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F IC H A C A T A LO G R Á FIC A (Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte, Câmara Brasileira do L ivro, SP.) C828q Coreth, Em erich, 1919- Questões fundamentais de hermenêutica; tradução de Carlos Lopes de Matos. São Pau lo, E P U , E d . da Universidade de São Paulo, 1973. Bibliografia. 1. Análise (F ilo so fia ) 2 . B íb lia — Herme nêutica 3 . Hermenêutica 4 . Semântica (Filoso fia ) I. T ítu lo. 7 3 -1 0 0 7 C D D -1 1 0 -2 2 0 .6 3 -1 4 9 .9 4 Índices para o catálogo sistemático: 1. Análise linguística : F ilosofia 149.94 2 . Hermenêutica : M etafísica : F ilosofia 110 3. Hermenêutica bíblica 220.63 4 . Lingüística : Análise : F ilosofia 149.94 5 . Semântica : Filosofia 149.94 E M E R IC H C O R E TH QUESTÕES F U N D A M E N T A IS DE H E R M E N Ê U T IC A Tradução de CARLOS LOPES D E M ATO S E .P .U . — Editora Pedagógica © Universitária Ltda. E D IT O R A D A U N IV E R S ID A D E D E SÃO PA U LO São Paulo 1973 Tradução brasileira do original alemão: Grundfragen der Herme neutik, de Em erich Coreth, publicado por Verlag Herder KG , Freiburg im Breisgau/BR D © Verlag Herder, 1969. © E .P .U . — Editora Pedagógica e Universitária Ltda. São Paulo 1973 Impresso na República Federativa do Brasil Printed in the Federative Republic o f Brazil Í N D I C E Introdução .................................................................................. 1 Capítulo I — História do Problem a........................................ 5 1. O problema teológico ............................................................................ 5 2 . O problema filosófico ........................................................................... 18 a ) O problema da compreensão .............................................................. 18 b ) O problema da linguagem .................................................................. 26 c ) O problema da mediação .................................................................... 34 Capítulo I I — Essência e Estrutura da Compreensão................. 45 1. O conceito da compreensão .............................................................. 45 2 . Compreensão como apreensão do sentido .................................... 53 3 . O m undo da compreensão ................................................................ 61 4 . O horizonte da compreensão ............................................................ 70 5 . O círculo da compreensão ................................................................ 81 6 . Sujeito e objeto da compreensão .................................................... 91 7 . Estruturas fundamentais da compreensão ...................................... 101 Capítulo I I I — Compreensão e H istó ria .......................................... 105 1. Compreensão espontânea .................................................................... 105 2. Lim ites da compreensão ....................................................................... 109 3 . Distância e encontro ................ 114 4 . Tradição e desenvolvimento do sentido .......................................... 123 5. Repercussão e interpretação .............................................................. 133 6 . Camadas de sentido da compreensão .............................................. 140 Capítulo IV — Compreensão e Verdade................................... 149 1. Verdade histórica ................................................................................. 149 2 . Retidão e manifestação ......................................................................... 159 3 . Horizonte do mundo e horizonte do ser .......................................... 166 4 . Hermenêutica e m etafísica ................................................................ 171 5 . O m undo de compreensão e o problema de Deus ..................... 180 6 . Hermenêutica e teologia ..................................................................... 191 IN T R O D U Ç Ã O A hermenêutica é um problema fundamental da atualidade. Assim como o termo deriva do uso lingüístico da teologia, também o problema objetivo que ele designa se tornou mais incisivo so bretudo nas questões da justa compreensão bíbhco-teológica. En tretanto, essa questão acha-se intimamente conexa com o problema mais vasto da “comprensão” no âmbito histórico e em geral no das ciências do espírito. Toda compreensão e interpretação, po rém, tanto no sentido bíblico-teológico, como no histórico ou no das ciências do espírito, remonta essencialmente a pressupostos, cuja investigação e esclarecimento é tarefa da filosofia. Dessa ma neira, formulam-se questões de importância básica para a filoso- sofia em geral, ou seja, para sua possibilidade e metodologia sim plesmente. O problema da hermenêutica toma-se, assim, um pro blema fundamental — talvez pudéssemos dizer: o problema fun damental — no pensamento filosófico do presente. É o problema que tencionamos perscrutar nas páginas que se seguem. O termo “hermenêutica” provém do verbo grego Tjpfwjvsusiv (bem como de seus derivados Yjp(jnjv£Uç e Yjpunjveta); significa decla- . rar, anunciar, interpretar ou esclarecer e, por últim o, traduzir. Apre senta, pois, uma m ultiplicidade de acepções, as quais, entretanto, coincidem em significar que alguma coisa é “tomada compreensí vel” ou “levada à compreensão”. Isso acontece em qualquer enuncia do lingüístico, que pretenda despertar uma compreensão, tomando algo inteligível. É o que sucede, principalmente, na interpretação ou esclarecimento de um enunciado talvez obscuro, de d ifíc il com preensão, como, por exemplo, um texto histórico ou literário, cujo 2 Questões Fundamentais de Hermenêutica sentido não aparece imediatamente, mas deve antes ser tomado compreensível. E , por últim o, tal coisa ocorre na tradução de um texto, visto que toda tradução consiste na transposição de um complexo significativo para outro horizonte de compreensão lin - güística. Não há certeza filológica, mas só probabilidade, de que a palavra derive de Hermes, o mensageiro dos deuses, a quem se atribui a origem da linguagem e da escrita. O certo é que já em grego o termo significava de preferência, embora não exclu sivamente, a compreensão e a exposição de uma sentença dos deuses, de uma mensagem divina, como, digamos, de um oráculo de Delfos, o qual precisa de uma interpretação para ser apreen dido corretamente, ou seja, “levado à compreensão”. Dessa forma, o termo referia-se desde então a uma dimensão sacra: a compreen são e interpretação de uma palavra divina. Ê por isso que a palavra “hermenêutica” fo i primeiramente formada e empregada no dom ínio teológico, surgindo, porém, apenas na era moderna — como títu lo de livro, encontra-se desde os séculos X V II e X V III — no sentido de uma “arte da compreen são” ou de uma “doutrina da boa interpretação”, a saber, no sen tido bíblico de uma interpretação correta e objetiva da Escritura. O problema, entretanto, é m uito mais antigo e mais amplo. Não é somente a Escritura Sagrada que sempre apresentou pro blemas de interpretação. Também nos textos profanos surgiu a questão de um modo correto de interpretar os textos. Obras l i terárias, testemunhos históricos, velhos textos legislativos, etc., de vem ser compreendidos corretamente e interpretados num sentido que será talvez, portanto, encarado neste contexto mais amplo. A hermenêutica bíblica, por um lado, tem m uita afinidade com a hermenêutica histórico-filológica, dado que cumpre, em primeiro lugar, tratar e compreender os textos da Escritura (fazendo-se abstração do seu conteúdo de Revelação divina) como testemu nhos literário-históricos,iguais a outros textos escritos do mesmo gênero. Por outro lado, a hermenêutica bíblica tem certo paren tesco com a jurídica, enquanto em ambas se trata de textos que falam normativamente e autoritariamente, tendo por si pretensão a validez e obrigatoriedade, e neste sentido são apresentados ao intérprete, para serem compreendidos e expostos em todos os seus detalhes com esse caráter. Depara-se-nos assim um horizonte mais vasto, em que se insere o problema bíblico, embora afinal ele ocupe uma posição singular, enquanto se trata da palavra de Deus, Introdução 3 mas transmitida numa palavra humana e histórica, isto é, em escritos elaborados pelos homens, surgidos na história e trans mitidos por ela, devendo, portanto, ser investigados conforme sua origem histórica, seu modo de pensar histórico e sua maneira de falar. Ao mesmo tempo, porém, cumpre indagar qual seu sentido mais profundo e mais próprio, a saber, a palavra da Revelação divina, que neles nos fala. Como se vê hoje mais que nunca, cumpre enquadrar o pror blema da hermenêutica bíblica num amplo contexto das ciências do espírito e sobre o fundo dos pressupostos teórico-científicos, metodológioos e também filosóficos postos em evidência desde Schleiermacher, e depois particularmente por D ilth ey e Heidegger, terminando recentemente por Gadamer, herdeiro e continuador dessa tradição. Mas também por isso, no campo teológico, o significado da palavra '“hermenêutica” mudou profundamente nos últimos de cênios. Esta chamava-se primeiramente a “arte” da compreensão, como ciência prática, que formulava as regras de uma oorreta | interpretação da Escritura, e portanto relacionava-se imediatamen- 1 te com a “práxis” do trabalho exegético, servindo a ele. Para este, exigia-se, a fim de ser levado a efeito corretamente, o conheci mento das respectivas línguas, do ambiente histórico e cultural em que a obra