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Latusa Digital Ano 9 – N. 48 – Março de 2012. 
 
Psicoses ordinárias e corpo - Ana Martha Maia 
Psicoses ordinárias e corpo 
Ana Martha Maia1 
 
 
Quando Lacan2 se referiu à ascensão ao zênite social do objeto a, apontava o 
imperativo de gozo imposto pelo discurso capitalista, a queda dos ideais que sustentavam a 
crença no Pai e a importância de o psicanalista não perder de vista a orientação pelo real do 
sintoma. 
Dos efeitos de surpresa nas neuroses e do enigma nas psicoses, em Angers, aos 
casos raros da clínica psicanalítica, em Arcachon, assim como na Conversação de Antibes 
sobre as psicoses ordinárias3 até os dias atuais, as elaborações de Lacan sobre as psicoses, 
nos anos 50 e 70,4 têm sido revisitadas em um amplo debate5. Na época do Outro que não 
existe,6 os efeitos da fragilidade do simbólico promovem mudanças no modo como se organiza 
a civilização e na experiência analítica, que já não se apresentam como nos tempos de Freud e 
da primeira clínica lacaniana. “A partir do momento em que as normas se diversificam, se está 
evidentemente na época das psicoses ordinárias. A psicose ordinária é coerente com a época 
do Outro que não existe”, diz Miller.7 
Ao momento atual da civilização, Laurent8 relaciona o “sentimento delirante de 
vida”, derivado da ideia de que todo mundo delira.9 Há algo primordial que fica foracluído para 
todo parlêtre, exigindo um esforço de poesia, uma invenção singular. A “clínica da invenção 
delirante” é centrada no sinthoma, nas invenções de cada um com seu modo de gozo e permite 
uma nova abordagem dos limites entre neurose e psicose. 
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
   	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
1 EBP/AMP. 
2 Lacan, J. “Radiofonia” (1970). Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 
3 O termo psicoses ordinárias foi cunhado por Miller em uma proposta de investigação sobre as 
psicoses na orientação lacaniana. Surgiu no contexto de conversações realizadas pelo Campo 
Freudiano em três momentos: sobre os efeitos de surpresa na clínica da psicose (Angers, 1996), os 
casos raros ou inclassificáveis da clínica psicanalítica (Arcachon, 1997) e nas discussões sobre as 
novas formas de desencadeamento, da transferência e da conversão (Antibes, 1998). 
4 Principalmente o Seminário 3: as psicoses e o artigo “De uma questão preliminar a todo tratamento 
possível da psicose” (Escritos) nos anos 50, e, nos anos 70, RSI e O Seminário 23: o sinthoma. 
5 Graciela Brodsky faz referência a algumas das diferentes perspectivas que direcionam a abordagem do 
tema das psicoses ordinárias, levantadas em uma discussão com Rômulo Ferreira da Silva: o programa 
de investigação lançado por Laurent no Congresso da AMP em Roma (2006), a pesquisa de Juan Carlos 
Indart na EOL a partir do discurso universitário, o texto de Marie-Hélène Brousse (2009) sustentado no 
discurso do mestre e os artigos de Pierre Skriabinne (2009) e de Jean-Claude Maleval (2003) 
fundamentados na clínica dos nós borromeanos. Em: Brodsky, G. Loucuras discretas: um seminário 
sobre as chamadas psicoses ordinárias. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2011. 
6 Miller, J.-A. El Outro que no existe y sus comitês de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005. 
7 Miller, J.-A. La psicosis ordinária. Buenos Aires: Paidós, 2006, p.225. 
8 Laurent, É. El sentimiento delirante de la vida. Buenos Aires: Colección Diva, 2011, p.10. 
9 Lacan, J. Transfert à Saint Denis? Em: Ornicar?, Paris, n.17-18, p.278, ano1978. 
 Latusa Digital Ano 9 – N. 48 – Março de 2012. 
 
