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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA JOÃO LUCAS BUENO DALE VEDOVE DA INADMISSIBILIDADE DO CORTE NO FORNECIMENTO DE ÁGUA POTÁVEL, FRENTE AO INADIMPLEMENTO DO USUÁRIO, À LUZ DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO À VIDA. Londrina 2005 JOÃO LUCAS BUENO DALE VEDOVE DA INADMISSIBILIDADE DO CORTE NO FORNECIMENTO DE ÁGUA POTÁVEL, FRENTE AO INADIMPLEMENTO DO USUÁRIO, À LUZ DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO À VIDA. Londrina 2005 JOÃO LUCAS BUENO DALE VEDOVE DA INADMISSIBILIDADE DO CORTE NO FORNECIMENTO DE ÁGUA POTÁVEL, FRENTE AO INADIMPLEMENTO DO USUÁRIO, À LUZ DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO À VIDA. Dissertação apresentada ao Curso de graduação em Direito, da Universidade Estadual de Londrina, como requisito à conclusão do curso e obtenção do título de Bacharel. Orientador: Prof. João Luiz Martins Esteves Londrina 2005 JOÃO LUCAS BUENO DALE VEDOVE DA INADMISSIBILIDADE DO CORTE NO FORNECIMENTO DE ÁGUA POTÁVEL, FRENTE AO INADIMPLEMENTO DO USUÁRIO, À LUZ DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO À VIDA. Dissertação apresentada ao Curso de Graduação em Direito, da Universidade Estadual de Londrina, como requisito à conclusão do curso e obtenção do título de Bacharel. COMISSÃO EXAMINADORA _____________________________________ Prof. João Luiz Esteves. Universidade Estadual de Londrina ______________________________________ Prof. Vilma Aparecida do Amaral ______________________________________ Prof. Marcos Veltrini Ticianelli Londrina, 10 de junho de 2005 DEDICATÓRIA À mãe natureza, à minha família, à Santos Dumond e aos meus bons amigos que sempre presentes ajudaram na realização e conclusão deste trabalho. AGRADECIMENTOS Ao Cosmo, que iluminou cada instante de realização deste trabalho, sendo alicerce para os momentos mais difíceis. Aos seres humanos, que possibilitam a todo o momento a criação de algo inovador e modificador para a construção de uma cultura. Ao Cmte. Hastar Xehá, que com sua influência telepática forneceu-me energia o suficiente para a realização deste. Ao Professor Orientador que, com idéias e conselhos, esteve presente em todas as fases. À minha família, pelo carinho, dedicação e compreensão em todos os momentos. À minha futura esposa Luciane Colonheze Coelho, que com sua paciência e carinho soube contornar os momentos difíceis até a construção final desta obra. Aos meus grandes amigos, que se mostraram fortes e unidos, auxiliando-se uns aos outros nesta difícil etapa de nossas vidas. A todos que, de qualquer forma, ajudaram para a concretização de mais uma etapa da vida acadêmica. VEDOVE, João Lucas Bueno Dale. Da Inadmissibilidade do Corte no Fornecimento de Água Potável, frente ao Inadimplemento do Usuário, à Luz do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana e o Direito à Vida. 2005. Monografia – Universidade Estadual de Londrina. RESUMO Trata de um conflito entre ser ou não admissível a realização do corte no fornecimento de água potável, frente ao inadimplemento do usuário. Apresenta premissas, conceito, natureza jurídica, fato gerador e analisa os permissivos, o aspecto econômico que norteia a matéria, demonstrando a maneira de como se efetua a cobrança pela utilização dos recursos hídricos, bem como, da água potável. Pondera, o acesso a água potável, frente ao princípio Constitucional da dignidade da pessoa humana e o direito à vida, como condição de existência. Demonstra a continuidade do serviço público essencial à luz do Código de Defesa do Consumidor. Apresenta a análise de dois casos práticos com posicionamentos antagônicos, em que há o referido conflito principiológico, no qual se verificará se a decisão judicial proferida foi correta, ou seja, se ela utilizou-se de todos os métodos doutrinários aqui apresentados. Palavras-chave: cobrança; inadimplemento; conflito; princípios constitucionais; serviço público; essencialidade; ponderação de interesses; princípio da dignidade da pessoa humana; direito à vida; Judiciário. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 01 1. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO À VIDA .. 03 1.1 Condições do exercício do direito à vida: a Água .............................................. 03 2. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A ÁGUA DOCE NO BRASIL ................... 22 3. VALOR ECONÔMICO DA ÁGUA. ....................................................................... 33 4. PREMISSAS DO ESTUDO DA COBRANÇA PELA UTILIZAÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS ......................................................................................... 33 4.1 Fundamentos da cobrança pela utilização da água ......................................... 33 4.2 Conceito e objetivos da cobrança ..................................................................... 36 4.3 Fato gerador e critérios da cobrança ................................................................. 39 4.4 Natureza jurídica do produto da cobrança......................................................... 42 5. A CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL................................. 42 6. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ........................................................................... 42 CONCLUSÃO .......................................................................................................... 44 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 46 ANEXOS ................................................................................................................. 48 ANEXO I .................................................................................................................. 49 ANEXO II ................................................................................................................. 49 Introdução A água, além de ser um elemento fundamental para a sobrevivência humana, proporciona dignidade à vida dos indivíduos, pois atende às necessidades básicas como a higiene e saneamento. Entretanto, ainda hoje, em pleno século XXI, água limpa é um direito que está fora do alcance de muitos. Em todo o globo, mais de um bilhão de pessoas não têm acesso à água tratada, e quase 2,5 bilhões vivem sem saneamento básico.1 De acordo com as estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU), a falta de abastecimento de água potável é responsável por 80% das doenças e das mortes no chamado mundo em desenvolvimento. Outro problema que agrava ainda mais essa situação é a crise da água doce, que preocupa autoridades domundo todo. Vários fatores mostram que, em um futuro muito próximo, a escassez de água para consumo será uma realidade. Dentre esses fatores podemos citar o aumento desenfreado da demanda devido a expansão industrial e agrícola, o crescimento populacional, a degradação dos mananciais e a alteração do ciclo hidrológico devido à urbanização e ao desmatamento. Por ser indispensável para a manutenção da vida, a água é um direito de todos, que deve ser mantida como um bem público. Dessa forma, ela não pode ser submetida a uma lógica de mercado, na qual empresas lucram às custas de um recurso natural. O acesso à água é condição de sobrevivência do homem. 1 Fonte: Planeta Água. Sanepar. Ano VI, n.