Buscar

___ Cristovão Tezza ___ a vida polifonica de bakhtin

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 7 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 7 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

23/03/2018 ||| Cristovão Tezza |||
http://www.cristovaotezza.com.br/textos/resenhas/p_9805_cult.htm 1/7
 
 
 
A vida polifônica de Mikhail Bakhtin
 Revista Cult - maio de 1998
 Mikhail Bakhtin, de Katerina Clark e Michael
Holquist
Cristovão Tezza
 
Talvez a mais enigmática figura das ciências
humanas do século XX tenha sido o teórico russo
Mikhail Mikhailóvitch Bakhtin. Nascido em 1895 e
morto em 1975, atravessou a vida inteira
praticamente anônimo - sobrevivendo pelas frestas
do acaso à Revolução Russa, ao exílio no
Cazaquistão, aos expurgos de Stálin, à osteomielite
(que lhe obrigou a amputar uma perna), ao silêncio
gélido da cultura oficial do estado soviético, à falta
crônica de dinheiro e de conforto, e, mais que tudo,
ao fato de, motivado sempre pela escrita
interminável de seus textos, quase nunca vê-los
publicados.
 
Para situar o que dele se conheceu enquanto foi
vivo, lembramos que publicou em 1929 um livro
chamado Problemas da poética de Dostoiévski, que
seria reeditado somente em 1963; e em 1965 viu
publicada (por insistência de um jovem e
entusiasmado estudante) A obra de François
Rabelais e a cultura popular na Idade Média, uma
alentada tese escrita em 1940 e defendida em 1951
que, após intermináveis discussões da banca
examinadora, não foi suficiente para lhe dar o título
de doutor. Entre esses dois "marcos", por assim
dizer, publicou somente um ou outro artigo avulso.
 Assim, nos anos 70, a imagem de Mikhail Bakhtin
que começava ainda timidamente a se tornar
pública, era a de um teórico da literatura com dois
poderosos - mas isolados - trabalhos temáticos. Na
 
23/03/2018 ||| Cristovão Tezza |||
http://www.cristovaotezza.com.br/textos/resenhas/p_9805_cult.htm 2/7
obra sobre Dostoiévski, Bakhtin definia o
romancista como o criador do "romance polifônico",
o texto em que diversas vozes ideológicas
contraditórias coexistem com o próprio narrador,
em pé de igualdade; no trabalho sobre Rabelais,
criava a categoria de "carnavalização" como um dos
eixos da cultura popular, que inclui tanto a inversão
hierárquica dos valores pelo poder demolidor do riso
quanto o ponto de contato (e de guerra) das
diversas linguagem sociais.
 
Duas obras que seriam suficientes para lhe
garantirem um respeitável lugar na teoria literária
moderna. Mas em pouco tempo outros "Bakhtins"
começaram a surgir - e a complicar um perfil que já
estaria mais ou menos delimitado por esses dois
trabalhos teóricos. No início dos anos 70, levantou-
se a hipótese de que muitas obras editadas sob o
nome de outros autores teriam sido na verdade
escritas por Bakhin. Entre elas, Marxismo e filosofia
da linguagem, assinada por V. N. Voloshinov e
publicada em 1929, e O método formal no estudo
literário: uma introdução crítica à poética
sociológica, assinada por P. N. Medvedev e
publicada em 1928. Ao mesmo tempo, apareciam
os textos inéditos de Bakhtin, longos ensaios sobre
o discurso romanesco escritos nas décadas de 30 e
40; e ainda textos de filosofia e de estética escritos
nos anos de juventude. Além deste conjunto de
trabalhos mais ou menos circunscritos à filosofia da
linguagem e à literatura, também se descobriram
textos bakhtinianos abordando temas tão díspares
como o artigo Vitalismo contemporâneo, sobre a
fisiologia do cérebro, assinado por I. I. Kanaiev e
publicado em 1926, e o volume Freudismo,
assinado por Voloshinov e publicado em 1927, uma
contestação dos pressupostos da teoria freudiana, a
partir de uma teoria da linguagem.
 
