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1 DIREITO CONSTITUCIONAL E METODOLOGIA JURÍDICA GRAAL DA PROVA ORAL DO 29º CPR – 10/2018 Organizado por Valdir Monteiro Oliveria Júnior Sumário 1. TEORIA GERAL DO ESTADO.................................................................................................... 5 6B. Federalismo. Concepções e características. Classificações. Sistemas de repartição de competência. Direito comparado. ......................................................................................... 5 3A. Divisão de poderes. Conceito e objetivos. História. Independência e harmonia entre poderes. Mecanismos de freio e contrapesos. ....................................................................... 8 14A. Democracia. Conceito. História. Fundamentos. Democracia representativa e participativa. Teorias deliberativa e agregativa da democracia. Instrumentos de democracia direta na Constituição de 1988. ........................................................................................... 11 2. FILOSOFIA POLÍTICA ............................................................................................................ 13 11A. Liberalismo igualitário, comunitarismo, procedimentalismo e republicanismo. Suas projeções no domínio constitucional. .................................................................................. 13 25A. Pluralismo jurídico. As fontes normativas não estatais. ............................................... 16 3. CONSTITUCIONALISMO ....................................................................................................... 18 1A. Constitucionalismo: trajetória histórica. Constitucionalismo liberal e social. Constitucionalismo britânico, francês e norte-americano. ................................................... 18 14C. A evolução do constitucionalismo brasileiro: constituições de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969. A ditadura militar e os atos institucionais. A assembleia constituinte de 1987/88. ............................................................................................................................. 27 24A. Neoconstitucionalismo. Constitucionalização do Direito e judicialização da política. ... 32 4. PODER CONSTITUINTE......................................................................................................... 36 5A. Poder Constituinte originário. Titularidade e características. ......................................... 36 6A. Poder constituinte derivado. Limitações à reforma constitucional. Cláusulas pétreas expressas e implícitas. As mutações constitucionais. ........................................................... 38 8A. Poder constituinte estadual: autonomia e limitações. ................................................... 40 13A. Direito Constitucional Intertemporal. Teoria da recepção. Disposições constitucionais transitórias. ......................................................................................................................... 41 5. NORMAS CONSTITUCIONAIS ............................................................................................... 43 9B. Norma jurídica e enunciado normativo. Características da norma jurídica. .................... 43 4B. Normas constitucionais. Definição. Estrutura. Classificações. Princípios e regras. Preâmbulo. Efeitos das normas da Constituição brasileira de 1988...................................... 47 6. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ..................................................................................... 49 2C. Hermenêutica e Teorias da argumentação jurídica. ....................................................... 49 21B. Interpretação jurídica. Métodos e critérios de interpretação. ...................................... 51 12B. Critérios clássicos de resolução de antinomias jurídicas. .............................................. 54 2 17B. A metodologia jurídica no tempo. A Escola da Exegese. Jurisprudência dos conceitos, jurisprudência dos interesses e jurisprudência dos valores. O realismo jurídico. Neoformalismo. O pós-positivismo jurídico. ........................................................................ 56 22A. O papel das pré-compreensões no Direito. Interpretação, moralidade positiva e moralidade crítica. .............................................................................................................. 61 4C. Lacunas e Integração do Direito: analogia, costumes e equidade. .................................. 63 7C. Os Princípios gerais de direito ....................................................................................... 65 10A. Interpretação constitucional. Métodos e princípios de hermenêutica constitucional. .. 66 2A. Constituição e Cosmopolitismo. O papel do direito comparado e das normas e jurisprudência internacionais na interpretação da Constituição. .......................................... 69 11C. Colisão entre normas constitucionais. Ponderação e juízo de adequação. Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade. ................................................................................ 71 7. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ............................................................................... 75 12A. Controle de constitucionalidade: evolução histórica do sistema brasileiro. Direito comparado. Legitimidade democrática................................................................................ 75 16C. Controle concreto de constitucionalidade. O Recurso Extraordinário. ......................... 78 18C. Controle abstrato de constitucionalidade: Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, Ação Declaratória de Constitucionalidade e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. .................................................... 82 22B. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Técnicas decisórias na jurisdição constitucional ..................................................................................................................... 95 25B. Inconstitucionalidade por omissão. Ação Direta e Mandado de Injunção. .................... 98 8. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS ........................................................................... 101 6C. Direitos fundamentais. Concepções. Características. Dimensões Objetiva e Subjetiva. Eficácia vertical e horizontal. ............................................................................................. 102 20C. Limites dos direitos fundamentais. Teorias interna e externa. Núcleo essencial e proporcionalidade. Os "limites dos limites". ...................................................................... 107 16B. Os princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. ............................ 109 22C. Direito fundamental à moradia e à alimentação. ....................................................... 111 23A. Direitos fundamentais culturais. Multiculturalismo e interculturalidade. Direito à diferença e ao reconhecimento. ........................................................................................ 114 19A. Liberdade de expressão, religiosa e de associação. O princípio da laicidade estatal. Os direitos civis na Constituição de 1988. ............................................................................... 117 17C. Direitos sexuais e reprodutivos. ................................................................................. 122 13C. Princípio da isonomia. Ações afirmativas. Igualdade e diferença. Teoria do impacto desproporcional. Direito à adaptação razoável. ................................................................. 124 23C. Direitos fundamentais processuais: acesso à justiça, devido processo legal, contraditório, ampladefesa, vedação de uso de provas ilícitas, juiz natural e duração razoável do processo. ........................................................................................................ 126 15A. Controle jurisdicional e social das políticas públicas. Serviços de relevância pública. O papel do Ministério Público. .............................................................................................. 130 3 9. DIREITOS SOCIAIS .............................................................................................................. 132 12C. Princípios Constitucionais do Trabalho. Os Direitos Fundamentais do Trabalhador. ... 132 4A. Direitos sociais: enunciação, garantias e efetividade. Princípio da proibição do retrocesso. Mínimo existencial e reserva do possível. .......................................................................... 134 10.NACIONALIDADE .............................................................................................................. 137 10B. Nacionalidade brasileira. Condição jurídica do estrangeiro. ....................................... 137 11.DIREITOS POLÍTICOS ......................................................................................................... 140 15B. Direitos Políticos. O papel da cidadania na concretização da Constituição ................. 140 12.FEDERAÇÃO BRASILEIRA ................................................................................................... 141 7B. União Federal: competência e bens. ............................................................................ 141 3C. Estado-membro. Competência. Autonomia. Bens. ....................................................... 