°: 71, março de 2005. À medida que houve mudanças na organização social do ser humano, tornou-se necessário o estabelecimento de determinadas regras para o uso desse recurso. Essas regras foram incorporadas nas legislações dos vários povos, ao longo do tempo. As profundas alterações havidas na sociedade, na economia e no meio ambiente, no século XX, ensejaram a ocorrência de modificações nos direitos das águas, em vários países. No Brasil, o tema teve um forte impulso com a edição do Código das Águas de 1934, mas, com exceção da energia elétrica, permaneceu praticamente inerte em face da evolução e do surgimento dos problemas de poluição e escassez, até a década de 90. A base do trabalho consiste na análise jurisprudencial e da legislação brasileira sobre recursos hídricos, mais especificamente, confrontá-la com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, bem como com o direito à vida, analisando a inadmissibilidade do corte no fornecimento de água potável. O objeto deste trabalho são as águas doces, ou seja, as águas interiores brasileiras, no que tange ao abastecimento de água potável, sua cobrança, a essencialidade deste serviço público e a impossibilidade de se realizar o corte no fornecimento de água potável, frente ao seu inadimplemento. O presente ensaio visa elaborar reflexões acerca do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e o direito à vida, em face da utilização dos recursos hídricos; conceito, natureza jurídica e valor econômico da água potável, bem como analisar a jurisprudência existente. Reflexões estas que devem ser encaradas sob um novo enfoque constitucional e social, visando, assim, uma sociedade justa, livre, fraterna e democrática, já que a palavra de ordem deste novo milênio é a cidadania e desenvolvimento sustentável. Assim sendo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana encontra-se presente em tudo que guarde relação com a essência do ser humano, estando, assim, vinculada de forma indissociável com os direitos fundamentais, postulado no qual se assenta o direito constitucional contemporâneo, apesar desse liame praticamente se limitar ao reconhecimento da sua existência e da sua importância. Portanto, embora a previsão no texto constitucional seja imprescindível, por si só não tem o condão de assegurar o devido respeito e proteção à dignidade; restando, assim, uma perspectiva de efetivação dessa segurança por meio dos órgãos jurisdicionais. Entretanto, aqueles, hoje, sofrem ameaças no que diz com o exercício efetivo e independente da sua missão de proteger e realizar concretamente a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais. Em relação ao conteúdo e significado da dignidade da pessoa humana na e para a ordem jurídica, tanto em nível doutrinário quanto no jurisprudencial, há grande divergência. Percebe-se, todavia, que a dignidade vem sendo considerada, pela grande maioria, uma qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano, e o respeito e a proteção da dignidade da pessoa – de cada uma e de todas as pessoas – constituem-se em meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito. 1. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Direito à Vida. A Constituição, na óptica de um anseio da vida Comunitária, estabelece os principais valores da organização da vida em sociedade; “fixa as normas de organização, investidura e exercício de poder; determina as formas e meios de defesa dos direitos e interesses tuteláveis dos cidadãos”.2 Esses valores, traduzidos em forma de princípios e regras constitucionais, revelam os valores éticos, políticos e jurídicos de um Povo. Conforme entendimento do Prof. Canotilho, os valores constitucionais podem ser captados em três níveis de racionalidade. Estes níveis compõem o consenso geral da comunidade sobre o que seja razoável em termos de proteção aos direitos humanos. Dentre eles, encontra-se o nível da racionalidade ética. “A racionalidade ética consagra os principais valores éticos da convivência humana, como a vida, a dignidade da pessoa humana”3, dentre outros. Como exemplos de valores éticos positivados, dentre os princípios constitucionais, que conformam os objetivos a serem realizados pela democracia brasileira, destaca-se o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, estampado pelo art. 1°., inciso III da Constituição da República Federativa do Brasil. Do mesmo modo, o princípio constitucional garantidor da vida, como valor supremo do homem, estabelecido pelo caput do art. 5°. da Carta Magna, o direito à vida. A inviolabilidade do direito à vida é uma garantia Constitucional4, reservada aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País. Este é o mais 2 ESPÍNOLA, Ruy Samuel. A Constituição como Garantia da Democracia: O papel dos princípios Constitucionais. Texto de exposição ocorrida em 30 de outubro de 1999, no auditório da Faculdade de Direito de Caruaru. 3 CANOTILHO, Gomes apud Espínola, op. cit. 4 Art. 5°., caput, Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I. Constituição Federal da República Federativa do Brasil: “Todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos:”. fundamental de todos os direitos, uma vez que constitui “pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos”.5 O direito à vida, conforme entendimento do Prof. Alexandre de Moraes6, possui uma dupla acepção: a primeira relacionada aos direitos de continuar vivo, e um segundo entendimento que é o de viver dignamente. Para tanto, entende o sentido de dignidade como a base de subsistência do ser humano. Neste contexto, a Constituição Federal de 1988 assegura, como fundamento do Estado democrático de direito, a dignidade da pessoa humana.7 Por “dignidade da pessoa humana” desprende-se diversos entendimentos, dos quais veremos alguns, imprescindíveis para o bom encaminhamento do trabalho. Para o Prof. Alexandre de Moraes, a dignidade da pessoa humana concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual, e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo o estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitosfundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos 8 . A idéia de valor intrínseco da pessoa humana possui raízes já no pensamento clássico e no ideário cristão. Foi a religião cristã, pelo fato de encontrar- se no Antigo e no Novo Testamento, referência de ser, o ser humano, criado à 5 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 6ª edição, ed. Atlas, 1999, São Paulo – p. 60. 6 Op. cit.. – p. 61. 7 Art. 1°., inc. III, Título I – Dos Princípios Fundamentais. Constituição Federal da República Federativa do Brasil: “A República Federativa do Brasil, formada pela União indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: III- a dignidade da pessoa humana;”. 8 Moraes, Alexandre. Op. cit. – p. 47. imagem e semelhança de Deus9, que trouxe o entendimento de que o ser humano, e não apenas os cristãos, são dotados de um valor próprio, que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento. Para tanto, na ótica de Ingo Sarlet, a dignidade é o valor de uma tal disposição de espírito, e está infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade. 10 Atualmente, diante das modificações da sociedade, da economia e do direito, é notável a proteção que se dá à dignidade da própria vida de um modo geral, ainda mais numa época de reconhecimento da proteção ao meio ambiente como valor fundamental. A concepção jusnaturalista, tendo seu apogeu no séc. XVIII, remanesce a constatação de que a ordem constitucional parte do pressuposto de ser, o homem, em virtude de sua condição humana; homem este titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes, posto que, a dignidade da pessoa humana permanece a ocupar lugar central no pensamento filosófico, político e jurídico, sendo valor fundamental da ordem jurídica, pelo menos para as ordens constitucionais que nutrem a pretensão de constituírem um Estado Democrático de Direito. Por se tratar de conceitos de contornos vagos e imprecisos, caracterizado por sua ambigüidade, há uma grande dificuldade de conceituação da expressão "dignidade da pessoa humana", sendo mais fácil dizer o que a dignidade não é, do que expressar o que ela significa. 9 AURENCHE, Guy. A Atualidade dos Direitos Humanos. Edições Loyola, São Paulo, 1984, p. 29 – 37. 10 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 34. Contudo, apesar dessa dificuldade, a doutrina e a jurisprudência tentam estabelecer alguns contornos basilares para sua conceituação e, também, para uma possível concretização de seu conteúdo, ainda que não se possa falar aqui de uma definição genérica e abstrata consensualmente aceita. Cabe salientar que o conceito da dignidade da pessoa humana está em permanente processo de construção e desenvolvimento, pois se trata de categoria axiológica aberta, ainda mais devido à existência de pluralismo e diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas. Neste contexto, consoante Zipellius, o conteúdo da noção de dignidade da pessoa humana, na sua condição de conceito jurídico-normativo, reclama uma constante concretização e delimitação pela práxis constitucional, tarefa cometida a todos os órgãos estatais. 