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Hermenêutica - Questões fundamentais de hermenêutica - Emerich Coreth

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F IC H A C A T A LO G R Á FIC A
(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte, 
Câmara Brasileira do L ivro, SP.)
C828q
Coreth, Em erich, 1919-
Questões fundamentais de hermenêutica; 
tradução de Carlos Lopes de Matos. São Pau­
lo, E P U , E d . da Universidade de São Paulo, 1973.
Bibliografia.
1. Análise (F ilo so fia ) 2 . B íb lia — Herme­
nêutica 3 . Hermenêutica 4 . Semântica (Filoso­
fia ) I. T ítu lo.
7 3 -1 0 0 7
C D D -1 1 0
-2 2 0 .6 3
-1 4 9 .9 4
Índices para o catálogo sistemático:
1. Análise linguística : F ilosofia 149.94
2 . Hermenêutica : M etafísica : F ilosofia 110
3. Hermenêutica bíblica 220.63
4 . Lingüística : Análise : F ilosofia 149.94
5 . Semântica : Filosofia 149.94
E M E R IC H C O R E TH
QUESTÕES F U N D A M E N T A IS 
DE H E R M E N Ê U T IC A
Tradução de
CARLOS LOPES D E M ATO S
E .P .U . — Editora Pedagógica © Universitária Ltda. 
E D IT O R A D A U N IV E R S ID A D E D E SÃO PA U LO 
São Paulo 1973
Tradução brasileira do original alemão: Grundfragen der Herme­
neutik, de Em erich Coreth, publicado por Verlag Herder KG , 
Freiburg im Breisgau/BR D © Verlag Herder, 1969.
© E .P .U . — Editora Pedagógica e Universitária Ltda. 
São Paulo 1973
Impresso na República Federativa do Brasil 
Printed in the Federative Republic o f Brazil
Í N D I C E
Introdução .................................................................................. 1
Capítulo I — História do Problem a........................................ 5
1. O problema teológico ............................................................................ 5
2 . O problema filosófico ........................................................................... 18
a ) O problema da compreensão .............................................................. 18
b ) O problema da linguagem .................................................................. 26
c ) O problema da mediação .................................................................... 34
Capítulo I I — Essência e Estrutura da Compreensão................. 45
1. O conceito da compreensão .............................................................. 45
2 . Compreensão como apreensão do sentido .................................... 53
3 . O m undo da compreensão ................................................................ 61
4 . O horizonte da compreensão ............................................................ 70
5 . O círculo da compreensão ................................................................ 81
6 . Sujeito e objeto da compreensão .................................................... 91
7 . Estruturas fundamentais da compreensão ...................................... 101
Capítulo I I I — Compreensão e H istó ria .......................................... 105
1. Compreensão espontânea .................................................................... 105
2. Lim ites da compreensão ....................................................................... 109
3 . Distância e encontro ................ 114
4 . Tradição e desenvolvimento do sentido .......................................... 123
5. Repercussão e interpretação .............................................................. 133
6 . Camadas de sentido da compreensão .............................................. 140
Capítulo IV — Compreensão e Verdade................................... 149
1. Verdade histórica ................................................................................. 149
2 . Retidão e manifestação ......................................................................... 159
3 . Horizonte do mundo e horizonte do ser .......................................... 166
4 . Hermenêutica e m etafísica ................................................................ 171
5 . O m undo de compreensão e o problema de Deus ..................... 180
6 . Hermenêutica e teologia ..................................................................... 191
IN T R O D U Ç Ã O
A hermenêutica é um problema fundamental da atualidade. 
Assim como o termo deriva do uso lingüístico da teologia, também 
o problema objetivo que ele designa se tornou mais incisivo so­
bretudo nas questões da justa compreensão bíbhco-teológica. En­
tretanto, essa questão acha-se intimamente conexa com o problema 
mais vasto da “comprensão” no âmbito histórico e em geral no 
das ciências do espírito. Toda compreensão e interpretação, po­
rém, tanto no sentido bíblico-teológico, como no histórico ou no 
das ciências do espírito, remonta essencialmente a pressupostos, 
cuja investigação e esclarecimento é tarefa da filosofia. Dessa ma­
neira, formulam-se questões de importância básica para a filoso- 
sofia em geral, ou seja, para sua possibilidade e metodologia sim­
plesmente. O problema da hermenêutica toma-se, assim, um pro­
blema fundamental — talvez pudéssemos dizer: o problema fun­
damental — no pensamento filosófico do presente. É o problema 
que tencionamos perscrutar nas páginas que se seguem.
O termo “hermenêutica” provém do verbo grego Tjpfwjvsusiv 
(bem como de seus derivados Yjp(jnjv£Uç e Yjpunjveta); significa decla- . 
rar, anunciar, interpretar ou esclarecer e, por últim o, traduzir. Apre­
senta, pois, uma m ultiplicidade de acepções, as quais, entretanto, 
coincidem em significar que alguma coisa é “tomada compreensí­
vel” ou “levada à compreensão”. Isso acontece em qualquer enuncia­
do lingüístico, que pretenda despertar uma compreensão, tomando 
algo inteligível. É o que sucede, principalmente, na interpretação 
ou esclarecimento de um enunciado talvez obscuro, de d ifíc il com­
preensão, como, por exemplo, um texto histórico ou literário, cujo
2 Questões Fundamentais de Hermenêutica
sentido não aparece imediatamente, mas deve antes ser tomado 
compreensível. E , por últim o, tal coisa ocorre na tradução de um 
texto, visto que toda tradução consiste na transposição de um 
complexo significativo para outro horizonte de compreensão lin - 
güística. Não há certeza filológica, mas só probabilidade, de que 
a palavra derive de Hermes, o mensageiro dos deuses, a quem se 
atribui a origem da linguagem e da escrita. O certo é que já 
em grego o termo significava de preferência, embora não exclu­
sivamente, a compreensão e a exposição de uma sentença dos 
deuses, de uma mensagem divina, como, digamos, de um oráculo 
de Delfos, o qual precisa de uma interpretação para ser apreen­
dido corretamente, ou seja, “levado à compreensão”. Dessa forma, 
o termo referia-se desde então a uma dimensão sacra: a compreen­
são e interpretação de uma palavra divina.
Ê por isso que a palavra “hermenêutica” fo i primeiramente 
formada e empregada no dom ínio teológico, surgindo, porém, 
apenas na era moderna — como títu lo de livro, encontra-se desde 
os séculos X V II e X V III — no sentido de uma “arte da compreen­
são” ou de uma “doutrina da boa interpretação”, a saber, no sen­
tido bíblico de uma interpretação correta e objetiva da Escritura.
O problema, entretanto, é m uito mais antigo e mais amplo. 
Não é somente a Escritura Sagrada que sempre apresentou pro­
blemas de interpretação. Também nos textos profanos surgiu a 
questão de um modo correto de interpretar os textos. Obras l i ­
terárias, testemunhos históricos, velhos textos legislativos, etc., de­
vem ser compreendidos corretamente e interpretados num sentido 
que será talvez, portanto, encarado neste contexto mais amplo. 
A hermenêutica bíblica, por um lado, tem m uita afinidade com a 
hermenêutica histórico-filológica, dado que cumpre, em primeiro 
lugar, tratar e compreender os textos da Escritura (fazendo-se 
abstração do seu conteúdo de Revelação divina) como testemu­
nhos literário-históricos,iguais a outros textos escritos do mesmo 
gênero. Por outro lado, a hermenêutica bíblica tem certo paren­
tesco com a jurídica, enquanto em ambas se trata de textos que 
falam normativamente e autoritariamente, tendo por si pretensão 
a validez e obrigatoriedade, e neste sentido são apresentados ao 
intérprete, para serem compreendidos e expostos em todos os seus 
detalhes com esse caráter. Depara-se-nos assim um horizonte mais 
vasto, em que se insere o problema bíblico, embora afinal ele 
ocupe uma posição singular, enquanto se trata da palavra de Deus,
Introdução 3
mas transmitida numa palavra humana e histórica, isto é, em 
escritos elaborados pelos homens, surgidos na história e trans­
mitidos por ela, devendo, portanto, ser investigados conforme sua 
origem histórica, seu modo de pensar histórico e sua maneira de 
falar. Ao mesmo tempo, porém, cumpre indagar qual seu sentido 
mais profundo e mais próprio, a saber, a palavra da Revelação 
divina, que neles nos fala.
Como se vê hoje mais que nunca, cumpre enquadrar o pror 
blema da hermenêutica bíblica num amplo contexto das ciências 
do espírito e sobre o fundo dos pressupostos teórico-científicos, 
metodológioos e também filosóficos postos em evidência desde 
Schleiermacher, e depois particularmente por D ilth ey e Heidegger, 
terminando recentemente por Gadamer, herdeiro e continuador 
dessa tradição.