143 5C. Município: criação, competência, autonomia. Regiões metropolitanas. ....................... 147 10C. Intervenção federal nos Estados e intervenção estadual nos Municípios. .................. 152 13.ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ............................................................................................... 153 11B. Princípios constitucionais sobre a Administração Pública ........................................... 153 14.PODER LEGISLATIVO ......................................................................................................... 156 1B. Poder Legislativo. Organização. Atribuições do Congresso Nacional. Competências do Senado e da Câmara. Legislativo e soberania popular. A crise da representação política. .. 156 15C. Regime constitucional dos parlamentares. Imunidades e incompatibilidades. ........... 160 24B. Estatuto constitucional dos agentes políticos. Limites constitucionais da investigação parlamentar. Crimes de responsabilidade. Controle social, político e jurisdicional do exercício do poder. O princípio republicano. ..................................................................... 164 7A. Processo legislativo. Emenda constitucional, lei complementar, lei ordinária, lei delegada, medida provisória, decreto legislativo e resolução. O processo de incorporação dos tratados internacionais. Devido processo legislativo. .................................................. 168 15.PODER EXECUTIVO ........................................................................................................... 172 2B. Poder Executivo. Histórico. Presidencialismo e Parlamentarismo. Presidencialismo de coalizão. Presidente da República: estatuto. Competências. Poder normativo autônomo, delegado e regulamentar. Ministros de Estado.................................................................. 172 16.PODER JUDICIÁRIO ........................................................................................................... 176 3B. Poder Judiciário: organização e competência. Normas constitucionais respeitantes à magistratura. O ativismo judicial e seus limites no Estado Democrático de Direito. ........... 176 5B. Supremo Tribunal Federal: organização e competência. Jurisdição constitucional. ...... 185 23B. Súmula vinculante. Legitimidade e críticas. Mecanismos de distinção. ....................... 188 25C. Conselho Nacional de Justiça. História, composição, competência e funcionamento . 189 17.FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA ...................................................................................... 192 1C. Ministério Público: História e princípios constitucionais. Organização. As funções constitucionais do Ministério Público. ............................................................................... 192 4 21A. Conselho Nacional do Ministério Público. História, composição, competência e funcionamento. ................................................................................................................ 195 24C. As funções essenciais à Justiça: Advocacia privada e pública. Representação judicial e consultoria jurídica da União, dos Estados e do Distrito Federal. A Defensoria Pública ...... 198 18.DEFESA DO ESTADO E DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS ............................................... 200 8C. Defesa do Estado e das instituições democráticas. Estado de defesa. Estado de sítio. Papel constitucional das Forças Armadas. ......................................................................... 200 9C. Segurança Pública na Constituição. O papel das instituições policiais. ......................... 202 19. FINANÇAS PÚBLICAS........................................................................................................ 206 20A. Finanças Públicas na Constituição. Normas Orçamentárias na Constituição. .............. 206 18A. Orçamento público: controle social, político e jurisdicional. ...................................... 209 20. ORDEM ECONÔMICA....................................................................................................... 212 21C. Ordem constitucional econômica. Princípios constitucionais da ordem econômica. Intervenção estatal direta e indireta na economia. Regime constitucional dos serviços públicos. Monopólios federais e seu regime constitucional. .............................................. 213 13B. Regime constitucional da propriedade. Função socioambiental da propriedade. Desapropriação e requisição. ............................................................................................ 216 8B. Política Agrária na Constituição. Desapropriação para Reforma Agrária. ...................... 218 21.ORDEM SOCIAL ................................................................................................................ 221 14B. Previdência social e assistência social. ....................................................................... 221 19C. Direito à Saúde. Sistema Único de Saúde na Constituição. Controle Social. O Direito de Acesso às Prestações Sanitárias ......................................................................................... 223 16A. Direito fundamental à educação. A educação na Constituição Federal. ..................... 227 9A. Comunicação social. A imprensa na Constituição. Liberdades públicas, acesso à informação e pluralismo.................................................................................................... 231 17A. Proteção constitucional à família, à criança, ao adolescente e ao idoso. .................... 235 18B. Direitos das pessoas portadoras de deficiência. A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo. ................................................. 238 22.ÍNDIOS, QUILOMBOLAS E MINORIAS ................................................................................ 243 20B. Índios na Constituição. Competência. Ocupação Tradicional. Procedimento para Reconhecimento e Demarcação dos Territórios Indígenas. Usufruto. ................................243 19B. Direitos das comunidades remanescentes dos quilombos e de comunidades tradicionais. ...................................................................................................................... 248 5 1. TEORIA GERAL DO ESTADO 1.1 Federalismo. Concepções e caracterıśticas. Classificações. Sistemas de repartição de competência. Direito Comparado. (6.b) 1.2 Divisão de poderes. Conceito e objetivos. História. Independência e harmonia entre poderes. Mecanismos de freios e contrapesos. (3.a) 1.3 Democracia. Conceito. História. Fundamentos. Democracia representativa e participativa. Teorias deliberativa e agregativa da democracia. Instrumentos de democracia direta na Constituição de 1988. (14.a) 6B. Federalismo. Concepções e características. Classificações. Sistemas de repartição de competência. Direito comparado. Atualizado por Igor Lima Goettenauer de Oliveira I. Noções Gerais No Brasil, a federação surge provisoriamente através do Decreto n. 1, de 15.11.1889, juntamente com a forma republicana de governo, tomando assento constitucional na Carta de 1891. As Constituições posteriores mantiveram a forma federativa de Estado, embora o federalismo nas Constituições de 1937 e de 1967, bem como durante a vigência da Emenda n. 1/69, tenha sido apenas nominal (“federalismo de fachada”). No Federalismo clássico, ou dual, a repartição do poder é rigidamente dividida entre a União (Poder Central) e os Estados (Poder Regional). O federalismo brasileiro atual é tricotômico, pois engloba a União (Poder Central), os Estados (Poder Regional), o Distrito Federal e os Municípios (Poder local). Os territórios não são entidades federais, mas meras autarquias territoriais integrantes da União. Segundo José Afonso da Silva, para que haja autonomia federativa, são necessários os seguintes elementos: 1. órgãos próprios de cada entidade (união, estados e municípios); e 2. posse de competências exclusivas de cada entidade. União. A União, pessoa jurídica de direito público, possui uma visão interna, relativa aos demais estados federados, e uma visão externa, em face dos demais Estados estrangeiros. Internamente, age a União em pé de igualdade com os outros entes da Federação, sendo detentora de deveres e obrigações. No âmbito externo, ela representa todo o Estado Federado na figura da República Federativa do Brasil, como se fosse ele unitário, já que o direito internacional não reconhece a personalidade jurídica dos estados-membros e municípios, naquele âmbito. Neste sentido, vide art. 29 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados. Estados federados. São coletividades regionais autônomas, sem soberania, porém autonomia. Entre os Estados e a União não há hierarquia, convivendo todos num mesmo nível jurídico. A autonomia define-se como condição “de gerir os negócios próprios dentro dos limites fixados por poder superior”, caracterizando-se pela capacidade de autogoverno, auto-organização, autolegislação, autoadministração e autonomias tributária, financeira e orçamentária. Municípios. A CF/88, inovadoramente, considerou os municípios como componentes da estrutura federativa, e o fez em dois momentos (arts. 1º e 18). Anteriormente eram componentes dos Estados, que decidiam a sua organização. Saliente-se que José Afonso da Silva defende que os municípios não passaram a ser entidades federativas. Apenas teriam ganhado autonomia político-constitucional (entre outros