o governo 
vai deixar de pagar diretamente 
aposentadorias e pensões para os 
trabalhadores, para pagá-los indire-
tamente, a custos elevadíssimos, via 
intermediação dos fundos por meio 
da dívida mobiliária do Estado. Um 
péssimo negócio para a ampla maio-
ria dos brasileiros.
Como se vê, a reforma da Previdên-
cia não tem nada a ver com ajuste fis-
cal ou com a eliminação de privilégios. 
É a exacerbação de uma ordem políti-
ca e econômica que serve ao aprofun-
damento da acumulação financeira e 
condena o país ao retrocesso, à dete-
rioração das desigualdades sociais e à 
ausência de democracia. 
*Denise Lobato Gentil é doutora em Eco-
nomia e professora do Instituto de Economia 
da Universidade Federal do Rio de Janeiro 
(UFRJ).
O regime de 
capitalização, além 
de muito mais caro 
para os trabalhadores, 
expõe a população 
a um risco financeiro 
elevado
A previdência 
alcança cerca de 
28 milhões de pessoas 
e, desse total, 
23,3 milhões ganham 
apenas um salário 
mínimo
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9ABRIL 2019 Le Monde Diplomatique Brasil
Devemos ter medo da China?
A ofensiva partiu dos Estados Unidos antes de se estender para a maioria dos países ocidentais: a China, 
com seus produtos, espiões e ambições militares, estaria tentando desestabilizar a ordem internacional estabelecida após 
a Segunda Guerra Mundial. Pequimse defende. Xi Jinping montou uma operação de sedução em sua viagem à Europa, 
entre 21 e 26 de março. Essa ameaça chinesa existe mesmo?
POR KISHORE MAHBUBANI*
UMA NOVA ORDEM GEOPOLÍTICA
D
entro de quinze anos, a econo-
mia chinesa terá ultrapassado a 
dos Estados Unidos, tornando-
-se a mais poderosa do mundo. 
Com a aproximação dessa virada, um 
consenso domina Washington: a Chi-
na pode prejudicar muito os interes-
ses e o bem-estar dos norte-america-
nos. O general Joseph Dunford, chefe 
do Estado-Maior das Forças Armadas, 
afirma sem rodeios: em 2025, a China 
deverá ser “a maior ameaça” (audiên-
cia do Senado, 26 set. 2017). Na estra-
tégia de defesa nacional dos Estados 
Unidos de 2018, a China e a Rússia são 
citadas como “potências revisionis-
tas”, que procuram “forjar um mundo 
compatível com seu modelo autoritá-
rio – obtendo direito de veto sobre as 
decisões econômicas, diplomáticas e 
de segurança de outras nações”.1 “A 
ameaça chinesa”, declara o diretor do 
FBI, Christopher Wray, “não está rela-
cionada apenas às questões estratégi-
cas e do conjunto do governo; ela afeta 
o conjunto da sociedade, e eu acho 
que vamos precisar de uma resposta 
na escala do conjunto da sociedade.” 
Essa ideia está tão difundida que, 
quando o presidente Donald Trump 
iniciou sua guerra comercial contra a 
China, em janeiro de 2018, ele recebeu 
o apoio até mesmo de personalidades 
moderadas, como o senador demo-
crata Chuck Schumer.
Duas preocupações alimentam es-
sa inquietação. A primeira é econômi-
ca: a China teria enfraquecido os Esta-
dos Unidos por meio de práticas 
comerciais desleais, exigindo transfe-
rências de tecnologia, violando o direi-
to de propriedade intelectual e impon-
do barreiras não tarifárias que 
impedem o acesso a seus mercados. A 
segunda é política: seu desenvolvi-
mento econômico não estaria sendo 
acompanhado pelas reformas demo-
cráticas liberais previstas pelos gover-
nos ocidentais, principalmente o dos 
Estados Unidos. A China estaria se 
mostrando muito agressiva em suas 
relações com as outras nações. Con-
vencido de tais análises, o cientista po-
lítico Graham Allison chega, em um 
livro intitulado Vers la guerre,2 à depri-
mente conclusão de que um conflito 
armado entre os dois países parece 
mais do que provável.