Mas também por isso, no campo teológico, o significado da 
palavra '“hermenêutica” mudou profundamente nos últimos de­
cênios. Esta chamava-se primeiramente a “arte” da compreensão, 
como ciência prática, que formulava as regras de uma oorreta 
| interpretação da Escritura, e portanto relacionava-se imediatamen- 
1 te com a “práxis” do trabalho exegético, servindo a ele. Para este, 
exigia-se, a fim de ser levado a efeito corretamente, o conheci­
mento das respectivas línguas, do ambiente histórico e cultural 
em que a obra surgiu, a consideração da peculiaridade literária e 
estilística, da situação concreta e da intenção do autor, a interpre­
tação do texto em particular através do contexto, etc. Somente a 
mais nova hermenêutica, influenciada pelas ciências do espírito 
e pela filosofia, mostrou gradativamente que subjazem a isso tudo 
problemas mais profundos e mais fundamentais. Que significa afi­
nal “compreender”? Como é possível uma compreensão histórica, 
desde que cada um tem seu horizonte de compreensão, histórica e 
lingüisticamente concreto, que o antecede e ao qual se acha preso, 
condicionando uma determinada “precompreensão” do objeto? Exis­
tirá algo como um encontro ou fusão de vários horizontes histó­
ricos da compreensão? Será que isso é possibilitado pela própria 
história, a saber, por uma conexão histórico-causal, onde a pala­
vra historicamente pronunciada se efetua e interpreta no decorrer 
da história, penetrando em nosso próprio horizonte da compreensão 
e tornando assim possível a compreensão dos testemunhos de um 
passado histórico? E não há na base de tudo isso um entendimento 
mais original como condição da possibilidade de compreensão
4 Questões Fundamentais de Hermenêutica
histórica, isto é, uma autocompreensão e compreensão do ser ori­
ginalmente humana, mas que se interpreta historicamente? Não 
se coloca, porém, aí insistentemente a questão da verdade? Desapa­
rece, de todo, nosso conhecimento num acontecer histórico-causal 
que condiciona o horizonte sempre mutável da compreensão his­
tórica? O u será que nos atinge, na própria história, a exigência 
absoluta da verdade? O que significa essa exigência e oomo po­
demos corresponder-lhe?
Essas perguntas indicam já a problemática filosófica contida 
na palavra hermenêutica, como a entendemos hoje. Não se trata 
apenas do problema da interpretação teológica da Escritura, nem 
se trata somente das questões mais amplas da compreensão e in- 
. terpretação históricas das ciências do espirito, mas sim do pro­
blema fundamental de ordem filosófica a respeito da compreensão 
em sua essência e em suas estruturas, suas condições e seus limites. 
São essas questões que tencionamos abordar em nosso livro.
Primeiramente, porém, numa parte ainda preparatória, quere­
mos caracterizar o fundo histórico da evolução do problema teo­
lógico e da problemática filosófica, nela pressuposta, vendo-a em 
suas linhas básicas essenciais (Cap. I ) . Sobre esse fundo enca­
ramos as questões objetivas de uma hermenêutica filosófica. Em 
primeiro passo, procuramos esclarecer em geral a essência e as 
estruturas essenciais da compreensão (Cap. I I ) , que numa fase 
posterior serão aplicadas mais concretamente aos fenômenos da 
compreensão histórica e continuam interpretando-se através delas 
(Cap. I I I ) . Em tudo isso, levanta-se inevitavelmente a questão da 
verdade, da qual nos ocuparemos na últim a parte; ela nos leva, por 
sobre o domínio histórico-hermenêutico, à dimensão do conheci­
mento e da compreensão metafísicos e teológicos (Cap. IV ).
Os capítulos deste trabalho remontam a preleções dadas no 
semestre de inverno de 1967 a 1968 na Faculdade de Filosofia do 
Colégio Berchman, em Pullach, M unique (como aulas extraordi­
nárias) e repetidas no semestre de verão de 1968 na Universidade 
de Innsbruck. O texto fo i consideravelmente reelaborado e comple­
tado, mas sua origem escolar ainda é bem sensível. Sua intenção 
primária não é desenvolver uma hermenêutica especial como meto­
dologia da teologia ou das ciências do espírito, mas introduzir nos 
problemas prévios de uma hermenêutica filosófica, e dentro des­
ses lim ites, contribuir um pouco a seu esclarecimento.
CAPÍTULO I
H IS T Ó R IA D O PR O B LE M A
1. O problema teológico
Visto que não só a palavra “hermenêutica” provém do âm­
bito teológico, mas também o problema objetivo da hermenêutica 
começou com as questões da interpretação da Escritura, tentemos 
primeiramente, em rápidas pinceladas, desenvolver a história dos 
problemas bíblicos-teológicos, base da tão candente problemática 
atual.1
1. M uito mais antiga que o oonceito de hermenêutica, e con­
sequentemente m uito anterior ao hodierno problema da hermenêu­
tica, pôs-se a questão da correta interpretação da Escritura, em 
si. Já aparece como tarefa em relação aos escritos do Antigo Tes­
tamento. Assim, sabemos pelos Evangelhos da existência dos “es­
cribas”, de sua importância e sua influência. Temos ciência das . 
várias escolas e correntes da exegese bíblica no antigo judaísmo.
1. Sobre isso, cf. especialmente: G. E B E L IN G , “ Herm eneutik", R. G. G. 
I I I , 3.a ed., Tübingen, 1959, pp. 242-262; “ D ie neue Herm eneutik” , Neuland 
in der Theologie, ed. por J. M . Robinson e J. B. Cobb, tomo 2, Zürich 1965; 
R. M A R L fi, Das theologische Problem der Herm eneutik, M ainz, 1965; W . 
STR O LZ e O . L O R E T Z (E dito res), D ie hermeneutische Frage in der Theo­
logie, Freiburg i. Br., 1968; N . H E N R IC H S , Bibliographie der Hermeneutik 
und ihrer Anwendungsbereiche seit Schleiermacher. Düsseldorf, 1968.
6 Questões Fundamentais de Herm enêutica
E m contraposição, porém, surge o Novo Testamento, que tem 
desde o começo a pretensão de uma nova e indiscutivelmente au­
têntica interpretação da Escritura. E, pode-se dizer, um novo prin­
cípio hermenêutico, embora não fundado num novo conhecimento 
histórico: o acontecimento salvador em Jesus Cristo, em que o 
Antigo Testamento encontra seu acabamento. Ê nesse acabamento 
em Cristo que se deve compreender todo o Antigo Testamento: 
somente nele é que se patenteia todo o “sentido da Escritura”. 2
Contudo, na história da teohgia cristã, não se trata apenas 
da compreensão do Antigo Testamento, mas também, não menos, 
do Novo. Já na exegese patrística — nos Padres da Igreja desde 
osséculos I I e I I I — surge na realidade plenamente o problema 
hermenêutico, antes de tudo na oposição entre a escola de An- 
tioquia, que se atinha ao sentido histórico literal da narração b í­
blica, e a escola alexandrina, que procurava atingir um “sentido 
espiritual” mais elevado, em uma exposição simbólico-alegórica. 
Orígenes já unia cuidadosamente a investigação histórico-filoló­
gica do texto a uma consciência diferenciada do problema, distin­
guindo vários “sentidos” na Escritura. A dualidade de tendências 
na exegese bíblica continua entre os Padres latinos, com Jerônimo 
de um lado e Ambrósio do outro, ao passo que Santo Agostinho 
procura aliar esses dois modos de interpretar. Em todo caso, põe-se 
aqui já o problema em toda a sua amplitude, evidenciando que a 
questão hermenêutica da atualidade não é, no fundo, nova, mas 
retoma um antigo problema, ainda que de um outro modo e sob 
novos pontos de vista. A compreensão patrística da Escritura re­
percute, sob várias formas, na teologia da Idade Média, embora, 
sobretudo desde a alta escolástica, os textos da Sagrada Escritura 
sejam vistos preponderantemente em imediata conexão com a teo­
logia especulativa e sistemática, que se aplicam a eles, mas, por 
isso mesmo, postergando-se o aspecto propriamente hermenêutico- 
exegético. Sob o prisma da interpretação objetiva da Escritura, 
pode-se lamentá-lo ou rejeitá-lo; não se pode, entretanto, impugnar 
que também aí se encontra um determinado princípio hermenêu­
tico, consoante o qual o texto escriturístico contém enunciados dog­
máticos que devem ser entendidos no conjunto da doutrina e da 
tradição da Igreja.
2 . Ç f. Lc 24, 2 7 . “ E interpretou-lhes (5iijp|jtir)veocEv), em todas as Es­
crituras, o que se referia a ele próprio” ; cf. também Lc 24,32 e 45.