argumentos, porque não há intervenção federal nos municípios, tampouco Poder Judiciário p´ropiro). Paulo Branco enumera quatro motivos para os municípios não integrarem o Estado Federal: a) não participam da vontade federal, visto que não 6 têm representantes no Senado; b) não mantêm um Poder Judiciário, como ocorre com os estados –membros e União; c) a intervenção nos municípios situados em estado-membro está a cargo deste; d) a competência originária do STF para resolver conflitos entre entes federativos não abrange os casos em que os municípios estão em um dos polos da lide. Grande parte da doutrina, acompanhada da jurisprudência, no entanto, sustenta os municípios são entes feederativos (federalismo de 3º grau). Possuem os municípios, autonomia política, administrativa e financeira, sendo detentores das capacidades acima delineadas para os Estados, guardadas as peculiaridades. Distrito Federal. Antes considerado uma autarquia territorial, foi erigido pela CF/88 à condição de pessoa política, integrante da federação. Sua autonomia está consagrada no art. 32 da CF, que lhe confere as capacidades de auto-organização, autogoverno, autolegislação e autoadministração, embora sofram limitações em questões essenciais, como as dos incisos XIII e XIV do art. 21 (ex. compete a União organizar e manter o TJ/DFT, MP/DFT e DP/DFT). A competência legislativa do DF compreende as que são atribuídas aos Estados e Municípios, o Poder Legislativo é exercido pela Câmara Legislativa (no regime anterior o era pelo Senado Federal), o Poder Executivo pelo Governador e o Poder Judiciário na verdade não é dele, mas da União. Territórios. São pessoas jurídicas de direito público interno com capacidade administrativa e de nível constitucional, ligadas à União e tendo nela a fonte de seu regime jurídico infraconstitucional. Não são pessoas políticas (não legislam), possuindo mera capacidade administrativa (natureza jurídica de meras autarquias ou descentralizações administrativo- territoriais). Não integram a federação. Compete ao Congresso Nacional disciplinar sua atividade e organização administrativa e judicial, e é o governador escolhido pelo Presidente da República. Conforme Novelino, “a criação de territórios, disciplinada pela LC n. 20/74 e recepcionada parcialmente pela CF/88, poderá ocorrer em duas hipóteses. A primeira pelo desmembramento de parte de Estado-membro já existente, no interesse da segurança nacional. A segunda quando a União nela executar plano de desenvolvimento econômico ou social, com recursos superiores, pelo menos, a um terço do orçamento de capital do Estado atingido pela medida. A criação de território federal a partir do desmembramento de um Estado necessita de aprovação da população interessada, mediante a realização de plebiscito (CF, art. 18, §3⁰). A CF/88 transformou os territórios existentes em Estados, à exceção de Fernando de Noronha, que foi reincorporado a Pernambuco (ADCT, artigos 14 e 15)”. II. Concepções e características O Estado Federal expressa um modo de ser do Estado (daí se dizer que é uma forma de Estado) em que se divisa uma organização descentralizada, tanto administrativa quanto politicamente, erigida sobre uma repartição de competências entre o governo central e os locais, consagrada na Constituição Federal, em que os Estados federados participam das deliberações da União, sem dispor do direito de secessão. No Estado Federal, de regra, há uma Suprema Corte, com jurisdição nacional (lembrete: STF e STJ são órgãos de superposição) e é previsto um mecanismo de intervenção federal, como procedimento assecuratório da unidade física e da identidade jurídica da Federação. A soberania é atributo do Estado Federal como um todo representado pela República Federativa do Brasil. Os Estados-membros dispõem de autonomia, que importa, necessariamente, a descentralização administrativa e política. Eles não apenas podem, por suas próprias autoridades, executar leis, como também lhes é reconhecido elaborá-las. Disso resulta na percepção de que no Estado Federal clássico há uma dúplice esfera de poder normativo – a da União e a do Estado-membro - sobre um mesmo território e sobre as pessoas que nele se encontram. No Brasil, temos uma tríplice esfera normativa, já que os municípios também podem 7 legislarsobre assuntos de interesse local (ex.: competência dos municípios para legislar, fundamentadamente, sobre direito ambiental, conforme decidido pelo STF no ARE 748206 AgR/SC, DJ 14.03.17 – Info 857). A autonomia política dos Estados membros abrange também a capacidade de dotar-se de uma Constituição própria (lembrete: Poder Constituinte Derivado Decorrente), sujeita embora a certas diretrizes impostas pela Constituição Federal. O federalismo é uma sociedade de Estados autônomos com aspectos unitários porque é, enquanto Estado Federal, uma unidade territorial, unidade de representação e unidade nacional. Outra característica do federalismo é a de que os Estados-membros tenham voz ativa na formação da vontade da União – vontade que se expressa sobretudo por meio das leis. Para esse fim, historicamente foi concebido o Senado Federal, com representação paritária, em homenagem ao princípio da igualdade jurídica dos Estados-membros. Esses Estados participam da formação da vontade federal, na mesma linha, quando são admitidos a apresentar emendas à Constituição Federal. Na medida em que os Estados- membros não são soberanos, é comum impedir que se desliguem da União, no que o Estado federal se distingue da confederação, em que se preserva o direito a secessão. Como regra inexiste, portanto, no federalismo, o direito de secessão. Os conflitos que venham a existir entre os Estados-membros ou entre qualquer deles com a União, assumindo feição judiciária, são levados ao deslinde de uma corte nacional. Falhando a solução judiciária ou não sendo o conflito de ordem jurídica meramente, o Estado dispõe do instituto da intervenção federal, para se autopreservar da desagregação, bem como para proteger a autoridade da Constituição Federal. III. Classificações e sistemas de repartições de competência. A distribuição (ou repartição) constitucional de poderes (ou de competências) é um dos pontos mais importantes no estudo do Estado Federal. Consoante José Afonso da Silva, o princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades federativas é o da predominância de interesses, pelo qual cabe à União as matérias e questões de predominante interesse geral, nacional; aos Estados- membros cabem as matérias e assuntos de predominante interesse regional; e aos municípios concernem os assuntos de interesse local. Só que atualmente essa distinção não é fácil de ser feita. A regra principal da federação, consoante Celso Ribeiro Bastos, é a seguinte: nada será exercido por um poder mais amplo quando puder ser decidido pelo poder local, pois os cidadãos moram nos municípios, e não na União. Dada a existência de ordens central e parcial, a repartição de competência (e de rendas) entre essas esferas, realizada pela Constituição Federal, favorece a eficácia da ação estatal. O modo de repartição indica que tipo de federalismo é adotado. A concentração de competências no ente central aponta para um modelo centralizador (centrípeto); uma opção pela distribuição mais ampla de poderes em favor dos Estados-membros configura um modelo descentralizador (centrífugo). Havendo uma dosagem contrabalançada de competências, fala-se em federalismo de equilíbrio. Outra classificação dos modelos de repartição cogita das modalidades de repartição horizontal e repartição vertical. Na primeira não se admite concorrência de competência entre os entes federados. Esse modelo apresenta três soluções possíveis para o desafio de distribuição de poderes entre as órbitas do Estado Federal. Uma delas efetua a enumeração exaustiva da competência de cada esfera da Federação; outra discrimina a competência da União deixando aos Estados- membros os poderes reservados (ou não enumerados); a última discrimina os poderes dos Estados-membros, deixando o que restar para a União. No Brasil, a União e os municípios possuem competências enumeradas, enquanto os Estados-membros possuem competências residuais. Na repartição vertical de competências, realiza-se a distribuição da mesma matéria entre 8 a União, os Estados- membros e, eventualmente, os municípios. Essa técnica, no que tange às competências legislativas, deixa para a União os temas gerais, os princípios de certos institutos, permitindo aos Estados-membros afeiçoar a legislação às suas peculiaridades, além de autorizar os municípios a legislar sobre assuntos de interesse local. A técnica da legislação concorrente estabelece um verdadeiro condomínio legislativo e é adotada no art. 24 da CRFB. Quanto aos critérios de distribuição de competência, tem-se que o Brasil adota um sistema complexo, que busca realizar o equilíbrio federativo por meio de uma distribuição que se fundamenta na técnica de enumeração dos poderes da União (21 e 22), com poderes remanescentes para os Estados (25, §1º) e poderes definidos indicativamente para os Municípios (30), mas combina com essa reserva de campos específicos (nem sempre exclusivos, mas às vezes apenas privativos) possibilidades de delegação (22, parágrafo único), áreas comuns em que se preveem atuações paralelas da União, Estados, DF e Municípios (23), e setores concorrentes entre a União e Estados, em que a competência para estabelecer políticas, diretrizes e normas gerais cabe à União, enquanto que se defere aos