Diante desta pletora de dados aparecidos quase que
subitamente, é natural que se cometessem alguns
equívocos de interpretação - pelo menos até que o
seu conjunto de obra fosse assimilado, o que
começa a acontecer só agora, quando o século se
fecha. Bakhtin apareceu no Ocidente em pleno
império das concepções imanentes da linguagem.
23/03/2018 ||| Cristovão Tezza |||
http://www.cristovaotezza.com.br/textos/resenhas/p_9805_cult.htm 3/7
Na área da Lingüística, o gerativismo de Noam
Chomsky ocupava então todos os espaços; na
teoria literária, o estruturalismo reinava
praticamente sozinho, sustentando o conceito
metafísico de que cada obra literária é a realização
possível de uma estrutura abstrata muito mais
geral; nas palavras de Tzvetan Todorov, no best-
seller acadêmico da época, Estruturalismo e
poética, cada texto "não será senão um exemplo
que permite descrever as propriedades da
literatura". Na mesma obra, Bakhtin é descartado
(até então apenas o autor do livro sobre
Dostoiévski) em dois ou três paragrafos ligeiros.
 É neste panorama que aparece a biografia Mikhail
Bakhtin, de Katerina Clark e Michael Holquist,
publicada originalmente em 1984 pela editora da
Universidade de Harvard, e agora finalmente
lançada no Brasil em uma cuidadosa edição da
Editora Perspectiva, com prefácio de Boris
Schnaiderman e tradução de J. Guinsburg. Desde
já, ressaltem-se duas boas qualidades desta obra.
Uma delas é o fato de que, pela primeira vez,
através de um cuidadoso e detalhado levantamento
de dados biográficos, chegou-se a uma visão muito
mais completa de sua vida. Para usar um termo
caro ao próprio Bakhtin, tem-se agora um ponto de
vista "exotópico", um olhar abrangente de fora
capaz de dar sentido, interpretação e acabamento
ao que antes parecia um colcha de retalhos mal-
costurada. Trata-se de um ponto de partida sólido
para compreender quem foi e o que pensou Mikhail
Bakhtin. Qualquer estudo de envergadura sobre sua
vida terá obrigatoriamente de levar em
consideração esta obra pioneira.
 A segunda grande qualidade do livro é afinal ter
revelado, na sua consistência biográfica e
bibliográfica, não uma curiosidade histórica a ser
resgatada do esquecimento, mas um pensador
complexo e articulado que, transitando da filosofia
da linguagem às questões da estética, construiu
uma respeitável catedral teórica. A obra de Clark &
Holquist revela com clareza que há um ponto em
comum vinculando organicamente os tópicos
discutidos desde os seus textos filosóficos de
juventude até os de seus últimos anos - e incluindo-
se aí as obras não assinadas por ele. De tal arte,
23/03/2018 ||| Cristovão Tezza |||
http://www.cristovaotezza.com.br/textos/resenhas/p_9805_cult.htm 4/7
que a questão da "autoria" deixa de ser relevante,
na medida em que as concepções da linguagem que
definem a filosofia de Bakhtin subjazem nos textos
disputados, afinal todos produzidos sob a
efervescência crítica do que se chamou "círculo de
Bakhtin". Embora o enigma da autoria persista -
Bakhtin nunca reconheceu oficialmente ter escrito
os livros disputados, ainda que haja evidências
muito fortes nesse sentido - não resta dúvida de
que a concepção de linguagem presente em
Marxismo e filosofia da linguagem e em O método
formal no estudo literário é rigorosamente
"bakhtiniana", assim como o pressuposto teórico
que contesta Freud em Freudismo é também puro
Bakhtin. 
 