História do problema 7
2. A partir do começo da era moderna, o problema se agrava.
A Reforma apregoa a exigência de uma volta à pura palavra da 
Escritura. Conforme Lutero, a Bíblia não deve ser exposta segundo 
o ensino tradicional da Igreja, mas apenas compreendida por si 
mesma; ela é “sui ipsius interpres” (“intérprete de si mesma” ). O 
princípio da “Scriptura sola” representa um novo princípio herme­
nêutico, contra o qual a Igreja católica declara expressamente no 
Concílio de Trento que cabe à Igreja a interpretação da Escritura: 
“Compete-lhe o julgamento acerca do verdadeiro sentido e da 
explicação da Sagrada Escritura” 3 — outro princípio hermenêutico, 
que exige ser a Escritura compreendida a partir de todo o contexto 
da vida e da doutrina da Igreja. G. Ebeling tem certa razão ao 
reduzir fundamentalmente a divergência das confissões a uma opo­
sição entre os princípios hermenêuticos4: trata-se em cada caso de 
uma abordagem diferente do sentido da Escritura. Além disso, logo 
se desenvolveu na esfera do protestantismo uma teologia “ortodoxa”, 
cuja doutrina da “inspiração verbal” separa ainda mais a Escritura 
de seu original contexto histórico, fechando-se a uma compreensão 
histórica e exigindo que se entendesse cada palavra imediatamente 
como palavra de Deus.
O problema toma-se outra vez mais agudo, ainda que em sen­
tido oposto, pelo pensamento do üuminismo, que penetra len­
tamente até o domínio da teologia protestante. Já em John Locke 
e entre os livres-pensadores ingleses do início do século X V I I I 5, 
mostra-se claramente a tendência a reduzir o cristianismo ao plano 
de uma religião da razão natural e, portanto, excluir todo caráter 
de Revelação sobrenatural e de mistério. D e acordo com isso, tam­
bém a Sagrada Escritura deve ser entendida apenas no sentido de 
uma pura religião racional, excluindo-se tudo o que ultrapassa essa 
idéia. Toma-se então princípio hermenêutico o que se aprende e 
esclarece racionalmente. F o i de todo nesse sentido que Kcmt, na 
obra A religião dentro dos lim ites da razão pura, exige que s e , 
entenda a Escritura no sentido moral somente, mesmo quando, 
“levando-se em conta o texto (da Revelação), essa revelação pa-
3 . D E N Z IN G E R - S C H O N M E TZ E R , 1507; cf. J. N E U N E R - H . 
ROOS, Der GXaube der Kirche in den Urkunden der Lehrverkiindigung, 6.a 
ed., Regensburg, 1961, n .° 86.
4. G . E B E L IN G , op. cit.
5 . J. T O L A N D , A . C O L L IN S , M . T IN D A L entre outros.
8 Questões Fundamentais de Hermenêutica
reça muitas vezes forçada, ou até o seja na realidade”. 6 Não se 
deve expor a moral pela Bíblia, mas antes a Bíblia pela moral. 
Hegel igualmente interpretava os conteúdos cristãos da fé à luz 
de seu sistema: como momentos do autodesenvolvimento e da au­
to-revelação do espírito absoluto no mundo e na história. Enquanto 
a religião aprende seus conteúdos apenas na forma imperfeita da 
representação, o pensamento puro da filosofia capta-os na plena 
verdade. A qui como ali, evidencia-se claramente a tendência de 
compreender os conteúdos da Revelação da Escritura através dos 
pressupostos e do contexto de um determinado sistema filosófico, 
ou seja, em princípio, reduzir tudo ao plano racional da verdade 
evidente e filosoficamente demonstrável. Essas coisas, na reali­
dade, não se movem imediatamente no campo da exegese bíblica, 
mas em todo caso deram espiritualmente impulso à nova crítica 
da Bíblia, proveniente do círculo da esquerda hegeliana.
A vida de Jesus (1835) de D avid Friedrich Strauss fo i deci­
siva para a investigação crítica da Bíblia. A radicalidade de sua 
posição — Strauss acha que quase tudo o que está nas Escrituras 
pertence ao mito e deve ser cientificamente superado — desen­
cadeia em seu tempo uma violenta discussão, mas conduz à in ­
trodução do “método histórico-crítico” no campo da exege bíblica. 
Aliás, isso se relaciona com a irrupção de toda a pesquisa histórica, 
histórico-cultural e histórico-religiosa do século X IX , pela qual se 
ficou conhecendo sempre melhor a história do antigo Oriente, suas 
línguas e suas culturas, sua literatura e formas literárias, suas reli­
giões, seus mitos religiosos e formas de expressão. Assim se come­
çam a compreender os livros da B íb lia em seu ambiente, na his­
tória de seu surgimento e em sua peculiaridade. Temos aí uma 
profunda justificação e necessidade de uma investigação científica 
da Sagrada Escritura, embora fique de pé a questão de saber se 
com isso se atinge e compreende tudo, ou pelo menos o essencial.
Na realidade, a investigação histórico-crítica do século passado 
mostra muitas vezes a tendência a não apenas voltar-se contra a 
tradição de interpretação eclesiástica da B íblia e das doutrinas 
de fé que daí dimanam, mas também elim inar todo aoontecimento 
sobrenatural, toda revelação divina historicamente acontecida e 
contida nas Escrituras. Isso se vê no âmbito da teologia “liberal” 
do protestantismo, a qual, em nome de um estrito cientifidsm o —
6. J. K A N T , D ie Religion innerhalb der Grenzen der reinen V em unft, 
p. 158.
H istória do Problema 9
ou seja, de uma suposta ciência “objetiva”, que se movia também 
no terreno da pesquisa histórica inteíramente sob o ideal da in ­
vestigação exata das ciências naturais — queria investigar de um 
modo histórico e crítico os livros da Sagrada Escritura, excluindo 
tudo quanto não fosse apreensível ou aprovado por esse método 
científico. Remava assim na investigação bíblica da escola his­
tórico-crítica o princípio muitas vezes mais ou menos explícito — 
de novo, um princípio hermenêutico — de que é impossível uma 
intervenção de Deus neste mundo e na história, sendo pois insus­
tentáveis perante a crítica histórica todas as narrativas da Escritura 
sobre um fato de revelação, sobre eventos milagrosos, etc., e 
devendo, portanto, ser eliminado ou exposto de outro modo. Um 
dos últimos e ao mesmo tempo com certeza um dosmaiores re­
presentantes dessa corrente fo i Adolf von Ham ack (fl9 3 0 ), que 
criou no campo da pesquisa histórica-crítica coisas importantes e 
permanentes.
3. Contra isso, contudo, ergue-se o protesto do movimento 
hermenêutico, que surge da oposição contra 0 predomínio exclusivo 
da escola histórico-crítica, a saber, da idéia de que nessa consi­
deração e investigação da Escritura não há dúvida de que se fez 
algum trabalho valioso, esclarecendo-se m uita coisa pelo contexto 
histórico, mas que não se alcança e m uito m aios se entende o 
que é precisamente próprio, i.e., o “sentido” da Escritura, aquilo 
que fo i propriamente pensado e expresso. Além da pesquisa histó­
rico-crítica, impõe-se a tarefa de uma compreensão mais profunda, 
à qual unicamente se abrirá o verdadeiro sentido da palavra de 
Deus.
Nos fms do século passado, dentro da teologia protestante, 
levantaram-se nesse sentido vozes isoladas de protesto contra o 
método histórico-crítico, como fo i o caso de M artin Kahler (fl9 1 2 ), 
que já em 1892 enunciava a tese: “O Jesus histórico dos escritores 
modernos esconde-nos o Cristo vivo”. 7 O rompimento decisivo 
nessa direção fo i a Epístola aos romanos (1919) de K arl Barth. 
O importante sobretudo fo i o prefácio à segunda edição (1921), 
onde o autor ajustou contas com seus críticos, expondo fundamen­
talmente sua própria posição, mais desenvolvida amda na Dogmá­
tica eclesiástica (a partir de 1932). “A Epístola aos romanos de
7. M . K Ã H LE R , D er sogenannte historische Jesus und der geschicht- 
liche, biblische Christus, M iinchen, 1956, p. 16.
10 Questões Fundam entou de Hermenêutica
Barth estava expressamente sob o signo do problema hermenêutico; 
o método histórico-crítico não é, em si, recusado, mas relativizacjlo, 
tomando-se uma simples preparação da tarefa de compreensão 
propriamente dita.” 8 Ê essa “compreensão” — a idéia básica de 
todo movimento hermenêutico — que importa a Barth. Devemos 
compreender os escritos bíblicos como mensagem reveladora e sal­
vadora de Deus.
Rudolf Bultrm nn retoma a mesma idéia. Também ele se preo­
cupa com uma compreensão mais profunda da Escritura naquilo 
que é propriamente pensado. Seus caminhos, porém, são outros. 