surgiu, a consideração da peculiaridade literária e estilística, da situação concreta e da intenção do autor, a interpre tação do texto em particular através do contexto, etc. Somente a mais nova hermenêutica, influenciada pelas ciências do espírito e pela filosofia, mostrou gradativamente que subjazem a isso tudo problemas mais profundos e mais fundamentais. Que significa afi nal “compreender”? Como é possível uma compreensão histórica, desde que cada um tem seu horizonte de compreensão, histórica e lingüisticamente concreto, que o antecede e ao qual se acha preso, condicionando uma determinada “precompreensão” do objeto? Exis tirá algo como um encontro ou fusão de vários horizontes histó ricos da compreensão? Será que isso é possibilitado pela própria história, a saber, por uma conexão histórico-causal, onde a pala vra historicamente pronunciada se efetua e interpreta no decorrer da história, penetrando em nosso próprio horizonte da compreensão e tornando assim possível a compreensão dos testemunhos de um passado histórico? E não há na base de tudo isso um entendimento mais original como condição da possibilidade de compreensão 4 Questões Fundamentais de Hermenêutica histórica, isto é, uma autocompreensão e compreensão do ser ori ginalmente humana, mas que se interpreta historicamente? Não se coloca, porém, aí insistentemente a questão da verdade? Desapa rece, de todo, nosso conhecimento num acontecer histórico-causal que condiciona o horizonte sempre mutável da compreensão his tórica? O u será que nos atinge, na própria história, a exigência absoluta da verdade? O que significa essa exigência e oomo po demos corresponder-lhe? Essas perguntas indicam já a problemática filosófica contida na palavra hermenêutica, como a entendemos hoje. Não se trata apenas do problema da interpretação teológica da Escritura, nem se trata somente das questões mais amplas da compreensão e in- . terpretação históricas das ciências do espirito, mas sim do pro blema fundamental de ordem filosófica a respeito da compreensão em sua essência e em suas estruturas, suas condições e seus limites. São essas questões que tencionamos abordar em nosso livro. Primeiramente, porém, numa parte ainda preparatória, quere mos caracterizar o fundo histórico da evolução do problema teo lógico e da problemática filosófica, nela pressuposta, vendo-a em suas linhas básicas essenciais (Cap. I ) . Sobre esse fundo enca ramos as questões objetivas de uma hermenêutica filosófica. Em primeiro passo, procuramos esclarecer em geral a essência e as estruturas essenciais da compreensão (Cap. I I ) , que numa fase posterior serão aplicadas mais concretamente aos fenômenos da compreensão histórica e continuam interpretando-se através delas (Cap. I I I ) . Em tudo isso, levanta-se inevitavelmente a questão da verdade, da qual nos ocuparemos na últim a parte; ela nos leva, por sobre o domínio histórico-hermenêutico, à dimensão do conheci mento e da compreensão metafísicos e teológicos (Cap. IV ). Os capítulos deste trabalho remontam a preleções dadas no semestre de inverno de 1967 a 1968 na Faculdade de Filosofia do Colégio Berchman, em Pullach, M unique (como aulas extraordi nárias) e repetidas no semestre de verão de 1968 na Universidade de Innsbruck. O texto fo i consideravelmente reelaborado e comple tado, mas sua origem escolar ainda é bem sensível. Sua intenção primária não é desenvolver uma hermenêutica especial como meto dologia da teologia ou das ciências do espírito, mas introduzir nos problemas prévios de uma hermenêutica filosófica, e dentro des ses lim ites, contribuir um pouco a seu esclarecimento. CAPÍTULO I H IS T Ó R IA D O PR O B LE M A 1. O problema teológico Visto que não só a palavra “hermenêutica” provém do âm bito teológico, mas também o problema objetivo da hermenêutica começou com as questões da interpretação da Escritura, tentemos primeiramente, em rápidas pinceladas, desenvolver a história dos problemas bíblicos-teológicos, base da tão candente problemática atual.1 1. M uito mais antiga que o oonceito de hermenêutica, e con sequentemente m uito anterior ao hodierno problema da hermenêu tica, pôs-se a questão da correta interpretação da Escritura, em si. Já aparece como tarefa em relação aos escritos do Antigo Tes tamento. Assim, sabemos pelos Evangelhos da existência dos “es cribas”, de sua importância e sua influência. Temos ciência das . várias escolas e correntes da exegese bíblica no antigo judaísmo. 1. Sobre isso, cf. especialmente: G. E B E L IN G , “ Herm eneutik", R. G. G. I I I , 3.a ed., Tübingen, 1959, pp. 242-262; “ D ie neue Herm eneutik” , Neuland in der Theologie, ed. por J. M . Robinson e J. B. Cobb, tomo 2, Zürich 1965; R. M A R L fi, Das theologische Problem der Herm eneutik, M ainz, 1965; W . STR O LZ e O . L O R E T Z (E dito res), D ie hermeneutische Frage in der Theo logie, Freiburg i. Br., 1968; N . H E N R IC H S , Bibliographie der Hermeneutik und ihrer Anwendungsbereiche seit Schleiermacher. Düsseldorf, 1968. 6 Questões Fundamentais de Herm enêutica E m contraposição, porém, surge o Novo Testamento, que tem desde o começo a pretensão de uma nova e indiscutivelmente au têntica interpretação da Escritura. E, pode-se dizer, um novo prin cípio hermenêutico, embora não fundado num novo conhecimento histórico: o acontecimento salvador em Jesus Cristo, em que o Antigo Testamento encontra seu acabamento. Ê nesse acabamento em Cristo que se deve compreender todo o Antigo Testamento: somente nele é que se patenteia todo o “sentido da Escritura”. 2 Contudo, na história da teohgia cristã, não se trata apenas da compreensão do Antigo Testamento, mas também, não menos, do Novo. Já na exegese patrística — nos Padres da Igreja desde osséculos I I e I I I — surge na realidade plenamente o problema hermenêutico, antes de tudo na oposição entre a escola de An- tioquia, que se atinha ao sentido histórico literal da narração b í blica, e a escola alexandrina, que procurava atingir um “sentido espiritual” mais elevado, em uma exposição simbólico-alegórica. Orígenes já unia cuidadosamente a investigação histórico-filoló gica do texto a uma consciência diferenciada do problema, distin guindo vários “sentidos” na Escritura. A dualidade de tendências na exegese bíblica continua entre os Padres latinos, com Jerônimo de um lado e Ambrósio do outro, ao passo que Santo Agostinho procura aliar esses dois modos de interpretar. Em todo caso, põe-se aqui já o problema em toda a sua amplitude, evidenciando que a questão hermenêutica da atualidade não é, no fundo, nova, mas retoma um antigo problema, ainda que de um outro modo e sob novos pontos de vista. A compreensão patrística da Escritura re percute, sob várias formas, na teologia da Idade Média, embora, sobretudo desde a alta escolástica, os textos da Sagrada Escritura sejam vistos preponderantemente em imediata conexão com a teo logia especulativa e sistemática, que se aplicam a eles, mas, por isso mesmo, postergando-se o aspecto propriamente hermenêutico- exegético. Sob o prisma da interpretação objetiva da Escritura, pode-se lamentá-lo ou rejeitá-lo; não se pode, entretanto, impugnar que também aí se encontra um determinado princípio hermenêu tico, consoante o qual o texto escriturístico contém enunciados dog máticos que devem ser entendidos no conjunto da doutrina e da tradição da Igreja. 2 . Ç f. Lc 24, 2 7 . “ E interpretou-lhes (5iijp|jtir)veocEv), em todas as Es crituras, o que se referia a ele próprio” ; cf. também Lc 24,32 e 45. História do problema 7 2. A partir do começo da era moderna, o problema se agrava. A Reforma apregoa a exigência de uma volta à pura palavra da Escritura. Conforme Lutero, a Bíblia não deve ser exposta segundo o ensino tradicional da Igreja, mas apenas compreendida por si mesma; ela é “sui ipsius interpres” (“intérprete de si mesma” ). O princípio da “Scriptura sola” representa um novo princípio herme nêutico, contra o qual a Igreja católica declara expressamente no Concílio de Trento que cabe à Igreja a interpretação da Escritura: “Compete-lhe o julgamento acerca do verdadeiro sentido e da explicação da Sagrada Escritura” 3 — outro princípio hermenêutico, que exige ser a Escritura compreendida a partir de todo o contexto da vida e da doutrina da Igreja. G. Ebeling tem certa razão ao reduzir fundamentalmente a divergência das confissões a uma opo sição entre os princípios hermenêuticos4: trata-se em cada caso de uma abordagem diferente do sentido da Escritura. Além disso, logo se desenvolveu na esfera do protestantismo uma teologia “ortodoxa”, cuja doutrina da “inspiração verbal” separa ainda mais a Escritura de seu original contexto histórico, fechando-se a uma compreensão histórica e exigindo que se entendesse cada palavra imediatamente como palavra de Deus. O problema toma-se outra vez mais agudo, ainda que em sen tido oposto, pelo pensamento do üuminismo, que penetra len tamente até o domínio da teologia protestante. Já em John Locke e entre os livres-pensadores ingleses do início do século X V I I I 5, mostra-se claramente a tendência a reduzir o cristianismo ao plano de uma religião da razão natural e, portanto, excluir todo caráter de Revelação sobrenatural e de mistério. D e acordo com isso, tam bém a Sagrada Escritura deve ser entendida apenas no sentido de uma pura religião racional, excluindo-se tudo o que ultrapassa essa idéia. Toma-se então princípio hermenêutico o que se aprende e esclarece racionalmente. F o i de todo nesse sentido que Kcmt, na obra A religião dentro dos lim ites da razão pura, exige que s e , entenda a Escritura no sentido moral somente, mesmo quando, “levando-se em conta o texto (da Revelação), essa revelação pa- 3 . D E N Z IN G E R - S C H O N M E TZ E R , 1507; cf. J. N E U N E R - H . ROOS, Der GXaube der Kirche in den Urkunden der Lehrverkiindigung, 6.a ed., Regensburg, 1961, n .