No entanto, a China não está orga-
nizando uma força militar capaz de 
ameaçar ou invadir a América, não 
tenta intervir nos assuntos domésticos 
dos Estados Unidos e não está em 
campanha para destruir a economia 
norte-americana. Apesar dos clamo-
res a respeito do perigo chinês, deveria 
ser possível, entretanto, para os Esta-
dos Unidos encontrar um meio pacífi-
co de lidar com o país que, dentro de 
uma década, será a maior potência 
econômica, talvez até geopolítica, do 
mundo. E fazer isso defendendo seus 
próprios interesses, mesmo quando 
eles são contrários aos de Pequim.
Ainda é preciso começar questio-
nando uma antiga crença sobre o sis-
tema político chinês. Desde o fim da 
União Soviética, os dirigentes dos Es-
tados Unidos estão convencidos de 
que o destino do Partido Comunista 
Chinês (PCC) é ser enterrado junto 
com o Partido Comunista soviético. 
De um extremo a outro do espectro 
político, eles aceitaram, mais ou me-
nos explicitamente, a tese apresentada 
por Francis Fukuyama em 1992: “Não 
somos testemunhas apenas do fim da 
Guerra Fria, [...] mas do fim da própria 
história como tal: a saber, o ponto final 
da evolução ideológica da humanida-
de e a universalização da democracia 
liberal ocidental como uma forma fi-
nal de governança humana”.3
Quando, em março de 2000, Bill 
Clinton explicou por que apoiava a 
adesão da China à Organização Mun-
dial do Comércio (OMC), ele assegurou 
que a liberalização política seguiria a 
liberalização econômica, como a cau-
da de uma serpente segue sua cabeça. 
E pediu a seus colegas: “Se você acredi-
ta em um futuro mais aberto e mais li-
vre para o povo chinês, você deve apro-
var este acordo”. Seu sucessor, George 
W. Bush, tinha as mesmas convicções. 
Na Estratégia de Defesa Nacional de 
2002, ele afirmou que, “com o tempo, a 
China perceberá que as liberdades so-
ciais e políticas são a única fonte de 
grandeza de uma nação”. Hillary Clin-
ton foi ainda mais explícita. Estenden-
do o reinado do PCC, os chineses ten-
tam, segundo ela, “impedir o curso dos 
acontecimentos; em vão. Eles não se-
rão capazes de fazer isso. Mas tentarão 
desacelerá-lo o quanto puderem”.
PLUTOCRACIA CONTRA MERITOCRACIA
Pode-se questionar a confiança dos 
tomadores de decisão norte-america-
nos, que se consideram em posição de 
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10 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2019
dar recomendações políticas à China. 
Ainda que nenhum império tenha acu-
mulado tanto poder econômico, políti-
co e militar como os Estados Unidos, a 
assinatura de sua Declaração de Inde-
pendência (1776) tem menos de 250 
anos. A história da China começou 
muito antes. Ao longo dos milênios, 
seu povo aprendeu que os maiores so-
frimentos sobrevêm quando seu go-
verno central está fraco e dividido, co-
mo no século após a Guerra do Ópio 
(1842), ao longo do qual a China foi as-
solada por invasões estrangeiras, guer-
ras civis, fome e muitos outros males. 
Desde 1978, o país tirou 800 milhões de 
pessoas da pobreza e criou a maior 
classe média do mundo. Como escre-
veu Graham Allison em um editorial 
para o China Daily, jornal estatal chi-
nês, “é possível afirmar que houve, em 
quarenta anos de crescimento mila-
groso, uma melhoria no bem-estar hu-
mano mais rápida do que durante os 4 
mil anos de história da China”. Tudo 
isso aconteceu enquanto o PCC estava 
no poder. E os chineses não deixaram 
de notar que o fim do Partido Comu-
nista soviético foi acompanhado, na 
Rússia, por uma redução da expectati-
va de vida, pelo aumento da mortalida-
de infantil e pela queda da renda.
