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A concepção de vida de Mark A Bedau

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A Teoria da Vida como Adaptação Flexível segundo Mark Bedau 
	A Biologia sempre existiu ao longo da história da humanidade, desde a Antiguidade, como em Aristóteles, na medicina do Antigo Egito e na Idade Média, com médicos islâmicos até que se consolidou como ciência moderna atuando até hoje como um campo do saber humano. Entretanto, o conceito de Biologia de forma coesa somente se formou no século XIX. 
	Segundo Foucault, em As palavras e as coisas (2000), com o surgimento da Biologia, se tornou necessária a explicação do que é vida. Mas, desde então, isso se tornou um problema. Mesmo que Aristóteles já houvesse definido vida como "nutrição e crescimento (com seu correlativo, o desenvolvimento)"(De anima, II.1, 412º 14-15), essa resposta pareceu não solucionar a questão da vida à luz da ciência moderna, que dificilmente encontra um grupo de condições necessárias e suficientes para satisfazer o que significa algo ser vivo. 
	A questão, então, se torna um objeto de inquietação não somente de biólogos, mas, posteriormente, também muito mais filósofos se interessaram sobre o tema. Alguns podem afirmar que esta é uma questão apenas do domínio da filosofia, sendo necessário somente uma resposta metafísica, ontológica, epistemológica e até, por vezes, também ética. Alegando, dessa forma, que a filosofia trata de um certo aspecto da vida que a Biologia não trata. Enquanto a Biologia trata o fenômeno, a filosofia trata do ser da vida. Entretanto, é bem possível conciliar ambos os aspectos do conceito sobre vida, como afirma M. Jeuken "não existe oposição entre essas definições, mas que juntas podem aprofundar nossa percepção nos problemas da matéria e da vida".[2: "there is no opposition between these definitions, but that together they can deepen our insight into the problems of matter and life." JEUKEN, M. The biological and philosophical definitions of life. Acta Biotheoretica 24(1-2): 14-21 1975. Tradução livre.]
	Já outros filósofos, como Machery, podem afirmar que buscar o conceito de vida é impossível ou sem sentido, alegando que definir o conceito popular de vida é impossível e, mesmo que o conceito científico, nesse caso, seja possível, é inútil, já que a ciência continuou, continua e continuará a investigar a natureza e a vida, independente do consenso do que significa vida.
	Em seu artigo, intitulado Four Puzzles about Life, Mark A. Bedau acredita que, para que as dificuldades de se definir vida sejam superadas, não temos que recorrer a uma explicação por meio de critérios necessários e condições suficientes para o que é vida, mas sim se a teoria sobre a vida explica os fenômenos vivos e se conseguem satisfatoriamente responder ao que ele chama dos "Quatro Quebra-Cabeças sobre a Vida". São eles:[3: Artificial Life, n. 4, pp. 125-140, 1998.]
(1) Como as diferentes formas de vida em diferentes níveis de hierarquia vital estão relacionadas?
(2) Existe um continuum entre vida e não-vida?
(3) A vida diz respeito essencialmente à composição material ou à forma da entidade viva?
(4) Vida e mente estão intrinsecamente conectadas? (BEDAU, 1998, p.1)[4: Tradução livre.]
	Ao afirmar que a teoria sobre a vida deve explicar os fenômenos vivos, Bedau acredita ser este o primeiro passo para uma explicação satisfatória sobre o conceito de Vida. Dizer isto significa que qualquer teoria não deve explicar o conceito ou a palavra "vida", pois essas mudam de acordo com o tempo, pessoas, lugar e cultura. Bedau acredita que nossas palavras seguem a liderança de nossas melhores teorias, por isso precisamos encontrar a melhor teoria que explica o fenômenos vivos. O segundo passo é mudar o foco das investigações sobre este tema: ao invés de investigarmos os organismos vivos, devemos investigar o processo que produz esses organismos e outros fenômenos de seres vivos. Bedau acredita que, se encontrarmos o processo que gerou a vida, encontraremos, então, uma explicação para os seus produtos.
	Neste artigo, Bedau defende sua teoria sobre o conceito de Vida, que ele chama de "Teoria da Vida como Adaptação Flexível". Esta teoria não propõe uma lista de condições necessárias e suficientes, como a lista de Mayr (1982), nem corresponde ao significado da palavra vida, mas tenta fornecer uma explicação para os quebra-cabeças propostos. Mais ainda, Bedau afirma que, para que qualquer teoria seja seriamente contrária à sua teoria, deve, minimamente, também fornecer uma explicação para os quebra-cabeças.[5: 1. Todos os níveis de sistemas vivos têm um sistema extremamente complexo e adaptativo organização. 2. Os organismos vivos são compostos por um conjunto quimicamente macro moléculas. 