Assim, o ponto forte do livro de Clark & Holquist
residirá exatamente no que ele tem de informação
bio-bibliográfica e em que medida essas
informações nos revelam a estatura intelectual de
Bakhtin. Uma trajetória fascinante: acompanhamos
desde a juventude de Bakhtin em Vilno, na Lituânia,
passamos pelo ambiente cultural de sua formação,
a presença do irmão Nikolai, também lingüista
(depois exilado na Inglaterra), a universidade em
São Petersburgo, a Revolução e a efervescência
cultural que se seguiu, e a formação do que ficou
conhecido como o "Círculo de Bakhtin". Mais tarde,
a partir de 1929, acompanhamos o exílio de Bakhtin
no Cazaquistão, o desaparecimento de quase todos
seus amigos nos anos do expurgo stalinista, e
pouco a pouco, já nos meados dos anos 50, a
reaproximação com os centros maiores, a lenta
redescoberta de seus trabalhos e a morte em
Moscou. Esse o roteiro que os autores costuram,
contextualizando cada momento de suaobra, quase
sempre produzida em condições muito difíceis.
 Mas entrar no seu mundo - mesmo com os dados
biográficos na mão - não é tão fácil. "O difícil em
Bakhtin", como apontam os próprios Clark &
Holquist, "é a exigência que seu modo de pensar faz
ao nosso, a exigência de mudar as categorias
básicas que a maioria de nós utiliza para organizar
o próprio pensamento". A dificuldade já começa,
por exemplo, no conceito mesmo de signo,
retomado por Bakhtin sob outra perspectiva em
23/03/2018 ||| Cristovão Tezza |||
http://www.cristovaotezza.com.br/textos/resenhas/p_9805_cult.htm 5/7
Marxismo e filosofia da linguagem, quando submete
a visão saussureana a uma crítica dura. Ao dizer
que todo processo de significação inclui, desde o
seu nascimento primeiro, o ponto de vista do outro
- isto é, que toda palavra é inelutavelmente dupla,
e que a consciência individual só pode se definir
como tal quando inclui em si mesma o ponto de
vista de fora, e portanto vivemos permanentemente
num território dialógico (para usar uma palavra-
chave do pensamento bakhtiniano), Bakhtin vira de
cabeça para baixo as noções congeladas de
"emissor" e "receptor" funcionando como entidades
avulsas que trocam informações neutras.
 
Entender a noção de dialogismo em Bakhtin é o
pressuposto para a compreensão de toda a sua
obra. O seu dialogismo exige uma concepção
descentralizada de mundo, a partir da própria
natureza da linguagem - e não simplesmente como
um imperativo ético. Em outras palavras, não se
pode esquecer que Bakhtin é, antes de tudo, em
todos os seus textos, um cientista, e não um
moralista - ainda que, é claro, e isso também é
Bakhtin, nenhuma palavra (nem a da ciência) seja
desprovida de valor ético. Parece estar exatamente
aqui, no eixo da interpretação do pensamento
bakhtiniano, o ponto fraco da obra de Clark &
Holquist. O aspecto mais visível dessa fraqueza -
em certos momentos, gritante - é a tentativa de a
todo custo fazer de Bakhtin um teólogo, ou um
pensador religioso. 
 
Apoiados em algumas poucas evidências, entre elas
a participação de Bakhtin em círculos religiosos que,
na efervescência pré e pós-revolucionária, eram
fóruns de acaloradas discussões filosóficas, Clark &
Holquist sublinham repetidamente o "cristianismo"
de Bakhtin, embora não se encontre rigorosamente
nada nos seus textos que permita, com um mínimo
de honestidade intelectual, classificá-lo como um
"pensador religioso". Nesse esforço bizarro de
interpretação, até mesmo as transformações de
significado que se processam na interação entre
falante e ouvinte, que Bakhtin analisa em Marxismo
e filosofia da linguagem, revelam-se para os
autores "uma história de um Deus que morre e
23/03/2018 ||| Cristovão Tezza |||
http://www.cristovaotezza.com.br/textos/resenhas/p_9805_cult.htm 6/7
vive", com claras "sugestões cristológicas". 
 
