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1 VIOLÊNCIA SEXUAL NAS RELAÇÕES CONJUGAIS E A POSSIBILIDADE DE CONFIGURAR-SE CRIME DE ESTUPRO MARITAL MARIA AMANDA LIMA DE VASCONCELOS1 INGRID DE OLIVEIRA PONTES2 JOSÉ WELLINGTON PARENTE SILVA3 Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar a figura de um delito que ocorre no interior da estrutura matrimonial e discorrer sobre a possibilidade ou não de ser o marido autor do delito de estupro contra a própria esposa. Verificar acerca da dialética doutrinária sob uma visão crítica, abordando duas correntes contraditórias a respeito do assunto: uma tradicional, que não aceita o estupro nas relações conjugais, sobre influência da sociedade patriarcal, acreditando no débito conjugal; e outra, moderna, que compreende ser possível o estupro marital, em que se baseia nos ideais de igualdade e no Princípio da Dignidade da Pessoa humana. Palavras-Chave: Estupro marital. Violência Sexual. Débito conjugal. Liberdade Sexual. Igualdade entre cônjuges. SEXUAL VIOLENCE IN CONJUGAL RELATIONS AND THE POSSIBILITY OF SETTING UP OF RAPE CRIME MARITAL Abstract: The objective of this paper is to present the figure of an offense that occurs within the marriage structure and discuss whether or not to be the husband author of the rape crime against his wife. Check up on the doctrinal dialectic in a critical view, approaching two contradictory currents on the subject: a traditional, that does not accept rape in marital relations, on influence of patriarchal society, believing in the marital debt; and other, modern, comprising possible marital rape, as it is based on the ideals of equality and Principle of dignity of the human person. Keywords: Marital Rape. Sexual Violence. Marital debt. Sexual freedom. Equality between spouses. INTRODUÇÃO O presente trabalho visa abordar um tema bastante polêmico, mas de extrema relevância no meio social, uma vez que se trata de uma espécie de delito contra a liberdade sexual da mulher, que afronta a dignidade da pessoa humana. 1 Graduanda em Direito pela Faculdade Luciano Feijão. E-mail: amandavasconcelos64@hotmail.com 2 Graduanda em Direito pela Faculdade Luciano Feijão. E-mail: ingrid_olip@hotmail.com 3 Graduado em Direito pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. Especialista em Processo Civil pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. E-mail: wellington_parente2011@hotmail.com 2 O objetivo do estudo é a análise do delito de estupro, em que significante parcela é de autoria do próprio cônjuge. Iremos trazer à discussão se é possível a configuração de estupro pelo marido, o chamado estupro marital, que muitas vezes é confundido com o débito conjugal, contudo, analisando aspectos históricos, do contexto social e as divergências doutrinárias sobre tal assunto. Na sociedade brasileira há crescentes casos de violência doméstica contra a mulher, sobretudo, a sexual. O estuproé uma espécie de delito em que teve sempre repreensão no decorrer das civilizações, todavia, a grande questão a ser discutida é a possibilidade da configuração de crime para o estupro marital. As raízes culturais machistas, ainda presentes na sociedade de hoje, acreditam no débito conjugal, em que é um dever da mulher de realizar ato sexual com seu marido, mesmo sem sua vontade, situação em que muitas vezes é usada da violência ou ameaça para praticar tal ato.Por outro lado, a corrente moderna baseia-se nos ideais de igualdade entre homens e mulheres e no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, afirmando que é possível o cônjuge ser acusado do crime de estupro. Está previsto no Código Penal o crime de estupro, em que se tem a consumação quando alguém for constrangido à conjunção carnal decorrente da violência física ou grave ameaça, mas não há previsto nada em relação ao sujeito ativo do crime ser o cônjuge; através disso, torna-se visível a necessidade de se utilizar da hermenêutica jurídica a fim de estender a presente visão do delito de estupro para abarcar também o estupro marital. Protege-se com o dispositivo em estudo a liberdade sexual da mulher, ou seja, o direito que tem ela de dispor de seu corpo com relação aos atos sexuais, e não a sua simples integridade física, ou seja, a faculdade que ela tem de escolher livremente seu parceiro sexual, podendo recusar inclusive o próprio marido, quando assim desejar.Toda pessoa humana tem o direito de exigir respeito em relação à sua vida sexual e para tanto deve o Estado assegurar os devidos meios, mesmo que seja difícil a comprovação da materialidade desse crime, já que muitas vezes as mulheres não denunciam por acreditarem que a relação sexual é um dever conjugal. 