3. Os fenómenos importantes nos sistemas vivos são predominantemente qualitativa, não quantitativa.
4. Todos os níveis de sistemas vivos consistem em grupos altamente variáveis ​​de indivíduos.
5. Todos os organismos possuem programas genéticos historicamente evoluídos que capacitá-los a participar de processos e atividades teleonômicas.
6. Classes de organismos vivos são definidas por conexões históricas de descida comum.
7. Os organismos são o produto da seleção natural.
8. Os processos vivos são especialmente imprevisíveis
Tradução livre.]
	Sua Teoria afirma que um "processo evolutivo automático e continuamente criativo de adaptar-se em ambientes em mudança é a forma primária de vida", isto é, a forma mais primária de vida é o fato de haver um processo de adaptação em meio às mudanças dos ambientes. Bedau acredita que existe uma certa teleologia na Adaptação Flexível. Isto significa dizer que todos os fenômenos vivos agem por um fim, mas os não-vivos, não. Agir por uma certa teleologia é agir com certas metas e objetivos intrínsecos para, por exemplo, se adaptar. E essa teleologia é flexível porque está sempre mudando a forma de se adaptar. Algo que não é vivo, também se adapta, mas não teleologicamente, nem de forma flexível, mas por causas de situações extrínsecas e, por vezes, as mesmas situações. Por exemplo, um rio pode ter a tendência de sempre tomar o mesmo curso, mas não porque ele tem esta finalidade, mas porque a topografia da paisagem local conduz o rio a determinada direção. Outro exemplo dado é o do termostato. Ele se adapta de acordo com a temperatura, mas sua teleologia é extrínseca e não muda, pois foi pensada por seres humanos para que aquele objeto sempre agisse daquela forma. [6: BEDAU, M. Artificial Life, n. 4, pp. 125-140, 1998. p.3]
	Portanto, tudo o que é vivo realiza esta Adaptação Flexível e, toda Adaptação Flexível é teleológica. Não somente isto, mas Bedau vai mais à fundo e afirma que algo é vivo se é um sistema de Adaptação Flexível ou se é explicado de "forma correta" por um sistema de Adaptação Flexível. Tipicamente esta "forma correta" significa o meio pelo qual as coisas são criadas e sustentadas, mas nem sempre é o caso, por isso esse "correto" não é bem definido pelo autor. Ele afirma que o seu objetivo não é fornecer uma definição precisa de Vida, mas apenas construir um pano de fundo para que próximas questões sejam resolvidas no futuro.
	Em defesa de sua própria teoria, ele apresenta duas vantagens: ela unifica a explicação da lista fornecida por Mayr, citada anteriormente. A teoria implica que nós devemos esperar que essas propriedades aparentemente heterogêneas, na verdade, coexistam na natureza. A outra defesa é que a Teoria também responde de forma natural a certas críticas, como por exemplo, o caso de espécies ou indivíduos estéreis: mesmo que eles não reproduzam e, por isso, não desempenham nenhum papel na Adaptação Flexível, mesmo assim elas surgiram porque vieram de espécies ou indivíduos que já desempenharam o papel reprodutivo na Adaptação Flexível e, assim, eles também fazem parte do escopo que a teoria abrange. 
	Bedau indica algumas possíveis objeções à sua Teoria: em primeiro lugar, pode-se alegar que a teoria possui um erro lógico-formal. O organismo individual está em uma categoria lógica diferente do próprio mecanismo de adaptação do mecanismo ede uma população de organismos em evolução. O autor responde que a escolha do organismo individual como não sendo uma forma primária de vida é deliberada e proposital, pela convicção de que esse processo de Adaptação Flexível é a única forma de explicar e unificar o fenômeno da vida, fazendo assim com que o fenômeno de uma categoria possa explicar o fenômeno de outra categoria. Inclusive, segundo Bedau, não somente organismos são formas de vida, mas também órgãos, células e outras estruturas são consideradas vivas.
	Em segundo lugar, alguém pode dizer que um sistema ecológico pode ter chegado em um equilíbrio estável, onde nenhuma espécie ou indivíduo realizam adaptações. Seria esse sistema considerado vivo? Bedau afirma que sim, é vivo, e faz parte do escopo de sua teoria, pois só é possível aos organismos chegarem a esse equilíbrio estável porque eles passaram por muitas adaptações.
	Em terceiro lugar, é possível que existam contraexemplos de sistemas que se adaptam, mas não seriam considerados vivos popularmente. Exemplos como vírus, populações de cristalitos, redes químicas autocatalíticas, sistema intelectuais e econômicos humanos são todos considerados como "menos-vivos" por ele, mas ainda são considerados como algum tipo de vida, desde que realizem Adaptação Flexível. E ainda completa que, se queremos tanto saber sobre a real natureza do fenômeno vida, precisamos estar abertos à possibilidade de que vida pode ser bem diferente do que nós supomos.