Sua crítica se dirige bem cedo a Barth, porque este, a seu ver, 
não se atém com bastante rigor ao texto, não o investiga com uma 
crítica suficientemente histórica e filológica, mas torce-o preci­
pitadamente no sentido de sua exposição, forçando-o, e assim dei­
xando de promover a verdadeira compreensão da coisa, que passa 
a ser construída. Pelo contrário, cumpre pesquisar crítica e his­
toricamente o texto, com o que Bultm ann retoma expressamente 
ao método histórico-crítico, mas, justamente por isso, e partindo 
daí, devemos procurar chegar à compreensão do realmente pen­
sado e dito. Como Bultmann entende ooncretamente essa tarefa, 
vê-se claramente sobretudo por seu programa de “desmitização” 
e de “interpretação existencial”.
Consoante Bultmann, o modo de pensar e de falar da Sagrada 
Escritura, inclusive do Novo Testamento, caracteriza-se por uma 
“concepção mítica”. “M ítica” significa para ele “um modo de re­
presentação no qual o que não é deste mundo, o divino, aparece 
como sendo deste mundo, como humano, e o que é do além, 
como sendo daqui, onde, por exemplo, a transcendência de Deus 
é pensada como distância espacial; um modo de representar con­
forme o qual o culto será entendido como um comércio, obtendo-se 
forças imateriais por meios materiais”9; portanto, um modo de 
representar segundo o qual Deus e as forças divinas aparecem ime­
diatamente no mundo à maneira das coisas e forças intramun- 
danas, agindo imediatamente no mundo e interferindo, sem mais, 
na vida do homem no mundo. Em oposição total a isso, está a 
concepção do mundo da ciência hodierna, que representa o mundo
8. G . E B E L IN G , “ Henneneutik” , R . O . G . I I I , p. 256.
9. R . B U L T M A N N , Neues Testament und Mythologie: Kerygma und 
Mythos, I , 2.a ed., Ham burg-Volksdorf, 1951, p. 22.
H istória do Problema 11
todo como um conjunto determinado por forças próprias e leis 
internas. Logo, se quisermos entender a Sagrada Escritura com 
justeza, no sentido verdadeiramente pensado, temos de tirar seus 
enunciados de uma concepção longínqua e estranha, ou seja, 
mítica, para transpô-la em nossa atual concepção do mundo. Essa 
tarefa é que se chama “desmitização”; “não consiste numa elim i­
nação de enunciados míticos, mas em sua interpretação.. não se 
trata de uma operação subtrativa, e sim de um método herme­
nêutico”. 10
Enquanto a palavra “desmitização” designa um aspecto ne­
gativo, “interpretação existencial” significa o aspecto positivo do 
mesmo processo de interpretação. Se temos de traduzir os enun­
ciados da Escritura, passando de um âmbito mitológico de repre­
sentação para a moderna compreensão de nós mesmos e do mun­
do, isso significa aos olhos de Bultmann chegar a uma compreen­
são “antropológico-existencial” do homem no mundo. “O m ito não 
há de ser interpretado cosmologicamente, mas sim antropologica- 
mente, ou melhor, existencialmente.” 11 Cumpre, portanto, inter­
rogar em cada caso: O que significa isso para o homem? Qual o 
significado disso para m inha existência humana concreta? Desse 
modo, “a m itologia do Novo Testamento não deve ser perguntada 
a respeito de seu conteúdo objetivo de representação, mas acerca 
da compreensão da existência expressa nessas representações”. 12 
Quando, pois, Bultmann pretende transpor os enunciados bíblicos 
na atual compreensão de nós mesmos e do mundo, para com isso 
obter primeiramente o horizonte da real compreensão, pressupõe 
determinada imagem do mundo e do homem, segundo a qual os 
enunciados bíblicos devem ser interpretados. Para isso, Bultmann 
assume, quanto ao método e ao conteúdo, elementos essenciais 
da análise existencial-ontológica do ser, tal como se apresenta no 
Ser e Tempo de M . Heidegger (1927), embora desenvolva e su­
pere a interpretação que Heidegger dá da existência humana, so­
bretudo no que diz respeito à abertura do homem para com a pa­
lavra de Deus. É essa interpretação da existência humana, tirada 
de Heidegger, que Bultmann toma como base para a interpretação 
da Escritura: um princípio hermenêutico de sua compreensão da
10. Z um Problem der Entm ythoíogisierung: Kerygma und M ythos, II, 
Ham burg-Volksdorf, 1952, p. 185.
11. Ken/gma und M ythos, J, p. 22.
12. Ib ià ., p. 23.
12 Questões Fundamentais de Hermenêutica
Bíblia. Está convicto de que a análise existencial de Heidegger, ou 
“hermenêutica da existência”, fornece “os conceitos objetivos e jus­
tos para falar da existência humana”, 13 a saber, quando Heidegger 
concebe a existência humana como “ser-no-mundo” composto de 
tempo e história, escapando o “ser de ser-aí” como “poder-ser”, i. e., 
como um projeto sempre novo das possibilidades de ser, situado na 
decisão entre propriedade e impropriedade e finalmente como “ser 
para a morte”.
Se, contudo, os enunciados bíblicos não devem ser entendidos 
em seu conteúdo “objetivamente”, mas apenas em sua significação 
“existencial”, verifica-se que, para Bultmann, passa a um segundo 
plano a questão das realidades históricas, a que se referem as nar­
rativas. Assim é que perde totalmente importância o problema do 
“Jesus histórico”, em face do “Cristo da fé”, o qual, independen­
temente de toda realidade histórica e demonstrável, é a única coisa 
que tem importância existencial para o crente, agindo como “even­
to de Cristo” na história e convocando para a decisão da fé.
A posição de Bultmann suscita uma série de difíceis e impor­
tantes problemas, que até aqui apenas tocamos de leve. Pode a 
interpretação da Escritura pressupor, sobretudo dessa maneira, umaimagem do inundo e do homem excogitada por certa filosofia, 
tomando-a princípio de compreensão, como se dá aqui com o 
primeiro pensamento de Heidegger? Mesmo prescindindo da ques­
tão se Bultmann reproduz bem a concepção heideggeriana ao to­
má-la somente sob o ponto de vista antropológico, sem encarar o 
problema fundamental de Heidegger, que é o de ser, põe-se a 
pergunta seguinte: se precisamente a comprensão da existência no 
Ser e Tempo de Heidegger é um princípio hermenêutico objetivo 
e justo da interpretação bíblica, ou se com isso não se aplica ex­
teriormente à Escritura um princípio alheio, que portanto não 
propicia uma compreensão real, mas a deturpa.
4. Por isso também levantou-se logo uma violenta crítica 
a Bultmann. Karl Barth, em primeiro lugar, protestou decidida­
mente, porque, a seu ver, Bultmann pôs antes o que viria depois, e 
vice-versa. Seu interesse seria em primeira linha a compreensão 
humana, referindo conseqüentemente os enunciados bíblicos ape­
nas à autocompreensão do homem. A palavra de Deus teria somente
13. R. B U L T M A N N , Glaube und Verstehen, Ges. Aufsätze, I I , Tüb in­
gen, 1952, p. 232.
H istória do Problema 13
significação para ele, enquanto serve a esse fim . Barth, pelo con­
trário, acentua que em primeiro lugar vem a palavra de Deus, a 
livre auto-revelação de Deus em Jesus Cristo, a qual não pode 
ter sido esperada ou calculada pelos homens e cujo sentido com 
maior razão não pode ser fixado num determinado e lim itado ho­
rizonte de autocompreensão humana. Para Barth, o que teria em 
primeiro lugar importância não seria a compreensão humana, mas 
a palavra de Deus, ou, com maior agudez: não se trata primeira­
mente do homem, mas de Deus, cuja palavra, por mais que seu 
mistério ultrapasse a plena compreensão por parte do homem, exi­
ge a abertura e a prontidão de ouvi-la e aceitá-la pela crença. 
Em Bultmann, portanto, ocorre, no dizer de Barth, “uma inversão, 
cheia de conseqüências, da ordem da salvação neotestamentária”.14
Sobre o fundo dessa questão entre Barth e Bultmann, oom a 
contribuição de D . Bonhoeffer, Fr. Gogarten, e M . Heidegger, 
continuaram a obra da hermenêutica, no campo da teologia pro­
testante, principalmente Gerhard E b eling 1S e Ernst Fuchs. 16 A 
teologia passa a ser determinada essencialmente como hermenêu­
tica. Nesse contexto, desenvolve-se no horizonte do problema atual 
da filosofia da linguagem uma teologia da palavra e da língua, 
porque revelação e fé são um “acontecimento da palavra” (Ebe­
lin g ) ou um “evento da linguagem” (Fuchs). Ficam com isso em 
parte superadas ou corrigidas as posições radicais de Bultmann, 
apresentando-se outra vez com renovada seriedade, embora crítica, 
a questão do “Jesus histórico”. Em todo acontecer histórico da 
palavra de Jesus, passando pela reflexão teológica até a atual pre­
gação da fé, estende-se um “arco hermenêutico”, em que a palavra 
da revelação se interpreta histórica e lingüisticamente, em que se 
ultrapassa, de um lado, o abismo entre a pretérita palavra de Deus 
e nossa atual compreensão, e, do outro lado, o abismo entre a 
teologia histórica e a sistemática.