3 VIOLÊNCIA SEXUAL CONFUNDIDA COM OBRIGAÇÃO CONJUGAL Violência sexual define-se por um tipo de violência que envolve as relações sexuais não consentidas e pode ser praticado tanto por conhecido, familiar ou por um estranho. O número de casos de violência sexual, atualmente, só aumenta, especialmente entre mulheres. Há uma significante parcela dessa violência em que o autor é o próprio cônjuge. Cabe observar, que ao longo da história, este crime vem sendo praticado, em que por força dos deveres conjugais as mulheres eram forçadas a ter relações sexuais com seus maridos contra a sua vontade, não respeitando sua liberdade sexual e o seu direito de escolha. Inicialmente com o sistema patriarcal, criou-se uma sociedade machista, na qual as mulheres eram consideradas propriedades e objetos valiosos dos seus maridos, sujeitas aos seus caprichos e as suas violências, principalmente sexuais, em que tinham um papel restrito de procriar e obedecer. Nesta sociedade, a mulher acabou se submetendo aos caprichos sexuais dos seus maridos mesmo que não quisessem, pois dependiam financeiramente deles, e também por temer a sociedade, a perda de seus filhos e até por medo do cônjuge. A extrema diferenciação e especialização do sexo feminino em “belo sexo” e “sexo frágil”, fez da mulher do senhor de engenho e de fazenda e mesmo da iaiá de sobrado, no Brasil, um ser artificial, mórbido. Uma doente, deformada no corpo para ser a serva do homem e a boneca de carne do marido. (FREIRE, 1977, p.94) Existia desde a antiguidade citada por Freire, por volta dos séculos XVI e XVII, a existência da repreensão de praticar a relação sexual forçada, ou seja, a prática do estupro, principalmente quando a vítima era mulher, pois, biologicamente e na sociedade, foi sempre tida como mais frágil. O estupro está entre os crimes sexuais de maior gravidade contidos no código penal atualmente, esse crime é praticado desde os primórdios da existência humana e foi severamente repudiado por diversos povos, sendo considerado um grande e grave malefício a ser reprimido penalmente. 4 Na civilização hebraica o homem que tivesse relação sexual com a prometida antes do casamento era punido com pena de morte e se acaso essa mulher fosse virgem e não comprometida, era diferente, o autor teria que pagar 50 ciclos de prata como multa para o pai, tendo ainda que casar-se com ela. No Egito antigo, este crime era punido com mutilação, ou seja, a castração do indivíduo.Na Grécia e Roma, se punia com pena de morte. No Direito Romano, a denominação usada para este crime era Stuprum, referia-se à conjunção carnal com mulher virgem ou viúva desonesta, mas não poderia ter o emprego da violência. No Direito Canônico, seria enquadrado somente se a vítima fosse virgem e cometido com emprego de violência. (HUNGRIA, 1959). Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o estupro foi utilizado como forma de atingirpsicologicamente seus adversários, para ferir sua moral e humilhar. Muitas mulheres foram violentadas, soldados estupravam as mulheres dos seus adversários em sua frente como forma de tortura psicológica. Tanta violência foi um ponto crucial para o surgimento de sociedades feministas, que buscavam e buscam até hoje igualdade entre os sexos e a extinção da submissão da mulher perante o homem e, principalmente, da sociedade. Com o advento da Constituição Federal de 88, no artigo 5°, inciso I, que trouxe a igualdade entre os sexos, juntamente com a aceitação social da relação sexual da mulher fora do casamento, o estupro passou a ser cada vez mais visto, repudiado e punido social e penalmente. O estupro marital, por exemplo, é a violência sexual contra a mulher em uma relação conjugal, no chamado casamento, em que ela na qualidade de esposa é forçada pelo cônjuge a manter relação sexual sem a sua vontade. É uma modalidade dentre várias do estupro, difere-se, pois o cônjuge passa a ser o sujeito ativo do crime e a mulher sujeito passivo obrigatoriamente. “É um direito seu que não desaparece, mesmo quando se dá a uma vida licenciosa, pois, nesse caso, ainda que mercadejando com o corpo, ela conserva a faculdade de aceitar ou recusar o homem que a solicita.” (NORONHA, 2002, p. 68). 