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PENAL-IV-STEALTHING-oficial (8)

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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE LAVRAS UNILAVRAS
BACHARELADO EM DIREITO - PENAL IV - 5° PERÍODO NOTURNO
NATÁLIA APARECIDA BOTELHO DE CASTRO
 A CONDUTA DE “STEALTHING” E SEUS EFEITOS NO DIREITO PENAL BRASILEIRO
LAVRAS-MG
2020
CENTRO UNIVERSITÁRIO DE LAVRAS – UNILAVRAS
BACHARELADO EM DIREITO - PENAL IV - 5° PERÍODO NOTURNO
NATÁLIA APARECIDA BOTELHO DE CASTRO
A CONDUTA DE STEALTHING E SEUS EFEITOS NO DIREITO PENAL BRASILEIRO
O objetivo deste trabalho é mostrar que a conduta de “stealthing”, além de ser relacionada a violência de gênero é de difícil enquadramento típico no nosso ordenamento jurídico brasileiro, justamente devido à dificuldade que tem a sociedade em acreditar na palavra das mulheres e aceitar sua autonomia sexual. Por fim, indicaremos soluções cabíveis e possíveis enquadramentos típicos, além de uma reflexão a respeito da liberdade sexual das mulheres e seus reflexos na legislação.
Prof.: Me. Emerson Reis da Costa
LAVRAS-MG
2020
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO	4
A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A DOMINAÇÃO PATRIARCAL	5
LIBERDADE SEXUAL FEMININA E SEUS ASPECTOS NA LEGISLAÇÃO	6
A PRÁTICA DE “STEALTHING” E SUA REPERCUSSÃO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO	8
A CONDUTA DE “STEALTHING” E A APLICAÇÃO EXTENSIVA DO ART.215 DO CPB FRENTE A NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO DO TIPO	9
CONCLUSÃO	12
REFERÊNCIAS	13
1. INTRODUÇÃO
O termo “STEALTHING” caracteriza a conduta de retirar o preservativo no momento da relação sexual sem anuência da companheira, que em tradução livre significa a prática de dissimulação. A questão surgiu na Europa, resguardando base legal na Suíça, e resultando em um artigo científico pioneiro realizado por uma advogada criminalista que realizou um estudo com várias mulheres apurando a frequência desse tipo de conduta. Após o estudo em questão, essa prática se tornou amplamente discutida pelas legislações de vários países, o que deu ensejo a análise de seu enquadramento no ordenamento jurídico brasileiro, e de seu cabimento ou não dentro do que o legislador pátrio considera crime. Apesar dos poucos trabalhos produzidos acerca desse assunto, cabe a nós presenciar e por que não, fazer parte do redescobrimento de um tema tão polêmico, e que ao mesmo tempo carrega questões de gênero internalizadas. Abordaremos como a violência de gênero abriu caminho para que práticas como esta sejam normalizadas, alicerçadas por uma gama de princípios patriarcais de dominação e satisfação sexual e social. Ademais, analisaremos quais as possibilidades de aplicação da legislação pátria ao caso concreto e discorreremos a respeito da necessidade de adequação típica para que possamos aplicar o Art.215, que trata sobre a violação sexual mediante fraude, que nos parece a tipificação mais adequada com base nos elementos do tipo. Por fim, acho necessário deixar claro que não sou nenhuma especialista em direito penal, apesar de ter essa pretensão futuramente e de nutrir certo amor por esta área. No entanto, sempre fui mulher, e acredito poder compreender bem os aspectos da conduta de “stealthing”, frente a liberdade sexual feminina. Discorro sobre os fatos como mulher, mas também como estudante e amante do direito, falando também por aquelas que não tiveram essa oportunidade, por não saberem escrever seus nomes ou por serem silenciadas pelo julgamento alheio, por não terem tido acesso à educação e consequente a independência emocional e financeira. Neste trabalho em especial, me dou o direito de ser parcial, de ter um lado, pois a nós sempre foi negado voz, sempre duvidaram da nossa palavra e nos apontaram o dedo. Por isso, hoje, tudo que fere a nossa autonomia, que impede nossa livre manifestação, que passa por cima da nossa vontade, deve ser considerado crime, porque temos o direito de decidir sobre o nosso corpo e nossos desejos, sem sermos questionadas. 