Ao mesmo tempo em que assinalam corretamente o
fato de que em Bakhtin "o mundo em essência não
tem significado" e que "as pessoas nada são em
essência senão criadores e consumidores de
significado", os autores, como se isso não fosse um
paradoxo, acrescentam que "em última análise, o
pensamento de Bakhtin é uma filosofia da criação,
uma meditação sobre os mistérios inerentes à ação
de Deus...". Por fim, Clark & Holquist
defensivamente acabam por estender a teologia a
qualquer atividade intelectual sobre a linguagem:
"Pensar acerca da linguagem, mesmo sem invocar
termos da teologia, deve envolver, na natureza da
linguagem, algumas das questões centrais com as
quais os pensadores religiosos sempre se
debateram, tais como a natureza do significado
(...)". 
 
A interpretação chega ao absurdo no capítulo
"Rabelais e seu mundo", em que a categoria do
grotesco, uma tecla-chave da tese de Bakhtin sobre
a cultura medieval e a obra de Rabelais, merece o
seguinte comentário: "Assim como o carnaval
representa a intertextualidade de ideologias, oficiais
e não-oficiais, do mesmo modo o corpo grotesco
projeta em primeiro plano a intertextualidade da
natureza. O grotesco é percebido intertextualmente
no plano da biologia. O cuidado de Bakhtin com
aspectos exuberantemente físicos do corpo remonta
ao seu interesse no corpus Christi, o corpo efetivo
do homem vivo Jesus, e à sua preocupação com a
ciência da fisiologia." Dificilmente se verá num
ensaio crítico de envergadura um chifre tão
estranho na cabeça de um cavalo. Como que se
desculpando, os próprios autores confessam que "é
difícil, no Ocidente, enxergar em Bakhtin os
vínculos entre a sua cristologia e as preocupações
principais, aparentemente não-religiosas, de seu
pensamento". De fato, é muito difícil.
 
De ilação em ilação, os autores afinal decidem: "A
teologia de Bakhtin também se baseia numa
tradição cristã que honra o presente, o humano, a
riqueza e a complexidade da vida cotidiana". Mas
23/03/2018 ||| Cristovão Tezza |||
http://www.cristovaotezza.com.br/textos/resenhas/p_9805_cult.htm 7/7
que teologia? Aqui transparece não só uma
distorção interpretativa fundamental sobre o que
escreveu Bakhtin, mas também um não
reconhecimento da natureza de seus textos.
Equivale a dizer que ele chegou a conclusões tais e
tais não por uma teoria de fundamentação
científica, mas por imperativos morais e éticos -
"honra". Isto é, o dialogismo não seria uma
categoria que procura definir objetivamente a
natureza da linguagem, mas uma meta moral que
todos devemos atingir - uma confusão que está
presente em muitos momentos do livro. 
 
O que é uma pena: esse aspecto chama a atenção
do leitor justamente pelo seu vivo contraste com as
recensões críticas das obras de Bakhtin que o livro
contém, tecnicamente bastante claras e precisas -
chega-se a pensar em "encaixes interpretativos",
semelhantes ao que o próprio Bakhtin muitas vezes
teve de fazer, intercalando chavões do marxismo-
leninismo para aprovação da censura. Agora a
censura vem de outro lado: os autores não
reservam um único parágrafo, por exemplo, para
discutir que relevância teve o diálogo com o
marxismo no pensamento de Bakhtin, um tópico
muito mais pertinente que a sua suposta teologia.
 Mas o fato é que essa linha interpretativa dos
autores - que parece não ter encontrado eco em
nenhum outro estudioso de Bakhtin até aqui - não
chega a comprometer a qualidade básica da obra, o
seu mapeamento bio-bibliográfico, um notável
ponto de partida em direção à compreensão mais
completa de um pensador ainda por se desvendar
em toda a sua riqueza.
 
 
voltar

Continue navegando