° 86. 4. G . E B E L IN G , op. cit. 5 . J. T O L A N D , A . C O L L IN S , M . T IN D A L entre outros. 8 Questões Fundamentais de Hermenêutica reça muitas vezes forçada, ou até o seja na realidade”. 6 Não se deve expor a moral pela Bíblia, mas antes a Bíblia pela moral. Hegel igualmente interpretava os conteúdos cristãos da fé à luz de seu sistema: como momentos do autodesenvolvimento e da au to-revelação do espírito absoluto no mundo e na história. Enquanto a religião aprende seus conteúdos apenas na forma imperfeita da representação, o pensamento puro da filosofia capta-os na plena verdade. A qui como ali, evidencia-se claramente a tendência de compreender os conteúdos da Revelação da Escritura através dos pressupostos e do contexto de um determinado sistema filosófico, ou seja, em princípio, reduzir tudo ao plano racional da verdade evidente e filosoficamente demonstrável. Essas coisas, na reali dade, não se movem imediatamente no campo da exegese bíblica, mas em todo caso deram espiritualmente impulso à nova crítica da Bíblia, proveniente do círculo da esquerda hegeliana. A vida de Jesus (1835) de D avid Friedrich Strauss fo i deci siva para a investigação crítica da Bíblia. A radicalidade de sua posição — Strauss acha que quase tudo o que está nas Escrituras pertence ao mito e deve ser cientificamente superado — desen cadeia em seu tempo uma violenta discussão, mas conduz à in trodução do “método histórico-crítico” no campo da exege bíblica. Aliás, isso se relaciona com a irrupção de toda a pesquisa histórica, histórico-cultural e histórico-religiosa do século X IX , pela qual se ficou conhecendo sempre melhor a história do antigo Oriente, suas línguas e suas culturas, sua literatura e formas literárias, suas reli giões, seus mitos religiosos e formas de expressão. Assim se come çam a compreender os livros da B íb lia em seu ambiente, na his tória de seu surgimento e em sua peculiaridade. Temos aí uma profunda justificação e necessidade de uma investigação científica da Sagrada Escritura, embora fique de pé a questão de saber se com isso se atinge e compreende tudo, ou pelo menos o essencial. Na realidade, a investigação histórico-crítica do século passado mostra muitas vezes a tendência a não apenas voltar-se contra a tradição de interpretação eclesiástica da B íblia e das doutrinas de fé que daí dimanam, mas também elim inar todo aoontecimento sobrenatural, toda revelação divina historicamente acontecida e contida nas Escrituras. Isso se vê no âmbito da teologia “liberal” do protestantismo, a qual, em nome de um estrito cientifidsm o — 6. J. K A N T , D ie Religion innerhalb der Grenzen der reinen V em unft, p. 158. H istória do Problema 9 ou seja, de uma suposta ciência “objetiva”, que se movia também no terreno da pesquisa histórica inteíramente sob o ideal da in vestigação exata das ciências naturais — queria investigar de um modo histórico e crítico os livros da Sagrada Escritura, excluindo tudo quanto não fosse apreensível ou aprovado por esse método científico. Remava assim na investigação bíblica da escola his tórico-crítica o princípio muitas vezes mais ou menos explícito — de novo, um princípio hermenêutico — de que é impossível uma intervenção de Deus neste mundo e na história, sendo pois insus tentáveis perante a crítica histórica todas as narrativas da Escritura sobre um fato de revelação, sobre eventos milagrosos, etc., e devendo, portanto, ser eliminado ou exposto de outro modo. Um dos últimos e ao mesmo tempo com certeza um dosmaiores re presentantes dessa corrente fo i Adolf von Ham ack (fl9 3 0 ), que criou no campo da pesquisa histórica-crítica coisas importantes e permanentes. 3. Contra isso, contudo, ergue-se o protesto do movimento hermenêutico, que surge da oposição contra 0 predomínio exclusivo da escola histórico-crítica, a saber, da idéia de que nessa consi deração e investigação da Escritura não há dúvida de que se fez algum trabalho valioso, esclarecendo-se m uita coisa pelo contexto histórico, mas que não se alcança e m uito m aios se entende o que é precisamente próprio, i.e., o “sentido” da Escritura, aquilo que fo i propriamente pensado e expresso. Além da pesquisa histó rico-crítica, impõe-se a tarefa de uma compreensão mais profunda, à qual unicamente se abrirá o verdadeiro sentido da palavra de Deus. Nos fms do século passado, dentro da teologia protestante, levantaram-se nesse sentido vozes isoladas de protesto contra o método histórico-crítico, como fo i o caso de M artin Kahler (fl9 1 2 ), que já em 1892 enunciava a tese: “O Jesus histórico dos escritores modernos esconde-nos o Cristo vivo”. 7 O rompimento decisivo nessa direção fo i a Epístola aos romanos (1919) de K arl Barth. O importante sobretudo fo i o prefácio à segunda edição (1921), onde o autor ajustou contas com seus críticos, expondo fundamen talmente sua própria posição, mais desenvolvida amda na Dogmá tica eclesiástica (a partir de 1932). “A Epístola aos romanos de 7. M . K Ã H LE R , D er sogenannte historische Jesus und der geschicht- liche, biblische Christus, M iinchen, 1956, p. 16. 10 Questões Fundam entou de Hermenêutica Barth estava expressamente sob o signo do problema hermenêutico; o método histórico-crítico não é, em si, recusado, mas relativizacjlo, tomando-se uma simples preparação da tarefa de compreensão propriamente dita.” 8 Ê essa “compreensão” — a idéia básica de todo movimento hermenêutico — que importa a Barth. Devemos compreender os escritos bíblicos como mensagem reveladora e sal vadora de Deus. Rudolf Bultrm nn retoma a mesma idéia. Também ele se preo cupa com uma compreensão mais profunda da Escritura naquilo que é propriamente pensado. Seus caminhos, porém, são outros. Sua crítica se dirige bem cedo a Barth, porque este, a seu ver, não se atém com bastante rigor ao texto, não o investiga com uma crítica suficientemente histórica e filológica, mas torce-o preci pitadamente no sentido de sua exposição, forçando-o, e assim dei xando de promover a verdadeira compreensão da coisa, que passa a ser construída. Pelo contrário, cumpre pesquisar crítica e his toricamente o texto, com o que Bultm ann retoma expressamente ao método histórico-crítico, mas, justamente por isso, e partindo daí, devemos procurar chegar à compreensão do realmente pen sado e dito. Como Bultmann entende ooncretamente essa tarefa, vê-se claramente sobretudo por seu programa de “desmitização” e de “interpretação existencial”. Consoante Bultmann, o modo de pensar e de falar da Sagrada Escritura, inclusive do Novo Testamento, caracteriza-se por uma “concepção mítica”. “M ítica” significa para ele “um modo de re presentação no qual o que não é deste mundo, o divino, aparece como sendo deste mundo, como humano, e o que é do além, como sendo daqui, onde, por exemplo, a transcendência de Deus é pensada como distância espacial; um modo de representar con forme o qual o culto será entendido como um comércio, obtendo-se forças imateriais por meios materiais”9; portanto, um modo de representar segundo o qual Deus e as forças divinas aparecem ime diatamente no mundo à maneira das coisas e forças intramun- danas, agindo imediatamente no mundo e interferindo, sem mais, na vida do homem no mundo. Em oposição total a isso, está a concepção do mundo da ciência hodierna, que representa o mundo 8. G . E B E L IN G , “ Henneneutik” , R . O . G . I I I , p. 256. 9. R . B U L T M A N N , Neues Testament und Mythologie: Kerygma und Mythos, I , 2.a ed., Ham burg-Volksdorf, 1951, p. 22. H istória do Problema 11 todo como um conjunto determinado por forças próprias e leis internas. Logo, se quisermos entender a Sagrada Escritura com justeza, no sentido verdadeiramente pensado, temos de tirar seus enunciados de uma concepção longínqua e estranha, ou seja, mítica, para transpô-la em nossa atual concepção do mundo. Essa tarefa é que se chama “desmitização”; “não consiste numa elim i nação de enunciados míticos, mas em sua interpretação.. não se trata de uma operação subtrativa, e sim de um método herme nêutico”. 10 Enquanto a palavra “desmitização” designa um aspecto ne gativo, “interpretação existencial” significa o aspecto positivo do mesmo processo de interpretação. Se temos de traduzir os enun ciados da Escritura, passando de um âmbito mitológico de repre sentação para a moderna compreensão de nós mesmos e do mun do, isso significa aos olhos de Bultmann chegar a uma compreen são “antropológico-existencial” do homem no mundo. “O m ito não há de ser interpretado cosmologicamente, mas sim antropologica- mente, ou melhor, existencialmente.” 11 Cumpre, portanto, inter rogar em cada caso: O que significa isso para o homem? Qual o significado disso para m inha existência humana concreta? Desse modo, “a m itologia do Novo Testamento não deve ser perguntada a respeito de seu conteúdo objetivo de representação, mas acerca da compreensão da existência expressa nessas representações”. 