5 Muitas das mulheres não denunciam esse tipo de agressão, pois entendem que sexo no casamento é uma obrigação, temendo consequências piores, não usando de sua liberdade sexual e seu direito de escolha. Esta situação caracteriza o chamado Débito Conjugal, que se caracteriza em uma relação sexual em que o marido tem o direito de exigir “a prestação” do dever sexual e a mulher a “obrigação”de cumprir e vice-versa. Segundo Paulo Luiz Netto Lobo (1999, p. 141-142): Alguns autores denominam este dever de coabitação, mas o sentido que nele prevaleceu foi o de relacionamento sexual durante a convivência no lar comum, na expressão eufemística de debitum conjugale, hoje tão justamente repudiado. Em situação de repudio em sede de tribunal, segundo a desembargadora Maria Berenice Dias (2002, p.01): Ainda que forçoso seja reconhecer como indevida a intromissão na intimidade da vida do par, pela via legislativa - como ao impor, por exemplo, o dever de fidelidade e de vida em comum - não há como afirmar que tenha o Estado imposto a obrigação de manter relações sexuais. Na expressão vida em comum, constante do inc. II do art. 231 do Código Civil, não se pode ver a imposição do debito conjugal, infeliz locução que não pode ser identificada como a previsão do dever de sujeitar-se a contatos sexuais. O débito conjugal é uma terminologia advinda do Código Canônico, e foi criado de certo modo para que se evitasse o adultério, como forma de a mulher cessar com o seu desejo sexual apenas com o marido. No dizer de Maria Helena Diniz (2009, p.134) coabitação é o “direito-dever do marido e de sua mulher de realizarem entre si o ato sexual”. Neste caso, a mulher estaria em uma relação de obrigação sexual para com seu cônjuge e se recusasse ela estaria deixando de cumprir seu dever, sendo impedida de reclamar quando fosse forçada, por meio de violência física ou psicológica a realizar ato sexual com seu marido, o chamado estupro marital ou conjugal. Uma postura passiva da vítima não caracterizaria essa modalidade de estupro. Está previsto, atualmente, no Código Penal Brasileiro, com respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, a previsão de crime de estupro. A lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, revogou o artigo 214 do Código Penal Brasileiro e alterou o artigo 213 do mesmo diploma, trazendo o homem como sujeito passivo do delito e a mulher como sujeito ativo, 6 sendo assim homem e mulher nos sujeitos tanto ativos como passivos. Assim a mulher que antes só era tida como sujeito passivo passa também como ativa no crime, e o homem vice e versa. Não distinção se a vítima é solteira, casada ou virgem. CONFIGURAÇÃO DE CRIME DE ESTUPRO MARITAL O delito de estupro está tipificado no artigo 213 do Código Penal Brasileiro, estabelecendo a pena base de reclusão de 06 (seis) a 10 (dez) anos para o agente que constranger alguém à conjunção carnal ou a praticar ou permitir que pratique outro ato libidinoso, mediante violência ou grave ameaça. Um dos elementos que integram o delito é o constrangimento decorrente da violência física ou da grave ameaça que é dirigido a qualquer pessoa, seja do sexo feminino ou masculino. Com a tipificação da conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça como estupro, está se buscando proteger a liberdade sexual, que é um direito inviolável, ou seja, o objetivo é tutelar o direito de dispor de seu corpo da maneira que achar melhor e não somente a sua integridade física. Com base nisso, podemos dizer que o referido diploma legal chama de estupro a relação sexual à qual a mulher tenha sido violentamente forçada a praticar, inclusive no casamento, tratando-se de um crime hediondo, por força da Lei nº 8.072/90, de natureza gravíssima. Dentro deste contexto pode-se determinar que configura no polo passivo do delito a mulher, não importando seu estado civil (solteira, casada ou viúva) e nem a idade. Questão bastante discutida diz respeito à possibilidade de o marido praticar o crime contra sua esposa, consubstancia-se uma polêmica doutrinária. Considera-se estupro marital a violência sexual empregada contra a mulher na constância da união conjugal, praticada pelo seu cônjuge, mediante violência física ou moral. Essa discussão teve origem há muitos anos, sob o enfoque das obrigações e deveres matrimoniais, sem levar em conta o bem jurídico tutelado pela norma. Hoje em dia esse posicionamento se modificou