11 Por ser irrenunciável e inalienável, a dignidade é uma qualidade intrínseca da pessoa humana, pois qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado. Advém daí a exigência de seu reconhecimento, respeito, promoção e proteção, não podendo, assim, ser criada, concedida ou retirada, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente. Portanto, a dignidade, evidentemente, não existe só onde é reconhecida, positivada, já que constitui dado prévio, sendo valor próprio da natureza do ser humano. Assim, pode-se observar sua influência no preceituado do art. 1º da Declaração Universal da Onu (1948), segundo o qual "todos os seres humanos 11 ZIPELLIUS, apud Ingo Sarlet, op. cit. p. 40. nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade". Evidente, pode-se inferir desta leitura, que o elemento nuclear da noção de dignidade da pessoa humana parece continuar centrando-se na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa, ou seja, de cada pessoa. O ilustre constitucionalista lusitano, Canotilho, compartilha da idéia acima exposta, referindo-se que o princípio material que subjaz à noção de dignidade da pessoa humana consubstancia-se no princípio antrópico que acolhe a idéia pré-moderna da dignitas-hominis, ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida, segundo o seu próprio projeto espiritual 12 . Dessa forma, a liberdade, aqui defendida, significa a capacidade potencial que cada ser humano tem de auto determinar sua conduta. Diante das considerações feitas, fica evidenciada a intrínseca ligação entre as noções de vida e dignidade, isso porque o direito à vida, bem como as garantias dos direitos fundamentais em geral, constituem uma das principais exigências da dignidade da pessoa humana. Ainda na tentativa de se estabelecer uma noção a respeito da dignidade da pessoa humana é importante destacar que os autores se referem a ela como sendo, simultaneamente, limite e tarefa dos poderes estatais, não só deles, na verdade, apontando esta condição dúplice para uma simultânea dimensão defensiva e prestacional da dignidade. Tudo isso, por decorrer da expressão da autonomia da pessoa humana, ligada à idéia de autodeterminação em relação às decisões a respeito de sua existência. 12 CANOTILHO, apud Ingo Sarlet, op. cit. p. 44 A dimensão tarefa do principio resulta na imposição ao Estado, e também à comunidade, de preservar a dignidade existente, promovendo e criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da mesma. Portanto, o principio da dignidade como tarefa, impõe como obrigação do Estado a função de promover as condições que viabilizem e removam toda a sorte de obstáculos que estejam impedindo pessoas de viverem com dignidade; assim, impõe a promoção e realização concreta de uma vida com dignidade para todos. Em relação à dimensão limite da dignidade da pessoa humana, e no âmbito de uma perspectiva intersubjetiva, destaca Gonçalves Loureiro que a dignidade da pessoa humana implica uma obrigação geral de respeito pela pessoa, traduzida num feixe de deveres e direitos correlativos, de natureza não meramente instrumental, mas sim, relativos a um conjunto de bens indispensáveis ao florescimento humano. 13 Os limites impostos, pelo princípio ora estudado, à atuação do poder público, objetivam impedir uma possível violação da dignidade pessoal, resultando num comando ao Estado, qual seja, de ter como meta constante o dever de respeito e proteção. Disto resulta que todos os órgãos, funções e atividades estatais ficam vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana. Desta forma, todos devem respeito e proteção, explicitados na obrigação de abstenção, por parte do Estado,de ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, e de proteção desta contra possíveis agressões oriundas de terceiros. 13 LOUREIRO, apud Ingo Sarlet, op. cit. p. 54 Importante, também, é que haja uma maior consciência por parte das entidades privadas e dos particulares, pois se encontram diretamente vinculados a esse principio, posto que este também vincula as relações existentes entre os particulares. Assim sendo, ressalta-se que a eficácia dos direitos fundamentais tem encontrado fundamento justamente no principio da dignidade da pessoa humana. Cumpre salientar, ainda, que relativamente ao âmbito da hierarquização de valores, tem-se aqui a dignidade como limite. Caso haja conflito entre princípios constitucionais, o princípio da dignidade justifica a imposição de restrições, utilizando-se do principio da proporcionalidade, do qual não entraremos no mérito, a outros bens protegidos constitucionalmente. A dupla função defensiva e prestacional da dignidade da pessoa humana, portanto, refere-se tanto aos direitos de defesa, quanto às prestações fáticas ou jurídicas que correspondem às exigências e constituem concretizações da dignidade da pessoa humana. Assim, são estipuladas, simultaneamente, obrigações de respeito e consideração, e, também, deveres em face da sua promoção e proteção. Por apresentar, cada sociedade civilizada, padrões e convenções próprios a respeito do que constitui a dignidade, haveria conflitos, caso houvesse a estipulação de um conceito de dignidade como universal, ainda que isso fosse possível. Assim, por mostrar-se mais coeso e completo, guardando relação com o que foi disposto nestas linhas, utilizaremos o conceito apresentado pelo professor Ingo Sarlet, sobre a dignidade da pessoa humana, a saber: é a qualidade intrínseca e distintiva da cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. 14 A Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, III, bem como o art. 60, § 4º, inciso III, ao dispor sobre a dignidade da pessoa humana e os direitos e garantias individuais, como fundamento do nosso Estado Democrático de Direito, reconheceu que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, uma vez que a finalidade precípua da atividade estatal é o ser humano, não constituindo este meio da mesma atividade. Entretanto, o Constituinte considerou-a de maneira concreta e individualmente, e, como salienta J. Miranda 15, relembrando, assim, a idéia de que a dignidade constitui atributo da pessoa individualmente considerada, e não de um ser ideal ou abstrato, chama atenção, o doutrinador, de que não se deve confundir as noções de dignidade da pessoa e de dignidade humana, quando esta for referida à humanidade como um todo. A dignidade da pessoa humana como principio fundamental, e, também, norma jurídico-positiva, carregada de eficácia, alcançando a condição de valor jurídico fundamental de nossa comunidade, é um valor que não se restringe a guiar os direitos fundamentais, mas sim, rege toda a ordem jurídica constitucional e infraconstitucional. Ressalta-se, ainda, que o referido princípio é de grande valia para a interpretação constitucional em face às normas constitucionais apresentarem caráter aberto e amplo, principalmente aquelas atinentes aos direitos fundamentais, pois 14 Ingo Sarlet, op. cit. p. 60. 15 MIRANDA, apud Ingo Sarlet, op. cit. p. 52 sua utilização como premissa da argumentação jurídica torna o procedimento da interpretação constitucional racional e controlável. No Brasil, a Constituição de 1988, em seu art. 1º, inciso III, assevera que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República. Ela serve de fundamento para todo o ordenamento jurídico. Na ótica de Ferreira dos Santos16, além da dignidade ser tomada como princípio, deve ser, também, tomada como paradigma avaliativo de cada ação do Poder Público e um dos elementos imprescindíveis de atuação do Estado brasileiro. Apesar da afirmativa de que a dignidade preexiste ao direito, para que a ordem jurídica seja legítima, ou seja, para a legitimação da atuação do Estado, faz-se necessário que a dignidade seja reconhecida e protegida pelo ordenamento jurídico. São, dessa maneira, que os direitos e garantias fundamentais, de alguma forma, possam ser reconduzidos à noção de dignidade da pessoa humana, pois todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento das pessoas em nível social, democrático, cultural, econômico e jurídico. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana cumpre relevante papel na arquitetura constitucional, posto que é fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais. É, assim, valor que dá unidade e coerência ao conjunto dos direitos fundamentais. O principio da dignidade serve, portanto, como parâmetro para aplicação, interpretação e integração dos direitos fundamentais, mas não só deles e das normas constitucionais, como de todo o ordenamento jurídico. É, assim, um referencial inarredável para a hierarquização axiológica inerente ao processo 16 SANTOS, apud Gláucia Barcelos Alves, Sobre a dignidade da pessoa in A Reconstrução do Direito Privado, p. 227. hermenêutico – sistemático17, ou seja, é considerado como principio de maior hierarquia do ordenamento jurídico, ressaltando sua função hermenêutica. Vale, ainda, dizer que os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana à qual se referem, convivem de forma indissociável, posto que aqueles constituem explicitações e concretização desta. Assim, ao menos em princípio, em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, alguma projeção da dignidade da pessoa. Na condição de valor, e principio fundamental, a dignidade da pessoa humana exige e pressupõe o reconhecimento e proteção de todos os direitos fundamentais, pois, do contrário, resultará em negativa da própria dignidade o não reconhecimento à pessoa humana dos direitos fundamentais que lhes são inerentes. Portanto, é inquestionável que a liberdade, a garantia de isonomia de todos os seres humanos e os direitos fundamentais são pressupostos e concretização da dignidade da pessoa. Pois a dignidade possui respaldo na autonomia pessoal, na autonomia que tem o homem de formatar sua própria existência, ser sujeito de direitos; há reconhecimento geral ao livre desenvolvimento da personalidade. Paulo Mota Pinto18 sustenta que da garantia da dignidade humana decorre o reconhecimento de personalidade jurídica a todos os seres humanos, bem como a previsão de instrumentos jurídicos destinados à defesa das refrações essenciais da personalidade humana, e necessidade de proteção desses direitos por parte do Estado; sendo, ainda, para o jurista supra citado, a afirmação da liberdade de desenvolvimento da personalidade humana e o imperativo de promoção das condições possibilitadoras desse livre desenvolvimento, sendo os corolários do 17 FREITAS, Juarez. A interpretaçãosistemática do direito, 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 83. 18 PINTO, apud Ingo Sarlet, op. cit. p. 88. reconhecimento da dignidade da pessoa humana como valor no qual se baseia o Estado. Diante da forte relação existente entre a dignidade e os direitos fundamentais, posto que aquela assume função de elemento e medida destes, a violação de um direito fundamental importará em ofensa à dignidade da pessoa. Defendem a maior parte dos doutrinadores que diante de um caso concreto, deve-se buscar primeiro verificar a existência de uma ofensa a determinado direito fundamental em espécie, para, assim, se reduzir a margem de arbítrio do interprete, pois mostra-se explícito o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana naquela dimensão especifica. Sendo parte integrante dos direitos fundamentais, o principio da dignidade serve como elemento de proteção dos direitos contra medidas restritivas; todavia, por servir também de justificativa para a imposição de restrições a direitos fundamentais, acaba atuando como elemento limitador destes. Assim, sempre se poderá afirmar que a dignidade da pessoa atua tanto como limite dos direitos e como limite dos limites. Ou seja, como barreira contra a atividade restritiva dos direitos. Há, na doutrina e na jurisprudência, consenso de que nenhuma restrição, em princípio, de direito fundamental poderá se mostrar desproporcional, ou resultar na afetação de seu núcleo essencial, pois do contrário, haveria o esvaziamento do referido direito. Como para alguns doutrinadores o núcleo essencial dos direitos fundamentais é o conteúdo em dignidade da pessoa humana, está, portanto, este, imune às restrições; e, qualquer caso de violação desse núcleo essencial será sempre desproporcional. Não se está sustentando a inviabilidade de impor certas restrições aos direitos fundamentais, desde que reste intacto o núcleo em dignidade destes direitos. É, portanto, desse entendimento que resulta a proteção dos direitos fundamentais, por meio da dignidade da pessoa. Mesmo sendo a dignidade um valor supremo do ordenamento jurídico, mesmo diante de sua prevalência no confronto com outros princípios e regras constitucionais, não se pode deixar de reconhecer uma possível relativização deste princípio, v.g. de levar-se em conta que alguém, um juiz, o legislador, irá decidir qual seu conteúdo e se houve, ou não, sua violação no caso concreto. Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana, na condição de direito de defesa, não aceita qualquer violação à dignidade pessoal, mesmo em função de outra dignidade, impondo aos órgãos estatais, a missão não só de respeito e proteção da dignidade de todas as pessoas, mas de promoção e efetivação das condições de vidas dignas para todos. Assim sendo, somente haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, não passando o homem, de mero objeto de arbítrio e injustiças, quando a liberdade e a autonomia, a igualdade e os direitos fundamentais forem, além de reconhecidos, assegurados, demonstrando-se verdadeiro respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, assegurando-se, sobretudo, as condições mínimas para uma existência digna. Assim, para que se possa ver o respeito à pessoa humana, com relação à sua dignidade, o direito à vida deve ser assegurado de qualquer maneira, cabendo ao Estado viabilizar condições aos cidadãos para a concretização e exercício deste direito fundamental. 1.1. Condição do Exercício do Direito à Vida: a Água. Uma das condições que assegura a existência da vida é a água. Logo, podemos dizer que a água é um meio de concretização do direito à vida e, conseqüentemente, respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Quando se fala em água, logo nos vêm à mente o seu estado liqüefeito. Contudo, ela não existe só em estado líquido, sólido ou gasoso. Existe também em estado vivo, onde atravessa o corpo do ser humano, possibilitando a sua sobrevivência. Mais que isso, a água está presente em tudo que consumimos: comida, roupa, carro, computador. E em grande quantidade. À título ilustrativo, para se produzir 1 litro de cerveja, são gastos 7 litros de água; cada quilo de alumínio gasta 100.000 litros de água para ser produzido; e a cada carro são usados 400.000 litros de água.19 Apesar de se utilizar a água para a produção de uma infinidade de objetos, não podemos descartar a utilização desta para a produção agrícola e muito menos, a água potável, produto este essencial para qualquer existência de vida. É a água potável que viabilizará, dentre outros fatores, a realização do direito à vida. Neste contexto, pode-se dizer que a água, é fonte de vida. Ter a água limpa saindo da torneira é coisa rara entre as populações mais pobres do mundo. Segundo a Organização das Nações Unidas – ONU20 – 1.1 Bilhão de pessoas, no mundo, não tem acesso à água potável e 2.4 bilhões não tem saneamento básico. 19 fonte: Revista Caros Amigos, edição especial “Terra em Transe”, número 23, abril de 2005, p.16 20 fonte: Revista Caros Amigos, edição especial “Terra em Transe”, número 23, abril de 2005, p.16. O acesso à água é um direito humano fundamental. O abastecimento de água e o saneamento devem ser serviços públicos prestados pelo Estado. Água. Bem comum, garantia de dignidade, dom da natureza. Dizer que a água é um meio vital é obvio. Mas, em tempos de desencantamento, é de se destacar nosso vínculo e o concernimento com a vida, a de cada um dos seis bilhões e meios de humanos e a dos que estão chegando a cada dia; e, com a vida em geral, já que o ciclo da água e a existência da vida no planeta são indissociáveis. Assim, caracterizar a água como insumo produtivo, de amplo uso na economia, é também evidente, basta registrar o uso e a destinação das águas nas atividades hoje praticadas em grande escala: - irrigação de hortas, pomares e de culturas comerciais; - interceptação das minas d’água e bombeamento dos aqüíferos profundos e dos rios subterrâneos para uso geral, para coletividades como hotéis, hospitais, clubes, presídios, shoppings, e para venda engarrafada como água potável; - represamento de rios para uso de água na atividade mineradora e na concentração de minérios, e para a formação de bacias de rejeitos, incluindo o acréscimo de águas extraídas do subsolo durante a lavra; - represamento ou derivação da correnteza dos rios para aproveitamento ou construção de queda d’água com a finalidade de turbinar e produzir eletricidade; - captação de grandes vazões dos rios e de aqüíferos freáticos e semi- artesianos para lavagem de cana e de outras safras, para fabricação de açúcar, álcool, de celulose, papel e papelão, para indústria cerâmica, para o refino de petróleo, para o uso em toda a indústria química e toda a indústria de alimentos industrializados e de derivados de carne