Aos olhos dos norte-americanos, a 
luta entre seu sistema político e o da 
China se resume ao enfrentamento 
entre uma democracia, onde as pes-
soas escolhem livremente o governo, 
podem falar o que quiserem e prati-
cam a religião de sua escolha, e uma 
autocracia, onde elas são privadas des-
sas liberdades. Mas, para observado-
res menos militantes, a clivagem se 
apresenta de outra forma: ela opõe 
uma plutocracia norte-americana – na 
qual as decisões políticas acabam por 
favorecer os ricos em detrimento das 
massas – e uma meritocracia chinesa 
– na qual as decisões políticas, toma-
das por funcionários escolhidos pelo 
partido com base em suas competên-
cias, ajudaram a reduzir a pobreza de 
maneira espetacular. Nos últimos 
trinta anos, a renda mediana do traba-
lhador norte-americano estagnou: en-
tre 1979 e 2013, o salário horário real 
mediano aumentou apenas 6% – me-
nos de 0,2% ao ano.4
Isso não significa que o sistema po-
lítico chinês deva persistir em sua for-
ma atual. As violações dos direitos hu-
manos, principalmente a detenção de 
centenas de milhares de uigures,5 con-
tinuam sendo um grande problema. 
Muitas vozes se elevam na China para 
exigir reformas. Entre elas, a do pro-
fessor Xu Jilin,6 que reserva suas críti-
cas mais agudas aos colegas do mundo 
acadêmico. Ele os acusa de dar exces-
siva centralidade ao Estado-nação e 
muito destaque às diferenças cultu-
rais e históricas fundamentais com os 
modelos políticos ocidentais. Xu argu-
menta que essa insistência nos parti-
cularismos marca uma ruptura com a 
cultura chinesa tradicional, que, como 
ilustra a noção histórica de tianxia, era 
um sistema universal e aberto. Criti-
cando a rejeiçãoradical, por alguns de 
seus pares “nacionalistas extremis-
tas”, de “tudo o que foi criado pelos 
ocidentais”, ele afirma, ao contrário, 
que a China sempre teve sucesso por-
que sempre esteve aberta.
No entanto, mesmo um progressis-
ta como Xu não gostaria que seu país 
reproduzisse o sistema político norte-
-americano. Pelo contrário, o profes-
sor acha que a China deveria “explorar 
suas próprias tradições culturais” a 
fim de promover uma “nova tianxia”. 
Na frente interna, “os hans e as nume-
rosas minorias nacionais devem gozar 
de plena igualdade no plano jurídico e 
em termos de sua situação social; as 
especificidades culturais das diversas 
nacionalidades devem ser respeitadas 
e protegidas”. No nível diplomático, as 
relações com os outros países “devem 
ser definidas pelos princípios do res-
peito pela independência soberana do 
outro, da igualdade de tratamento e da 
convivência pacífica”.
O sistema político chinês deverá 
evoluir junto com a situação econômi-
ca e social. E, em muitos aspectos, já se 
transformou consideravelmente – 
abrindo-se. Por exemplo, em 1980, ne-
nhum habitante da China estava auto-
rizado a viajar para o exterior como 
turista. No ano passado, quase 134 mi-
lhões de pessoas foram para o exterior 
e voltaram para casa por vontade pró-
pria. Da mesma forma, milhões de jo-
vens com mentes brilhantes puderam 
experimentar a liberdade das univer-
sidades norte-americanas. Em 2017, 
oito em cada dez estudantes quiseram 
voltar para casa.
NENHUM TIRO NOS ÚLTIMOS TRINTA ANOS
No entanto, uma questão perma-
nece: se as coisas vão bem, por que Xi 
Jinping impõe uma disciplina mais 
rigorosa aos comunistas e por que 
acabou com o limite de mandatos pre-
sidenciais?7 Podemos dar a seu ante-
cessor, Hu Jintao, o crédito por um 
crescimento econômico espetacular. 