Psicoses ordinárias e corpo - Ana Martha Maia 
Em qualquer estrutura, há uma experiência de estranhamento com o próprio corpo 
para todo parlêtre, muito evidente nas psicoses clássicas: a manifestação do real vivida como 
invasão de gozo na fragmentação do corpo na esquizofrenia, enquanto o paranoico se diz 
objeto de outro gozador. O fato de se ter um corpo e de ser preciso um limite para se saber se 
o tem, ou não, aparece em relatos que vão desde diferentes formas de se ter acesso ao próprio 
corpo, até ausências, fragmentação. Laurent10 exemplifica com Antígona, Joyce, Schreber e Lol 
V. Stein sujeitos “que correm atrás de um corpo que desapareceu”. O instigante texto de 
Maleval11 sobre Raymond Roussel trata da “clínica discreta da foraclusão do Nome-do-Pai”,12 
uma rica contribuição para os estudos sobre o corpo nas psicoses ordinárias. Assim como 
Joyce, um jovem paciente de Jean-Pierre Deffieux e Roussel ilustra diferentes modos de 
amarração e de experiências com o próprio corpo. 
“Tem-se seu corpo, não se é ele em hipótese nenhuma”: em posição contrária à 
filosofia que acredita que o homem pensa com a alma, Lacan13 define o eu como “a ideia de si 
como um corpo”. Em sua face narcísica, o eu se sustenta na imagem do corpo. No episódio da 
surra sofrida por Stephen Dedalus, o personagem de James Joyce responde à dor colocando-
se fora da cena. Suas mãos se desprendem “como uma folha solta no ar”.14 Jamais esboçou 
um sentimento: “Uma cólera o havia frequentemente revestido, mas ele nunca fora capaz de 
fazer dela uma paixão duradoura e sempre se sentira saindo dela como se seu corpo estivesse 
sendo despojado com facilidade de alguma pele ou casca exterior”.15 Lacan assinala em Joyce 
um modo singular de suprir um desenodamento do nó: real e simbólico se cruzam de forma 
diferente e o ego corrige a relação que falta com o imaginário. “O texto de Joyce é todo feito 
como um nó borromeano”.16 A solução encontrada para a inconsistência corporal insuficiente 
para sustentação do eu é a invenção de uma escrita particularíssima, “em que a epifania é o 
que faz com que, graças à falha, inconsciente e real se enodem”.17 
A estrangeira relação com o próprio corpo salta aos olhos de Deffieux ao receber 
um paciente com o diagnóstico de neurose histérica que se queixa de uma repetida falta de 
vontade na vida. Campeão de natação na adolescência, havia perdido 12 quilos 
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
   	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
10 Laurent, É As paixões do ser. Salvador: EBP-Bahia e Instituto de Psicanálise da Bahia, 2000, p.71. 
11 Maleval, J.-C. La elaboración de una suplência por un processo de escritura – Raymond Roussel. 
Em: Psicosis actualis: hacia un programa de investigación acerca de las psicosis ordinárias. Buenos 
Aires: Grama Ediciones, 2008, p. 115-124. A tradução deste texto está nesta mesma edição de 
Latusa Digital. 
12 Maleval, J.-C. Elements pour une clinique de la psychose ordinaire. Séminaire de La Découverte 
Freudienne. Université de Toulouse, 18-19 janvier 2003. 
13 Lacan, J. O Seminário 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p.146. 
14 Joyce, J. Um retrato do artista quando jovem. São Paulo: Siciliano, 1992, p.57. 
15 Ibidem, p.153. 
16 Lacan, J. O Seminário 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p.149. 
17 Ibidem, p.151. 
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 Latusa Digital Ano 9 – N. 48 – Março de 2012. 
 
Psicoses ordinárias e corpo - Ana Martha Maia 
inesperadamente. O corpo delgado, seu funcionamento e “ínfimos detalhes clínicos”18 não 
convencem Deffieux do diagnóstico. Uma cena é lembrada: aos oito anos, quando se dirigia ao 
treinamento, um homem lhe oferece carona de bicicleta, B. aceita sem vacilar, o homem o leva 
para um bosque e lhe bate com um bordão por todo o corpo. Depois ameaça cortar seu sexo 
com uma faca. Uma vozinha lhediz “Olha!” Ele vê um menino, era ele, e escapa. 
 