14. K. B A R TH , R udolf Buhm ann. E in Versuch, ih n zu verstehen, Zürich, 
1953, p. 13.
15. G . E B E L IN G , Das W esen des christlichen Glaubens, Tübingen, 1959; 
ID E M , W ort und Glaube, Tübingen, 1960.
16. E . FU C H S , Herm eneutik, Bad Cannstatt, 1954; ID E M , Zum herme­
neutischen Problem in der Theologie, D ie existenziale Interpretation, Tübin­
gen, 1959.
2 - Questões
14 Questões Fundamentais de Hermenêutica
4 Na discussão hermenêutica da atualidade, Heinrich O tt17 adota 
uma posição própria e, a seu modo, digna de atenção — mesmo 
em relação a seus pressupostos filosóficos. E le é, por um lado, dis­
cípulo de Bultmann, mas, por outro, como reformado, aproxima-se 
da teologia de Karl Barth, de quem fo i sucessor na cátedra de 
teologia sistemática em Basiléia. Assim quer ser mediador entre 
Barth e Bultmann, apoiando, porém, as justificadas acusações de 
Barth, enquanto não parte, como Bultmann, do Heidegger anterior, 
que empreendia em Ser e Tempo uma interpretação existencial- 
ontológica da existência humana, mas sim do Heidegger posterior, 
que não se preocupa primariamente com o homem, mas de uma 
forma sempre mais exclusiva com o ser, e não compreende o ser 
como um projeto humano-temporal do ser, mas sim o homem como 
a “projeção” do ser, como a “clareira do ser”, como “o lugar da 
verdade do ser”, i. e., compreende-o como o acontecimento do 
ser. Heidegger concebe a história não primariamente como hu­
mana, mas como história e destino do ser, voltando-se antes de 
tudo à linguagem, que para ele é a “voz do ser”, na qual o ser 
historicamente se manifesta e simultaneamente se oculta, mas nos 
aponta o que historicamente se deve pensar e aquilo a que deve 
corresponder nosso pensamento e nossa linguagem. O tt vê nisso 
um ponto de partida mais próximo e mais próprio, mais adequado 
ao empenho da teologia em compreender o que se passa no acon­
tecim ento da Revelação. T a l coisa é correta enquanto o pensamento 
de Heidegger posterior, principalmente suas afirmações sobre a 
história e a linguagem, só é compreensível por sua origem teo­
lógica. Sua filosofia, sobretudo nos escritos posteriores, é sem 
dúvida uma teologia, embora radicalmente secularizada. Por isso, 
certos paralelos são tanto indiscutíveis quanto espantosos. Fica 
de pé, porém, a questão de saber se o pensamento de Heidegger 
oferece um ponto de partida adequado, principalmente porque 
aquilo que o filósofo chama ser não é Deus, nem pode em seu 
sentido ser exposto como sendo Deus.
17. H . O T T , Geschichte und 'Heüsgeschichte in der Theologie R udolf 
Bultmanns, Tübingen, 1955; ID E M , Deriken und Sein, D er W eg M artin 
Heideggers und der W eg der Theologie, Zollikon, 1959; ID E M , D ie Frase 
nach dem historíschen Jesus und die Ontologie der Geschichte, Zürich, 1960; 
ID E M , Dogm atik und Verkündigung, Zürich, 1961; ID E M , “ W as ist si/ste- 
matische Theologie?v ZThK . Caderno Suolementar 2, pp. 19-46; reimpresso em: 
D er spStere Heidegger und die Theologie, ed. por J. M . Robinson e J. B. 
Kobb, l . ° vol., Zürich, 1964, pp. 95-133.
H istória do Problema 15
5. Entretanto, o problema de uma hermenêutica bíblica não 
se reduz ao âmbito da teologia protestante, embora atinja aí sua 
maior agudeza. O mesmo problema se apresenta para a exegese 
e teologia católicas. Se dentro do protestantismo, nas últimas dé­
cadas, se verificou uma divergência entre a pesquisa histórico-crí­
tica da Escritura e as exigências de uma compreensão mais pro­
funda da Revelação, também na esfera do catolicismo se deu se­
melhante divergência já por volta da passagem do século, com o 
modernismo. D e que se tratava no fundo, vê-se de modo bem 
claro pela discussão entre Alfred Loisy, o chefe do modernismo, e 
o filósofo católico Maurice Blondel. 18 Enquanto que Loisy se 
move no campo do método histórico-crítico e exerce em nome da 
ciência moderna uma ampla crítica da Escritura e da interpretação 
tradicional da Bíblia, Blondel, ainda que reconhecendo a investi­
gação científica, faz valer a importância da tradição histórica da 
vida e da doutrina da Igreja para uma compreensão mais pro­
funda da Bíblia. Trata-se, pois, já aqui da verdadeira compreensão 
da vida, fora do que é apreensível e demonstrável histórica e cri­
ticamente. Ê o mesmo problema que surge mais tarde na dis­
cussão da teologia protestante acerca do problema hermenêutico. 
E Blondel assume nele um ponto de vista que, desde então, na 
problemática total da compreensão histórica, se confirmou e apro­
fundou de muitos modos, se bem que a compreensão da SagradaEscritura, como mensagem salvífica de Deus, acabe tomando uma 
posição especial.
Mas, naquela altura, interrompeu-se bruscamente a discussão. 
Devido a um zelo, que hoje diríamos talvez excessivo, pela con­
servação da fé e da compreensão eclesiástica da Escritura, a Igre­
ja condenou em 1907 o modernismo.19 Nos anos seguintes, a co­
missão publicou diretivas particularizadas, visando a interpretação 
católica da Bíblia. Com isso, estabeleceram-se nos decênios se­
guintes estreitos lim ites para a ciência católica da Sagrada Escri­
tura. Só m uito mais tarde, quando já estava em pleno andamento 
na teologia protestante a discussão sobre o sentido da B íblia à luz
18. C f. R. M A R L É , A u coeur de la crise moderniste. L e dossier inédit 
d ’une controverse, Paris, 1960. Também ID E M , Das theologische Problem der 
Herm eneutik, M ainz, 1965, pp. 112-127.
19. Decreto do Santo O fíc io Lam entabili, de 3 de julho de 1907, Denz- 
Schönm. 3401-3466, e endclica de P IO X Pascendi dom inici gregis, de 8 de 
set. de 1907, Denz.-Schönm . 3475-1500.
16 Questões Fundamentais de Hermenêutica
da pesquisa mais recente e do problema hermenêutico, é que se 
deu maior liberdade para os estudiosos católicos. Pioneira nessa 
direção fo i a grande encíclica bíblica de Pio X II, de 1943 ( D ivino 
Afflante Spiritu) , 20 que perm itiu fundamentalmente os métodos 
científicos de investigação e interpretação da Escritura. O mesmo 
espírito de abertura para a problemática moderna impregna tam­
bém a Constituição do I I Concílio Vaticano sobre a revelação di­
vina ( D ei Verbum ), o qual exige que se veja e que se compreenda 
a Escritura em íntim a união com a tradição, porque a única re­
velação de Deus nos é transmitida na Escritura e na tradição; 
contudo, a relação mais próxima entre ambas ficou em suspenso, 
deixada à posterior discussão doutrinária. Acentua-se igualmente o 
caráter humano e divino da Escritura. Enquanto ela é palavra 
humana, pronunciada e transmitida através da história, deve ser 
investigada histórico-criticamente com os meios da ciência mo­
derna, quanto à origem histórica de cada um dos livros e quanto 
à maneira de pensar e de falar aí vigente. Apesar disso, ela cons­
titu i um todo, em que se manifesta a mensagem salvadora de Deus, 
mensagem transmitida na fé da Igreja e que continua a operar 
o se interpreta na vida e na doutrina da Igreja, devendo, por isso, 
ser entendida a partir desse contexto total e vivamente histórico.
Com isso se abriu, em princípio, o caminho para a pesquisa e 
interpretação científicas da Sagrada Escritura. Mas os problemas 
daí decorrentes não estão solucionados, e sim apenas propostos 
pela primeira vez como tarefa no horizonte da questão hermenêu­
tica. Não nos ocuparemos aqui com o tema, mas apontaremos, nos 
fundamentos do problema filosófico da hermenêutica, as principais 
questões que se põem hoje em dia no campo da teologia bíblica.
De toda investigação histórica e crítico-literária resultou que 
deve ser reestudada a história das origens de cada um dos escritos 
bíblicos. Sabemos, por exemplo, há m uito tempo, que o Pentateuco, 
ta l como o temos, não provém do próprio Moisés, mas data de uma 
época muito posterior, embora se apóie em antigas tradições, nele 
conservadas. O mesmo se diga de muitos outros livros, para cuja 
plena compreensão é de grande importância hermenêutica o co­
nhecimento da data e circunstâncias de origem.