e de leite, em quase toda a indústria têxtil e assim por diante. Problemas que advém destes usos são variados, como a subseqüente geração de grandes vazões de efluentes que serão, de um modo ou outro, devolvidos para os rios e mares ou, em muitos casos, a perda evaporativa por causa da geração e utilização de vapor, dos sistemas de resfriamento e das emanações das bacias e tanques. Segundo o Prof. Alexandre de Moraes21, o direito fundamental à vida deve ser compreendido como direito de se ter um nível de vida adequado com a condição humana. Ou melhor dizendo, direito à alimentação, vestuário, assistência médico-odontológica, educação, cultura, lazer e demais condiçõesque possibilite ao ser humano viver. Que supra suas condições vitais. Contudo, conforme o doutrinador supra, a promoção daqueles caberá ao Estado, que deverá garanti-los a um nível adequado com as condições humanas, respeitando os princípios fundamentais da cidadania, dignidade da pessoa humana e valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e, ainda, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional e erradicando-se a pobreza e a marginalização, reduzindo, portanto, as desigualdades sociais e regionais 22 . Dessa forma, para Moraes, ao Estado cria-se uma dupla obrigação: obrigação de cuidado a toda pessoa humana que não disponha de recursos suficientes e que seja incapaz de obtê-los por seus próprios meios; efetivação de órgãos competentes públicos ou privados, por meio de permissões, concessões ou convênios, para prestação de serviços públicos 21 MORAES, Alexandre. Comentários à Constituição da República. Ed. p. 176. 22 Op. cit. p. 176. adequados que pretendam prevenir, diminuir ou extinguir as deficiências existentes para um nível mínimo de vida digna da pessoa humana 23 . 23 Op. cit. p. 176. 2. Considerações Gerais Sobre a Água Doce no Brasil. O planeta pode ficar sem água muito antes do que se imagina. A Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que em algumas décadas a água doce será o recurso natural mais escasso e disputado pela maioria dos países. Em condições de uso fácil, não haveria mas que 0.01% do total de água do planeta. Uma previsão pessimista da Organização das Nações Unidas anuncia que já em 2005 faltaria água para dois terços da população mundial. O Brasil possui a maior reserva de água do planeta, cerca de 8% da água doce disponível. Mas 80% destas águas estão na Amazônia, onde a população representa somente 5% da população brasileira. Os 20% restantes respondem pelo abastecimento de 95% da população. Esta água que abastece os grandes centros urbanos é cada vez mais poluída, devido ao grande desmatamento das florestas e da ocupação irregular das margens dos rios.24 As ocupações irregulares clandestinas, os loteamentos, atividades industriais, e agrícolas desencadeiam uma série de problemas: lançam esgoto e lixo nos rios, causam doenças e aumentam a poluição. A água poluída aumenta os custos da produção no abastecimento, exigindo mais produtos químicos para o tratamento. A contaminação dos mananciais leva a buscar fontes mais distantes dos centros consumidores. Os mananciais situados em áreas de maior concentração da população são os que estão em pior estado de conservação. Um estudo do pesquisador Cleverson Andreoli, da Cia. de Saneamento do Paraná (Sanepar), revela que em poucas décadas os mananciais das Regiões Metropolitanas, não só 24 Fonte: Revista CREA/PARANÁ. Água Doce. Ano 7, n.°: 28, abril/maio de 2004. no Estado do Paraná, mas nos demais onde a concentração populacional é numerosa, podem estar esgotados se mantida a tendência de consumo, o aumento da população e a devastação ambiental. Na previsão mais pessimista, sem nenhuma ação de preservação dos mananciais de consumo ou construção de barragens, em 2030 não haveria mais uma gota nas represas da região. Na previsão mais otimista, com preservação total do abastecimento, haveria água até 2050. Na previsão intermediária as reservas de água estariam esgotadas em 2040. Para suprir a demanda, as empresas responsáveis pelo ramo, estão realizando a captação da água com até 50 Km de distância do local onde a mesma é destinada ao consumo. Por isso, é mais interessante promover ações de preservação de mananciais, explica Andreoli. 25 Cada vez mais se torna difícil a tarefa de se captar água, tratá-la, distribuí-la e reintegrá-la ao meio ambiente. Este serviço é geralmente executado por empresas estatais, mas não se exclui a possibilidade de que empresas de iniciativa privada gerenciem o sistema da saneamento. Nesse panorama, é natural a indagação sobre a cobrança pela utilização dos recursos hídricos. No entanto, em primeiro plano, o pensamento de que a água é um produto da natureza e que todos tem direito ao seu acesso, poderia nos conduzir ao pensamento errôneo de que a distribuição da mesma deveria ser gratuita ou, quanto no mínimo, ser custeada pelo Estado. Contudo, faz-se necessário atentar ao fato de que, desde o momento da captação, tratamento e distribuição da água, bem como a receptação do esgoto e seu tratamento, devolvendo, o efluente, o mais límpido possível para o leito dos rios, gera custos. E, a cada dia estes custos aumentam devido a dificuldade de extração da água e tratamento, tanto desta, como do efluente. 25 Pesquisa de Campo realizada com o Pesquisador da Cia. de Saneamento do Paraná, Sr. Cleverson Andreoli. Londrina, 20 de março de 2005. 3. Valor Econômico da Água Recurso hídrico é bem de valor, à medida que há interesse sobre ele. Tornando-se escasso, esse valor passa a ter caráter econômico. Contudo, conforme expresso na Carta Européia da Água, a água é um patrimônio comum, cujo o valor deve ser reconhecido por todos; cada um tem o dever de economizar e de a utilizar com cuidado e a gestão dos recursos hídricos deve inserir-se no âmbito da bacia hidrográfica natural e não das fronteiras administrativas e políticas. Nesse contexto, a Declaração de Dublin dispõe da matéria, inserindo em seu Princípio 4.° que a água tem valor econômico em todos os seus usos e deve ser reconhecida como um bem econômico. De acordo com esse princípio, é vital reconhecer como prioritário o direito básico de todo ser humano a ter acesso à água potável e ao saneamento, a um preço acessível. No passado, o não- reconhecimento do valor econômico da água conduziu ao seu desperdício e a danos ambientais decorrentes de seu uso. A gestão da água, como bem econômico, é uma importante forma de atingir a eficiência e eqüidade no seu uso e de promover a sua conservação e proteção 26 . Conforme estabeleceu a Lei da Águas, expresso em seu art. 1.°, inciso II, como um dos fundamentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, que a água é um recurso natural e limitado, dotado de valor econômico. 26 Qualidade e Gestão da Água. São Paulo: MRE, ILAM, PNUD, 1993, p.51. 4. Premissas do Estudo da Cobrança pela utilização dos recursos hídricos O direito de se utilizar privativamente os recursos hídricos, seja qual for o interessado, pessoa de direito público ou privado, a outorga do direito de uso da água é o instrumento inerente ao Poder Público, conforme dispõe o art. 5.°, inciso III, da Lei n.°: 9.433/9727, assim como as várias políticas estaduais. A necessidade de se realizar um controle rigoroso sobre o uso da água, está intrinsecamente relacionada com a escassez desta. À medida que a água é entendida como um bem escasso e finito, logo, passível da valoração econômica, controlar o seu uso proporciona garantia de sobrevivência. Em sendo as águas bens públicos de uso comum, logo, a inalienabilidade é uma de suas propriedades. Esse entendimento, já fixado anteriormente pelo Códigodas Águas28, em seu art. 46, foi repetido na Lei n.°: 9.433/97, conforme disposto no art. 18 desta. Seja a que título for, ninguém poderá apropriar-se das águas, pois a lei apenas confere o direito de seu uso por meio da outorga, cujos instrumentos jurídicos, no direito em vigor, são a autorização e a concessão. E ainda, sustenta que o pagamento pelo uso tampouco implica a criação de direito sobre a água. Atualmente, o que se paga aos prestadores de serviços públicos de saneamento, são quantias correspondentes à remuneração pela prestação dos mesmos, que incluem captação da água, tratamento, adução e distribuição de água potável, assim como coleta e afastamento de esgotos, podendo aí ser incluído o respectivo tratamento e ainda a disposição final dos lodos. A fatura que se recebe é, 27 Vide anexo I. Lei 9.433/97, Lei de Águas – Íntegra. 