Mas seu mandato também foi marca-
do pelo recrudescimento da corrupção 
e do divisionismo, particularmente da 
parte de Bo Xilai, líder de Chongqing 
(30,5 milhões de habitantes), e Zhou 
Yongkang, ex-chefe todo-poderoso da 
segurança interna. Xi está convencido 
de que essas tendências podem desle-
gitimar o PCC e atrapalhar a revitaliza-
ção do país. Para enfrentar esses terrí-
veis desafios, considera necessário 
restaurar um poder central forte. Ape-
sar disso (ou graças a isso?), ele conti-
nua extremamente popular.
No mundo ocidental, muita gente 
se preocupa com seu enorme poder e 
vê nisso um sinal premonitório de con-
flito armado. Mas essa mudança na li-
derança do país não transformou de 
maneira fundamental a estratégia geo-
política de longo prazo da China. Esta 
sempre evitou guerras inúteis. Ao con-
trário dos Estados Unidos, que têm a 
sorte de ter dois vizinhos pacíficos – 
Canadá e México –, ela tem um relacio-
namento difícil com vários vizinhos 
poderosos e altamente nacionalistas, 
entre eles a Índia, o Japão, a Coreia do 
Sul e o Vietnã. Dos cinco membros per-
manentes do Conselho de Segurança 
da ONU, a China é o único que não dis-
parou nenhum tiro fora de suas fron-
teiras nos últimos trinta anos, desde a 
breve batalha naval com o Vietnã em 
1988. Em compensação, mesmo sob o 
governo do presidente Barack Obama, 
considerado pacifista, as Forças Arma-
das dos Estados Unidos lançaram em 
um único ano, 2016, 26 mil bombas so-
bre sete países. É bastante evidente 
que os chineses dominam a arte da 
contenção estratégica.
Claro que em alguns momentos 
eles estiveram à beira da guerra.8 Com 
o Japão, por exemplo, por causa das 
ilhas Senkaku/Diaoyu. Muito se tem 
falado também sobre a possibilidade 
de um conflito no Mar da China Meri-
dional, pelo qual passa, todo ano, cerca 
de um quinto do transporte marítimo 
mundial. Em um contexto de sobera-
nia contestada em algumas porções 
dessas águas, a China converteu reci-
fes isolados e baixios nelas localizados 
em instalações militares. Mas, ao con-
trário do que levam a crer as análises 
ocidentais, o país, cuja posição na re-
gião é inegavelmente mais afirmada 
no plano político, não se tornou mais 
agressivo do ponto de vista militar. In-
clusive, ele poderia facilmente expul-
sar pequenos rivais, como a Malásia, as 
Filipinas e o Vietnã – mas não fez isso.
BATALHA PELA SUPREMACIA INDUSTRIAL
A rotineira narrativa da “agressão 
chinesa” nessa área geralmente deixa 
de mencionar que os Estados Unidos 
perderam muitas oportunidades de ali-
viar as tensões na região. Um ex-embai-
xador na China, J. Stapleton Roy, decla-
rou que, em uma coletiva de imprensa 
conjunta com o presidente Obama, no 
dia 25 de setembro de 2015, Xi fez pro-
postas sobre o Mar da China Meridional 
que incluíam a aprovação de declara-
ções apoiadas pelos dez membros da 
Associação das Nações do Sudeste Asiá-
tico (Anase). Ele acrescentou que não 
pretendia militarizar as Ilhas Spratley, 
onde obras gigantescas estavam em 
curso. A administração Obama não fez 
nenhum esforço para dar prossegui-
mento a essa proposta conciliatória; ao 
contrário, intensificou as patrulhas de 
sua Marinha. Em resposta, a China ace-
lerou a construção de instalações de-
fensivas nessas ilhas.