Sabemos igualmente que há formas literárias e maneiras de 
expressão (g enera litteraria) bem diversas, havendo não somente
20. D e 20 de set. de 1043, Denz.-Schõmn. 3825 e seg.
História do Problema 17
a forma assertiva de uma narração histórica, que deseja descrever, 
testemunhar e comunicar acontecimentos, mas também narrativas 
míticas e legendárias, talvez com um núcleo histórico, mas tendo 
essencialmente certo conteúdo doutrinário sob um revestimento e 
pintura legendários, exprimindo portanto uma doutrina religiosa 
ou moral sob forma concreta de uma narrativa. A diferença dessas 
formas, sua peculiaridade e seu valor de afirmação devem ser de­
terminados.
Nisso tudo se põe o problema do acontecer histórico, ou seja, 
a questão de saber se e até que ponto se devem narrar nos textos 
acontecimentos históricos ou um enunciado teológico de alcance 
religioso; logo, a questão do “sentido” propriamente dito do enun­
ciado. Por um lado, temos de contar com o fato de que muita 
coisa, mesmo no Novo Testamento e até nos Evangelhos, não há 
de ser entendida historicamente, ao pé da letra, e sim sob a forma 
de narrativas concretas, baseadas num núcleo histórico, mas que se 
apresentam querigmaticamente, destacando a pessoa e a doutrina 
de Jesus e querendo anunciar a sua mensagem, ou seja, fazendo 
uma afirmação teológica. D e outro lado, a mensagem cristã assenta 
tão essencialmente sobre o acontecimento histórico e salvífico da 
Encarnação, da Revelação e da Redenção no homem concretamente 
histórico que fo i Jesus Cristo, cuja vida e obras, morte, ressurreição 
testemunham, que justamente o sucesso histórico pertence ao “sen­
tido” que deve ser compreendido, de modo que não se podem 
separar inteiramente o sentido próprio e o acontecimento histó­
rico, porque precisamente não se alcança o verdadeiro sentido, 
quando se quer separá-lo do fato histórico. Com isto, porém, põe-se 
a tarefa, d ifíc il em particular, de ponderar e lim itar em que sentido 
cada texto há de ser entendido.
Mas no fundo está o problema básico da relação entre a pes­
quisa histórico-crítica e a aceitação crente do texto pela tradição 
da vida e da doutrina da Igreja. As duas coisas devem atuar juntas, 
estando uma relacionada com a outra e dependendo dela. Eis por 
que, como a discussão mais recente tomou notório,21 se exige a 
colaboração entre o exegeta e o dogmático, se é que se deseja 
resolver a atual problemática da compreensão da B íb lia e atingir 
o pleno sentido da Escritura.
21. C f. K. R A H N E R , Exegese und Dogm atik, na obra com o mesmo 
títu lo editada por H . V O R G R IM L E R , M ainz 1962.
18 Questões Fundamentais de Hermenêutica
Por mais que aqui se encontre um problema especial, visto 
que os escritos bíblicos nos transmitem um acontecimento de Re­
velação, a questão remonta ao problema mais geral da compreen­
são histórica. Também os livros da Sagrada Escritura se tornaram 
históricos, foram redigidos m im determinado horizonte de com­
preensão, que sob muitos aspectos está afastado e é estranho a nós. 
Portanto, podemos ou devemos, para entender seu sentido, pres­
supor certa (ou seja, moderna) imagem do mundo e do homem, 
relacionando com ela nossa compreensão? Ou será que se pode — 
e se deve — manter aberta a pré-compreensão historicamente con­
dicionada (que necessariamente trazemos conosco) para aprender 
e compreender aquilo que se nos depara na palavra, mesmo que 
não lhe corresponda, parecendo talvez algo inesperado e surpreen­
dente, absurdo e incompreensível, ou até mesmo destruidor do ho­
rizonte de compreensão adotado até agora, mas justamente por 
isso abra e amplie para novas possibilidades de compreensão?
Em todo caso — e isso é que nos interessa — no fundo das 
questões bíblico-teológicas, reside uma quantidade de problemas 
filosóficos, e nem só com relação à compreensão histórica em 
geral ou à das ciências do espírito, mas também para a própria 
filosofia. É esse fundo histórico do problema que pretendemos 
mostrar a seguir.
2. O problema filosófico
a ) O problema da compreensão
1. Em um contexto filosófico surge, pela primeira vez, o 
problema do conceito e da questão da hermenêutica, em F rie- 
drich Schleiermacher. E le tomou o termo da linguagem tecnoló­
gica, mas o problema bíblico-hermenêutico da correta compreen­
sãoe interpretação da Sagrada Escritura é posto por ele no ho­
rizonte mais amplo de uma interpretação histórica e literária — 
que se dirá mais tarde ser das ciências do espírito — que ele 
procura esclarecer filosoficamente. Isso sobretudo em suas prele­
ções sobre Hermenêutica,22 mas o problema hermenêutico está 
presente em todas as suas outras obras. A hermenêutica é para 
Scheleiermacher a “arte da compreensão” ou, mais exatamente,
22. F R . S C H L E IE R M A C H E R , Herm eneutik, Obras 1/7.
H istória do Problema 19
uma arte que, como tal, não visa o saber teórico, mas sim o uso 
prático, isto é, a práxis ou a técnica da boa interpretação de um 
texto falado ou escrito. Trata-se aí da “compreensão”, que se tor­
nou desde então o conceito básico e a finalidade fundamental de 
toda a questão hermenêutica. 23 Schleiermacher quer compreender 
cada pensamento ou expressão a partir do conjunto de um “con­
texto vital”, do qual provém. A í faz distinção entre a compreensão 
“divinatória”, só possível plenamente entre espíritos aparentados 
e significando uma adivinhação espontânea, oriunda de uma em- 
patia viva, de uma vivência naquele que se quer compreender, e 
a compreensão “comparativa”, que se apóia em uma m ultiplicidade 
de conhecimentos objetivos, gramaticais e históricos, deduzindo o 
sentido a partir da comparação ou do contexto dos enunciados. 24 
Enquanto a compreensão divinatória significa uma adivinhação 
imediata ou apreensão imediata do sentido, a compreensão com­
parativa consiste numa elaboração da compreensão por meio de 
múltiplos dados particulares. Que os dois métodos precisem atuar 
em conjunto, mostra-se já por uma espécie de círculo hermenêu­
tico, no qual o momento divinatório significa a projeção espontânea 
de uma precompreensão, graças à qual se guia a elaboração com­
parativa. Realmente, ambos os momentos formam de tal modo uma 
unidade que Schleiermacher pode definir a hermenêutica como a 
“reconstrução histórica e divinatória, objetiva e subjetiva, de um 
dado discurso”. 25 Ao mesmo tempo, Schleiermacher acentua que 
para tanto é necessário um “aprofundar-se” no autor, uma “vivên­
cia” em sua situação e intenção, em seu mundo de idéias e repre­
sentações. Esse pensamento fo i desde então muitas vezes repetido, 
mas sua validade fo i recentemente posta em dúvida, ou pelo menos 
relativizada por Gadamer.
2. O problema da compreensão põe-se com nova força, as­
sim que a reflexão se aplica à particularidade e aos métodos essen­
cialmente próprios das ciências históricas, distinguindo-se expres­
samente das ciências naturais. Ê o que se deu, depois do trabalho 
preliminar de Ranke, principalmente pelo Grundriss der Historik 
(1868), de K. J. Droysen, o qual caracteriza a diferença entre os
23. C f. K. O. A P E L, “ Das Verstehen” (eine Problemgeschichte ais Be- 
griffsgeschichte), em Archiv fü r Begriffsgeschichte, 7 .° vol., Bonn, 1955, pp. 
142-199.
24. Obras I I I /2 , pp. 380 ss.
25. Obras 1 /7 , pp. 31 ss.
20 Questões Fundamentais de Hermenêutica
métodos das ciências naturais e os históricos pelos dois conceitos: 
“esclarecimento” e “compreensão”. Esclarecer significa a redução 
causal de cada fenômeno.a leis gerais e necessárias; compreender, 
pelo contrário, corresponde a apreender o individual em sua pe­
culiaridade e em sua significação. Também aqui emerge de novo 
a idéia que é de importância fundamental para toda compreensão 
e que perdura na problemática da hermenêutica atual: “O in ­
divíduo se compreende pelo todo, e o todo pelo indivíduo”. 26 Isto 
já mostra uma estrutura essencialmente circular da compreensão.