28 Vide anexo II, Código das Águas, Decreto n.°: 24.643/34 – Íntegra. portanto, relativa à prestação de serviços de saneamento e nada tem a ver com a cobrança pelo uso da água, instrumento da política de recursos hídricos. 4.1. Fundamentos da Cobrança pela utilização da Água. No direito brasileiro existia previsão da cobrança, pela utilização de bens públicos, porém de forma genérica. O Código Civil de 1916, em seu art. 68, estabelecia que o uso comum pode ser gratuito ou retribuído, conforme leis da União, dos Estados, ou Municípios, a cuja administração pertencem. O art. 103, do atual Código Civil, inspirado pelo art. 68 do Código anterior, dispõe que o uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, conforme for estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração pertencerem. Sendo os recursos hídricos bens públicos de uso comum, verifica-se que o art. 68 do Código de 1916 foi primeira manifestação, ainda que indireta, no Direito Brasileiro, da possibilidade de cobrança pelo uso da água. Embora prevista legalmente, essa cobrança nunca ocorreu, de fato. O Código das Águas, alterado em parte pela Lei de Águas, garantia, em seu art. 34, “o uso gratuito de qualquer corrente ou nascente de água, para as primeiras necessidades da vida, se houver caminho público que a torne acessível”. Neste contexto, o art. 36 estabelecia que é permitido a todos usar de quaisquer águas públicas, desde que em conformidade com os regulamentos administrativos. Contudo, o mesmo art. 36, se esse uso depender de derivação, terá preferência a derivação para o abastecimento das populações; e o uso comum das águas pode ser gratuito ou retribuído, conforme leis e regulamentos da circunscrição administrativa a que pertencerem. O legislador utilizou o termo derivar, que “significa desviar, no caso, as águas de seu curso, ou seja, desviar-se de seu leito, com relação à corrente de água, mudar sua direção”29. Já nos termos do inciso VIII do art. 2.°, da Instrução Normativa MMA 04/2000, “Derivação ou Captação de Água de Curso Natural ou Depósito Superficial é toda retirada de água, proveniente de qualquer corpo hídrico”. Para tanto, as derivações para aplicação na agricultura, indústria e higiene consistem na captação ou na retirada do recurso para tais usos, o que implica o consumo do mesmo, ou sua simples utilização, para posterior devolução no mesmo corpo hídrico em que houve a captação ou ainda em outro corpo receptor. Contudo, leis, regulamentos ou entidades públicas legalmente autorizadas podem arbitrar um pagamento pela utilização da água, com exceção do uso para as primeiras necessidades da vida, assim entendido “o uso destinado ao preparo da comida, lavagem de casas e utensílios, lavar roupa no próprio leito ou alvéolo, para aí beber ou dar de beber aos animais e regar plantas que tenham em casa”.30 A Lei n.°: 9.433/97, na mesma ordem de idéias, dispõe, no § 1.° do art. 12, que independe de outorga o uso dos recursos hídricos para a satisfação de necessidades de pequenos núcleos populacionais, distribuídos no meio rural, para as derivações, captações, lançamentos e também para acumulação de volumes de água considerados insignificantes. A Lei de Águas repete o entendimento semelhante ao que vigorava no Código das Águas, no que se refere aos usos que não interferem no regime dos 29 FREIRE, Laudelino. Grande e novíssimo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: A noite, 1940 a 1943. 5 v. 30 NUNES, Antônio de Pádua. Código das Águas. São Paulo: Saraiva, 1975, p.134. recursos hídricos, nem em sua quantidade e qualidade, eximindo-se os mesmos da outorga e, conseqüentemente, por força do art. 20 da Lei 9.433/97, do pagamento por seu uso. À parte disso, o recurso hídrico constitui um recurso ambiental, de acordo com o disposto no art. 3.°, V, da Lei n.°: 6.938/81. Essa norma estabelece, em seu art. 4.°, VII, que a Política visará à imposição, ao poluidor e ao predador, de recuperar e indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização dos recursos ambientais para fins econômicos. Com esse diploma legal foram introduzidos os princípios “poluidor-pagador” e usuário-pagador”. O Código de Águas, já em 1934 declarou, em seus arts. 109 e 110, que a ninguém é lícito conspurcar ou contaminar as águas que consome, em prejuízo de terceiros, sendo os trabalhos para a salubridade das águas executados às custas dos infratores, os quais, além da responsabilidade criminal, se houver, respondem pelas perdas e danos que causarem e pelas multas previstas que lhes forem impostas nos regulamentos administrativos. O Código de Águas já previa a responsabilidade civil, administrativa e criminal pelo dano ambiental, no tocante à água, o que foi incorporado à Lei n.°: 6.938/81 e à Constituição Federal, em seu art. 225, § 3.°. Em conformidade ao disposto no art. 111 do Código de Águas, se os relevantes interesses da agricultura ou da indústria o exigirem, e mediante expressa autorização administrativa, as águas podem ser inquinadas, mas os agricultores ou industriais deverão providenciar para que elas se purifiquem, por qualquer processo, ou sigam seu esgoto natural. Contudo, já havia, dessa forma, no direito brasileiro, mesmo que indiretamente, a possibilidade jurídica de cobrar-se pela utilização dos recursos hídricos, incluindo aí a diluição de efluentes. A Lei n.°: 9.433/97 efetuou a ligação entre a utilização e pagamento por esse uso. À parte disso, vigora a legislação ambiental que fixou padrões de qualidade e emissão de efluentes e que devem ser obrigatoriamente observados. Daí ter sido tacitamente revogado o art. 111 do Código de Águas, pois, de acordo com a norma ambiental em vigor, a ocorrência de poluição implica a responsabilidade do autor. 4.2. Conceito e Objetivos da Cobrança “Cobrar”, do latim recuperare, tem o sentido de “fazer ser pago; exigir o valor de”31. “Cobrança” significa “arrecadação de quantias”.32 A cobrança pelo uso da água consiste no instrumento econômico da política de recursos hídricos. Quanto ao aspecto econômico, para a Professora Maria Luiza Machado, É econômico em dois sentidos: o primeiro, relativo ao financiamento de obras contidas no plano de recursos hídricos; o segundo, no que tange ao entendimento da água como bem de valor econômico, cuja utilização deve ser cobrada 33 . Nos termos do art. 19 da Lei n.°: 9.433/97, constituem objetivos da cobrança: I – reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor; II – incentivar a racionalização do uso da água;31 FREIRE, Laudelino. Grande... Op. cit. P. 1439. 32 Idem, ibidem. P. 1941. 33 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito das Águas, 2. ed, São Paulo, Atlas, 2003, p. 207. III – obter recursos financeiros para o financiamento dos programas de intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos. A cobrança encontra-se na outra extremidade da política de recursos hídricos: de um lado, estão os planos, que fixam metas e prioridades a serem cumpridas. A cobrança tem por objetivo, entre outros, arrecadar recursos financeiros necessários ao desenvolvimento de atividades relativas ao alcance das metas propostas no Plano. Entre esses dois extremos, encontram-se os instrumentos de controle administrativo – outorga de direito de uso da água e licenciamento ambiental. 4.3. Fato Gerador e Critérios da Cobrança O art. 20 da Lei n.°: 9.433/97 dispõe que “serão cobrados os usos dos recursos hídricos sujeitos à outorga”. O conteúdo do citado art. 20 remete a cobrança pelo uso da água a todos os usos passíveis de autorização ou concessão do poder público – União ou Estados. No rol apresentado pelo art. 12 da Lei n.°: 9.433/97 encontra-se vários tipos de uso, cada qual com caraterísticas próprias e conseqüências jurídicas especificadas. Assim, os usos podem causar alteração na qualidade e na quantidade da água, ou referir-se a uma atividade que simplesmente utiliza o rio, como, por exemplo, para uma simples passagem, como se fosse uma estrada. Daí a menção a dois princípios correlatos: “poluidor-pagador” e “usuário-pagador”. No que tange aos critérios, a Lei das Águas estabelece em seu art. 21 que, na fixação de valores a serem cobrados, devem ser observados, entre outros, nas derivações, captações e extrações de água, o volume retirado e seu regime de variação e, nos lançamentos de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, o volume lançado e seu regime de variação e as características físico- químicas, biológicas e de toxidade do efluente. 