2. A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A DOMINAÇÃO PATRIARCAL
A violência de gênero é pautada em situações cotidianas, que muitas vezes passam despercebidas até se tornarem um feminicídio concretizado. Se o sexo só nos define biologicamente e fisiologicamente, é o gênero em seu sentido subjetivo que define nossas particularidades. Assim, a forma como escolhemos tratar essas particularidades é base da violência institucionalizada, que tem raízes profundas fincadas na dominação. Desde os primórdios, ainda que implicitamente, nos ensinam que a mulher deve ser submissa ao homem, por laços sanguíneos devemos gratidão, nas relações amorosas abusivas nos é cobrado obediência e resignação. Na narrativa de Simone Beauvoir, em seu livro “O Segundo Sexo”, a autora aborda a questão da passividade feminina ao mencionar que quando desenterraram as estátuas de Pompeia, os homens demonstravam feições de revolta e indignação, enquanto as mulheres estavam encurvadas, escondidas e resignadas à espera da morte. Essa postura por muito tempo foi preservada, pois tratadas como objetos de utilidade, satisfação sexual e apreço social nos acostumamos a uma realidade fática que acreditávamos não conseguir mudar, envoltas em um mundo dominado pelo masculino. Muito mais relevante do que o azul ou o rosa, que me perdoa a prezada Ministra, é a situação de vulnerabilidade que o feminino enfrenta diante da construção patriarcal ainda existente na sociedade moderna, que apesar dos esforços e das revoltas alcançadas ainda levam tempo para serem superadas. Conceitos e princípios patriarcais não desaparecem facilmente, assim como o nazismo, o preconceito de cor e outras espécies de imposição de supremacia, estão tão enraizados em nossa cultura, tão socialmente aceitáveis que apesar da mudança de paradigma ainda resistem entre aqueles que se beneficiam delas. 
Diante desse cenário, a figura da mulher se afundou na impotência, na passividade e na falta de esperança de um mundo realmente igual e justo. Dessa forma, quando a mulher é integrada a um mundo inegavelmente masculino, ela passa a sofrer os reflexos da dominação, pois ao ser do sexo feminino é atribuído beleza, graça, delicadeza, quando lhes faltam essas características não são boas o suficiente para serem apreciadas. Contudo, quando são demasiadamente charmosas, atraentes ou sensualmente apreciáveis não são moralmente boas para se contrair matrimônio. Nesse diapasão, vivemos para seguir padrões, nos adequarmos às vontades masculinas, deixando de lado nossas próprias vontades e desejos, no mais, somos reprimidas sexualmente e ensinadas a ter vergonha de nosso próprio corpo desde a infância, o que gera insegurança, autoestima baixa e fragilidade emocional, que configuram as bases da dependência.
 Nesse contexto, quando o homem percebe que está perdendo o controle e a dominação sobre a mulher, da qual considera-se dono e possuidor de todo direito corretivo, cria-se o ambiente perfeito para a violência de gênero. A dominação masculina é baseada na dependência, seja ela emocional ou financeira, contanto que gere sobre o ser feminino a sensação de impotência e passividade, amplificada com a chegada de filhos. Pois o homem, se sente tão poderoso e merecedor de toda atenção do mundo, que ao mínimo sinal de desinteresse, cansaço e indiferença utiliza-se de sua força para se reafirmar. Como exemplo dessa situação insustentável, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de acordo com a apuração do veículo de notícias da Uol, registrou um aumento de 17% da violência contra a mulher em tempos da pandemia do COVID-19. Isso apenas demonstra, que a convivência não é fator principiológico da violência, pois é pautado na dominação patriarcal e utiliza as oportunidades como o confinamento social para continuar com os velhos hábitos. Contudo, a violência física é apenas uma das muitas faces da dominação masculina, que é via livre e facilitadora de outros abusos. Pois, a mais cruel, desumana e destruidora violência contra a mulher é a sexual, que tira nossa autonomia, nos humilha enquanto sujeito de vontades e direitos e nos coloca na posição de meros objetos inanimados e sem valor. É diante deste contexto,que analisaremos a conduta de “stealthing”, suas implicações jurídicas e sociais diante da sociedade moderna, considerando também os avanços legislativos frente a liberdade sexual feminina, principalmente.