Estados e até os Municípios a competência suplementar. III. Direito comparado No direito comparado, as formulações constitucionais em torno da repartição de competências podem ser associadas a dois modelos básicos – o clássico, vindo da Constituição norte-americana de 1787, e o modelo moderno, que se seguiu à Primeira Guerra Mundial. O modelo clássico conferiu à União poderes enumerados e reservou aos Estados-membros os poderes não especificados. Para mitigar os rigores dessa fixação taxativa, nos EUA elaborou-se a doutrina dos “poderes implícitos”. O modelo moderno responde às contingências da crescente complexidade da vida social, exigindo ação dirigente e unificada do Estado, em especial para enfrentar crises sociais e guerras. Isso favoreceu uma dilatação dos poderes da União com nova técnica de repartição de competências, em que se discriminam competências legislativas exclusivas do poder central e também competência comum ou concorrente, mista, a ser explorada tanto pela União como pelos Estados-membros. Prova oral – 26º CPR: Em termos de direito comparado, nosso sistema se aproximaria mais de que sistema jurídico internacional? Direito norte-americano, alemão? Você já ouviu a expressão “federalismo dual”? O dual se coloca muito mais, na atualidade, em contraposição ao cooperativo. O dual significa uma distribuição rígida de competências... Em termos de federalismo cooperativo, o artigo 24 da Constituição, ele encerra uma modalidade exatamente de cooperação no âmbito legislativo. Você poderia me dizer como é que funciona esse sistema? E os municípios, tem essa competência? Você conhece o entendimento do Supremo a respeito da possibilidade ou não de os Estados legislarem, no âmbito dessa competência legislativa concorrente normas mais protetivas, de meio ambiente, saúde, do que as normas gerais editadas pela União? Prova oral – 27º CPR: Falar sobre federalismo e pluralismo. 3A. Divisão de poderes. Conceito e objetivos. História. Independência e harmonia entre poderes. Mecanismos de freio e contrapesos. Oswaldo Costa I. Noções Gerais 9 O tema da divisão dos poderes está relacionado com a Teoria Geral do Estado e com o Direito Constitucional, já que cabe à Constituição estabelecer as normas estruturais de um Estado. Dispõe o artigo 2º da Constituição Federal que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Nesse contexto, a Constituição detalha, com especial menção ao Título IV, a organização dosPoderes Executivo, Legislativo e Judiciário, sem prejuízo de outras regras constitucionais que tratam do tema ao longo do corpo normativo constitucional. É oportuno lembrar que a divisão dos poderes possui íntima relação com o constitucionalismo moderno e com os direitos fundamentais, pois o artigo 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 já dizia que “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”. II. Conceito Para ser real o respeito da Constituição e dos direitos individuais por parte do Estado, “(...) é necessário dividir o exercício do poder político entre órgãos distintos, que se controlam mutuamente. A cada um desses órgãos damos o nome de Poder: Poder Legislativo, Poder Executivo e o Poder Judiciário. A separação dos Poderes estatais é elemento lógico essencial do Estado de Direito”. (SUNDFELD, p. 42, 2003). III. Objetivos Analisando a Constituição Portuguesa, afirma José Joaquim Gomes Canotilho que “(....) é legítimo afirmar-se que o modelo de separação constitucionalmente consagrado visa, em princípio, identificar o órgão de decisão ajustado, estabelecer um procedimento de decisão justo e exigir um fundamento materialmente legítimo para as tomadas de decisão” (p. 708, 1993). IV. História A divisão funcional de poderes remonta a Aristóteles, em “Política”, que identificou três funções básicas exercidas pelo poder político: assembleia-geral, corpo de magistrados e corpo judiciário; hoje equivalentes às funções legislativa, administrativa e jurisdicional. Respectivamente, (a) inovar a ordem jurídica por meio de normas gerais, impessoais e abstratas; (b) atuar concreta e individualizadamente, excetuada a função jurisdicional, por meio das funções de governo e de administração; e (c) resolver conflitos intersubjetivos imparcial e desinteressadamente, com potencial de definitividade. A distinção de funções, que remonta à Antiguidade, prosseguiu durante a Idade Média e a modernidade. Aqui já com Grotius e Puffendorf, Bodin e Locke, antes de Montesquieu. No absolutismo, a especialização funcional não correspondia a independência de órgãos especializados. A par da experiência parlamentarista inglesa, que não correspondia exatamente à uma separação de poderes, foi a obra de Montesquieu, de 1746, que sistematizou a separação orgânica do poder como técnica de salvaguarda da liberdade “dos modernos” (concepção burguesa-liberal). Todo homem que detém o poder tende a dele abusar, e o abuso vai até onde se lhe deparam limites; e apenas o poder contém o poder. Então, a separação orgânica do poder consiste em se atribuir cada uma das funções estatais básicas a um órgão (corpo funcional) distinto, separado e independente dos demais. Combina-se a especialização funcional com a independência orgânica. 10 No liberalismo, a separação de funções entre os órgãos independentes deveria ser bastante rígida, mas mesmo Montesquieu já previa que o constante movimento dos órgãos os compele a atuar em concerto, harmônicos, e as faculdades de estatuir (p.ex., aprovar um projeto de lei) e de impedir (veto presidencial) são prenúncios dos mecanismos de freios e contrapesos desenvolvidos posteriormente. A rígida separação de poderes do liberalismo foi inicialmente inserida nas constituições das ex-colônias inglesas na América, que seguiam a Declaração de Direitos de Virginia, de 1776. Após, constituição dos EUA, art. 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e constituições francesas seguintes, espalhando- se pelo “ocidente”. Benjamin Constant teorizou um quarto poder neutro, que faça com os demais o que o poder judiciário faz com os indivíduos, que seria exercido pelo rei. A 1ª constituição do Brasil criou o “poder moderador” do Imperador; porém, distorceu a teoria ao atribuí-lo também ao executivo (para Constant, o poder neutro não poderia jamais coincidir com um dos demais). 5. Independência e harmonia entre poderes. Mecanismos de freios e contrapesos Hoje, existe uma tendência de se considerar que a teoria da separação dos poderes construiu um mito. Este mito consistiria em um modelo teórico redutível à teoria dos três poderes rigorosamente separados: o executivo (o rei e os seus ministros), o legislativo (l.a câmara e 2.a câmara, câmara baixa e câmara alta) e o judicial (corpo de magistrados). Cada poder recobriria uma função própria sem qualquer interferência dos outros. Foi demonstrado por ElSENMANN que esta teoria nunca existiu em Montesquieu, como já mencionado acima. A interdependência é, porém, uma interdependência dinâmica necessariamente atenta aos aspectos político-funcionais do sistema. Consolida-se a ideia de balanceamento entre poderes, na medida em que há uma divisão de funções do poder, de forma não exclusiva (não-incomunicável), entre órgãos relativamente independentes entre si, que devem atuar em cooperação, harmonia e equilíbrio. A independência dos poderes significa que: a) a investidura e a permanência das pessoas num dos órgãos não dependem da confiança nem da vontade dos outros; b) no exercício das atribuições que lhe sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem necessitam de sua autorização; c) na organização dos respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e legais. Por outro lado, a harmonia entre os poderes primeiramente se verifica pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito. Ainda, nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutas. Há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados (SILVA, p. 110, 2005). A divisão de poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função; assim, às assembléias (congresso, câmaras, parlamento) se atribui a função legislativa; ao executivo, a função executiva; ao judiciário, a função jurisdicional; 11 (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação. 14A. Democracia. Conceito. História. Fundamentos. Democracia representativa e participativa. Teorias deliberativa e agregativa da democracia. Instrumentos de democracia direta na Constituição de 1988. Gabriel Dalla 10/09/18 I. Democracia. Conceito. História. A democracia é a busca da legitimação do exercício do poder pelo consentimento dos governados, consoante D. Sarmento. A expressão democracia vem do grego “governo do povo”, sendo um conceito surgido no período axial da Grécia antiga (começa do século 6 A.C.). Na Grécia, ideia essencial da democracia era de atribuição de igual capacidade para que todos os cidadãos participassem das deliberações tomadas em praça pública (ágora). Com o advento do império romano, esta ideia ficou esquecida e veio a ser retomada com o iluminismo por alguns filósofos, em especial Rousseau (O Contrato Social – defendia o modelo grego), o qual não concebe a legitimidade da sociedade política através de representação delegada, pois o termo democracia é por ele empregado como um governo no qual todas as leis são feitas por todo o povo reunido em assembleias gerais. Norberto Bobbio leciona que o modo de exercer a democracia foi alterado na passagem da democracia dos antigos para a democracia moderna.Os autores (John Jay; Alexander