na doutrina e na jurisprudência, entendendo-se que, embora com o casamento surja para os cônjuges o direito de manterem relações sexuais um com o outro, verifica-se que esse 7 direito não pode ser exercido mediante o constrangimento com o emprego de violência ou grave ameaça. Todavia, inexiste tipificação específica para o estupro marital, entretanto fazendo-se uso da hermenêutica jurídica, pode-se encaixá-lo na tipificação de crime comum, por apresentar os elementos necessários para alcançar a relação sexual. Contudo, também não há nenhum dispositivo legal que obrigue a mulher casada a ceder aos anseios sexuais do marido sem a sua vontade. Há na doutrina criminal, muitas discussões a respeito da possibilidade ou não de o marido ser condenado pela prática de estupro contra a sua mulher. A jurisprudência evidencia já vários casos, em sua maioria, favoráveis à possibilidade de cominação de culpa do consorte. Nesse sentido, transcreve-se a seguinte jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), que aduz, sobre o feito: EMENTA: APELAÇÃO CRIME. CRIMES CONTRA OS COSTUMES. RÉU DENUNCIADO POR ESTUPRO. ATOS QUE SE ENQUADRARIAM NO DELITO DE ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. MANUTENÇÃO DA ABSOLVIÇÃO. Constou da denúncia que o acusado, mediante o uso de violência e graves ameaças, constrangeu a vítima, sua esposa, à conjunção carnal contra a vontade dessa, causando-lhe lesões corporais. Número: 70021263470 Inteiro Teor: doc html. Tipo de Processo: (Apelação Crime. Relator: Naele Ochoa Piazzeta. Tribunal: Tribunal de Justiça do RS. Órgão Julgador: Sétima Câmara Criminal. Comarca de Origem: Comarca de Santa Maria. Seção: CRIME. Decisão: Acórdão. Data de Julgamento: 03/04/2008. Publicação: Diário da Justiça do dia 26/05/2008). Conforme mostra o doutrinador Capez (2008, p. 420), que compartilha do entendimento:“Marido que, mediante o emprego de violência ou grave ameaça,constrange à mulher a pratica de relações sexuais comete crime de estupro”. Delmanto (2000, p.413), por sua vez, entende que: Embora a relação sexual voluntária seja lícita ao cônjuge, o constrangimento ilegal empregado para realizar a conjunção carnal à força não constitui exercício regular de direito, mas, sim, abuso de poder, porquanto a lei civil não autoriza o uso de violência física ou coração moral nas relações sexuais entre os cônjuges. Contudo, ao tipificar o crime de estupro, o artigo 213 do Código Penal não excluiu o marido do polo ativo do fato típico, uma vez que, menciona a palavra “alguém” em sua redação, assim, podendo ser qualquer pessoa. Vale ressaltar, que havendo as 8 condicionantes, que é o constrangimento mediante violência ou grave ameaça e o dolo, ter- se-á configurado o tipo penal e o agente causador deverá ser punido, pois não é pelo simples fato de serem casados os consortes, que o marido tornar-se-á isento de responsabilidade. A exclusão dessa possibilidade surge somente por parte da doutrina que entende não poder o marido ser o agente do estupro contra a mulher, pois o sexo é um dos deveres do casamento. Vale ressaltar, que do mesmo modo que o marido pode ser configurado como estuprador de sua esposa na constância da união, entende-se que o companheiro poderá enquadrar-se em tal modalidade delituosa, haja vista que a união estável, atualmente reconhecida pelo Código Civil de 2002, como entidade familiar, vislumbra então ser possível a configuração do marido e do companheiro como sujeito ativo do crime de estupro, denominado de estupro marital. DOUTRINAS DIVERGENTES SOBRE A POSSIBILIDADE JURÍDICA DE CRIME DE ESTUPRO Há duas correntes acerca da possibilidade de o marido ser o agente do crime de estupro,os posicionamentos circundam em torno da aceitação ou não da existência do delito. A primeira, uma concepção bastante machista, encabeçada por doutrinadores mais antigos, Nelson Hungria e Magalhães Noronha, entende que o marido não pode ser acusado do estupro de sua própria esposa, uma vez que o Código Civil traz como consequência do casamento o dever de coabitação, que significa que os cônjuges têm o dever de manter relação sexual, tendo em vista a obrigação matrimonial;assim, na hipótese de recusa injustificada da mulher, o marido pode forçá-la ao ato sexual sem que responda pelo crime de estupro, estando acobertado pela excludente de ilicitude do exercício regular de direito. No entanto, essa primeira corrente vem perdendo seus