3. LIBERDADE SEXUAL FEMININA E SEUS ASPECTOS NA LEGISLAÇÃO
Segundo Simone Beauvoir, se o homem é apresentado como um ser tão físico é devido a sua condição superior de dominação, que lhe permite dar tamanha importância a sua animalidade e selvageria, pois tanto o feminino quanto o masculino detêm os mesmos desejos sexuais, os mesmos impulsos e a mesma possibilidade de controle. Mas como já mencionado, desde a infância a mulher é ensinada a reprimir seus desejos sexuais, a ter vergonha do próprio corpo de forma a ser negada sua sexualidade, sob pena de ser julgada uma mulher impura, mundana e sem valor perante sua família e toda sociedade. Com o advento dos movimentos feministas, das revoluções com caráter democrático que resultaram na construção de instituições voltadas a esse fim, mudanças de paradigma fizeram com que a tipificação de crimes sexuais sofresse profundas mudanças, surgindo novos tipos de acordo com a necessidade de adequação social, como também novas condutas que enfrentam o juízo de valor sobre sua criminalização. 
O primeiro mecanismo de proteção às mulheres no Brasil, em relação a violência de gênero foi a Lei Maria da Penha, surgindo o germe de sua criação em 1945, no Ceará, em virtude do Caso n°12.051/OEA, que contou a história de uma mulher que após intensas agressões sofridas pelo marido, chegando até mesmo a perder a mobilidade das pernas em virtude das agressões, mobilizou o legislativo em face da situação das mulheres vítimas de violência. Na época do crime em questão não havia nenhum mecanismo no Brasil de proteção às mulheres, ainda que a violência de gênero fosse algo constante e crescente, diante disso foi encaminhada denúncia a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que resultou em uma condenação do Brasil justamente pela ausência da tipificação. O órgão internacional enviou ao Brasil o relatório n°54 da OAE, que foi considerado um orientador para a edição da Lei 11.340/2006, a tão famigerada Lei Maria da Penha, e agora pela primeira vez na história a mulher teria um mecanismo de proteção em terras brasileiras.. Não há dúvidas que a Lei Maria da Penha foi um importante avanço na luta pelos direitos das mulheres, abrindo caminho para outras modificações legislativas, dessa vez voltada a liberdade sexual feminina, como a modificação da nomenclatura dos crimes sexuais. 
A Lei 12.015/2009 trouxe mudanças significativas em relação aos crimes sexuais, o primeiro ponto a destacar é no tocante a nova nomenclatura, que prestigia a dignidade da pessoa humana. A mudança de paradigma retira o enfoque da moralidade e dos costumes, pois os crimes sexuais atacam diretamente a dignidade da pessoa como ser coletivo e individual, enquanto a honra como bem jurídico tutelado trata a pessoa apenas como ser coletivo em razão da vergonha de ser violado perante uma sociedade moralista. Podendo concluir, que a honra como direito personalíssimo, quando colocada como bem jurídico tutelado pelo direito penal não conseguia abranger de maneira profunda o que realmente estava sendo atacado, a dignidade sexual da pessoa humana. Ainda, podemos incluir como peça chave para a consagração desse princípio a Constituição de 1988, que ficou conhecida como constituição cidadã justamente por positivar normas que asseguram a proteção do indivíduo como sujeito de direitos, colocando o homem no centro de todos os princípios norteadores. Assim, conforme Art.1°, inc. III da CF/88, a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, e um dos aspectos dessa dignidade se encontra na seara da liberdade sexual, no consentimento e na autodeterminação enquanto um ser sexual livre.