W ühelm D ilthey retoma o problema e o leva adiante com 
relação ao conjunto da problemática das ciências do espírito, prin- 
cipalmente na Einleitung in die Geisteswissenschaften ( 1883) 27 e 
mais tarde na Aufbau der geschichtlichen W e lt ( 1910).28 D ilthey 
apóia-se expressamente em Schleiermacher; é dele a biografia de 
Schleiermacher, até hoje não ultrapassada29 e na qual estuda lon­
gamente a hermenêutica no pensamento desse autor. D ilthey foi 
o primeiro a formular a dualidade de “ciências da natureza e 
ciências do espírito”, que se distinguem por um método analítico- 
esclarecedor e um procedimento de compreensão descritiva. “Es­
clarecemos por meio de processos intelectuais, mas compreende­
mos pela cooperação de todas as forças sentimentais na apreensão, 
pelo mergulhar das forças sentimentais no objeto”. 30 Como funda­
mento da compreensão das ciências do espírito, D ilthey estabelece 
uma “psicologia compreensiva”, que se opõe explicitamente à psi­
cologia das ciências naturais, casualmente esclarecedora. “A natu­
reza, nós a esclarecemos, mas a vida da alma, nós a compreende­
mos”. 31 Exige-se, entretanto, para isso, que o individual seja, 
apreendido no conjunto do todo, compreendido por D ilthey como 
unidade da vida, donde brota cada uma das manifestações vitais. 
“Na compreensão, partimos dáT conexão do todo, que nos é dado 
vivo, para, por meio dele, tom ar apreensível para nós o in d ivi­
dual”. 32 Enquanto essa posição repercutiu amplamente no do-
26. K. D R O YSEN , Grundriss der H istorik, Leipzig, 1968, pp. 9 s.
27. W . D IL T H E Y , Cesammelte Schriften, 7 .° vol., Leipzig-B erlin, 1923.
2 8 . O p cit., 7 .° vol., Leipzig-B erlin, 1927.
29. W . D IL T H E Y , Leben Schleiermachers, Berlin, 1966.
30. W . D IL T H E Y , E inleitung in die Geisteswissenschaften, Leipzig,“1883,
p. 328. '
31. W . D IL T H E Y , Ideen tíber eine beschreíbende und zergliedemde 
Psychologie, B erlin, 1894, p. 1314.
32. Loc. cit., p. 1342.
H istória do Froblema 21
m ínio da psicologia, o próprio D ilthey — sób a impressão da crí­
tica do psicologismo feita por Rickert e Husserl — abandonou de­
pois a fundamentação psicológica das ciências do espírito: sua 
teoria da comprensão passa a ter uma orientação objetiva. A com­
preensão refere-se a formas objetivas históricas, cujas estruturas 
e legalidades devem ser aprendidas. São “objetivações da vida”, 
que ele designa também, com a expressão de Hegel, como “es­
pírito objetivo”. 33 Essas objetivações da vida são o objeto das 
ciências do espírito: trata-se de compreendê-las. N a medida, po­
rém, em que brotam da vida e objetivam o evento vital, a “vivência” 
constitui o acesso à compreensão. Na vivência se abre a unidade 
da vida, pela qual se há de compreender cada uma das manifesta­
ções vitais. Logo, a compreensão se funda na vivência: “A com- 
jpreensão pressupõe uma vivência”. 34
F o i justamente a essa concepção psicológica, com a qual D ilthey 
ficou ainda por demais estreitamente preso, que se opôs decidida­
mente Heinrich Rickert, aludindo à compreensão de conteúdos 
ideais de sentido e de valor, a qual, a bem dizer, nada tem a ver 
com uma vivência no sentido de “convivência empática”, mas é de 
ordem essencialmente diversa. Rickert rejeita também a denomi­
nação “ciências do espírito” e fala, em oposição à ciência natural, 
de história e culturas históricas.35 Por conseguinte, já então se 
toma problemático o conceito de “ciências do espírito”. Rickert 
caracteriza os tipos de ciência pelo fato de ser a natureza explicada 
por leis, ao passo que a história e as culturas históricas são com­
preendidas por seus valores.
Não é nossa intenção acompanhar aqui mais detidamente o con­
ceito de compreensão como fo i empregado por Droysen, Dilthey, 
Rickert e outros, e como isso repercute na discussão posterior, 
tanto psicológica como da teoria da ciência. Em todo caso, cum­
pre reter aqui a verdade de que a “compreensão” se opõe a “es­
clarecimento”, caracterizando a diferença do conhecimento histó­
rico ou de ciência, do espírito em relação aos métodos de ciências 
naturais, e, além, disso, a verdade de que a' compreensão deum
33. W . D IL T H E Y , “ D er Aufbau der geschichtlichen W e lt in den Geistes- 
wissenschaften” , Gesammelte Schriften, 7 .° vol., Leipzig-B erlin, 1927, pp. 146- 
152.
34. Loc. cit., p. 143.
35. H . R IC K E R T , D ie Grenzen der m turwissenschaftlichen Begriffsbil- 
dung, Freiburg im Breisgau, 1896; ID E M Kulturwissenschaft und Naturwis- 
senschaft Freiburg im Breisgau.
22 Questões Fundamentais dc Herm enêutica
conteúdo individual aparece condicionada por uma totalidade si­
multaneamente apreendida ou pressuposta, e que mais tarde — 
sobretudo desde Husserl e Heidegger — se exprime pelo conceito 
“horizonte”. Ao mesmo tempo, vê-se aqui claramente o fundo epis- 
temológico-filosófico que vai in flu ir na problemática bíblico-teoló­
gica. Enquanto o “método histórico-crítico”, no sentido do século 
X IX , se encontra, é verdade, no âmbito da pesquisa histórica, mas 
sob a imagem ideal do “esclarecimento” das ciências naturais, o 
movimento bíblico-hermenêutico quer, além disso, fazer valer a 
exigência da “compreensão”, que se mostrou como o método essen­
cialmente próprio das ciências históricas e do espírito, e com 
maior razão se requer na interpretação da Escritura.
3. Um passo adiante, e importante em relação ao problema 
hermenêutico — passo preparado, em parte, por D ilthey e sua 
escola, em parte, pela fenomenologia de Husserl, embora m uito 
mais profundamente superada, deu-o M artin Heidegger, em Ser e 
Tempo (1927), onde faz recuar a “compreensão” à existência do 
ser-aí,36 tomando-se então um “existencial”, isto é, um elemento 
constitutivo de toda constituição ontológica do ser-aí humano. Não 
se trata mais apenas de compreensão psicológica do outro homem 
e de suas manifestações vitais. Não é também questão da compre­
ensão, própria das ciências do espírito, de formas e estruturas de 
sentido histórico. Trata-se antes de uma compreensão original, que 
antecede a dualidade de “explicar” e “compreender” — como modos 
típicos do conhecimento de várias ciências — e é dado com o pró­
prio “ser da existência”, na medida em que a existência (o ser-aí) 
é marcada com a compreensão do ser. Quando Heidegger, guiado 
pela questão do “sentido do ser”, empreende uma análise existen­
cial-ontológica da existência humana, a qual quer descobrir e 
expor fenomenologicamente a constituição original da compreensão 
ontológica fundada na existência, vê-se a braços com uma “her­
menêutica da existência”, ou seja, de uma interpretação compreen­
siva do que é o ser-aí e de como se compreende a si mesmo.37. 
M ais tarde, o próprio Heidegger dirá que o títu lo “hermenêutica”
36. M . H E ID E G G E R , Sein und Z e if, H alle, 1927 (10.a ed., Tiibingen, 
1963): sobre a “ compreensão” especialmente o § 31, “ Das Dasein ais Verste- 
hen” , pp. 142-148, e § 32, “ Verstehen nnd Auslegung” , pp. 148-153.
37. Sein und Z e if, p. 37: “ Fenom enologia da existência é hermenêutica 
na acepção original da palavra, segundo a qual designa a tarefa da interpre­
tação” .
H istória do Problema 23
se lhe tom ou fam iliar pelo estudo da Teologia, surgindo-lhe desde 
aí o problema da relação entre a palavra da Sagrada Escritura e 
o pensamento teológico-especulativo, e, de envolta com isso, a 
questão da relação entre a linguagem e o ser. “Sem essa proce­
dência teológica, nunca eu teria chegado ao caminho do pensa­
mento. A procedência ( H erkunft), porém, fica sendo sempre por 
Vir (Z uku nft)” 3S. Acrescenta que encontra mais tarde a palavra 
“hermenêutica” em D ilthey, que conhecia o conceito pela mesma 
fonte, a saber, a Teologia, sobretudo através de Schleiermacher. Mas 
Heidegger emprega o termo num sentido mais amplo e mais ori­
ginal, “na amplitude que provém da essência prim itiva”. A her­
menêutica no Ser e Tempo não quer dizer a arte da interpretação, 
nem a própria interpretação, mas antes a tentativa de determinar 
a essência da interpretação antes de tudo pela hermenêutica como 
ta l,39 isto é, pela essência hermenêutica da existência, a qual, 
compreendendo-se originalmente, interpreta a si mesma no mun­
do e na história. Hermenêutica toma-se assim interpretação da 
prim itiva compreensão do homem em si e do ser.