	E agora, finalmente, iremos ao teste de resistência da Teoria: os quatro quebra-cabeças. O primeiro se pergunta como as diferentes formas de vida em diferentes níveis de hierarquia vital estão relacionadas. Antes de respondermos, é necessário explicar que hierarquia vital significa os níveis hierárquicos de um fenômeno, por exemplo: existem ecossistemas, que consistem em comunidades, que consistem em populações, organismos, sistema de órgãos, órgãos, tecidos e, por fim, células. Para o autor, todos os esses níveis são formas de vida. Ao mesmo tempo que uma pessoa é uma forma de vida, suas células também são, mas de jeitos diferentes. Ele explica que a sua teoria estabelece um sistema de duas camadas: a primeira camada consiste no próprio mecanismo de Adaptação Flexível, que é chamada de forma primária de vida, e a segunda é formada por qualquer entidade que seja gerada ou sustentada pelas formas primárias, sendo estas as formas secundárias de vida. Assim, a própria estrutura hierárquica que é intrínseca às formas de vida observadas na natureza é explicada naturalmente pela teoria da Adaptação Flexível, e o primeiro quebra-cabeça é elegantemente resolvido por ela desta forma.
	O segundo se pergunta se a distinção entre vida e não vida é contínua ou dicotômica. Segundo o senso comum, é normal pensarmos em uma visão dualista e opostas. Vemos algo que parece vivo, como um cachorro, e também algo que não nos parece vivo, como uma caneta. Entretanto, qualquer visão comum sobre o assunto é colocada à prova com casos limítrofes, como o vírus, esporos e, até, esperma congelado, que fica por um tempo em um estado de dormência e, quando "desperto", assume suas condições vitais normais e prontas para o uso. Não somente isso, mas todos acreditamos que, quando a vida se originou de uma "sopa química pré-biótica", e todos esses exemplos parecem indicar que há um contínuo entre vida e não-vida. Isto é, existem elementos vivos, mais ou menos vivos e não-vivos. A Teoria de Bedau, intitulada vida como uma Adaptação Flexível, consegue dar conta desta questão porque a própria adaptação acontece em degraus. Dessa forma, a própria vida também acontece em níveis.
	O terceiro quebra-cabeça se pergunta se a essência da vida envolve matéria ou forma. Apesar de certas macromoléculas de carbono serem indispensáveis para a constituição de todas as entidades vivas (até então conhecidas), ainda assim a vida parece ser mais um processo, algo abstrato, do que apenas uma substância química. As atividades de pesquisa no campo recente da Vida Artificial pressupõem que a vida é possível de ser replicada através de um programa de computador. Surge, então, a questão de se simulações computacionais podem literalmente corresponder a uma entidade viva, ou seja, se a vida uma questão de forma e não de matéria. A resposta de Bedau a esta questão é que a vida é, em sua teoria, um processo de Adaptação Flexível. Apesar de ser um processo, o que indica que é uma forma, mesmo assim não há como isto ocorrer sem alguma matéria. Entretanto, parece que gama de materiais em que o processo de vida pode ser realizado é ampla. Bedau, então, afirma que não há problema em dizer que Vida Artificial é propriamente vida, desde que o algoritmo permita um espaço de variabilidade suficientemente extensa para o processo de adaptação ocorrer.
	Finalmente, o quarto quebra-cabeça se pergunta se vida e mente estão intrinsecamente relacionadas. Ele argumenta que as várias formas de vida, desde as mais simples até as mais complexas, exibem alguma forma de sensibilidade ao ambiente, são capazes de mudar seus comportamentos baseadas nessa sensibilidade e ainda possuem alguma capacidade de comunicação entre organismos, e que essas capacidades podem ser vistas, de maneira ampla, como capacidades "mentais". É útil pensar em qual seria o papel da evolução na relação entre vida e mente. Alguns autores, como Gould, Godfrey-Smith e Dennett, argumentam que a mente foi uma adaptação produzida pelo processo de evolução, e como tal, poderia não ter acontecido, já que o percurso do processo evolutivo é contingente e imprevisível. Nessa perspectiva, não há uma conexão direta entre vida e mente. A visão clássica de vida, no entanto, estabelece uma unidade entre vida e mente. Para Aristóteles, todas as entidades vivas possuem a sua forma, chamada por ele de psyché, que veio a ser traduzido por "alma", e é modernamente entendida como mente. A Teoria de Bedau se aproxima mais da visão aristotélica ao afirmar que vida e mente estão ligadas, no sentido de que a mente é, assim como a vida, uma expressão da capacidade de Adaptação Flexível. Isto significa dizer que, se a vida e a mente são produzidas pelo mesmo processo de Adaptação Flexível, elas estão unidas, e a mente não poderia ser um produto isolado da evolução. A Teoria soluciona esta última questão, de certo modo, diminuindo a sua importância. O autor afirma que a própria confusão desta distinção entre vida e mente surgiu a partir de Descartes, que afirmou que as substâncias vivas, sendo materiais, não possuem conexão essencial com as substâncias mentais, que são imateriais. Descartes ignorava os processos que criam e sustentam a vida. Consequentemente, a sua filosofia motivou o surgimento desta questão acerca da conexão entre vida e mente.