Além disso, outra alteração da lei 12.015/2009 é a migração do crime de atentado violento ao pudor, antigo Art. 213 do CPB, para o crime de estupro. O atentado violento ao pudor consistia em qualquer ato libidinoso, portanto, aplicava-se por exclusão o tipo, pois o estupro previa a necessidade de conjunção carnal e tudo que não configurasse tal conduta enquadrava-se ao crime menos grave. Diante da mudança, atos que constituíam o atentado ao pudor passaram a figurar o tipo penal do estupro. Importante ressaltar que não houve a descontinuidade delitiva, ou seja, o “abolitio criminis”, mas apenas uma reformulação do tipo, acrescentando-o em outro. Ademais, outro importante marco foi a introdução do Art.217-A, trazendo ao estupro de vulnerável uma maior proteção em relação às vítimas que não tem capacidade para consentir, surgindo também a desnecessidade de apenas conjunção carnal como figura central do delito, pois outros atos libidinosos, além da penetração vaginal, também é considerado estupro. Por fim, outra importante modificação introduzida pela Lei 13.718/18 é o Art.215-A do CPB, que incrimina a importunação sexual. Primeiramente é importante frisar que a referida lei revoga o Decreto 3.688/1941, Lei de Contravenções Penais, no que toca o contravenção de importunação ofensiva ao pudor. Dessa forma, a importunação sexual que tipifica o atos libidinosos praticados contra alguém, sem sua anuência, com o fim de satisfazer lascívia própria ou de terceiro, passa a ser crime, alcançando abrangência maior em relação a pena e também as situações que surgem. Outrossim, sendo o Art.215-A subsidiário, um soldado reserva, somente se aplica quando não constituir crime mais grave, como no caso do estupro. Pois tais figuras típicas se diferenciam devido a ausência ou não de violência ou grave ameaça, pois se existir a presença de tal elemento estaremos diante do estupro. Assim, o crime de importunação sexual se aproveita de momentos cotidianos em que a vítima, por impossibilidade física, não consegue se desvincular dos atos libidinosos praticados contra ela, ainda que o criminoso não aja com violência, como nos casos de importunação nos transportes públicos. O encoxamento, a passada de mãos no corpo alheio sem sua concordância, além da própria ejaculação, agora podem ser punidos como crime, com uma pena proporcional ao constrangimento sofrido. Pois não é apenas a violência ou a ameaça que nos deixa em posição de impotência, já que criminosos sexuais estão sempre se aperfeiçoando para não serem pegos, então cabe a legislação se adequar, e as mulheres denunciarem qualquer tipo de abuso.
	
4. A PRÁTICA DE “STEALTHING” E SUA REPERCUSSÃO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO
O “Stealthing” caracteriza a prática da retirada do preservativo durante a relação sexual, sem a permissão da companheira. A princípio parece algo simples, sem muitas implicações jurídicas ou psicológicas mas que analisando profundamente se mostra um solo fértil para mais abusos. A primeira esfera do consentimento é a autonomia, que se expressa pela capacidade de autodeterminação, de dispor do próprio corpo de acordo com seus desejos e vontades sexuais. A autonomia sexual feminina é vista como libertinagem, pois qualquer forma de aproximação ao comportamento masculino é mal visto, taxado de forma depreciativa a imagem da mulher. Mais do que carregar sacos de cimento, ou exercer trabalhos físicos pesados, o peso do julgamento em razão da vida sexual é certamente muito mais pesado para a mulher. 