adeptos, devido as mudanças ocorridas na sociedade e as mudanças constitucionais. Essa 9 posição contrária entende que o sexo é visto como um débito conjugal e não como um consenso bilateral para os cônjuges ao satisfazerem suas vontades. Tal posicionamento não condiz com a realidade atual, pois, desta maneira, retroage-se no tempo e volta-se a viver de acordo com o sistema patriarcal. Dentre os que recusam a possibilidade, temos o raciocínio de Noronha (2002, p.70), in locus: As relações conjugais são pertinentes à vida conjugal, constituindo direito e dever recíproco dos que casaram. O marido tem direito à posse sexual da mulher, ao qual ela não se pode opor. Casando-se, dormindo sob o mesmo teto, aceitando a vida comum, a mulher não se pode furtar ao congresso sexual, cujo fim mais nobre é o da perpetuação da espécie. A violência por parte do marido não constituirá, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa para não ceder à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo, podendo, todavia, ele responder pelo excesso cometido. [...] mulher que se opõe às relações sexuais com o marido atacado de moléstia venérea, se for obrigada por meio de violências ou ameaças, será vítima de estupro. Sua resistência legítima torna a cópula ilícita. Noronha entende que as relações sexuais constituíam um dever no matrimônio, não podendo a esposa se recusar a fazer o ato por motivos fúteis ou por falta de vontade. Ele só aceita para fins penais se pautada numa justificativa de relevante valor, no caso, se o marido exceder em seus atos ou na presença de contaminação de doença. A segunda corrente é mais moderna, liderada por Damásio E. de Jesus, Celso Delmanto e Julio Fabrini Mirabete, entende que haverá estupro sempre que houver o constrangimento, uma vez que a lei não autoriza o emprego de violência ou grave ameaça para fazer valer o dever de coabitação. Entende ainda que, o desrespeito a esse dever poderia gerar, na esfera civil, a decretação do divórcio, assim, quando há o emprego de violência ou grave ameaça por parte do marido para que se consume a conjunção carnal, não se pode falar em exercício regular do direito, e sim abuso de direito, portanto há crime. Mirabete (2001, p. 1245-1246), por fim, complementa esse posicionamento afirmando que: Embora a relação carnal voluntária seja lícita ao cônjuge, é ilícita e criminosa a coação para a prática do ato por ser incompatível com a dignidade da mulher e a 10 respeitabilidade do lar. A evolução dos costumes, que determinou a igualdade de direitos entre o homem e a mulher, justifica essa posição. Como remédio ao cônjuge rejeitado injustificadamente caberá apenas a separação judicial. Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci (2002, p.655) afirma que: "Tal situação não cria o direito de estuprar a esposa, mas sim o de exigir, se for o caso, o término da sociedade conjugal na esfera civil, por infração a um dos deveres do casamento". No que concerne a tal discussão, Greco (2010, p. 466) esclarece da seguinte forma: “Modernamente, perdeu o sentido tal discussão, pois, embora alguns possam querer alegar o seu „credito conjugal‟, o marido somente poderá relacionar-se sexualmente com sua esposa com o consentimento dela”. Com o mesmo entendimento, esclarece Silvio Venosa (2006, p.37) apud a Greco (2010, p. 466-467) que: Na convivência sob o mesmo teto está a compreensão do débito conjugal, a satisfação recíproca das necessidades sexuais. Embora não constitua elemento fundamental do casamento, sua ausência, não tolerada ou não aceita pelo outro cônjuge, é motivo de separação. Veementemente nos tribunais vem se admitindo a configuração do marido como sujeito ativo do crime de estupro, denominado estupro marital, praticado contra sua esposa. De acordo com os ensinamentos de Fuhrer (2009, p. 158): Seguindo orientação cada vez mais segura dos nossos tribunais, o marido também pode ser sujeito ativo do crime de estupro contra a esposa, pois não se admite mais a cobrança direta do debitum conjugale, como ocorria até metade do século XX. Autores há que externam que não mais deve existir a expressão débito conjugal. É o caso de Dias (2001, p.235): Não se consegue detectar a origem do quem vem sendo alardeado, até por charges via Internet: que existe no casamento o "débito conjugal", que um cônjuge deve ceder à vontade do outro e atender ao seu desejo sexual. Tal obrigação não está na lei. A previsão de "vida em comum" entre os deveres do casamento (Código Civil de 1916, art. 230, II e Novo Código Civil, art. 1.566, II) não significa imposição de "vida sexual ativa" nem impõe a obrigação de manter "relacionamento sexual". Essa interpretação infringe até o princípio constitucional do respeito da dignidade da pessoa, além de violar a liberdade e o direito à privacidade, afrontando a inviolabilidade ao próprio corpo. Não existe sequer a obrigação de se submeter a um beijo, afago ou carícia, quanto mais de se sujeitar a práticas sexuais pelo simples fato de estar casado (grifos nossos). 