12 Quando, pois, Bultmann pretende transpor os enunciados bíblicos na atual compreensão de nós mesmos e do mundo, para com isso obter primeiramente o horizonte da real compreensão, pressupõe determinada imagem do mundo e do homem, segundo a qual os enunciados bíblicos devem ser interpretados. Para isso, Bultmann assume, quanto ao método e ao conteúdo, elementos essenciais da análise existencial-ontológica do ser, tal como se apresenta no Ser e Tempo de M . Heidegger (1927), embora desenvolva e su pere a interpretação que Heidegger dá da existência humana, so bretudo no que diz respeito à abertura do homem para com a pa lavra de Deus. É essa interpretação da existência humana, tirada de Heidegger, que Bultmann toma como base para a interpretação da Escritura: um princípio hermenêutico de sua compreensão da 10. Z um Problem der Entm ythoíogisierung: Kerygma und M ythos, II, Ham burg-Volksdorf, 1952, p. 185. 11. Ken/gma und M ythos, J, p. 22. 12. Ib ià ., p. 23. 12 Questões Fundamentais de Hermenêutica Bíblia. Está convicto de que a análise existencial de Heidegger, ou “hermenêutica da existência”, fornece “os conceitos objetivos e jus tos para falar da existência humana”, 13 a saber, quando Heidegger concebe a existência humana como “ser-no-mundo” composto de tempo e história, escapando o “ser de ser-aí” como “poder-ser”, i. e., como um projeto sempre novo das possibilidades de ser, situado na decisão entre propriedade e impropriedade e finalmente como “ser para a morte”. Se, contudo, os enunciados bíblicos não devem ser entendidos em seu conteúdo “objetivamente”, mas apenas em sua significação “existencial”, verifica-se que, para Bultmann, passa a um segundo plano a questão das realidades históricas, a que se referem as nar rativas. Assim é que perde totalmente importância o problema do “Jesus histórico”, em face do “Cristo da fé”, o qual, independen temente de toda realidade histórica e demonstrável, é a única coisa que tem importância existencial para o crente, agindo como “even to de Cristo” na história e convocando para a decisão da fé. A posição de Bultmann suscita uma série de difíceis e impor tantes problemas, que até aqui apenas tocamos de leve. Pode a interpretação da Escritura pressupor, sobretudo dessa maneira, umaimagem do inundo e do homem excogitada por certa filosofia, tomando-a princípio de compreensão, como se dá aqui com o primeiro pensamento de Heidegger? Mesmo prescindindo da ques tão se Bultmann reproduz bem a concepção heideggeriana ao to má-la somente sob o ponto de vista antropológico, sem encarar o problema fundamental de Heidegger, que é o de ser, põe-se a pergunta seguinte: se precisamente a comprensão da existência no Ser e Tempo de Heidegger é um princípio hermenêutico objetivo e justo da interpretação bíblica, ou se com isso não se aplica ex teriormente à Escritura um princípio alheio, que portanto não propicia uma compreensão real, mas a deturpa. 4. Por isso também levantou-se logo uma violenta crítica a Bultmann. Karl Barth, em primeiro lugar, protestou decidida mente, porque, a seu ver, Bultmann pôs antes o que viria depois, e vice-versa. Seu interesse seria em primeira linha a compreensão humana, referindo conseqüentemente os enunciados bíblicos ape nas à autocompreensão do homem. A palavra de Deus teria somente 13. R. B U L T M A N N , Glaube und Verstehen, Ges. Aufsätze, I I , Tüb in gen, 1952, p. 232. H istória do Problema 13 significação para ele, enquanto serve a esse fim . Barth, pelo con trário, acentua que em primeiro lugar vem a palavra de Deus, a livre auto-revelação de Deus em Jesus Cristo, a qual não pode ter sido esperada ou calculada pelos homens e cujo sentido com maior razão não pode ser fixado num determinado e lim itado ho rizonte de autocompreensão humana. Para Barth, o que teria em primeiro lugar importância não seria a compreensão humana, mas a palavra de Deus, ou, com maior agudez: não se trata primeira mente do homem, mas de Deus, cuja palavra, por mais que seu mistério ultrapasse a plena compreensão por parte do homem, exi ge a abertura e a prontidão de ouvi-la e aceitá-la pela crença. Em Bultmann, portanto, ocorre, no dizer de Barth, “uma inversão, cheia de conseqüências, da ordem da salvação neotestamentária”.14 Sobre o fundo dessa questão entre Barth e Bultmann, oom a contribuição de D . Bonhoeffer, Fr. Gogarten, e M . Heidegger, continuaram a obra da hermenêutica, no campo da teologia pro testante, principalmente Gerhard E b eling 1S e Ernst Fuchs. 16 A teologia passa a ser determinada essencialmente como hermenêu tica. Nesse contexto, desenvolve-se no horizonte do problema atual da filosofia da linguagem uma teologia da palavra e da língua, porque revelação e fé são um “acontecimento da palavra” (Ebe lin g ) ou um “evento da linguagem” (Fuchs). Ficam com isso em parte superadas ou corrigidas as posições radicais de Bultmann, apresentando-se outra vez com renovada seriedade, embora crítica, a questão do “Jesus histórico”. Em todo acontecer histórico da palavra de Jesus, passando pela reflexão teológica até a atual pre gação da fé, estende-se um “arco hermenêutico”, em que a palavra da revelação se interpreta histórica e lingüisticamente, em que se ultrapassa, de um lado, o abismo entre a pretérita palavra de Deus e nossa atual compreensão, e, do outro lado, o abismo entre a teologia histórica e a sistemática. 14. K. B A R TH , R udolf Buhm ann. E in Versuch, ih n zu verstehen, Zürich, 1953, p. 13. 15. G . E B E L IN G , Das W esen des christlichen Glaubens, Tübingen, 1959; ID E M , W ort und Glaube, Tübingen, 1960. 16. E . FU C H S , Herm eneutik, Bad Cannstatt, 1954; ID E M , Zum herme neutischen Problem in der Theologie, D ie existenziale Interpretation, Tübin gen, 1959. 2 - Questões 14 Questões Fundamentais de Hermenêutica 4 Na discussão hermenêutica da atualidade, Heinrich O tt17 adota uma posição própria e, a seu modo, digna de atenção — mesmo em relação a seus pressupostos filosóficos. E le é, por um lado, dis cípulo de Bultmann, mas, por outro, como reformado, aproxima-se da teologia de Karl Barth, de quem fo i sucessor na cátedra de teologia sistemática em Basiléia. Assim quer ser mediador entre Barth e Bultmann, apoiando, porém, as justificadas acusações de Barth, enquanto não parte, como Bultmann, do Heidegger anterior, que empreendia em Ser e Tempo uma interpretação existencial- ontológica da existência humana, mas sim do Heidegger posterior, que não se preocupa primariamente com o homem, mas de uma forma sempre mais exclusiva com o ser, e não compreende o ser como um projeto humano-temporal do ser, mas sim o homem como a “projeção” do ser, como a “clareira do ser”, como “o lugar da verdade do ser”, i. e., compreende-o como o acontecimento do ser. Heidegger concebe a história não primariamente como hu mana, mas como história e destino do ser, voltando-se antes de tudo à linguagem, que para ele é a “voz do ser”, na qual o ser historicamente se manifesta e simultaneamente se oculta, mas nos aponta o que historicamente se deve pensar e aquilo a que deve corresponder nosso pensamento e nossa linguagem. O tt vê nisso um ponto de partida mais próximo e mais próprio, mais adequado ao empenho da teologia em compreender o que se passa no acon tecim ento da Revelação. T a l coisa é correta enquanto o pensamento de Heidegger posterior, principalmente suas afirmações sobre a história e a linguagem, só é compreensível por sua origem teo lógica. Sua filosofia, sobretudo nos escritos posteriores, é sem dúvida uma teologia, embora radicalmente secularizada. Por isso, certos paralelos são tanto indiscutíveis quanto espantosos. Fica de pé, porém, a questão de saber se o pensamento de Heidegger oferece um ponto de partida adequado, principalmente porque aquilo que o filósofo chama ser não é Deus, nem pode em seu sentido ser exposto como sendo Deus. 17. H . O T T , Geschichte und 'Heüsgeschichte in der Theologie R udolf Bultmanns, Tübingen, 1955; ID E M , Deriken und Sein, D er W eg M artin Heideggers und der W eg der Theologie, Zollikon, 1959; ID E M , D ie Frase nach dem historíschen Jesus und die Ontologie der Geschichte, Zürich, 1960; ID E M , Dogm atik und Verkündigung, Zürich, 1961; ID E M , “ W as ist si/ste- matische Theologie?v ZThK . Caderno Suolementar 2, pp. 19-46; reimpresso em: D er spStere Heidegger und die Theologie, ed. por J. M . Robinson e J. B. Kobb, l . ° vol., Zürich, 1964, pp. 95-133. H istória do Problema 15 5. Entretanto, o problema de uma hermenêutica bíblica não se reduz ao âmbito da teologia protestante, embora atinja aí sua maior agudeza. O mesmo problema se apresenta para a exegese e teologia católicas. Se dentro do protestantismo, nas últimas dé cadas, se verificou uma divergência entre a pesquisa histórico-crí tica da Escritura e as exigências de uma compreensão mais pro funda da Revelação, também na esfera do catolicismo se deu se melhante divergência já por volta da passagem do século, com o modernismo. D e que se tratava no fundo, vê-se de modo bem claro pela discussão entre Alfred Loisy, o chefe do modernismo, e o filósofo católico Maurice Blondel. 18 Enquanto que Loisy se move no campo do método histórico-crítico e exerce em nome da ciência moderna uma ampla crítica da Escritura e da interpretação tradicional da Bíblia, Blondel, ainda que reconhecendo a investi gação científica, faz valer a importância da tradição histórica da vida e da doutrina da Igreja para uma compreensão mais pro funda da Bíblia. Trata-se, pois, já aqui da verdadeira compreensão da vida, fora do que é apreensível e demonstrável histórica e cri ticamente. Ê o mesmo problema que surge mais tarde na dis cussão da teologia protestante acerca do problema hermenêutico. E Blondel assume nele um ponto de vista que, desde então, na problemática total da compreensão histórica, se confirmou e apro fundou de muitos modos, se bem que a compreensão da SagradaEscritura, como mensagem salvífica de Deus, acabe tomando uma posição especial. Mas, naquela altura, interrompeu-se bruscamente a discussão. Devido a um zelo, que hoje diríamos talvez excessivo, pela con servação da fé e da compreensão eclesiástica da Escritura, a Igre ja condenou em 1907 o modernismo.19 Nos anos seguintes, a co missão publicou diretivas particularizadas, visando a interpretação católica da Bíblia. Com isso, estabeleceram-se nos decênios se guintes estreitos lim ites para a ciência católica da Sagrada Escri tura. Só m uito mais tarde, quando já estava em pleno andamento na teologia protestante a discussão sobre o sentido da B íblia à luz 18. C f. R. M A R L É , A u coeur de la crise moderniste. L e dossier inédit d ’une controverse, Paris, 1960. Também ID E M , Das theologische Problem der Herm eneutik, M ainz, 1965, pp. 112-127. 