A autonomia enquanto princípio apresenta alguns aspectos de suma essencialidade para o tema, pois além da possibilidade de disponibilidade sexual, é preciso que se tenha a consciência das possíveis consequências do ato que se consente. Na conduta de “stealthing”, ainda que a mulher tenha capacidade para dispor sexualmente do próprio corpo, na medida em que o companheiro decide unilateralmente mudar as circunstâncias da relação, a mulher perde a consciência sobre as consequências desse ato, que podem ir desde uma gravidez indesejada a uma contaminação de doença sexualmente transmissível. Esse desconhecimento dos termos sexuais, retira a validade do consentimento,pois quando se trata do corpo e das vontades de outra pessoa é preciso ser o mais claro possível aos atos praticados, sob pena de caracterizar abuso. Bem mais que uma questão de confiança, o vício de vontade constitui crime, limita a vítima a uma postura passiva e complacente, enquanto influi na insegurança em relação a nós mesmas e a nossa autonomia sexual. 
A conduta em análise foi trazida à tona através de um estudo de Brodsky 2017, que se fundamenta em um julgado suíço que enquadrou o “stealthing” como estupro. No mais, foi apontado pelo estudo a influência da violência de gênero e da violação dos direitos fundamentais, que são desdobramentos do patriarcalismo que instituíram no país tipos legais de acordo com a moralidade adequada a conveniência masculina. No Brasil, após a Lei 12.015/2009, para a configuração do crime de estupro previsto no Art.213 do CPB, é necessário a presença do elemento normativo da violência ou grave ameaça, de forma que não seria possível o enquadramento típico do “stealthing” sem que estejam presentes esses elementos. Outra vertente de advogados e doutrinadores acreditam que a conduta nem mesmo constitui crime, pois para eles esse tipo de situação se assemelha aos casos em que a mulher para de tomar anticoncepcional sem avisar o parceiro. No entanto, quando a mulher deixa de tomar a pílula, apesar da reprovabilidade moral de sua atitude, ela está exercendo controle apenas sobre seu corpo, uma situação completamente diferente. Pois, o não uso do anticoncepcional não leva a gravidez ou a transmissão de qualquer doença se houver o uso de preservativo, portanto, não retira a autonomia sexual do parceiro. Outrossim, também há uma vertente que aconselha a aplicabilidade ao crime de contágio de perigo venéreo, Art.130 do CPB, nos casos de transmissão de doenças sexualmente transmissíveis em decorrência da retirada do preservativo sem o consentimento. Entretanto, o dispositivo mais coerente para a aplicação do “stealthing” no Brasil ao nosso ver é o Art.215 que disciplina os crimes sexuais relativos à violação sexual mediante fraude, também conhecido como estelionato sexual.
5. A CONDUTA DE “STEALTHING” E A APLICAÇÃO EXTENSIVA DO ART.215 DO CPB FRENTE A NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO DO TIPO
O crime de violação sexual mediante fraude, previsto no Art.215 do CPB, tutela o bem jurídico da liberdade sexual e para melhor compreensão de sua aplicabilidade analisaremos os elementos normativos do tipo. O delito em análise é comum, de modo que tanto o sujeito ativo quanto o passivo podem ser tanto do sexo masculino como feminino. No entanto, devido a vulnerabilidade social e histórica da mulher, como explicado no tópico sobre a violência e a dominação, voltaremos nossas atenções a elas já que o delito é mais recorrente em desfavor das mulheres. Outrossim, conhecido também como estelionato sexual, o crime em análise se perfaz quando a vítima é induzida a erro, seja a respeito da identidade do agente, sobre a legitimidade da conjunção carnal ou quanto ao ato libidinoso consentido por ela. Nesse aspecto, é interessante salientar que quando o sujeito ativo retira o preservativo durante a relação sexual sem o consentimento da companheira, induz a vítima ao erro quanto à legitimidade da conjunção carnal. Pois, na maioria dos casos, se soubesse do pretendido ato não consentiria com a relação, por não estar dentro dos termos combinado entre o casal. A fraude é o principal elemento normativo do tipo, podendo ser entendida como qualquer artifício hábil a enganar o sujeito passivo ou induzi-lo a erro. O elemento fraude consegue viciar a vontade do sujeito induzindo-o a consentir com a relação sexual, sendo ilegítimo o consentimento viciado. De modo que a fraude restringe a autonomia pessoal e sexual da pessoa, tornando o consentimento inválido, assim como é possível a caracterização de estupro entre marido e mulher é passível de criminalização as relações consentidas que se tornam inválidas no decorrer da conjunção, quando em dado momento é utilizado qualquer tipo de fraude, como a retirada da camisinha posteriormente, induzindo a vítima a um consentimento para uma relação protegida. Segundo Hungria, a fraude pode mostrar-se também como uma maliciosa provocação ou o aproveitamento do erro ou engano visando uma finalidade ilícita. No caso do “stealthing”, a fraude é facilmente identificada quando o sujeito ativo faz uso de dissimulação ou oculta algum fato relevante para a formação da livre consciência da vítima. Assim, o discernimento como desdobramento da autonomia resta prejudicado, porque não estando no pleno gozo da liberdade sexual não é possível um consentimento válido.