Quanto às questões econômicas, 
elas não requerem menos habilidade 
que os assuntos militares e diplomáti-
cos. Esse não é o caminho escolhido 
por Trump. Mesmo com suas justifica-
tivas duvidosas, a guerra comercial 
que ele desencadeou contra a China 
lhe valeram um amplo apoio do gran-
de público, fenômeno que certamente 
põe em evidência um erro chinês: não 
levar em conta as crescentes críticas 
suscitadas por certas práticas desleais. 
No entanto, tais práticas explicam, por 
si só, a atitude de Trump? Na China e 
em toda parte, cada vez menos se acre-
dita nisso. O que os Estados Unidos 
desejam é minar a ambição da China 
de se tornar um líder tecnológico. Co-
mo observou Martin Feldstein, ex-pre-
sidente do Comitê de Conselheiros 
Econômicos de Ronald Reagan, os Es-
tados Unidos têm todo o direito de co-
locar em prática políticas para impe-
dir o roubo de suas tecnologias, mas 
isso não os autoriza a bloquear o plano 
estratégico nacional “Made in China 
2025” – um projeto concebido para de-
senvolver indústrias de ponta, como a 
de carros elétricos, a robótica avança-
da e a inteligência artificial.
Para manter sua supremacia nas 
indústrias de alta tecnologia, como a 
aeroespacial e a robótica, os Estados 
Unidos não podem se contentar em 
impor barreiras alfandegárias a seus 
parceiros. Eles precisam investir em 
ensino superior, pesquisa e desenvol-
vimento; em outras palavras, preci-
sam desenvolver sua própria estraté-
gia econômica de longo prazo para 
responder à da China.
Tanto no plano político como no 
plano retórico, o governo chinês tem 
uma visão clara do futuro de sua eco-
nomia e de sua população. Programas 
como o “Made in China 2025” ou o 
“Novas Rotas da Seda” (Belt and Road 
Initiative, BRI), com seus projetos de 
infraestrutura, ilustram o desejo de se 
tornar um ator de primeira linha nas 
novas indústrias. Aliás, os dirigentes 
chineses insistem no fato de que seu 
país não pode prosseguir na busca pe-
lo crescimento ignorando seu custo 
social: a desigualdade e a poluição 
ambiental. Xi reconheceu, em 2017, a 
necessidade de resolver a tensão “en-
tre um desenvolvimento desequilibra-
do e inadequado e a necessidade cada 
vez maior de uma vida melhor para os 
cidadãos”.9 Ninguém sabe se o gover-
no será capaz de responder a isso. Mas 
pelo menos ele tomou consciência do 
problema. Nada impede que os Esta-
dos Unidos façam o mesmo.
Ocorre que, para desenvolver uma 
estratégia de longo prazo, os Estados 
Unidos precisam resolver uma contra-
dição fundamental em seus próprios 
princípios. Seus maiores economistas 
acreditam que as políticas industriais 
conduzidas sob a liderança dos Esta-
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11ABRIL2019 Le Monde Diplomatique Brasil
dos não funcionam e defendem um 
capitalismo de livre mercado. Se tal 
crença tem fundamento, então o prin-
cipal negociador comercial de Trump, 
Robert Lighthizer, não deveria ficar 
alarmado por causa dos esforços de 
Pequim para melhorar suas capacida-
des tecnológicas. Ele deveria acomo-
dar-se confortavelmente e aguardar 
até que a iniciativa industrial da China 
desmorone por si mesma, saboreando 
o espetáculo de seu fracasso.
No entanto, se Lighthizer acredita 
que o plano de 2025 pode ter sucesso, 
cabe a ele pedir que seus concidadãos 
revejam seus postulados ideológicos. 
Eles poderiam, então, desenvolver 
uma estratégia de longo prazo equiva-
lente. A Alemanha, aliás, provavel-
mente a maior potência industrial do 
mundo, já conta com um roteiro como 
esse, chamado Industry 4.0.
PRESENTE ESTRATÉGICO PARA PEQUIM
Ironia do destino: a colaboração 
mais vantajosa para os Estados Uni-
dos seria justamente aquela que eles 
poderiam estabelecer com a China. 