19. Decreto do Santo O fíc io Lam entabili, de 3 de julho de 1907, Denz- Schönm. 3401-3466, e endclica de P IO X Pascendi dom inici gregis, de 8 de set. de 1907, Denz.-Schönm . 3475-1500. 16 Questões Fundamentais de Hermenêutica da pesquisa mais recente e do problema hermenêutico, é que se deu maior liberdade para os estudiosos católicos. Pioneira nessa direção fo i a grande encíclica bíblica de Pio X II, de 1943 ( D ivino Afflante Spiritu) , 20 que perm itiu fundamentalmente os métodos científicos de investigação e interpretação da Escritura. O mesmo espírito de abertura para a problemática moderna impregna tam bém a Constituição do I I Concílio Vaticano sobre a revelação di vina ( D ei Verbum ), o qual exige que se veja e que se compreenda a Escritura em íntim a união com a tradição, porque a única re velação de Deus nos é transmitida na Escritura e na tradição; contudo, a relação mais próxima entre ambas ficou em suspenso, deixada à posterior discussão doutrinária. Acentua-se igualmente o caráter humano e divino da Escritura. Enquanto ela é palavra humana, pronunciada e transmitida através da história, deve ser investigada histórico-criticamente com os meios da ciência mo derna, quanto à origem histórica de cada um dos livros e quanto à maneira de pensar e de falar aí vigente. Apesar disso, ela cons titu i um todo, em que se manifesta a mensagem salvadora de Deus, mensagem transmitida na fé da Igreja e que continua a operar o se interpreta na vida e na doutrina da Igreja, devendo, por isso, ser entendida a partir desse contexto total e vivamente histórico. Com isso se abriu, em princípio, o caminho para a pesquisa e interpretação científicas da Sagrada Escritura. Mas os problemas daí decorrentes não estão solucionados, e sim apenas propostos pela primeira vez como tarefa no horizonte da questão hermenêu tica. Não nos ocuparemos aqui com o tema, mas apontaremos, nos fundamentos do problema filosófico da hermenêutica, as principais questões que se põem hoje em dia no campo da teologia bíblica. De toda investigação histórica e crítico-literária resultou que deve ser reestudada a história das origens de cada um dos escritos bíblicos. Sabemos, por exemplo, há m uito tempo, que o Pentateuco, ta l como o temos, não provém do próprio Moisés, mas data de uma época muito posterior, embora se apóie em antigas tradições, nele conservadas. O mesmo se diga de muitos outros livros, para cuja plena compreensão é de grande importância hermenêutica o co nhecimento da data e circunstâncias de origem. Sabemos igualmente que há formas literárias e maneiras de expressão (g enera litteraria) bem diversas, havendo não somente 20. D e 20 de set. de 1043, Denz.-Schõmn. 3825 e seg. História do Problema 17 a forma assertiva de uma narração histórica, que deseja descrever, testemunhar e comunicar acontecimentos, mas também narrativas míticas e legendárias, talvez com um núcleo histórico, mas tendo essencialmente certo conteúdo doutrinário sob um revestimento e pintura legendários, exprimindo portanto uma doutrina religiosa ou moral sob forma concreta de uma narrativa. A diferença dessas formas, sua peculiaridade e seu valor de afirmação devem ser de terminados. Nisso tudo se põe o problema do acontecer histórico, ou seja, a questão de saber se e até que ponto se devem narrar nos textos acontecimentos históricos ou um enunciado teológico de alcance religioso; logo, a questão do “sentido” propriamente dito do enun ciado. Por um lado, temos de contar com o fato de que muita coisa, mesmo no Novo Testamento e até nos Evangelhos, não há de ser entendida historicamente, ao pé da letra, e sim sob a forma de narrativas concretas, baseadas num núcleo histórico, mas que se apresentam querigmaticamente, destacando a pessoa e a doutrina de Jesus e querendo anunciar a sua mensagem, ou seja, fazendo uma afirmação teológica. D e outro lado, a mensagem cristã assenta tão essencialmente sobre o acontecimento histórico e salvífico da Encarnação, da Revelação e da Redenção no homem concretamente histórico que fo i Jesus Cristo, cuja vida e obras, morte, ressurreição testemunham, que justamente o sucesso histórico pertence ao “sen tido” que deve ser compreendido, de modo que não se podem separar inteiramente o sentido próprio e o acontecimento histó rico, porque precisamente não se alcança o verdadeiro sentido, quando se quer separá-lo do fato histórico. Com isto, porém, põe-se a tarefa, d ifíc il em particular, de ponderar e lim itar em que sentido cada texto há de ser entendido. Mas no fundo está o problema básico da relação entre a pes quisa histórico-crítica e a aceitação crente do texto pela tradição da vida e da doutrina da Igreja. As duas coisas devem atuar juntas, estando uma relacionada com a outra e dependendo dela. Eis por que, como a discussão mais recente tomou notório,21 se exige a colaboração entre o exegeta e o dogmático, se é que se deseja resolver a atual problemática da compreensão da B íb lia e atingir o pleno sentido da Escritura. 21. C f. K. R A H N E R , Exegese und Dogm atik, na obra com o mesmo títu lo editada por H . V O R G R IM L E R , M ainz 1962. 18 Questões Fundamentais de Hermenêutica Por mais que aqui se encontre um problema especial, visto que os escritos bíblicos nos transmitem um acontecimento de Re velação, a questão remonta ao problema mais geral da compreen são histórica. Também os livros da Sagrada Escritura se tornaram históricos, foram redigidos m im determinado horizonte de com preensão, que sob muitos aspectos está afastado e é estranho a nós. Portanto, podemos ou devemos, para entender seu sentido, pres supor certa (ou seja, moderna) imagem do mundo e do homem, relacionando com ela nossa compreensão? Ou será que se pode — e se deve — manter aberta a pré-compreensão historicamente con dicionada (que necessariamente trazemos conosco) para aprender e compreender aquilo que se nos depara na palavra, mesmo que não lhe corresponda, parecendo talvez algo inesperado e surpreen dente, absurdo e incompreensível, ou até mesmo destruidor do ho rizonte de compreensão adotado até agora, mas justamente por isso abra e amplie para novas possibilidades de compreensão? Em todo caso — e isso é que nos interessa — no fundo das questões bíblico-teológicas, reside uma quantidade de problemas filosóficos, e nem só com relação à compreensão histórica em geral ou à das ciências do espírito, mas também para a própria filosofia. É esse fundo histórico do problema que pretendemos mostrar a seguir. 2. O problema filosófico a ) O problema da compreensão 1. Em um contexto filosófico surge, pela primeira vez, o problema do conceito e da questão da hermenêutica, em F rie- drich Schleiermacher. E le tomou o termo da linguagem tecnoló gica, mas o problema bíblico-hermenêutico da correta compreen sãoe interpretação da Sagrada Escritura é posto por ele no ho rizonte mais amplo de uma interpretação histórica e literária — que se dirá mais tarde ser das ciências do espírito — que ele procura esclarecer filosoficamente. Isso sobretudo em suas prele ções sobre Hermenêutica,22 mas o problema hermenêutico está presente em todas as suas outras obras. A hermenêutica é para Scheleiermacher a “arte da compreensão” ou, mais exatamente, 22. F R . S C H L E IE R M A C H E R , Herm eneutik, Obras 1/7. H istória do Problema 19 uma arte que, como tal, não visa o saber teórico, mas sim o uso prático, isto é, a práxis ou a técnica da boa interpretação de um texto falado ou escrito. Trata-se aí da “compreensão”, que se tor nou desde então o conceito básico e a finalidade fundamental de toda a questão hermenêutica. 23 Schleiermacher quer compreender cada pensamento ou expressão a partir do conjunto de um “con texto vital”, do qual provém. A í faz distinção entre a compreensão “divinatória”, só possível plenamente entre espíritos aparentados e significando uma adivinhação espontânea, oriunda de uma em- patia viva, de uma vivência naquele que se quer compreender, e a compreensão “comparativa”, que se apóia em uma m ultiplicidade de conhecimentos objetivos, gramaticais e históricos, deduzindo o sentido a partir da comparação ou do contexto dos enunciados. 24 Enquanto a compreensão divinatória significa uma adivinhação imediata ou apreensão imediata do sentido, a compreensão com parativa consiste numa elaboração da compreensão por meio de múltiplos dados particulares. Que os dois métodos precisem atuar em conjunto, mostra-se já por uma espécie de círculo hermenêu tico, no qual o momento divinatório significa a projeção espontânea de uma precompreensão, graças à qual se guia a elaboração com parativa. Realmente, ambos os momentos formam de tal modo uma unidade que Schleiermacher pode definir a hermenêutica como a “reconstrução histórica e divinatória, objetiva e subjetiva, de um dado discurso”. 