	Outra questão interessante é a negação do uso do preservativo pelo homem, mais do que um fetiche sexual o uso da camisinha é essencial para evitar gravidez indesejada e também a transmissão de doenças sexuais. Sabido isso, diante da mentalidade masculina é superada essa concepção em face de seu desejo de propriedade perante o corpo feminino, pois a ele pertence seu total controle. Dessa maneira, é evidente que o egoísmo masculino ultrapassa os limites do lógico, pois nada mais importa do que seu próprio prazer, submetem suas companheiras ao uso de anticoncepcionais cheios de hormônios pesados, para poderem se satisfazer enquanto homem. Das muitas justificativas, emergem aquelas que expressam o desconforto com o uso do preservativo, o prazer minimizado, entre outras desculpas vazias para convencer suas parceiras a não utilização do método. Muitas coisas na vida são desconfortáveis, principalmente quando se é mulher, a menstruação, a dor do parto, mas nada se compara ao desrespeito masculino diante de nossas vontades e desejos, enquanto seres autônomos e livres.
	No mais, o dispositivo é expresso no sentido de permitir a aplicação de interpretação analógica, quando for utilizado qualquer outro meio que dificulte ou impeça a livre manifestação da vontade da vítima, como se perfaz no “stealthing”. Dessa forma, qualquer conduta dolosa do agente, que configure fraude, e que induza a vítima a consentir e assim praticar a conjunção ou o ato libidinoso se amolda ao tipo, até mesmo o silêncio malicioso e a mentira são considerados meios fraudulentos, constituindo outro bom motivo para a aplicação do Art. 215 aos crimes de “stealthing”. Além disso, apesar do enquadramento típico, pode ser necessário reformulações no próprio texto do artigo, acrescentando a nova situação como um inciso ou parágrafo, para assim findar a discussão sobre a criminalização da conduta. 
	Em suma, ao analisar o contexto social e jurídico do enquadramento da conduta de “stealthing” como crime, é perceptível que o mais difícil talvez não seja a tipificação mas sim a aplicação prática do Art.215 aos casos concretos. Assim como nos casos de violência doméstica, estupros e crimes sexuais afins denunciar o delito e levá-lo à apreciação do Poder Judiciário é mais difícil do que deveria ser. Já que a vergonha, o medo de não acreditarem na sua palavra e a própria sensação de impunidade impedem qualquer manifestação sobre casos que são tão frequentes. Isso baseado nos acontecimentos recentes, pois quando uma mulher denuncia abusos, ela é a primeira a ser questionada, questionam a veracidade, a demora para a realização da denúncia, que muitas vezes é um processo lento e doloroso para a vítima. Mas nunca duvidam da palavra do homem que nega o abuso, pois para a sociedade qualquer denúncia nesse sentido é baseada em interesses econômicos ou tentativas de prejudicar a vida do parceiro. O verdadeiro problema da justiça e da sociedade não é a mera tipificação, mas a aplicação ao caso concreto, que perde forças a cada vez que uma mulher não tem coragem suficiente para denunciar com medo do julgamento alheio. Assim, nossa autonomia e liberdade sexual é limitada pela opinião social, que tenta ao máximo reprimir desejos e vontades femininas, enquanto ao homem é dado total liberdade para realizar todos os abusos possíveis.