Isto vai presidir algo que existirá pelo resto de seus dias. A vozinha estará 
encarnada — não diria que é uma alucinação, não é certo, é uma vozinha 
familiar que o acompanha — até tal ponto que ele lhe dará um lugar em seu 
leito.19 
 
Deffieux se surpreende com as palavras de B. sobre essa experiência — “de 
nenhum modo sei se senti dor” — e ressalta que o último ensino de Lacan orienta o analista 
diante de casos como este em que não se apresentam fenômenos de linguagem, mas 
diferentes modos de enodamento que se dão a ver na pregnância do imaginário aliada a uma 
ancoragem simbólica frágil, ou na relação de estranheza entre o eu e o corpo, ou ainda no 
exercício desenfreado da pulsão desconectada de qualquer dialética discursiva. 
Embora não se trate de um “deixar cair” como Joyce e B., é no corpo que Roussel 
experimenta a “glória”, a partir de um estado hipomaníaco em que se dedica à escrita 
ininterruptamente, explicitando para Janet20 que não se trata de uma ideia, um sentimento de 
valor, uma necessidade, um desejo. 
 
Essa glória era um fato, uma constatação, uma sensação, eu tinha a glória... O 
que escrevia estava rodeado de radiações [...] Eu levava o sol em mim e não 
podia impedir essa formidável figuração de mim mesmo. [...] Vivi mais nesse 
momento do que em toda minha existência.21 
 
Um gozo não fálico se apodera de seu corpo, gozo Outro situado na articulação do 
real com o imaginário. De acordo com Maleval,22 embora pareça surgir de um trabalho de 
escrita, a sensação de glória se produz fora do simbólico, e Roussel encontra na escrita “a 
certeza de uma posição de exceção” — comparável às figuras de Dante, Shakespeare e 
Napoleão —- que o leva a sustentar que a função paterna foracluída retorna no real. O lugar 
preponderante tomado pela imagem especular se evidencia no desejo de eternizar sua imagem 
na capa de toda sua obra impressa, postumamente, com uma fotografia tirada aos 19 anos, 
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
   	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
18 Deffieux, J.-P. “Um caso nem tão raro”. Em: Miller, J.-A. et al. Los inclasificables de la clínica 
psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2008, p.202. 
19 Ibidem, p.337. 
20 Janet, P. De l’angoisse à l’extase II. Paris: Alcan,1926. 
21 Maleval, J.-C. Ibidem, 2008, p. 116. 
22 Maleval, J.-C. Ibidem, 2008, p.115. 
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 Latusa Digital Ano 9 – N. 48 – Março de 2012. 
 
Psicoses ordinárias e corpo - Ana Martha Maia 
tempo da glória. Sustentar sua imagem é uma das funções de sua escrita. A prevalência de 
identificações imaginárias que o assemelha ao duplo construído pelo jovem paciente de 
Deffieux na cena dos oito anos aparece desde sua primeira obra, O Duplo, cujo tema é 
desenvolvido em torno da história de um ator que, de fracasso em fracasso, permanece 
desconhecido. Apesar de Roussel apresentar momentos depressivos severos, Maleval supõe 
que ele não desencadeou uma psicose porque a escrita funcionou, em seu caso, como 
suplência. Tendo inventado um “procedimento” fundamentado na combinação de palavras, 
consagra sua vida à escrita, seu sintoma. “Eu sangro sobre cada frase”, diz ele. 
Laurent23 acredita que a relação “normal” com o corpo exige um esforço de 
localização do gozo, o que Miller especifica nos tipos clínicos: na histeria, o corpo está a 
serviço do desejo, mas também da defesa contra o desejo; na neurose obsessiva, o corpo 
serve à demanda e, ao mesmo tempo, à recusa, enquanto que, para servir-se de seu corpo, o 
esquizofrênico deve empregar um esforço de invenção considerável e se ocupa atentamente 
de algumas partes do corpo habitualmente descuidadas. 
 
“O uso do corpo no psicótico pode, às vezes, convergir com um uso que 
parece normal, ordinário, só que, para chegar a isso, deve fazer um enorme 
esforço. Muitas vezes, a única coisa que nos indica em que registro estamos” 
— diz Miller — “é o enorme esforço de invenção que há por trás [...], enquanto, 
para os neuróticos, é de confecção. Isso marca uma diferença”.24 
 
Joyce, Roussel e o jovem paciente de Deffieux apresentam diferentes modos de 
amarração sinthomática e de aparelhamento com o corpo que fazem ecoar uma pergunta de 
Lacan:25 “a partir de quando se é louco?” Parafraseando-o: “vale a pena colocar essa questão” 
... a cada vez que uma análise se inicia. 
	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
   	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  	
  
23 Miller, J.-A. La psicosis ordinária. Buenos Aires: Paidós, 2006, p.254. 
24 Ibidem, p. 255. 
25 Lacan, J. O Seminário 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p.75. 
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