25 Ao mesmo tempo, Schleiermacher acentua que para tanto é necessário um “aprofundar-se” no autor, uma “vivên cia” em sua situação e intenção, em seu mundo de idéias e repre sentações. Esse pensamento fo i desde então muitas vezes repetido, mas sua validade fo i recentemente posta em dúvida, ou pelo menos relativizada por Gadamer. 2. O problema da compreensão põe-se com nova força, as sim que a reflexão se aplica à particularidade e aos métodos essen cialmente próprios das ciências históricas, distinguindo-se expres samente das ciências naturais. Ê o que se deu, depois do trabalho preliminar de Ranke, principalmente pelo Grundriss der Historik (1868), de K. J. Droysen, o qual caracteriza a diferença entre os 23. C f. K. O. A P E L, “ Das Verstehen” (eine Problemgeschichte ais Be- griffsgeschichte), em Archiv fü r Begriffsgeschichte, 7 .° vol., Bonn, 1955, pp. 142-199. 24. Obras I I I /2 , pp. 380 ss. 25. Obras 1 /7 , pp. 31 ss. 20 Questões Fundamentais de Hermenêutica métodos das ciências naturais e os históricos pelos dois conceitos: “esclarecimento” e “compreensão”. Esclarecer significa a redução causal de cada fenômeno.a leis gerais e necessárias; compreender, pelo contrário, corresponde a apreender o individual em sua pe culiaridade e em sua significação. Também aqui emerge de novo a idéia que é de importância fundamental para toda compreensão e que perdura na problemática da hermenêutica atual: “O in divíduo se compreende pelo todo, e o todo pelo indivíduo”. 26 Isto já mostra uma estrutura essencialmente circular da compreensão. W ühelm D ilthey retoma o problema e o leva adiante com relação ao conjunto da problemática das ciências do espírito, prin- cipalmente na Einleitung in die Geisteswissenschaften ( 1883) 27 e mais tarde na Aufbau der geschichtlichen W e lt ( 1910).28 D ilthey apóia-se expressamente em Schleiermacher; é dele a biografia de Schleiermacher, até hoje não ultrapassada29 e na qual estuda lon gamente a hermenêutica no pensamento desse autor. D ilthey foi o primeiro a formular a dualidade de “ciências da natureza e ciências do espírito”, que se distinguem por um método analítico- esclarecedor e um procedimento de compreensão descritiva. “Es clarecemos por meio de processos intelectuais, mas compreende mos pela cooperação de todas as forças sentimentais na apreensão, pelo mergulhar das forças sentimentais no objeto”. 30 Como funda mento da compreensão das ciências do espírito, D ilthey estabelece uma “psicologia compreensiva”, que se opõe explicitamente à psi cologia das ciências naturais, casualmente esclarecedora. “A natu reza, nós a esclarecemos, mas a vida da alma, nós a compreende mos”. 31 Exige-se, entretanto, para isso, que o individual seja, apreendido no conjunto do todo, compreendido por D ilthey como unidade da vida, donde brota cada uma das manifestações vitais. “Na compreensão, partimos dáT conexão do todo, que nos é dado vivo, para, por meio dele, tom ar apreensível para nós o in d ivi dual”. 32 Enquanto essa posição repercutiu amplamente no do- 26. K. D R O YSEN , Grundriss der H istorik, Leipzig, 1968, pp. 9 s. 27. W . D IL T H E Y , Cesammelte Schriften, 7 .° vol., Leipzig-B erlin, 1923. 2 8 . O p cit., 7 .° vol., Leipzig-B erlin, 1927. 29. W . D IL T H E Y , Leben Schleiermachers, Berlin, 1966. 30. W . D IL T H E Y , E inleitung in die Geisteswissenschaften, Leipzig,“1883, p. 328. ' 31. W . D IL T H E Y , Ideen tíber eine beschreíbende und zergliedemde Psychologie, B erlin, 1894, p. 1314. 32. Loc. cit., p. 1342. H istória do Froblema 21 m ínio da psicologia, o próprio D ilthey — sób a impressão da crí tica do psicologismo feita por Rickert e Husserl — abandonou de pois a fundamentação psicológica das ciências do espírito: sua teoria da comprensão passa a ter uma orientação objetiva. A com preensão refere-se a formas objetivas históricas, cujas estruturas e legalidades devem ser aprendidas. São “objetivações da vida”, que ele designa também, com a expressão de Hegel, como “es pírito objetivo”. 33 Essas objetivações da vida são o objeto das ciências do espírito: trata-se de compreendê-las. N a medida, po rém, em que brotam da vida e objetivam o evento vital, a “vivência” constitui o acesso à compreensão. Na vivência se abre a unidade da vida, pela qual se há de compreender cada uma das manifesta ções vitais. Logo, a compreensão se funda na vivência: “A com- jpreensão pressupõe uma vivência”. 34 F o i justamente a essa concepção psicológica, com a qual D ilthey ficou ainda por demais estreitamente preso, que se opôs decidida mente Heinrich Rickert, aludindo à compreensão de conteúdos ideais de sentido e de valor, a qual, a bem dizer, nada tem a ver com uma vivência no sentido de “convivência empática”, mas é de ordem essencialmente diversa. Rickert rejeita também a denomi nação “ciências do espírito” e fala, em oposição à ciência natural, de história e culturas históricas.35 Por conseguinte, já então se toma problemático o conceito de “ciências do espírito”. Rickert caracteriza os tipos de ciência pelo fato de ser a natureza explicada por leis, ao passo que a história e as culturas históricas são com preendidas por seus valores. Não é nossa intenção acompanhar aqui mais detidamente o con ceito de compreensão como fo i empregado por Droysen, Dilthey, Rickert e outros, e como isso repercute na discussão posterior, tanto psicológica como da teoria da ciência. Em todo caso, cum pre reter aqui a verdade de que a “compreensão” se opõe a “es clarecimento”, caracterizando a diferença do conhecimento histó rico ou de ciência, do espírito em relação aos métodos de ciências naturais, e, além, disso, a verdade de que a' compreensão deum 33. W . D IL T H E Y , “ D er Aufbau der geschichtlichen W e lt in den Geistes- wissenschaften” , Gesammelte Schriften, 7 .° vol., Leipzig-B erlin, 1927, pp. 146- 152. 34. Loc. cit., p. 143. 35. H . R IC K E R T , D ie Grenzen der m turwissenschaftlichen Begriffsbil- dung, Freiburg im Breisgau, 1896; ID E M Kulturwissenschaft und Naturwis- senschaft Freiburg im Breisgau. 22 Questões Fundamentais dc Herm enêutica conteúdo individual aparece condicionada por uma totalidade si multaneamente apreendida ou pressuposta, e que mais tarde — sobretudo desde Husserl e Heidegger — se exprime pelo conceito “horizonte”. Ao mesmo tempo, vê-se aqui claramente o fundo epis- temológico-filosófico que vai in flu ir na problemática bíblico-teoló gica. Enquanto o “método histórico-crítico”, no sentido do século X IX , se encontra, é verdade, no âmbito da pesquisa histórica, mas sob a imagem ideal do “esclarecimento” das ciências naturais, o movimento bíblico-hermenêutico quer, além disso, fazer valer a exigência da “compreensão”, que se mostrou como o método essen cialmente próprio das ciências históricas e do espírito, e com maior razão se requer na interpretação da Escritura. 3. Um passo adiante, e importante em relação ao problema hermenêutico — passo preparado, em parte, por D ilthey e sua escola, em parte, pela fenomenologia de Husserl, embora m uito mais profundamente superada, deu-o M artin Heidegger, em Ser e Tempo (1927), onde faz recuar a “compreensão” à existência do ser-aí,36 tomando-se então um “existencial”, isto é, um elemento constitutivo de toda constituição ontológica do ser-aí humano. Não se trata mais apenas de compreensão psicológica do outro homem e de suas manifestações vitais. Não é também questão da compre ensão, própria das ciências do espírito, de formas e estruturas de sentido histórico. Trata-se antes de uma compreensão original, que antecede a dualidade de “explicar” e “compreender” — como modos típicos do conhecimento de várias ciências — e é dado com o pró prio “ser da existência”, na medida em que a existência (o ser-aí) é marcada com a compreensão do ser. Quando Heidegger, guiado pela questão do “sentido do ser”, empreende uma análise existen cial-ontológica da existência humana, a qual quer descobrir e expor fenomenologicamente a constituição original da compreensão ontológica fundada na existência, vê-se a braços com uma “her menêutica da existência”, ou seja, de uma interpretação compreen siva do que é o ser-aí e de como se compreende a si mesmo.37. M ais tarde, o próprio Heidegger dirá que o títu lo “hermenêutica” 36. M . H E ID E G G E R , Sein und Z e if, H alle, 1927 (10.a ed., Tiibingen, 1963): sobre a “ compreensão” especialmente o § 31, “ Das Dasein ais Verste- hen” , pp. 142-148, e § 32, “ Verstehen nnd Auslegung” , pp. 148-153. 37. Sein und Z e if, p. 37: “ Fenom enologia da existência é hermenêutica na acepção original da palavra, segundo a qual designa a tarefa da interpre tação” . H istória do Problema 23 se lhe tom ou fam iliar pelo estudo da Teologia, surgindo-lhe desde aí o problema da relação entre a palavra da Sagrada Escritura e o pensamento teológico-especulativo, e, de envolta com isso, a questão da relação entre a linguagem e o ser. “Sem essa proce dência teológica, nunca eu teria chegado ao caminho do pensa mento. A procedência ( H erkunft), porém, fica sendo sempre por Vir (Z uku nft)” 3S. Acrescenta que encontra mais tarde a palavra “hermenêutica” em D ilthey, que conhecia o conceito pela mesma fonte, a saber, a Teologia, sobretudo através de Schleiermacher. Mas Heidegger emprega o termo num sentido mais amplo e mais ori ginal, “na amplitude que provém da essência prim itiva”. A her menêutica no Ser e Tempo não quer dizer a arte da interpretação, nem a própria interpretação, mas antes a tentativa de determinar a essência da interpretação antes de tudo pela hermenêutica como ta l,39 isto é, pela essência hermenêutica da existência, a qual, compreendendo-se originalmente, interpreta a si mesma no mun do e na história. Hermenêutica toma-se assim interpretação da prim itiva compreensão do homem em si e do ser. Em sua análise da compreensão, Heidegger fala do “círculo hermenêutico”, 40 que, quanto à realidade, já era conhecido por Schleiermacher, Droysen e D ilthey, mas só por Heidegger fo i ex pressamente formulado, entrando desde então em toda discussão da atualidade sobre o problema hermenêutico. Toda compreensão apresenta uma “estrutura circular”, visto que só dentro de uma totalidade já dada de sentido uma “coisa” se manifesta como uma “coisa”, e uma vez que toda interpretação — como elaboração da compreensão — se move no campo da compreensão prévia, pres- supondo-a portanto como condições de sua possibilidade. “Toda interpretação, para produzir compreensão, deve já ter compreendi do o que se vai interpretar”. 