Hamilton e James Madison) do livro “Federalista” e os constituintes franceses reconheciam a democracia representativa como o único governo popular possível num grande Estado. O abade Emmanuel Joseph Siéyes estabelece a ideia de representação nacional e sua influência balizará as fases inicial e final da Revolução Francesa e seu livro “Qu’est-cequele Tiers État?” (O que é o terceiro estado?), para ele o princípio de toda soberania reside essencialmente na nação. II. Fundamentos. A questão tocante aos fundamentos da democracia é absolutamente complexa e não admite resposta única. Depende, em verdade, da teoria que se adote, razão pela qual apenas se esboça uma proposta sobre o tema. Kelsen funda a democracia em dois postulados racionais: a liberdade e a igualdade; sendo a liberdade congênita de cada membro do grupo social, o que se apresenta mais lógico é que os homens devam ser comandados por eles próprios e formem por meio do processo democrático a Bobbio sustenta que a democracia caracteriza-se pela composição pactuada de um conjunto de regras fundamentais que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos. Tais regras são denominadas por Bobbio como “regras universais processuais”. Enquanto a liberdade é um valor para os indivíduos compreendidos isoladamente, a igualdade é um valor para os indivíduos compreendidos na relação social. Assevera que a regra da maioria permite que cada cidadão Para Habermas, os destinatários das normas são concomitantemente autores de seus direitos na medida em que tomam parte da regulamentação de suas próprias condutas. Nesse foco, o princípio do discurso habermasiano deve ser interpretado como princípio da democracia. Por meio da teoria do discurso, Habermas afirma que o direito somente tem 12 vontade do Estado. Assevera que, efetivamente, na democracia o que vigora para a tomada de decisões é o princípio majoritário. possua direito de voto proporcional à sua posição no jogo democrático, o que implica, em certos casos, a desigualdade de votos quando aplicada a regra da maioria para decisões coletivas legitimidade quando surge da formação comunicativa da opinião e do assentimento dos cidadãos que, em uma relação de igualdade, possuem os mesmos direitos III. Democracia representativa e participativa. Teorias deliberativa e agregativa da democracia. A democracia representativa é a expressão que significa genericamente que as deliberações coletivas não são tomadas diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade. Segundo Daniel Sarmento esta democracia está em crise porque há uma distância enorme entre o representado e o representante. A democracia participativa é um modelo de exercício de poder em que a população participa ativa e diretamente na tomada das principais decisões políticas. A teoria da democracia agregativa dá-se quando a decisão acerca de uma matéria constitucional resulta de uma prévia concepção da solução adotada por cada qual dos legitimados. O processo de decisão é meramente quantitativo, de maneira que são colhidas as opiniões existentes e escolhida a “correta” em razão dos números de votos. Ou seja, na democracia agregativa, os atores possuem uma concepção prévia, a qual é impassível de alteração por debate, mas meramente computada para fins de decisão final. A teoria da democracia deliberativa surge como crítica à agregativa. No processo de tomada de decisão, as decisões pessoais são apenas pontos de partida; a decisão é verdadeiro processo de discussão, com exposição e defesa das teses contrárias, em que os participantes pretendem e se permitem convencer e serem convencidos. O consenso é o ideal utópico, porém a deliberativa se satisfaz com a profunda discussão da temática e a obtenção – pelo voto, por exemplo – de decisão quando do atingimento de um desacordo moral razoável. A concepção democrática deliberativa está muito ligada à concepção procedimental de Jugen Habermas. IV. Instrumentos de democracia direta na Constituição de 1988. Plebiscito: consulta que visa à aprovação popular de políticas públicas e institucionais previamente e é regulamentado no artigo 14, I, no 18, §§ 3° e 4°, e no 49, XV, da Constituição Federal. Em 1993, a população decidiu sobre duas matérias precípuas à organização do Estado brasileiro e sua forma de governo, optando à época pela República e o Presidencialismo. Referendo: consulta direta à população acerca da aprovação ou não de um projeto legislativo ou administrativo já elaborado. É regulado pelos artigos 14, II e 49, XV. Iniciativa popular: apresentação de projeto de lei por parte da população. É regulada no artigo 14, III, no 27, § 4°, no 29, XIII e no 61, § 2°. Observação: malgrado seja sempre pontuado que houve 4 projetos de Lei de iniciativa popular (8.930/94, 9.840, 11.124 e LC 135/2010), é importante frisar que, formalmente, a sua tramitação não se deu procedimentalmente como tal. Os referidos projetos de lei foram “adotados” por parlamentares, porque a Câmara dos Deputados sustentava a ausência de estrutura para checar as assinaturas. 13 2. FILOSOFIA POLÍTICA 2.1 Liberalismo igualitário, comunitarismo, procedimentalismo e republicanismo. Suas projeções no domıńio constitucional. (11.a) 2.2 Pluralismo jurıd́ico. As fontes normativas não estatais. (25.a) 11A. Liberalismo igualitário, comunitarismo, procedimentalismo e republicanismo. Suas projeções no domínio constitucional. Daniel Medeiros Santos I) Teoria da Constituição e filosofia constitucional: A teoria da Constituição traz um viés descritivo: descreve realidades constitucionais. A filosofia constitucional tem pretensões prescritivas: busca justificar racionalmente o modelo mais adequado de Constituição, isto é, não se volta precipuamente ao exame dos papéis desempenhados pelas constituições, mas busca propor os modelos considerados mais justos para a organização do Estado e da sociedade. Todavia, não há como separá-las de forma estanque: propostas de teoria da Constituição também podem possuir viés prescritivo, e filosofias constitucionais podem ser efetivamente praticadas em determinados contextos. Para Sarmento, deve haver combinação entre descrição e prescrição, o que envolve a ideia de “reconstrução”: se reflete sobre os elementos constitucionais existentes, para aproximar o sistema constitucional do ideário do constitucionalismo democrático e igualitário. II) Liberalismo igualitário (John Rawls): Podemos falar em liberalismo na esfera política, atinente às liberdades existenciais, e em liberalismo na esfera econômica, atinente à rejeição da intervenção estatal no mercado e defesa da livre-iniciativa. O liberalismo sob o viés político pode estar ou não atrelado ao econômico. No liberalismo igualitário (Rawls e Dworkin), propugna-se a defesa das liberdades públicas, mas, ao mesmo tempo, são endossadas enérgicas intervenções no campo econômico, voltadas à promoção da igualdade substancial. São justificadas, portanto, medidas redistributivas, favorecendo os mais pobres. Rawls (em “Uma Teoria da Justiça”) propõe dois princípios: i) o das liberdades públicas; e ii) o da igualdade substancial. O primeiro teria prioridade sobre o segundo, mas nele não estão inseridas as liberdades econômicas, o que possibilita a adoção de medidas redistributivas. Para o autor, o primeiro princípio de justiça deveria ser inserido na Constituição, ao passo que o segundo deveria ser realizado no plano legislativo. Na visão do liberalismo igualitário,os juízes podem e devem atuar na defesa de princípios substantivos, de forte conteúdo moral, limitando a deliberação das maiorias sociais. Mas a atuação dos juízes deve se limitar ao campo dos direitos individuais, não podendo decidir sobre a conveniência de políticas públicas. → Uma possível projeção do liberalismo igualitário nas discussões constitucionais brasileiras é a da desconstrução da ideia da supremacia do interesse público sobre interesses particulares, por ser esta uma visão utilitarista. 14 Outra projeção é a que discute a extensão e intensidade da exigência de separação entre Estado e religião, à luz da laicidade (Sarmento). A visão liberal igualitária enfatiza a exigência de absoluta neutralidade estatal no campo religioso, em nome da garantia do igual respeito às pessoas de todas as crenças, ateus e agnósticos, enquanto visões mais comunitaristas, ao valorizarem as tradições na interpretação constitucional, podem ser mais lenientes em relação às medidas dos poderes públicos que favoreçam religiões hegemônicas ou majoritárias, notadamente o catolicismo. III Comunitarismo: Os “comunitaristas” opõem críticas ao liberalismo, que veria no indivíduo um ser desenraizado (unencumbered self), desprezando o fato de que as pessoas nascem em comunidades com cosmovisões compartilhadas, o que forja as suas identidades. Essas cosmovisões não estão à disposição das pessoas – a ênfase no indivíduo, dada pelo liberalismo, é substituída no comunitarismo pela valorização da comunidade. O Estado deve abandonar a postura de neutralidade e reforçar esses aspectos socioculturais existentes na comunidade. São aceitas restrições às liberdades individuais em prol de valores socialmente compartilhados. Vale ressaltar que o comunitarismo não rejeita o pluralismo: há, aqui, somente uma mudança de perspectiva, pois enquanto o liberalismo valoriza o pluralismo a partir das várias visões individuais, o comunitarismo o faz a partir das várias concepções culturais de cada comunidade. O comunitarismo pode favorecer posições conservadoras, pela ênfase dada às tradições e valores