Esta quer apenas utilizar suas reser-
vas de US$ 3 trilhões para investir 
mais nos Estados Unidos, que pode-
riam considerar uma participação no 
BRI, para grande satisfação dos países 
envolvidos no projeto, muito interes-
sados em moderar a preponderância 
chinesa. Em suma, há muitas oportu-
nidades para serem aproveitadas. As-
sim como a Boeing e a General Elec-
tric tiraram proveito da explosão do 
mercado de aviação chinês, empresas 
como a Caterpillar e a Bechtel pode-
riam se beneficiar das grandes obras 
realizadas nesses países. Até o mo-
mento, porém, a aversão ideológica 
dos Estados Unidos ao intervencionis-
mo estatal na economia torna esses 
cenários improváveis.
Fazia sentido que os Estados Uni-
dos tivessem o maior orçamento de de-
fesa do mundo quando seu poder eco-
nômico deixava em segundo plano 
todas as outras nações. Faria sentido 
que a segunda maior economia do 
mundo ainda tivesse o maior orça-
mento de defesa do planeta? Agarrar-
-se a essa supremacia não seria um 
presente estratégico para a China? Esta 
aprendeu uma importante lição com o 
colapso do bloco soviético: o cresci-
mento econômico deve vir antes das 
despesas com armamentos. Nessas 
condições, Pequim só pode se alegrar 
1 “Summary of the National Defense Strategy of the 
United States 2018” [Resumo da Estratégia Nacio-
nal de Defesa dos Estados Unidos 2018], Depar-
tamento de Defesa, Washington, DC. Disponível 
em: <https://dod.defense.gov>.
2 Graham Allison, Vers la guerre. L’Amérique et la 
Chine dans le piège de Thucydide? [Rumo à guer-
ra. América e China na armadilha de Tucídides?], 
Odile Jacob, Paris, 2019.
3 Francis Fukuyama, La Fin de l’histoire et le dernier 
homme [O fim da História e o último homem], 
Flammarion, Paris, 2009 (1. ed.: 1992).
4 Lawrence Mishel, Elise Gould e Josh Bivens, 
“Wage stagnation in nine charts” [A estagnação 
salarial em nove gráficos], Economic Policy Institu-
te, Washington, DC, 6 jan. 2015. Disponível em: 
<www.epi.org>.
5 Ler Remi Castets, “A repressão contra os uigures 
no controlado mundo do ‘sonho chinês’”, Le Mon-
de Diplomatique Brasil, mar. 2019.
6 Cf. Xu Jilin, Rethinking China’s Rise: A Liberal Cri-
tique [Repensando a ascensão da China: uma crí-
tica liberal], Cambridge University Press, 2018.
7 Até março de 2018, o presidente da República não 
podia ter mais do que dois mandatos.
8 Cf. Richard McGregor, Asia’s Reckoning: China, 
Japan, and the Fate of US Power in the Pacific 
Century [O acerto de contas da Ásia: China, Japão 
e o destino do poder dos Estados Unidos no Sécu-
lo do Pacífico], Viking, Nova York, 2017.
9 Discurso no XIX Congresso do PCC, Xinhua, 18 
out. 2017.
ao ver Washington desperdiçando seu 
dinheiro em gastos militares inúteis.
Se os Estados Unidos conseguissem 
mudar sua visão sobre a China, eles des-
cobririam que é possível desenvolver 
uma estratégia capaz de freá-la e de fa-
zer avançar seus próprios interesses. 
Em um discurso pronunciado na Uni-
versidade de Yale em 2003, Clinton 
enunciou a filosofia por trás dessa estra-
tégia, explicando, essencialmente, que 
a única maneira de conter a próxima su-
perpotência é criando regras multilate-
rais e parcerias que a limitem.