41 D ai resulta ao mesmo tempo a essencial “estrutura de horizonte” da compreensão e interpretação. A existência como “ser no mundo” projeta o “mundo” qual ho rizonte de sua autocompreensão. Toda compreensão de uma coisa, de um acontecimento ou de um estado de coisas em seu “sentido” exige como condição de sua possibilidade o todo de um contexto de' sentido — de uma totalidade de conexões, como diz o filósofo — 38. Unterwegs zur Sprache, 2.a ed., Pfullingen, p. 96. 39. O p. cit., p. 97. 40. Sein und Z eit, pp. 152 s. 41. Op. cit., p. 152. 24 Questões Fundamentais de Hermenêutica do mundo anteplanejado e precompreendido.42 No Heidegger do primeiro período, em Ser e Tempo, e também nos escritos seguin tes, o mundo é entendido como projeto do mundo do ser-aí, que anteprojeta seu “poder ser”, ou seja, suas possibilidades de ser como totalidade de sentido da própria auto-realização e, portanto, como horizonte da própria autocompreensão. M ais tarde, Heidegger com preende o mundo mais expressamente a partir do ser, que se ma nifesta e ao mesmo tempo se oculta historicamente. O mundo se toma assim “clareira do ser, na qual o homem se destaca a partir de sua essência atirada”. 43 O mundo, por conseguinte, encontra seu fundamento no ser, como horizonte da compreesão, a nós atri buído ontológico-historicamente. Nas ultimas obras, esse horizonte histórico de compreensão será mais explicitamente fundado na lin guagem, por que toda compreensão se consuma na linguagem e nela se constitui o horizonte histórico da compreensão.44 É na linguagem que o ser chega à fala e que a compreensão original do ser se expõe historicamente. Por isso, o Heidegger dos últimos tempos não fala mais de hermenêutica, m al se referindo também a tempo e história. Seu pensamento se concentra, antes, no acon tecimento da linguagem, o qual procura esclarecer a partir do ser. É justamente por esse motivo que o pensamento do Heidegger posterior se tomou de novo hermenêuticamente importante, in fluindo de modo decisivo na problemática hermenêutica do pre sente, mesmo no domínio teológico. F o i mérito de Hans-Georg Gadamer haver recolhido as in dicações de Schleiermacher, D ilthey e Heidegger, tendo-as elabo- borado numa teoria filosófica da compreensão.45 Também ele volta a falar no “círculo hermenêutico”, no sentido de Heidegger, e mos tra o significado positivo do “preconceito”. Esse termo adquiriu um sentido pejorativo a partir do Ilum inism o, com a tentativa de elaborar uma ciência sem pressupostos, ou seja, sem preconceitos. Gadamer esforçou-se por revalorizar a palavra, que não significa outra coisa senão uma “precompreensão” historicamente transmi tida e ainda cientificamente irrefletida, a qual, independentemente da medida em que alcança o pleno sentido da coisa, já permite 42. Sobre a análisedo “ m undo” , cf. Sein und Z eit, sobretudo pp. 63-88. 43. Platons Lehre von der W ahrheit m it einem B rief über den Hum a nismus, Bern, 1947, p. 100. 44. Particularmente em Unterwegs zur Sprache, loc. cit. 45. H .-G . G A D A M E R , W ahrheit und M ethode, Grundzüge einer philoso phischen Herm eneutik, Tübingen, 1961, 2.a ed., 1965. História do Problema 25 um primeiro acesso da compreensão; preparando uma compreensão mais ampla e mais profunda, pelo que será pressuposta por esta. O autor procura solucionar o problema que decorre da diferença de modos de encarar em cada uma das precompreensões, o que é condicionado pelo horizonte, historicamente determinado, da com preensão, admitindo um encontro e uma fusão dos horizontes. Não se trata, pois, tanto, como se exigia quase sempre desde Schleierma- cher, de “se colocar” uma pessoa no ponto de vista de outra (do autor de uma obra do passado, por exemplo) para se poder com- preendê-lo corretamente, mas antes, “nós” é que devemos e que remos entendê-lo, a saber, de nosso ponto de vista histórico. Mas podemos alargar, mediante a compreensão de outro, nosso próprio horizonte lim itado, realizando-se então uma fusão dos horizontes. Isto, porém, é condicionado em sua possibilidade pela própria his tória. A conexão “historicamente causal” proporciona a possibilidade da compreensão, enquanto a palavra pronunciada no passado se atua e se expõe na história, e assim penetra em nosso próprio e caracterizado horizonte de compreensão. Junto a Gadamer temos — igualmente representativo para a hermenêutica filosófica da atualidade — E m ílio Betti, cuja obra volumosa desenvolve uma “teoria geral da interpretação”. 46 Betti procede da hermenêutica da história do direito, mas estende-se a todo problema metodológico das ciências do espírito e remonta a seús pressupostos filosóficos. Nisso permanece essencialmente li gado à tradição hermenêutica de Schleiermacher até D ilthey, ao passo que Gadamer se prende muito mais decididamente' à feno- menologia, aceitando sobretudo os princípios Heideggerianos, con tinuando-os e tomando-os fecundos para o problema da compreen são histórica. Desde ponto de vista, ajusta contas, de um modo bem | crítico, com a antiga doutrina da compreensão, que vai do roman tismo até o historicismo: sentido em que Gadamer aprofunda e leva mais longe que Betti a posição filosófica do problema. D e ou tro lado, contudo, Gadamer permanece numa hermenêutica sim plesmente fenomenológica, que procura apontar o que na com preensão histórica “acontece realmente”, sem elaborar uma herme nêutica que desse regras e indicações sobre o que “deve acontecer” na interpretação. A doutrina de interpretação de Betti, pelo con- 46. 7. E . B T T I, Teoria generale delia Interpretazione, 2 vols., M ilão, 1955. Além da trad. alemã dessa obra, cf. o escrito m enor: D ie Herm eneutik ais allgemeine M ethodik der Geisteswissenschaften, Tübingen, 1962. 26 ÇuestÕes Fundamentais de Hermenêutica trário, é inteiramente normativa, isto é, uma teoria metodológica que se estende a todos os domínios da compreensão das “ciências do espírito”, ou seja, da hermenêutica histórica, filológica, ju rí dica, teológica, etc. e, portanto, como metodologia particularizada, sobrepuja largamente o esclarecimento filosófico das bases, feito por Gadamer.47 Importando-nos aqui principalmente as questões da base filosófica da hermenêutica, a posição de Gadamer é mais importante para nós. Como toda compreensão se consuma na linguagem, como o horizonte da compreensão se expõe nela e como o acontecimento “historicamente causal”, indicado por Gadamer, é um acontecimento da linguagem, apresenta-se — ao lado de todos os problemas ob jetivos que nos são juntamente propostos com vistas à questão her menêutica — antes de tudo o problema da linguagem, que nesse contexto adquire uma importância_grimaciaL b ) O problema da linguagem Uma filosofia da linguagem, desligada, de um lado, da lógica e da gramática, e, de outro lado, da lingüística, procurando com preender o acontecimento da linguagem em sua unidade e origi nalidade, começa propriamente com Hamann e Herder, e amadu rece com W ilhelm von Hum boldt. Provém, portanto, do mesmo âmbito espiritual de que brotou a questão hermenêutica de Sch- leiermacher,48 impregnado da filosofia de Kant e do idealismo es peculativo, mas ao mesmo tempo da cosmovisão viva e orgânica do romantismo. 1. Este início da filosofia da linguagem significa algo de novo em relação a todas as reflexões anteriores sobre a linguagem, que houve desde antigamente sob m últiplas formas. De uma con cepção m ítica e mágica da linguagem, para a qual a palavra e a coisa formavam uma unidade, dando portanto o saber do nome poder sobre a própria coisa, faz-se já na Grécia prim itiva a distin- 47. Sobre a discussão a esse respeito entre Gadamer e B etti, cf. G A D A M E R , op. cit., pp. 492 ss. 4 8 . A respeito do problema da linguagem em geral, cf. sobretudo K. O. 'j A P E L , “ D ie Idee der Sprache in der Tradition des Humanismus von Dante l! bis V ico” , A rchiv fü r Begriffsgeschickte, vol. 8, Bonn, 1963; B. L IE B R U C K S , Sprache und Bewusstsein, Frankfurt, 1964 e segs; H .-G . G A D A M E R (e d .) Das Problem der Sprache (8 .