compartilhados, mas não se pode alcunhá-lo terminantemente de conservador – há pensadores comunitaristas também no campo progressista, que propõem uma sociedade mais inclusiva, à luz do multiculturalismo e do direito ao reconhecimento (Charles Taylor). Um grande exemplo de situação em que o comunitarismo justifica a preservação de práticas culturais adotadas por grupos minoritários ocorreu em Quebec, Canadá, através de legislação que proibiu famílias francófonas de colocarem os seus filhos em escolas de língua inglesa. No Brasil, para proteger o frevo, houve proibição do Axé Music no carnaval de Olinda. Sob a ótica liberal, essa medida seria inconstitucional; sob a ótica comunitarista, estaria justificada, para proteger manifestações culturais particulares. → Para Sarmento, por mais que a CRFB/88 possua aberturas para o comunitarismo (i.e., proteção da cultura e consagração dos direitos transindividuais), a ênfase dada à proteção das liberdades públicas não autoriza que se diga ter ela aderido à filosofia comunitarista. IV) Procedimentalismo: A distinção entre procedimentalismo e substancialismo repercute em dois grandes contextos: o papel da Constituição na sociedade e o espaço adequado da jurisdição constitucional. No 1º caso, os procedimentalistas entendem que o papel da Constituição é o de definir as regras do jogo democrático, o que inclui a defesa de direitos indispensáveis para o funcionamento da democracia (liberdade de expressão, i.e.). Decisões substantivas, que incluam forte carga moral, não devem estar incluídas nas Constituições. Já os substancialistas sustentam 15 a legitimidade dessas decisões substantivas enfeixadas nas Constituições, em especial quanto aos direitos fundamentais. No 2º caso, os procedimentalistas defendem um papel autocontido da jurisdição constitucional, salvo quando estiver em jogo a defesa dos pressupostos da democracia (Habermas). Já os substancialistas entendem que a jurisdição constitucional pode adotar um papel mais ativo mesmo em matérias que envolvam forte carga substancial (i.e., aborto, como ocorreu nos casos “Roe v. Wade” – EUA – e “R v. Morgentaler” – Canadá). Para Habermas, a legitimidade do Direito não se funda em concepções materiais, mas no processo democrático de produção normativa, que deve ocorrer em condições equânimes de deliberação pública (democracia deliberativa). Critica a visão da Constituição como uma ordem de valores, adotada pelo BVerfge. Uma das grandes premissas do pensamento habermasiano é a de que a legitimidade do Direito, nas sociedades plurais contemporâneas, não tem como se fundar em nenhuma concepção material. Para Habermas, o contexto do pluralismo faz com que a fonte de toda a legitimidade só possa repousar no processo democrático de produção normativa, o qual deve garantir condições equânimes de inclusão na deliberação pública para todos os cidadãos. O Direito legítimo é aquele em que os cidadãos sejam não apenas os destinatários das normas jurídicas, mas possam enxergar-se também como os seus coautores. Sarmento opõe objeções ao procedimentalismo: i) ele não se mostra suficiente para assegurar direitos igualmente importantes, como, i.e., a privacidade e o direito à saúde; ii) havendo várias concepções diferentes de democracia, a escolha de uma e não de outra traria, em si, carga substancialista; e iii) a CRFB/88, goste-se ou não, é substancialista. V) Republicanismo: No republicanismo, o cidadão não tem apenas direitos, mas também deveres em relação à comunidade política. Dá-se ênfase às virtudes republicanas, com estímulo à participação ativa do cidadão na vida da comunidade. Há certa aproximação do republicanismo com o comunitarismo, à medida que em ambos há a crítica à visão atomizada própria ao liberalismo. Se distinguem, contudo, no fato de que o foco do comunitarismo é o respeito às tradições e valores da comunidade, ao passo que o do republicanismo é a participação do cidadão na coisa pública. O republicanismo contemporâneo dá grande ênfase à igualdade. Perante à res publica, todos devem ser tratados com igual respeito. Entende-se que o surgimento de uma vontade geral na sociedade depende de certo nível de igualdade econômica. Por essa razão, os republicanos de hoje costumam defender os direitos sociais e o Estado do Bem-Estar Social. Ademais, sob este viés a liberdade não é mais vista como ausência de constrangimento à ação, mas como não-dominação, que protege o indivíduo contra arbitrariedades (leis não são essencialmente impedimentos à liberdade, antes a constituem). No Brasil, o republicanismo tem sido associado, i.e., à defesa da moralidade na vida pública, ao combate à confusão entre o público e o privado e à luta contra a impunidade dos poderosos. A CRFB/88 traz vários elementos que convergem com o ideário republicano: i) voto não só como direito, mas como dever cívico; ii) participação direta através de plebiscito, referendo e iniciativa popular; iii) direito de petição e ação popular. Para Sarmento, certas vertentes do republicanismo podem assumir um viés autoritário, quando impõem virtudes cívicas. Em seu nome, não deve haver a asfixia do direito de cada 16 pessoa de eleger os seus próprios planos de vida e de viver de acordo com eles, desde que não ofenda direitos alheios. 25A. Pluralismo jurídico. As fontes normativas não estatais. Valdir Monteiro Oliveira Júnior Fonte: Graal 28º CPR. O Direito sob o Marco da Plurietnicidade / Multiculturalidade, Deborah Duprat. O Estado Pluriétnico, Deborah Duprat. Interculturalidad Crítica y Pluralismo Jurídico, Catherine Walsh. Legislação: art. 8º e 9º, Convenção 169 daOIT; art. 215, 216 e 231, CRFB 88. I. Conceito de pluralismo jurídico Plurarismo jurídico é o reconhecimento de outros lugares de produção jurídica além do direito estatal. Portanto, com o pluralismo jurídico supera-se o monismo legal, o qual reduz o direito ao direito estatal, totalizando as ideias-concepções de direito e justiça (Catherine Walsh). Em outras palavras, pluralismo jurídico é o reconhecimento de fontes normativas não estatais, compondo várias esferas de direito, por exemplo, justiça indígena, afro-descendente, etc; são as diversas visões de justiça em um mesmo território, a partir das novas configurações constitucionais e da internalização dos tratados internacionais de direitos humanos. A interculturalidade funcional se limita a incluir determinadas demandas dos grupos historicamente discriminados na sociedade; já a interculturalidade crítica é a construção de relações entre grupos com o objetivo de transformar as relações de poder. Ambas são prescritivas, o que as diferencia do pluralismo jurídico, que é descritivo (Catherine Walsh, em Seminário de 2010 da ESMPU, com Deborah Duprat presidindo a sessão). II. Evolução histórica do pluralismo jurídico Com o Iluminismo e Kant destaca-se a filosofia da razão, que busca subsumir o real a certas categorias e, portanto, persegue a unidade, as grandes sínteses homogeneizadoras. Esse racionalismo idealista fundamenta a noção de Estado-nação nos termos definidos pela Revolução Francesa: uma identidade cultural e integradora, em determinado espaço e em comunidade linguística (“O que é o Terceiro Estado?”; Sieyès). Neste contexto, o direito era uma ferramenta para que a identidade do povo parecesse natural e originária. Nietszche e Heidegger começam a questionar esse racionalismo idealista, pois ele esquematizava o conhecimento, buscando a totalização, o que invisibilizava as diferenças. Hobsbawm, nesta mesma linha, desconstrói a ideia de nação como entidade social originária, afirmando que o nacionalismo na verdade era uma invenção, e muitas vezes obliterava culturas preexistentes. Essa crítica chegou ao Direito: várias classificações binárias como homem/mulher, adulto/criança, branco/outras etnias, proprietário/despossuído na verdade representavam juízo de valor e não meras classificações neutras. A incapacidade relativa da mulher ou a tutela dos índios eram exemplos dessa valoração. Assim, o sujeito de direito abstrato e universal era uma falácia na busca pela totalização. O plano jurídico era pautado, na realidade, pelo sujeito de direito branco, masculino, adulto, proprietário, etc. Os vários movimentos reivindicatórios, como o feminismo, começaram a expor e a alterar essa face hegemônica do Direito, que acabou sendo superada pela ideia de que toda elaboração e aplicação jurídica devem levar em conta que o Estado é pluriétnico e multicultural. III. Fundamentos do pluralismo jurídico no Brasil 17 A Constituição Federal de 1988 representa grande clivagem em relação ao paradigma anterior, pois protege expressamente os diversos modos de criar, fazer e viver dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (art. 216, caput e inc. II, CF). Essa proteção abrange, inclusive, a posse/propriedade da terra tradicionalmente ocupada (art. 231, índios, art. 68 ADCT, quilombolas, CF). Deborah Duprat destaca a identidade entre essa nova conformação constitucional e a teoria de Wittgenstein1, defensor da ideia de que o significado de uma palavra decorre do uso de que dela se faz e os jogos de linguagem e as formas de vida são extremamente variados. Daí por que a linguagem é convencional e diferente nas distintas culturas. Ou seja, o pluralismo reconhecido na Constituição também o é na teoria de Wittgenstein, ao tratar da linguagem. A conclusão é que a compreensão de mundo depende da linguagem de cada grupo. Nesse contexto, é possível fundamentar o pluralismo jurídico (i.e. o reconhecimento de fontes normativas