6. CONCLUSÃO
Em síntese, aoanalisar o contexto social e jurídico perante a criminalização da prática de “stealthing” chegamos a conclusões interessantes e esclarecedoras. Em primeira análise é possível afirmar que a violência de gênero é um desdobramento da dominação masculina, que por sua vez reflete no sistema patriarcal que vivemos há anos. Diante dessa realidade, assume a mulher uma posição passiva e obediente frente a uma sociedade machista e misógina, que minimiza todos os esforços femininos que visam a igualdade de gênero, ridicularizando e negando a existência de desigualdade. Em segundo plano analisamos as conquistas legislativas em relação a proteção das mulheres, no âmbito da violência de género e da liberdade sexual. Dessa forma, tanto a Lei Maria da Penha quanto as mudanças introduzidas pelas Leis 12.015/2099 e 13.718/2018 e a própria Constituição de 1988, mudaram os paradigmas e prestigiaram a dignidade da pessoa humana também no âmbito sexual, inutilizando velhos conceitos de moralidade como os costumes. Além disso, avaliamos as considerações acerca da tipificação e aplicação do “stealthing” a outros dispositivos brasileiros, considerando os possíveis enquadramentos na falta de disciplina específica. Assim, chegamos a conclusão que o Art.215 do CPB e seus elementos normativos se encaixam a aplicação do “stealthing” como crime, considerado que o elemento fraude constitui o meio pelo qual o sujeito ativo induz dissimulação e tende a ocultar suas verdadeiras intenções na relação sexual, tornando inválido o consentimento da vítima que teve sua vontade viciada. Por fim, o “stealthing” nada mais é do que a retirada do preservativo durante a conjunção carnal sem a anuência da vítima, que na maioria das vezes são mulheres. A conduta é revestida de caráter fraudulento e induz a vítima a um erro sobre a legitimidade da relação, viciando sua vontade e consequentemente seu consentimento. Apesar do enquadramento no Art.215 do CPB, pode ser necessário a reformulação do dispositivo, acrescentando um inciso ou parágrafo que tipifique a conduta especificamente na legislação brasileira, evitando discussões doutrinárias e jurisprudenciais a respeito da criminalização da conduta. No mais, apesar do tema advir de um estudo realizado por uma advogada criminalista americana, considerando as poucas fontes sobre o assunto, é triste reconhecer que todos os artigos brasileiros publicados sobre a questão foram escritos por homens. Nos falta representatividade, porém nos sobra propriedade para discorrer sobre o assunto, portanto, seguimos na esperança de que cada vez mais mulheres tomem para si a responsabilidade de escrever sobre um assunto tão relevante para a causa feminista quanto este. Pois as vezes, nos colocar no lugar do outro não é suficiente, é necessário sentir na pele, nas veias e no coração, o que é ser mulher numa sociedade que ainda nega a existência do machismo, e que nos limita sexualmente retirando nossa autonomia, enquanto julga nossas atitudes em nome de uma moralidade que só existe para beneficiar o masculino.
7. REFERÊNCIAS
BARRUCHO, Luis. Prática de retirar camisinha sem consentimento no sexo gera debates sobre violência sexual. BBC News Brasil, maio de 2017. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/geral-39747446> acessado em 06/04/2020.
MARTINELLI, Orsini João Paulo. Moralidade, Vulnerabilidade e Dignidade Sexual. Revista de Direito Penal e Processual Penal - volume 1, n.1, jan/jun. 2019. Disponível em : <https://revistas.anchieta.br/index.php/DireitoPenalProcessoPenal/article/view/1409/1291 > acessado em 30/04/2020.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro// Luiz Regis Prado. - 17. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2019.
VILAVERDE, Carolina. Perguntas e respostas, o que é e como funciona o FUNDEB? Disponível em: <https://periodicos.ufop.br/pp/index.php/libertas/article/view/996/1064> acessado no dia 06/04/2020.

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