4.4. Natureza Jurídica do Produto da Cobrança O produto da cobrança pelo uso da água constitui uma receita pública, sendo necessário estabelecer-se o tipo de relação jurídica entre o Estado e o particular, uma vez que este é o fornecedor e aquele quem recebe. Conforme entendimento de Rubens Gomes de Souza34, o ponto de partida do estudo de finanças públicas é que toda atividade financeira do Estado se traduz por um conflito entre interesse público e interesse particular. Em sede de recursos hídricos, o conflito de interesse sobre o uso da água, em razão do risco de escassez, e da crescente demanda torna-a um bem de valor econômico, cujo uso é passível de ser cobrado. Contudo, essa receita cobrada pelo Estado, visa, principalmente, o interesse dos particulares na atividade desempenhada pelo governo, mas atendendo também, embora secundariamente, à existência de um interesse público geral e coletivo, nessa atividade. Também, aqui se trata de desempenho, pelo Estado, de atividades tipicamente privadas; porém a existência de um interesse público secundário justifica que o Estado se reserve a exclusividade do seu exercício, eliminado a concorrência por meio de monopólio legal. Por meio destas palavras, é perfeitamente perceptível que a receita pública em questão figura-se na modalidade de Preço Público. Distinção merecedora, é de que, portando, não há que se falar em Taxa, mas sim, Preço Público. A Taxa, imposto previsto na forma do inciso II do art. 34 SOUZA, apud Granziera, Maria Luiza Machado. Op. cit., p. 209. 145 da Constituição Federal, tem a finalidade de remunerar serviços públicos e o exercício do poder de polícia. O fato gerador da cobrança é a utilização do recurso hídrico para os fins mencionados no art. 12 da Lei 9.433/97, e que basicamente são aqueles que alteram o regime, a quantidade ou a qualidade das águas. Não se configura, assim, exercício de polícia, uma vez que o controle administrativo encontra-se no âmbito da outorga do direito de uso da água e no licenciamento ambiental. Essa taxa é cobrada para remunerar os serviços de controle, prestados pela Administração Pública. Portanto, na modalidade em questão não se vislumbra, na cobrança, uma remuneração pelo exercício de poder de polícia. E, para espancar de vez qualquer confusão, tampou há que se falar em Tarifa. Esta é a remuneração pela prestação de serviço público, conforme disposição do art. 175 da Constituição Federal. Contudo, o serviço Público possui características muito distintas da concessão de uso de bem público, ou de sua outorga. Portanto, paga-se pelo uso privativo da água, em detrimento dos demais. O exemplo mais próximo da hipótese em questão encontra-se em sistemas similares à chamada Zona Azul, em que se utiliza um pedaço da via pública por determinado período, pagando por isso. Para Maria Luiza Machado, o efeito dessa utilização é que, “nesse interregno, o espaço da via pública, bem de uso comum, destina-se exclusivamente ao usuário, em detrimento do interesse dos demais”35. Neste sentido, é o que ocorre com a derivação e a captação para consumo final, como o abastecimento público, ou o abastecimento industrial, a extração de água de aqüífero subterrâneo, o lançamento de esgotos e demais 35 MACHADO, Op. cit., p. 211. resíduos, com o fim de diluição, transporte ou disposição final, conforme dispõe o art. 12 da Lei 9.433/97. Portanto, a natureza do produto da cobrança é, pois, a de preço público, pois se trata de fonte de exploração de bem de domínio público. Sua natureza é negocial, cabendo ao detentor do domínio estabelecer o respectivo valor. 5. A Continuidade do Serviço Público Essencial O que nos cabe analisar, por ora, é a Continuidade do Serviço Público Essencial. Quanto ao fornecimento de água e o serviço público essencial, antes de qualquer coisa, é válido lembrarmos ao leitor que este serviço também se configura como uma relação de consumo, tendo em um dos pólos a prestadora de serviços ou concessionária e de outro o consumidor ou beneficiado. A despeito disto, encontramos o dispositivo do Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 22, regulando a matéria em questão. Assim, pode-se conceituar serviço público, nos exatos termos do magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello, como toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade fruível diretamente pelos administrados, prestados pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacias e de restrições especiais –, instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo 36 . Ultrapassada a questão conceitual atinente ao serviço público, resta o entendimento da expressão essencial. A definição do que vem a ser essencial vincula-se à idéia de indispensabilidade; necessidade imperiosa e inafastável. Referência para a caracterização dos serviços públicos essenciais é a Lei n.°: 7.783/89, que dispõe sobre o exercício do direito de greve, estabelecendo serviços e atividades essenciais, destacando dentre muitos, o tratamento e abastecimento de água. 36 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 11. ed., São Paulo, Malheiros, p. 477. Assim sendo, o cerne da discussão reside noscasos de inadimplemento da obrigação por parte do beneficiado pelos serviços. Há, pois, divergências doutrinárias e jurisprudencial. Alguns autores defendem a possibilidade de solução da continuidade em face do inadimplemento do usuário, sustentando, genericamente, o entendimento no princípio da igualdade; na impossibilidade de o Poder Público arcar com a gratuidade do serviço ara alguns; na Lei n.°: 8.987/95, § 3°., do art. 6.°, que disciplina a concessão do serviço público e autoriza o corte desde que haja prévio aviso, o que descaracterizaria a descontinuidade etc. 37 Infere-se, contudo, uma grande divergência na jurisprudência quanto a ser admissível ou não o corte no fornecimento de água. Obviamente, cada posicionamento busca determinada fundamentação. Para tanto, passaremos a analisar dois posicionamentos jurisprudenciais conflitantes, o que nos permitirá entender a fundamentação das mesmas, em relação ao entendimento de poder judiciário, quanto à admissibilidade ou não do corte, frente ao inadimplemento do usuário do serviço. 37 NUNES JUNIOR, Vidal Sarrano. Código de Defesa do Consumidor Interpretado. São Paulo, Saraiva, 2003, p. 85. 6. Análise Jurisprudencial “SERVIÇO PÚBLICO – Água – Corte do fornecimento diante inadimplemento do consumidor – Admissibilidade – Essencialidade do serviço que não autoriza o usuário, por simples dificuldade financeira, deixar de arcar com a contraprestação devida. Emenda da Redação: o não pagamento de consumo de água enseja o corte no fornecimento do serviço, uma vez que, embora considerado serviço de natureza essencial, tal característica não permite que o consumidor, por simples dificuldade financeira, deixe de arcar com a contraprestação do serviço público. (Agln 1.218.232-2 – 1.ª Câm. – j. 24.11.2003. – rel. Juiz Edgard Jorge Lauand.). ACÓRDÃO – Ementa Oficial: Prestação de serviços – Corte no fornecimento de água ante o não pagamento da conta referente ao consumo – Possibilidade – Serviço de utilidade pública de prestação contínua condicionada ao pagamento – Acordo de parcelamento não cumprido – Liminar cassada – Recurso provido.”. 38 Neste caso, foi concedida a medida liminar de natureza satisfativa com o objetivo de se restabelecer o fornecimento de água, sob fundamento de ser serviço público e essencial e não poder ser interrompido. Contudo, o entendimento deste relator, O Juiz Edgard Jorge Lauand, é o de que, não sendo efetuado o pagamento referente ao consumo, objeto do acordo não cumprido, a concessionária está habilitada em efetuar a suspensão do fornecimento de água. Para ele, a regra determinante do fornecimento contínuo, quanto aos serviços e bens essenciais, deve ceder, diante do rompimento, pela ausência de retribuição, por parte do consumidor. Segundo o r. Relator, na fundamentação desta decisão, este tipo de serviço não pode ser considerado de natureza essencial, mas sim, serviços de utilidade pública, pois, por sua conveniência, para os membros da sociedade, é prestado ou pela administração ou por terceiros como concessionárias 39 . 38 RT 825 – Julho de 2004 – ano 93.°, p. 265. 39 RT 825 – Julho de 2004 – ano 93.