Sob o reinado de Xi, a China conti-
nua favorável ao fortalecimento da ar-
quitetura multilateral mundial criada 
pelos Estados Unidos, incluindo o FMI, 
o Banco Mundial, a ONU e a OMC. Ela 
forneceu mais forças de manutenção 
da paz do que os outros quatro mem-
bros permanentes do Conselho de Se-
gurança. Novas oportunidades de coo-
peração surgirão, portanto, em fóruns 
multilaterais. Mas, para aproveitá-las, 
os dirigentes dos Estados Unidos preci-
sam aceitar uma realidade: a ascensão 
da China (e da Índia) é inevitável. 
*Kishore Mahbubani é ex-embaixador de 
Cingapura nas Nações Unidas, professor de 
Políticas Públicas da Universidade de Cin-
gapura e autor de L’Occident (s’)est-il per-
du? [O Ocidente (se) perdeu?], Fayard, Pa-
ris, 2019. Este artigo é parte de um texto 
publicado na revista Harper’s, em fevereiro 
de 2019.
KARL MARX
FRIEDRICH ENGELS
ADAPTAÇÃO DE MARTIN ROWSON
MANIFESTO 
EM QUADRINHOS
COMUNISTA
ed141-OK.indd 11 29/03/2019 16:43
12 Le Monde Diplomatique Brasil ABRIL 2019
A ESTRATÉGIA POPULISTA EM QUESTÃO
A Espanha vota, o Podemos hesita
Há muito pouco tempo, cada eleição espanhola parecia confirmar o avanço do Podemos. Contudo, são poucos os 
que esperam uma vitória do partido nas eleições gerais de 28 de abril. Enquanto a extrema direita avança, como explicar 
a retração de uma formação que parecia ter recuperado a esperança dos progressistas europeus?
POR JOSÉ ANTÓNIO GARCÍA SIMON E JAIME VINDEL*
S
urgido do nada há cinco anos, 
com a ambição de chegar ao to-
po (da Espanha), o Podemos 
parecia ter regenerado a forma 
de falar e de fazer política na Europa. 
Cinco anos depois, ninguém acredita 
na vitória das promessas de ontem, e o 
partido parece ameaçado de se nor-
malizar no seio de uma paisagem polí-
tica que o rejeita em bloco. Sua retra-
ção atual é uma fase, comum a todas as 
lutas desse tipo? Ou reflete o recrudes-
cimento das tensões que persistiam no 
momento em que o partido nasceu?
Quando o Podemos irrompeu na 
cena política espanhola, em 17 de ja-
neiro de 2014, seus fundadores enten-
diam levar adiante as exigências da 
“democracia real” reivindicada pelo 
movimento dos “indignados”, que 
ocupou as ruas do país em maio de 
2011.1 Suas reivindicações se desdo-
braram em um grande espectro de slo-
gans e propostas, com um denomina-
dor comum: o questionamento da 
ordem política (e, em menor medida, 
da econômica) derivada da passagem 
da ditadura franquista (1936-1977) à 
democracia liberal. Em grandes li-
nhas, essa contestação se organizou 
em torno de dois projetos distintos: de 
um lado, um ímpeto de regenerar o 
sistema; de outro, uma ambição maior 
de transformação social. Reformar ou 
transformar: “A tensão entre essas 
duas opções se refletirá em seguida 
nos debates internos do partido”, res-
salta Brais Fernández, cientista políti-
co, secretário de redação da Viento Sur 
e membro do Anticapitalistas, uma or-
ganização trotskista que foi um dos 
fundadores do Podemos.
Para a primeira corrente dos “in-
dignados”, portanto, “a prioridade é 
renovar as pessoas da política”, afirma 
Fernández. Em certa medida, as mobi-
lizações de rua revelaram o descon-
tentamento das classes médias no im-
passe, com suas ambições de ascensão 
social abaladas pela crise de 2008. No 
poder, o Partido Socialista Operário 
Espanhol (Psoe), principal pilar do 
imaginário progressista na Espanha 
pós-transição, optou pela austeridade 
– escolha que simboliza a modifica-

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