11 Conclui-se, que acima de tudo, devemser considerados os princípios constitucionais de respeito e consideração mútuos, além dos dadignidade da pessoa humana e da intimidade. Ferraz (2001. p.194-195), em ímpar comentário, explicita que: O estupro da mulher casada, praticado pelo marido, não se confunde com a exigência do cumprimento do débito conjugal; este é previsto inclusive no rol dos deveres matrimoniais, se encontra inserido no conteúdo da coabitação, e significa a possibilidade do casal que se encontra sob o mesmo teto praticar relações sexuais, porém não autoriza o marido ao uso da força para obter relações sexuais com sua esposa. (...) A violência sexual na vida conjugal resulta na violação da integridade física e psíquica e ao direito ao próprio corpo. A possibilidade de reparação constitui para o cônjuge virago uma compensação pelo sofrimento que lhe foi causado (grifos nossos). Assim, verifica-se que a maioria dos doutrinadores é do entendimento da existência do delito de estupro praticado pelo marido contra sua esposa e o uso da violência não pode ser levado em conta, uma vez que há constrangimento ilegal. Tendo em vista a equiparação entre homem e mulher, o marido não pode obrigar sua consorte a realizar seus desejos sexuais contra sua vontade, podendo somente relacionar-se sexualmente com sua esposa com o consentimento dela. Vislumbra-se, então, ao cônjuge insatisfeito, caso a esposa não cumpra com suas obrigações conjugais, tal fato poderá dar ensejo, por exemplo, à separação do casal, cabendo a ele, ingressar com ação de separação judicial, mas nunca usar práticas violentas ou ameaçadoras para obter a satisfação sexual, ofensivas à liberdade sexual da mulher, atingindo-a em sua dignidade. Nesse sentido, esclarece Sílvio Venosa (2009, p. 295): Na convivência sob o mesmo teto está a compreensão do débito conjugal, a satisfação recíproca das necessidades sexuais. Embora não constitua elemento fundamental do casamento, sua ausência, não tolerada ou não aceita pelo outro cônjuge, é motivo de separação. O princípio não é absoluto, e sua falta não implica necessariamente o desfazimento da affectio maritalis. Afora, porém, as hipóteses de recusa legítima ou justa, o dever de coabitação é indeclinável. Nesse sentido, é absolutamente ineficaz qualquer pacto entre os cônjuges a fim de dispensar o débito conjugal ou a coabitação. Não pode, porém, o cônjuge obrigar o outro a cumprir o dever, sob pena de violação da liberdade individual. 12 Depois de vistas as duas correntes, concordamos com a segunda, que entende que o marido ao agir com violência ou ao se utilizar de grave ameaça para praticar a conjunção carnal com sua esposa, pode sim configurar como agente do crime de estupro, já que todos são iguais perante a lei, devendo haver respeito de um para com outro. Contudo, mesmo que com o casamento surja a obrigação da relação sexual, isso não é motivo relevante para justificar uma violência tão grande quanto o estupro. Deve-se entender que a mulher, mesmo casada tem o direito de dispor de seu corpo da forma que ela melhor achar, portanto, se não for da vontade dela manter relação sexual, fundada em algum motivo, não tem o marido direito de forçá-laà prática de tal ato. Portanto, o Código Penal em consonância com a doutrina, evidencia-se a configuração do marido como sujeito ativo do crime de estupro e o abandono da antiga tese do débito conjugal. DIFICULDADE DE COMPROVAR A MATERIALIDADE DO FATO COMO CRIME DE ESTUPRO Esse delito é de difícil comprovação, pois muitas das mulheres por falta de conhecimento de seus direitos não sabem que o que vivem pode sim ser enquadrado como crime, pensam que estão fazendo sua obrigação como esposa omitindo a violência por medo do cônjuge e até por reprovação da sociedade. Esse tipo de violência sexual quase sempre deixa marcas tanto