não estatais) nos seguintes dispositivos da Constituição: a) o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional (art. 215, §1º, CF), estabelecendo Plano Nacional de Cultura que valorize a diversidade étnica e regional (art. 215, §3º, V, CF). Tal proteção e valorização, necessariamente, abrange o reconhecimento da normatividade própria de tais grupos. b) são reconhecidos aos índios sua organização social e costumes (art. 231, caput, CF) O pluralismo jurídico também tem fundamento na Convenção 169 da OIT: a) na área cível, ao se aplicar a legislação nacional deverão ser levados em consideração os costumes dos índios e povos tribais, desde que compatíveis com direitos fundamentais e direitos humanos (art. 8º, 1 e 2, OIT 169). Isso, no entanto, não deve impedir que os membros desses povos exerçam direitos e assumam obrigações reconhecidos para todos os cidadãos (art. 8º, 3, OIT 169). b) na área penal, deverão ser respeitados os métodos de que os índios e povos tribais se valem para reprimir os delitos praticados por seus membros, desde que compatíveis com o sistema jurídico nacional e os direitos humanos (art. 9º, 1, OIT 169). Quando a reprimenda não for aplicada nestes termos, ainda assim os tribunais deverão levar em conta os costumes desses povos ao se pronunciarem sobre questões penais que os envolvam (art. 9º, II, OIT 169). IV. Efeitos práticos do pluralismo jurídico Por conta do reconhecimento do pluralismo jurídico podem-se vislumbrar ao menos três consequências práticas: a) Quanto à concretização de direitos: toda a legislação, e não apenas as especificamente destinadas a comunidades tradicionais, deve ser mobilizada para assegurar o exercício efetivo de direitos étnicos e culturais; b) Quanto à hermenêutica: a aplicação do direito nacional requer leitura que leve em conta as diferenças entre os diversos grupos formadores do Estado. O operador do direito somente conseguirá decidir adequadamente se compreender previamente o sentido da norma revelado pela própria comunidade tradicional, que decorre do contexto de seu uso por esses agentes. A 1 Esta observação pode parecer um pouco fora de contexto, mas como se trata de autor de predileção da examinadora, citada por ela em diversas palestras, achei interessante incluir esse trecho. 18 atuação do Estado deve ser antecedida por uma “tradução”, feita pela mediação antropológica, que torne o outro “inteligível”. c) Quanto à solução de controvérsias: devem ser utilizadas as formas de resolução de conflitos tradicionais dos grupos minoritários, assim como seu ordenamento jurídico, sempre que possível Exemplos: a) em ações possessórias contra índios deve ser levada em conta a diferença na definição de “posse” entre as partes contrapostas; há comunidades que creem que a mera permanência no território seria “posse”, motivo pelo qual mesmo desalojados procuram permanecer na área, inclusive trabalhando nas roças do homem branco. b) os yanomami acreditam que a “vida” se inicia apenas depois que a mãe, sozinha na floresta, pega em seus braços a criança recém-nascida. Desta forma, não seria infanticídio se essa mãe a abandonasse na floresta e não retornasse com ela à aldeia. c) já houve Tribunal do Júri que não aplicou pena a indígena que matara outro indígena, pelo fato de que ele já fora julgado e condenado segundo os costumes da comunidade. d) os índios Kaingang punem certas condutas com a pena de transferência (espécie de banimento), que incide não apenas no indivíduo, mas também na sua família. Tal medida deve ser respeitada, na medida em que for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos(Questão 93 de Direito Penal do 26º CPR, elaborada por Ela Wiecko). 3. CONSTITUCIONALISMO 3.1 Constitucionalismo: trajetória histórica. (1.a) 3.2 Constitucionalismo liberal e social. Constitucionalismo Britânico, francês e norte-americano. (1.a) 3.3 A evolução do constitucionalismo brasileiro: constituições de 1824, 1891, 1937, 1946, 1967, 1969. A ditadura militar e os atos institucionais. A assembléia constituinte de 1987/1988. (14.c) 3.4 Neoconstitucionalismo. Constitucionalização do Direito e judicialização da polıt́ica. (24.a) 1A. Constitucionalismo: trajetória histórica. Constitucionalismo liberal e social. Constitucionalismo britânico, francês e norte-americano. Renan Lima CONCEITO: De acordo com SARMENTO, o constitucionalismo “é o movimento político que propugna pelo estabelecimento de uma Constituição que limite e organize o exercício do poder político”. Na mesma linha, CANOTILHO sustenta que o constitucionalismo “é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade”. Esse conceito de constitucionalismo transporta, na visão de CANOTILHO, um claro juízo de valor, pois é, no fundo, “uma teoria normativa da política, tal como a teoria da democracia ou a teoria do liberalismo”. Assim, conclui CANOTILHO que o constitucionalismo moderno representa “uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos”. CARACTERÍSTICAS ESSENCIAIS: i) limitação do poder estatal (sobretudo pela ideia de separação dos poderes); e ii) instituição de direitos e garantias fundamentais. Neste sentido, eis o art. 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”. Para Charles Howard McIlwain, a característica mais autêntica do constitucionalismo é “a limitação do governo pelo direito”. 19 TRAJETÓRIA HISTÓRICA: Embora o surgimento das Constituições seja considerado um fenômeno relativamente recente, pois as primeiras manifestações formais têm origem no final do século XVIII com as “Revoluções Liberais”, não se pode afirmar que a ideia de um conjunto de normas que discipline a atuação do Estado seja exclusiva da modernidade. De fato, tal como afirmou Ferdinand Lassale, todo ente estatal possuiu ao longo de sua trajetória uma Constituição real e verdadeira, sendo que o privilégio atribuído aos períodos mais recentes é o do nascimento de Constituições escritas em folhas de papel. A propósito, deve-se destacar que na antiguidade já existiam leis que organizavam, ainda que de maneira incipiente, o próprio poder. Tais leis foram evoluindo e formaram a base para o desenvolvimento do constitucionalismo. Segundo BARROSO, o termo constitucionalismo data de pouco mais de 200 anos, sendo associado aos processos revolucionários norte-americano e francês, em oposição ao Absolutismo. Todavia, as ideias centrais do constitucionalismo remontam à antiguidade clássica, no ambiente da polis grega, por volta do século V a.C. Para SARMENTO: “A ideia de Constituição, tal como a conhecemos hoje, é produto da Modernidade, sendo tributária do Iluminismo e das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, ocorridas na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França. Ela está profundamente associada ao constitucionalismo moderno, que preconiza a limitação jurídica do poder político, em favor dos direitos dos governados”. SARMENTO divide, didaticamente, a evolução história do constitucionalismo da seguinte forma: 1) Constitucionalismo antigo e medieval; 2) Constitucionalismo Moderno; 3) Constitucionalismo pós-moderno. Por sua vez, o Constitucionalismo Moderno foi construído sob três versões (inglesa; francesa; norte-americana). Ademais, no Constitucionalismo Moderno, além do estudo das 3 versões, destacam-se 2 fases (fase do Estado liberal-burguês e fase do Estado Social). Na contextualização temporal, é preciso ter em mente que as três versões acima mencionadas (inglesa; francesa e norte-americana) instauraram-se no seio do Estado Liberal- burguês e desenvolveram-se com a transição para a fase do Estado Social, de modo que é possível distinguir duas fases: constitucionalismo moderno do Estado Liberal-burguês e constitucionalismo moderno do Estado Social. Por fim, um novo modelo de constitucionalismo tem despontado: o constitucionalismo pós-moderno. Vejamos cada um deles: 1) CONSTITUCIONALISMO ANTIGO OU MEDIEVAL: remonta ao período da antiguidade clássica até final do século XVIII, quando surgem as primeiras constituições escritas, com predominância do jusnaturalismo. As experiências mais importantes na antiguidade são: a) Hebreus: era Teocrático, influenciado pela religião, os dogmas religiosos atuavam como limites ao poder do soberano. b) Grécia: vivenciou a democracia direta, com o início da racionalização do poder. Havia um regime político que se preocupava com a limitação do poder das autoridades e com a contenção do arbítrio. Contudo, esta limitação visava antes a busca do bem comum do que a garantia de liberdades individuais. A liberdade, no pensamento grego, cingia-se ao direito de tomar parte nas deliberações públicas da cidade-Estado, não envolvendo qualquer pretensão a não interferência estatal na esfera pessoal. Não se cogitava na proteção de direitos individuais contra os governantes, pois se partia da premissa de que as pessoas deveriam servir à comunidade política, não lhe podendo antepor direitos de qualquer natureza. Tal concepção se fundava numa visão organicista da comunidade política: o cidadão não era considerado em sua dignidade individual, mas apenas como parte integrante do corpo social. O cidadão virtuoso era o que melhor se adequava aos padrões sociais, não o que se distinguia como indivíduo. A liberdade individual não era objeto da especial valoração inerente ao constitucionalismo moderno. c) Roma: Para Ihering, “Nenhum outro Estado foi capaz de conceber a ideia de liberdade de uma forma tão digna e justa quanto o direito romano”. Em Roma já despontava a valorização da esfera individual e da