°, p. 266. Contudo, destaca ainda que não são serviços gratuitos, devendo existir uma contraprestação aos mesmos, conforme o respectivo consumo. Enfim, em conformidade ao entendimento deste relator, por se tratar de um serviço de natureza essencial e contínuo, não se poderia interromper o fornecimento por falta de pagamento, devendo a concessionária remeter-se ao judiciário a fim de cobrar a dívida. Contudo, adverte que, esta atitude se revelaria como estímulo à utilização do expediente por todo e qualquer consumidor, o que certamente levaria a empresa concessionária a difícil situação econômica, dificultando a sua prestação de serviços. Embora se trate de serviço essencial, não se pode compatibilizar o dever de prestação contínua pela concessionária com o não pagamento do consumo pelo usuário, entende o Relator. De qualquer modo, se por um lado se exige a prestação do serviço, de outro, se exige por parte do consumidor o pagamento referente ao serviços prestados. Por isso, entendo não ser possível, pela simples dificuldade financeira e sem qualquer outro motivo aparente, deixar a agravada (consumidor) de pagar pelo consumo de água, se escudando na essencialidade do serviço e numa interpretação equivocada de que não pode ser interrompido pela concessionária. A visão do contrato deve ser ampla prevendo direitos e deveres da concessionária com a contrapartida do consumidor, explica Edgard Jorge Lauand 40 . 40 RT 825 – Julho de 2004 – ano 93.°, p. 267. “PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS – Água – Suspensão no fornecimento por falta de pagamento – Inadimissibilidade – Serviço que possui caráter essencial, sujeitando-se ao princípio da continuidade da prestação – Inteligência do art. 22 da Lei 8.078/90. Ementa da Redação: Não se admite seja suspenso o fornecimento de água ao consumidor sob o fundamento de estar esse em mora no pagamento, uma vez que trata-se de serviço público essencial que se sujeita, destarte, ao princípio da continuidade de sua prestação, nos termos do art. 22 da Lei 8.078/90. (Agln 1.083.910-8 – 11.ª Câm. – j. 06.06.2002 – rel. Juiz Melo Colombi).” 41 . Sustenta este relator, Juiz Melo Colombi42, via de regra, a impossibilidade do corte no fornecimento de serviços essenciais por ausência de pagamento. Neste sentido, entende, o relator que, para tanto, deve-se observar o princípio do Direito Administrativo pátrio, da continuidade da prestação dos serviços públicos e, ainda, atentar-se ao fato de que tal prestação é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor. Neste contexto, destacamos que a Lei consumerista, em seu art. 22, dispõe que os órgãos públicos, por si ou por suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigadas a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. “O fornecimento de água potável é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção”, explica Colombi em sua fundamentação da r. decisão. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços essenciais para a sua vida em sociedade, deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza. 41 RT 809 – Março de 2003 – ano 92.°, p. 262. 42 RT 809 – Março de 2003 – ano 92.°, p. 262 e 263. A palavra essencialidade, conforme entendimento de Deocleciano Torrieri Guimarães43, revela um estado ou ausência de algo que deve ser satisfeito. As necessidades podem ser individuais ou coletivas, como alimentos, água, luz, habitação, a defesa do território, a segurança pública, etc. Para tanto, o direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade, deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza, cabendo ao Estado garanti-los e mantê-los.43 GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário Técnico Jurídico, São Paulo, Rideel, 1995, p. 414. Conclusão Diante de todo o exposto, pode-se inferir que, o corte no fornecimento de água potável não deve ser permitido. O que não se quer, com a presente exposição, é fazer apologia ao inadimplemento quanto aos serviços essenciais utilizados. O que se quer sim, é fazer valer o ideal de democracia que deveria ser exercido por este Estado de Direito. Atenta-se ao fato de que os valores cobrados, pela utilização dos serviços, são investidos em estudos, programas, projetos e obras previstas nos planos de recursos hídricos, conforme exigência do art. 22, I da Lei 9.433/97, bem como no pagamento de despesas e implantação e custeio administrativo nos órgãos e entidades do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, conforme inciso II do artigo acima referido. O simples gesto de abrir uma torneira e encher um copo d’água, nem de perto lembra a complexidade do trabalho necessário para que ela chegue pura, cristalina e pronta para o consumo da pessoas. Tornar a água bruta em água potável exige a dedicação de vários profissionais, como engenheiros, químicos, biólogos, farmacêuticos, e um rigoroso processo de tratamento, como monitoramento permanente de técnicos. Tudo isso sem levar em consideração do destino da água após consumida. Em se tratando de relação de consumo de serviços essenciais, está obrigado o Poder Público a manter o fornecimento de água compulsoriamente, até mesmo a título gratuito, a quem não pode pagar. A cessação de serviços essenciais, tal como o de fornecimento de água potável, deve ser considerado ilegal, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida. Obviamente que não se exclui a possibilidade das concessionárias cobrarem as contas em atrasos pelo meios judiciais, porém sem deixar de prestar o devido serviço. A interrupção no fornecimento da água, não só deste, bem como de qualquer dos serviços essenciais, assim considerados, tem o escopo de compelir o consumidor ao pagamento dos atrasados. Assim, o exercício arbitrário da próprias razões não pode substituir a ação de cobrança. O corte, como forma de compelir o usuário ao pagamento, extrapola os limites da legalidade. Evidentemente que, o não pagamento pela utilização dos serviços levaria a concessionária às minguas, por falta de recursos. Compartilha-se da opinião dos que são contra a interrupção do fornecimento dos serviços essenciais, dentre os quais encontra-se o de fornecimento de água potável, uma vez que os direitos atinentes à dignidade da pessoa humana serão sempre atingidos pela interrupção dos serviços, por isso mesmo são ditos essenciais. Como viver com salubridade mínima sem serviço de fornecimento de água, sabido que é a água tratada e corrente a responsável pelo afastamento de diversos males à saúde? E, para combater o inadimplemento, oferece a legislação brasileira substrato suficiente, como a execução forçada atingindo o patrimônio do devedor. Contudo, a relação que existe entre homem e água antecede o direito. A água é elemento intrínseco a sua sobrevivência. É a partir dela que as funções vitais do ser humano se realizam, viabilizando sua existência, premissa básica para que o ser humano exerça o seu direito à vida. Evidente que, não basta ter vida, mas sim, viver com dignidade. Esta, por sua vez, se realiza com a intervenção estatal, proporcionando ao cidadão o fornecimento de serviços essenciais, necessários para a subsistência do ser humano. Não se pode deixar de citar, aqui, o fato de que a erradicação da pobreza é condição sine qua non da efetividade dessa política, assegurando o desenvolvimento cultural, social e econômico destes cidadãos e dos futuros – Desenvolvimento Sustentável. Por isso a necessidade de se implementar uma educação ambiental, voltados aos recursos hídricos. Suprir a água para beber, obsta ao homem o exercício do direito mais básico: o direito à vida. Referências Bibliográficas ALVES, Gláucia Correa Retamozzo Barcelos. Sobre a dignidade da pessoa, in A Reconstrução do Direito Privado, org. Judith Martins –Costa, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; AURENCHE, Guy. A Atualidade dos Direitos Humanos. Edições Loyola, São Paulo, 1984; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, Coimbra: Almedina, 2001; ESPÍNOLA, Ruy Samuel. A Constituição como Garantia da Democracia: O papel dos princípios Constitucionais. Texto de exposição ocorrida em 30 de outubro de 1999, no auditório da Faculdade de Direito de Caruaru; FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito, 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 1998; MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 12ª ed., São Paulo: Atlas, 2002; SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 13ª edição, São Paulo: Malheiros, 1997;
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