° Congresso Alemão de F ilo so fia ), Heidelberg, 1966; G . JANOSKA, D ie sprachlichen Grundlagen der Philosophie, Graz, 1962. H istória do Problema 27 ção entre çuaig e Xoyoç, ou seja, entre mundo e palavra, realidade e enunciado lingüístico. Em Heráclito, entretanto, essa dualidade é mantida numa unidade de tensão, enquanto o Xaystv ainda não se fixa numa “designação” posterior e exterior do objeto, mas en tende-se o Xoyoç como aquilo que originariamente desvenda o ser e o sentido.49 Desde o Crátilo de Platão e sobretudo nos escritos lógicos de Aristóteles, tomou-se predominante a concepção da linguagem como simples sistema convencional de sinais para de signar conteúdos já pensados, visando a compreensão na socie dade. A palavra refere-se ao conceito, e a linguagem à essência das coisas. Quanto mais se procura atingir pelo pensamento a es sência eterna e imutável, mais se deve entender e apreciar a lin guagem como pertencente a este mundo passageiro e transitório. O pensamento puro (voeetv do voug alcança o predomínio sobre o Xoyoç da linguagem (Xeyetv).50 Essa concepção da linguagem, na qual aparece em primeiro | plano a função designadora dos objetos, mas não se divisa mais a totalidade viva do acontecimento lingüístico em sua prim itiva função criadora e reveladora do sentido, penetra na tradição de quase toda filosofia ocidental. E la fica valendo para a filosofia estóica da linguagem, do mesmo modo que para a escolástica medieval, tanto para o realismo como para o nominalismo na disputa dos universais, ou até para Guilherme de Ockham, embora este critique, a partir do uso concreto da linguagem, a concepção realista de Platão. A visão da linguagem como pura designação não será superada nem pelo racionalismo, com seu modelo lin guístico de uma “mathesis universalis” (matemática universal) em Descartes e Leibniz, nem pela crítica lingüística do empirismo em Locke e Berkeley. Além disso, a moderna teoria lingüística dos sinais se une à mudança do pensamento do ser para a essência; dessa forma, a palavra como sinal subordina-se à pura essência. 49. C f. H . B O E D E R , Grund und Gegenwart der frühgriechischen P hi losophie, D en Haag, 1962, principalm ente pp. 73 e segs.; J. L O H M A N N , "Z ur Begegnung von griechischen und frühchristlichen Logosdenken” Lexis IV , Lahr i. B., 1954. 50. C f. K. O . A P E L , "D e r philosophische W ahrheitsbegriffeiner inhaltlich orientiert Sprachwissenschaft” , Sprache, Schlüssel zur W e lt (Hom enagem a L . W eisgerber). Düsseldorf, 1959; W . W IE L A N D , D ie aristotelische Physik, Göttingen, 1962. 28 Questões Fundamentais de Hermenêutica 2. Uma concepção orgânica e originalmente total da lingua gem surge apenas no século X V III e começo do século X IX , pre parada de certo modo por Giambattista Vico (fl7 4 4 , mas desen volvida sobretudo por Johann Georg Hamann ( t 1788), Johann G ottfried Herder ( t 1803) e W ilhelm von Hum boldt ( f 1835) 51. Para Hamann, cuja concepção da linguagem apóia-se na doutrina cristã do Logos, juntando-se a um sentido recém-desperto da his tória, linguagem não é outra coisa senão razão e não uma deno minação posterior de alguma coisa já pensada ou conhecida; pelo contrário, a linguagem é “ mãe da razão e da revelação, seu alfa e ômega” 52: “razão é linguagem, Xoyoç” 53. Na linguagem realiza-se a percepção e compreensão prim itivas; ela é o instrumento e ao mesmo tempo o critério da razão . . . Nela reside a razão pura e conjuntamente sua crítica” 54. Já nessas palavras se prenuncia a crítica a Kant, que toma mais explícita na Metacrítica à Crítica ãa Razão Pura, de H erderss, com a objeção de que o retrocesso trans cendental de Kant até as condições prévias da possibilidade de conhecimento objetivo não chegou até a linguagem, não mostrou o acontecimento lingüístico como condição de conhecimento de objetos, nem exclareceu a origem e a essência da linguagem. E n quanto até então se tinha quase sempre colocado a linguagem na ordem técnica apenas, como expressão e enunciado do conheci mento, Herder funda a linguagem no sentimento, na vivência ime diata que cria uma expressão. Entretanto, assim se tem somente o conteúdo, e não a forma, que é obra da reflexão, da consciência, mas de tal modo que ambos os elementos se compenetram igual mente na origem e fazem brotar a linguagem. D a maneira mais clara se vê, porém, uma nova concepção da linguagem em W ilhelm von Hum boldt, que luta antes de tudo por uma compreensão da unidade viva da linguagem 56. Para ele, 51. C f. sobretudo E . C ASSIEER, Philosophie der symbolischen Formen, l . a parte: “ D ie Sprache” , Berlin, 1923, pp. 89-106. 52. D e Hamann a Jacobi: Briefwechsel m it Jakobi, ed. por Gildemeister, Gotha, 1868 (Cassirer 9 3 ). 53. D e Hamann a Herder, Schriften (R o th ), Vn, pp. 151 s. (Cassi rer, 9 3 ). 54. D e Hamann a Scheffner, Schriften (R o th ), V II, p. 216 (Cassirer 9 3 ). Ver a respeito R. U N G E R , Hamanns Sprachtheorie, München, 1905. 55. J. G. H E R D E R , Verstand und Erfahrung, Vernunft und Sprache, eine M etakritik zur K ritik der reinen V ernunft, Leipzig, 1799. C f. ID E M , Sprach- phüosophische Schriften, ed. por E . H eintel, Ham burg, 1960. 56. C f. E . CASSIRER, op. cit., pp. 98-106. História do Problema 29 trata-se de uma unidade, por oposição ao espirito individual e obje tivo, porque de fato cada um fala sua língua, mas ao mesmo tempo é introduzido por ela numa comunidade linguística e, dessa forma, no “espírito objetivo” de uma configuração histórica e cultural da humanidade. A linguagem é, além disso, a unidade na oposição de sujeito e objeto, na medida em que não estamos diante de uma objetividade subsistente e já dada — diríamos hoje: entendida po sitivamente — mas só na linguagem descobrimos o mundo e infe rimos seu sentido, visto que “as línguas não são propriamente meios de apresentar a verdade já conhecida, mas antes instrumentos para descobrir o ainda desconhecido” S7. Assim é primeiramenté na lin guagem que se oferece a totalidade de uma cosmovisão e é somente nessa totalidade já enunciada verbalmente que consiste a obje tividade. Eis também por que a linguagem deve ser considerada e entendida em seu todo. A abstração e a análise de palavras e regras isoladas, como se faz na dissecação científica, nunca esclarecerá essa totalidade. Quando Hum boldt afinal entende a linguagem como a síntese de matéria e forma, remonta a Kant, mas ao mesmo tempo o ultrapassa. Kant vira em todo o conhecimento uma “síntese do m últiplo”, a multiplicidade do conteúdo da intuição sensível é levada à unidade por ação espontânea do sujeito e pensada como una. A síntese é guiada e possibilitada por princípios aprioristas da unidade, os conceitos puros de entendimento, surgidos da uni dade transcendental do puro “eu penso”. Se, porém, em Kant o conhecimento se consuma, como síntese do m últiplo, no juízo, exprimindo-se portanto lingüisticamente na proposição, Hum boldt vê nele um evento lingüístieo, no qual uma determinação formal se junta à função significadora de conteúdo de um conceito, fazendo com que esse pensamento, transposto para determinada categoria de pensamento, ou seja, inserto em determinado oontexto lingüís- tico, se refira ao todo da linguagem e por ele seja compreendido. Também aqui encontramos de novo, mas agora com relação ao aoontecimento lingüístieo, o problema da compreensão do parti cular no todo de um contexto de sentido e de significação, herme- neuticamente importante. “Também aqui, matéria e forma, recep tividade e espontaneidade — como antes as oposições de individual e “geral”, de “subjetivo” e “objetivo” — não são fragmentos soltos, 57. “ Über das vergleichende Sprachstudium“ (1 8 2 0 ): Obras, IV , pp. 2 Í ss. (Cassirer 102). 3 * Questões 30 Questões Fundamentais de Hermenêutica de que se compusesse o processo da linguagem, mas momentos necessariamente conexos desse mesmo processo genético, só se paráveis em nossa análise” S8. Essa nova concepção da linguagem, tanto original como to- talizante, que aparece em Hamann, Herder e Humbold, mal teve em seu tempo reconhecido seu significado filosófico: não se impôs totalmente. Já muitas vezes se aludiu ao que há de trágico em que, de um lado, a grande filosofia da época, o idealismo trans cendental, que vai de Kant a Hegel, não tenha captado essas indi cações, fazendo da linguagem um problema explícito e não de senvolvendo uma filosofia da linguagem 59, ao passo que, do outro lado, o novo impulso a uma compreensão mais profunda da lingua gem, por mais legítimo e justificado que seja no fundo, não tenha nem de longe alcançado o nível filosófico do idealismo especula tivo, não passando de proposições iniciais de um desenvolvimento sistemático, e, por isso, não chegando a se impor. A filosofia da linguagem ficou à margem do pensamento filosófico. 3. Por intermédio da hermenêutica de Schleiermacher é que se tem pela primeira vez em D üthey uma concepção transcen dental — hermenêutica da linguagem, visando a “compreensão” — reduzida, em todo caso, ao âmbito das ciências do espírito — pelo todo de um acontecimento histórico e lingüístico, mostrando con- seqüentemente a este como condição da possibilidade da com preensão histórica. Isso penetra, como já se indicou, no pensamento de Heidegger, o qual retoma e leva adiante o problema, enquanto, já no Ser e Tempo fundamenta a linguagem na compreensão exis tencial-ontológica e histórico-hermenêutica da existência. A lingua gem pertence à constituição existencial do ser-aí ( Dasein) como compreensivo “ser-no-mundo”. Se, porém, o Heidegger posterior se ocupa sempre mais intensamente com a linguagem, sobre tudo na obra Unterwegs zur Sprache (1959), sucede aí, de certo modo, um aprofundamento e, conjuntamente, um estreitamento de sua concepção da linguagem. Aprofundamento enquanto procura 58. E . CASSIRER, op. c it, p. 105. 59. Mostram princípios de filosofia da linguagem em Hegel: f. D E R B O - L A V , “ Hegel und die Sprache. E in Beitrag zur Standortbestimmung der Sprach- philosophie im Systemdenken der
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