físicas quanto psicológicas, podendo a mulher usar o exame de corpo de delito como meio de prova da comprovação da materialidade do crime. Porém, se não houver vestígios do estupro na vítima, pode ela se utilizar de testemunhas, o que torna bastante dificultoso, pois na maior parte das vezes o estupro ocorre de forma silenciosa nos lares das famílias e longe da visão da sociedade. Nos crimes sexuais é bastante importante a palavra da vítima, por mais que atualmente as pessoas tenham grande dificuldade de aceitá-la por achar mentiroso aquilo que não se pode provar. Muitas das vezes as vítimas por sofrerem eventuais constrangimentos durante as audiências e também perante a sociedade, acabam por retirar 13 a queixa e desistir de incriminar o marido, algumas optam somente pelo divórcio ou a separação conjugal. CONCLUSÃO Conclui-se então que desde os primórdios a mulher sempre foi vista como algo frágil, tendo que se submeter aos caprichos do marido, pois ele era tido como o “homem da casa”, o chefe de família que trazia alimentos e dinheiro para casa. Esses fatores acabaram desencadeando um papel para mulher de inferioridade, alvo de descriminação perante o homem e o resto da sociedade. Ao longo da história isso foi mudando, em vista principalmente da Constituição Federal de 88 que igualou direitos e deveres de homens e mulheres, trazendo também o direito à liberdade. Antigamente sequer se ouvia falar em estupro por parte do cônjuge, pois era tido como algo anormal, socialmente a mulher era inferior, tendo ela que satisfazer o marido de todas as formas. Atualmente embora existam divergências doutrinárias, uma mais tradicional que defende a ideia da impossibilidade jurídica de ocorrência do crime, justificada à luz da sociedade patriarcal e por outro lado, a teoria moderna, em favor da dignidade da pessoa humana e a ideia de igualdade entre homens e mulheres dizendo que existe a possibilidade de se identificar crime, a verdade é que de acordo com as jurisprudências, existe sim a possibilidade de se configurar crime nas relações conjugais sempre que, para satisfação pessoal e sexual, o marido use de violência ou grave ameaça para conseguir o que quer. E assim, considerando o elevado índice de reprovação social perante a prática desse crime, o legislador brasileiro optou por classificá-lo dentro do rol dos crimes hediondos, conforme preceitua a Lei 8.072/90, em seu artigo 1º, inciso V, em vista, da violação grave a preceitos fundamentais, como o direito a dignidade, liberdade sexual, intimidade e mesmo o direito à vida. Constatou-se que este delito é de difícil comprovação, pois hoje no Brasil apesar das mudanças históricas, vistas ao longo do trabalho, muitos dos indivíduos em vista do 14 desconhecimento, acham que como antigamente manter relações sexuais forçadas nada mais é do que um dever cabido ao cônjuge no casamento, podendo o autor do delito ficar impune. Os principais fatores que facilitam esta impunidade são os preconceitos, desconhecimento da população, dependência financeira, dependência emocional e a preocupação com os filhos. Portanto, não se constitui exercício regular do direito, assim como exposto nas jurisprudências, configura-se crime, o uso de violência ou grave ameaça para se realizar conjunção carnal de forma forçada entre os cônjuges. A relação sexual entre os cônjuges deve ser espontânea e por vontade de ambas as partes e não tratada como um dever matrimonial. Essa vertente está cada vez mais difundida entre a sociedade contemporânea precisando de mais conscientização da população em relação a esse problema. REFERÊNCIAS BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/Decretolei/Del2848.htm>. Acesso em: 10/03/2015. ____________________. ConstituiçãoFederativa do Brasil: Texto Constitucional de 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 08/03/2015. CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial, dos crimes contra a dignidade sexual, dos crimes contra a administração pública (arts. 213 a 539-H). Saraiva, 2011. CRIME DE ESTUPRO. Disponível em: http://www.infoescola.com/direito/crime-deestupro/. Acesso em:10/03/2015. DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JUNIOR, Roberto; DELMANTO, Fabio Machado de Almeida. Código Penal Comentado. 5.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. DIAS, Maria Berenice. "Casamento ou Terrorismo Sexual". 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