	Contudo, mesmo tendo solucionado os quatro quebra-cabeças com a sua Teoria, o autor ainda indica que há pelo menos três questões em aberto a respeito dela. A primeira questão é que, mesmo que a Adaptação Flexível tenha fornecido respostas a esses quebra-cabeças, isso não significa dizer que esta seja a solução definitiva. A segunda é que ainda há muito a aprender sobre a Adaptação Flexível. Nenhum modelo existente até o momento é capaz de representar um desenvolvimento contínuo em um espaço suficientemente grande de possibilidades. A simulação completa de apenas um sistema real de uma Adaptação Flexível continuamente crescente já seria um grande avanço para uma melhor compreensão deste assunto. A terceira questão é que, mesmo que o entendimento mais profundo fosse alcançado sobre a Adaptação Flexível, ainda precisaríamos estabelecer como melhor usá-la para definir vida, como por exemplo, elencar os diferentes modos pelos quais uma entidade viva é explicada por um mecanismo de Adaptação Flexível. Isto consiste em preencher a lacuna que foi deixada na definição de vida da teoria, quando afirmou-se que o ser vivo teria que ser "explicado da forma correta" por um sistema de Adaptação Flexível.
	O autor, então, afirma que existem duasconclusões em sua apresentação: a primeira é uma conclusão metodológica. É mais proveitoso para uma teoria sobre a vida tendo como foco na melhor explicação possível da vida. Isto nos libera de preocupações existentes, como uma lista de condições necessárias e suficientes para se definir vida. A segunda conclusão é substancial: a sua Teoria de Adaptação Flexível precisa ser aprofundada e melhor explorada e qualquer outra teoria que queira se opor a ela precisa explicar o fenômeno vida e resolver os quatro quebra-cabeças de uma forma melhor que a Teoria da Adaptação Flexível resolve.
Considerações finais
	Bedau consegue, ao final do artigo, solucionar os quatro quebra-cabeças que se propõe. Apesar desses quebra-cabeças serem questões pertinentes sobre a vida e tudo o que ela parece suscitar, parece conveniente que Bedau proponha essas quatro questões que são solucionáveis por sua Teoria. Nesse sentido, sua argumentação é circular e feita para ser em seu próprio benefício. Além disso, Bedau segue, também, uma definição mais fraca do que é vida. Sua Teoria tem uma característica frouxa, propositalmente, para que consiga responder às questões também de maneira frouxa. Todas as soluções são resumidas a: ou são adaptação flexível ou estão conectadas a ela. Dessa forma, é bastante fácil encaixar tudo em sua Teoria, sem muitas complicações. Ao final de tudo, Bedau não consegue explicar o que é, de fato, vida, apesar de reconhecer que sua Teoria precisa ser mais explorada e mais aprofundada. Sem conseguir explicar, então, essa questão crucial, a direciona para que outros pesquisadores possam explorá-la, à luz de sua Teoria. De todo modo, Bedau fornece, talvez, algum direcionamento e alguma contribuição nesta discussão com os quatro quebra-cabeças. Concluo, portanto, que a tentativa de Bedau é louvável quanto às suas premissas, mas não tanto quanto a forma como é desenvolvida.
Bibliografia
BEDAU, A. M. Artificial Life, n. 4, pp. 125-140, 1998.
_______________. Introduction to philosophical problems about life. Synthese, Vol. 185, No. 1, PHILOSOPHICAL PROBLEMS ABOUT LIFE (March 2012),pp. 1-3
CORREA, A. SILVA, P. MEGLHIORATTI, F. CALDEIRA A. Aspectos históricos e filosóficos do conceito de vida: contribuições para o ensino de biologia. Filosofia e História da Biologia, v. 3, p. 21-40, 2008
JEUKEN, M. The biological and philosophical definitions of life. Acta Biotheoretica 24(1-2): 14-21 1975
MACHERY, E. Why I stopped worrying about the definition of life... and why you should as well. Synthese, Vol. 185, No. 1, PHILOSOPHICAL PROBLEMS ABOUT LIFE (March 2012),pp. 145-164
MARTINS, R. MARTINS, L. Uma leitura biológica do ‘De Anima’ de Aristóteles. Filosofia e História da Biologia, v. 2, p. 405-426, 2007.

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