propriedade, concomitante à sofisticação do direito privado romano e ao reconhecimento de direitos civis ao cidadão de Roma (direito ao casamento, à celebração de negócios jurídicos, à elaboração de testamento e à postulação em juízo). Ademais, algumas instituições do período republicano romano já prenunciavam a concepção moderna de separação dos poderes, notadamente a sua repartição por instituições como o Consulado, o 20 Senado e a Assembleia, representativas de estamentos diferentes da sociedade, de forma a propiciar o equilíbrio entre eles. Apesar disso, não se cogitava de um constitucionalismo em sentido moderno (como fórmula de limitação do poder político em favor da liberdade dos governados); d) Idade Média, iniciada com a queda do Império Romano, correspondeu a um período caracterizado pelo amplo pluralismo político. Não havia qualquer instituição que detivesse o monopólio do uso legítimo da força, da produção de normas ou da prestação jurisdicional. O poder político fragmentara-se por múltiplas instituições, como a Igreja, os reis, os senhores feudais, as cidades, as corporações de ofício e o Imperador. É importante destacar que, durante a idade média, foram celebrados alguns pactos instituidores de direitos e limitadores do poder, que influenciaram decisivamente o posterior surgimento do constitucionalismo moderno. Os exemplos mais citados são: Magna Charta Libertatum (1215) e o Petition of Rights (1628). Além destes, também são citados: o Habeas Corpus Act (1679), o Bill of Rights (1689) e o Act of Settlement (1701). 2) CONSTITUCIONALISMO MODERNO: surgiu no final do século XVIII, como forma desuperação do Estado Absolutista, sustentando a limitação jurídica do poder do Estado em favor da liberdade individual. Características históricas foram essenciais para o surgimento do constitucionalismo moderno, como a ascensão da burguesia como classe hegemônica; o fim da unidade religiosa na Europa, com a Reforma Protestante; e a cristalização de concepções de mundo racionalistas e antropocêntricas, legadas pelo Iluminismo. Sob as vozes do Iluminismo, a sociedade deixa o caráter organicista e passa a centrar-se na figura do indivíduo, concebido como um ser racional, titular de direitos, cuja dignidade independia do lugar que ocupasse no corpo coletivo. Evolui-se para o reconhecimento de direitos universais, pertencentes a todos. A sociedade não mais era concebida como um organismo social, formado por órgãos que exerciam funções determinadas (clero, nobres, vassalos). Ela passa a ser concebida como um conjunto de indivíduos, uma sociedade “atomizada” formada por unidades iguais entre si. Em harmonia com essa visão, desenvolveram-se as teorias de contrato social, que passaram a justificar a existência do Estado em nome dos interesses dos indivíduos. John Locke sustentava a ideia de que, ao celebrar o contrato social, as pessoas alienam para o Estado apenas uma parcela da liberdade irrestrita de que desfrutavam no Estado da Natureza, preservando determinados direitos naturais, que todos os governantes devem ser obrigados a respeitar. Esse jusnaturalismo difere daquele que predominara na Antiguidade e na Idade Média por não se basear na vontade divina, nem em imposições extraídas da natureza, mas em princípios acessíveis à razão humana, e por conferir primazia aos direitos individuais. O constitucionalismo moderno assenta-se em 3 pilares: a contenção do poder dos governantes, por meio da separação de poderes; a garantia de direitos individuais, concebidos como direitos negativos oponíveis ao Estado; e a necessidade de legitimação do governo pelo consentimento dos governados, pela via da democracia representativa. O constitucionalismo moderno conheceu três versões mais influentes: a inglesa, a francesa e a norte-americana. 2.1. O modelo inglês de constitucionalismo: Como na Inglaterra não chegou a haver propriamente absolutismo, a história do constitucionalismo adquire um perfil próprio. Desde o final da Idade Média, o poder real encontrava-se limitado por determinados costumes e pactos estamentais, como a Magna Carta de 1215, mas o constitucionalismo inglês só tem início a partir da Revolução Gloriosa de 1668, quando foi deposta a dinastia Stuart e foi assentado o princípio da supremacia política do Parlamento inglês, em um regime pautado pelo respeito aos direitos individuais. No curso do século XVII, foram editados três documentos constitucionais de grande importância: a Petition of Rights, de 1628; o Habeas Corpus Act, de 1679; e o Bill of Rights, de 1689, que garantiam importantes liberdades para os súditos ingleses, impondo limites à Coroa e transferindo poder ao Parlamento. A ideia central do constitucionalismo inglês é a de respeito às tradições constitucionais, não havendo um texto constitucional único que os consolide e organize. Inexiste, portanto, uma Constituição escrita na Grã-Bretanha. Ademais, entende-se 21 que as normas constitucionais não decorrem apenas dos referidos textos esparsos, mas também de convenções constitucionais e de princípios da common law, desenvolvidos pelos tribunais. A ideia do exercício do poder constituinte, por meio de ruptura com o passado, com a refundação do Estado e da ordem jurídica, é estranha ao modelo constitucional inglês, que se assenta no respeito às tradições imemoriais. Nesse sentido, o constitucionalismo britânico é historicista, já que baseia a Constituição e os direitos fundamentais nas tradições do povo inglês. Em outras palavras, a evolução do constitucionalismo inglês é gradual e histórica, não abrupta ou revolucionária. Desenvolveu-se na Inglaterra o princípio constitucional de soberania do Parlamento, segundo o qual o Poder Legislativo pode editar norma com qualquer conteúdo. Não há a possibilidade de invalidação das suas decisões por outro órgão. Contudo, há na Inglaterra contemporânea uma tendência à alteração deste modelo de soberania irrestrita do Parlamento, pelo menos em matéria de direitos fundamentais. A mais importante expressão desta inflexão foi a aprovação, em 1998, do Humans Rights Act, que possibilitou ao Judiciário britânico a declaração de incompatibilidade de leis editadas pelo Legislativo com os direitos previstos naquele estatuto. Tal declaração não acarreta a invalidação da lei, mas cria um relevante fato político, gerando forte pressão para a revogação da norma violadora de direitos humanos. 2.2. O modelo francês de constitucionalismo: Tem como marco inicial a Revolução Francesa, iniciada em 1789, sendo a constituição escrita consagrada em 1791. Sob a perspectiva da teoria constitucional, a vontade de ruptura com o passado se expressou na teoria do poder constituinte, elaborada originariamente pelo Abade Emanuel Joseph Sieyès, em sua célebre obra Qu’est-ce que le Tier État?. Por essa teoria, o poder constituinte exprimiria a soberania da Nação, estando completamente desvencilhado de quaisquer limites impostos pelas instituições e pelo ordenamento do passado. Ele fundaria nova ordem jurídica, criando novos órgãos e poderes — os poderes constituídos — que a ele estariam vinculados. OBS.: destaca-se que o fundamento utilizado foi a “soberania da Nação”, que difere da “soberania do povo”. Para Sieyés, a detentora do poder era a nação, e não o conjunto dos nacionais. Sendo a Nação a detentora do poder e sendo essa uma concepção etérea/ideal, a resposta para a aparente incoerência entre a “igualdade” defendida e a exclusão dos iguais pelo voto censitário e masculino era justificada pelo argumento de que só podem exercer direitos políticos, na perspectiva liberal, aqueles que compõem o melhor da Nação (homens mais instruídos, de melhor condição social, reuniriam as condições que lhes permitiriam expressar, por meio do seu voto, a vontade da Nação). A Constituição deveria corresponder a uma “lei” escrita, não se confundindo com um repositório de tradições imemoriais, ao contrário da fórmula inglesa. Ela pode romper com o passado e dirigir o futuro da Nação, inspirando-se em valores universais centrados no indivíduo. O protagonista do processo constitucional no modelo constitucional francês é o Poder Legislativo, que teoricamente encarna a soberania e é visto como um garantidor mais confiável dos direitos do que o Poder Judiciário. Isto levou, na prática, a que a Constituição acabasse desempenhando o papel de proclamação política, que deveria inspirar a atuação legislativa, mas não de autêntica norma jurídica, que pudesse ser invocada pelos litigantes nos tribunais. Tal pensamento vem sendo superado. Foi aprovada em 2008 (regulamentada em 2010), na França, a chamada “Questão Prioritária de Constitucionalidade”, permitindo que as partes aleguem incidentalmente a inconstitucionalidade de lei, por ofensa a direitos e liberdades fundamentais garantidos pela Constituição francesa, no âmbito de processos judiciais e administrativos. A questão deve ser encaminhada à Corte de Cassação ou ao Conselho de Estado que, por sua vez, podem provocar o Conselho Constitucional. 2.3. O modelo constitucional norte-americano: O fato de a colonização dos Estados Unidos ter sido realizada em boa parte por imigrantes que escapavam da perseguição religiosa na Europa contribuiu decisivamente para que se enraizassem na cultura política norte-americana ideias como a necessidade de limitação do poder dos governantes e de proteção das minorias diante 22 do arbítrio das maiorias. A Constituição dos Estados Unidos foi aprovada pela Convenção da Filadélfia,
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