Em sua análise da compreensão, Heidegger fala do “círculo 
hermenêutico”, 40 que, quanto à realidade, já era conhecido por 
Schleiermacher, Droysen e D ilthey, mas só por Heidegger fo i ex­
pressamente formulado, entrando desde então em toda discussão 
da atualidade sobre o problema hermenêutico. Toda compreensão 
apresenta uma “estrutura circular”, visto que só dentro de uma 
totalidade já dada de sentido uma “coisa” se manifesta como uma 
“coisa”, e uma vez que toda interpretação — como elaboração da 
compreensão — se move no campo da compreensão prévia, pres- 
supondo-a portanto como condições de sua possibilidade. “Toda 
interpretação, para produzir compreensão, deve já ter compreendi­
do o que se vai interpretar”. 41 D ai resulta ao mesmo tempo a 
essencial “estrutura de horizonte” da compreensão e interpretação. 
A existência como “ser no mundo” projeta o “mundo” qual ho­
rizonte de sua autocompreensão. Toda compreensão de uma coisa, 
de um acontecimento ou de um estado de coisas em seu “sentido” 
exige como condição de sua possibilidade o todo de um contexto 
de' sentido — de uma totalidade de conexões, como diz o filósofo —
38. Unterwegs zur Sprache, 2.a ed., Pfullingen, p. 96.
39. O p. cit., p. 97.
40. Sein und Z eit, pp. 152 s.
41. Op. cit., p. 152.
24 Questões Fundamentais de Hermenêutica
do mundo anteplanejado e precompreendido.42 No Heidegger do 
primeiro período, em Ser e Tempo, e também nos escritos seguin­
tes, o mundo é entendido como projeto do mundo do ser-aí, que 
anteprojeta seu “poder ser”, ou seja, suas possibilidades de ser como 
totalidade de sentido da própria auto-realização e, portanto, como 
horizonte da própria autocompreensão. M ais tarde, Heidegger com­
preende o mundo mais expressamente a partir do ser, que se ma­
nifesta e ao mesmo tempo se oculta historicamente. O mundo se 
toma assim “clareira do ser, na qual o homem se destaca a partir 
de sua essência atirada”. 43 O mundo, por conseguinte, encontra 
seu fundamento no ser, como horizonte da compreesão, a nós atri­
buído ontológico-historicamente. Nas ultimas obras, esse horizonte 
histórico de compreensão será mais explicitamente fundado na lin ­
guagem, por que toda compreensão se consuma na linguagem e 
nela se constitui o horizonte histórico da compreensão.44 É na 
linguagem que o ser chega à fala e que a compreensão original do 
ser se expõe historicamente. Por isso, o Heidegger dos últimos 
tempos não fala mais de hermenêutica, m al se referindo também 
a tempo e história. Seu pensamento se concentra, antes, no acon­
tecimento da linguagem, o qual procura esclarecer a partir do ser. 
É justamente por esse motivo que o pensamento do Heidegger 
posterior se tomou de novo hermenêuticamente importante, in ­
fluindo de modo decisivo na problemática hermenêutica do pre­
sente, mesmo no domínio teológico.
F o i mérito de Hans-Georg Gadamer haver recolhido as in ­
dicações de Schleiermacher, D ilthey e Heidegger, tendo-as elabo- 
borado numa teoria filosófica da compreensão.45 Também ele volta 
a falar no “círculo hermenêutico”, no sentido de Heidegger, e mos­
tra o significado positivo do “preconceito”. Esse termo adquiriu 
um sentido pejorativo a partir do Ilum inism o, com a tentativa de 
elaborar uma ciência sem pressupostos, ou seja, sem preconceitos. 
Gadamer esforçou-se por revalorizar a palavra, que não significa 
outra coisa senão uma “precompreensão” historicamente transmi­
tida e ainda cientificamente irrefletida, a qual, independentemente 
da medida em que alcança o pleno sentido da coisa, já permite
42. Sobre a análisedo “ m undo” , cf. Sein und Z eit, sobretudo pp. 63-88.
43. Platons Lehre von der W ahrheit m it einem B rief über den Hum a­
nismus, Bern, 1947, p. 100.
44. Particularmente em Unterwegs zur Sprache, loc. cit.
45. H .-G . G A D A M E R , W ahrheit und M ethode, Grundzüge einer philoso­
phischen Herm eneutik, Tübingen, 1961, 2.a ed., 1965.
História do Problema 25
um primeiro acesso da compreensão; preparando uma compreensão 
mais ampla e mais profunda, pelo que será pressuposta por esta. 
O autor procura solucionar o problema que decorre da diferença 
de modos de encarar em cada uma das precompreensões, o que é 
condicionado pelo horizonte, historicamente determinado, da com­
preensão, admitindo um encontro e uma fusão dos horizontes. Não 
se trata, pois, tanto, como se exigia quase sempre desde Schleierma- 
cher, de “se colocar” uma pessoa no ponto de vista de outra (do 
autor de uma obra do passado, por exemplo) para se poder com- 
preendê-lo corretamente, mas antes, “nós” é que devemos e que­
remos entendê-lo, a saber, de nosso ponto de vista histórico. Mas 
podemos alargar, mediante a compreensão de outro, nosso próprio 
horizonte lim itado, realizando-se então uma fusão dos horizontes. 
Isto, porém, é condicionado em sua possibilidade pela própria his­
tória. A conexão “historicamente causal” proporciona a possibilidade 
da compreensão, enquanto a palavra pronunciada no passado se 
atua e se expõe na história, e assim penetra em nosso próprio e 
caracterizado horizonte de compreensão.
Junto a Gadamer temos — igualmente representativo para a 
hermenêutica filosófica da atualidade — E m ílio Betti, cuja obra 
volumosa desenvolve uma “teoria geral da interpretação”. 46 Betti 
procede da hermenêutica da história do direito, mas estende-se a 
todo problema metodológico das ciências do espírito e remonta a 
seús pressupostos filosóficos. Nisso permanece essencialmente li­
gado à tradição hermenêutica de Schleiermacher até D ilthey, ao 
passo que Gadamer se prende muito mais decididamente' à feno- 
menologia, aceitando sobretudo os princípios Heideggerianos, con­
tinuando-os e tomando-os fecundos para o problema da compreen­
são histórica. Desde ponto de vista, ajusta contas, de um modo bem 
| crítico, com a antiga doutrina da compreensão, que vai do roman­
tismo até o historicismo: sentido em que Gadamer aprofunda e 
leva mais longe que Betti a posição filosófica do problema. D e ou­
tro lado, contudo, Gadamer permanece numa hermenêutica sim­
plesmente fenomenológica, que procura apontar o que na com­
preensão histórica “acontece realmente”, sem elaborar uma herme­
nêutica que desse regras e indicações sobre o que “deve acontecer” 
na interpretação. A doutrina de interpretação de Betti, pelo con-
46. 7. E . B T T I, Teoria generale delia Interpretazione, 2 vols., M ilão, 1955. 
Além da trad. alemã dessa obra, cf. o escrito m enor: D ie Herm eneutik ais 
allgemeine M ethodik der Geisteswissenschaften, Tübingen, 1962.
26 ÇuestÕes Fundamentais de Hermenêutica
trário, é inteiramente normativa, isto é, uma teoria metodológica 
que se estende a todos os domínios da compreensão das “ciências 
do espírito”, ou seja, da hermenêutica histórica, filológica, ju rí­
dica, teológica, etc. e, portanto, como metodologia particularizada, 
sobrepuja largamente o esclarecimento filosófico das bases, feito 
por Gadamer.47 Importando-nos aqui principalmente as questões 
da base filosófica da hermenêutica, a posição de Gadamer é mais 
importante para nós.
Como toda compreensão se consuma na linguagem, como o 
horizonte da compreensão se expõe nela e como o acontecimento 
“historicamente causal”, indicado por Gadamer, é um acontecimento 
da linguagem, apresenta-se — ao lado de todos os problemas ob­
jetivos que nos são juntamente propostos com vistas à questão her­
menêutica — antes de tudo o problema da linguagem, que nesse 
contexto adquire uma importância_grimaciaL
b ) O problema da linguagem
Uma filosofia da linguagem, desligada, de um lado, da lógica e 
da gramática, e, de outro lado, da lingüística, procurando com­
preender o acontecimento da linguagem em sua unidade e origi­
nalidade, começa propriamente com Hamann e Herder, e amadu­
rece com W ilhelm von Hum boldt. Provém, portanto, do mesmo 
âmbito espiritual de que brotou a questão hermenêutica de Sch- 
leiermacher,48 impregnado da filosofia de Kant e do idealismo es­
peculativo, mas ao mesmo tempo da cosmovisão viva e orgânica 
do romantismo.
1. Este início da filosofia da linguagem significa algo de 
novo em relação a todas as reflexões anteriores sobre a linguagem, 
que houve desde antigamente sob m últiplas formas. De uma con­
cepção m ítica e mágica da linguagem, para a qual a palavra e a 
coisa formavam uma unidade, dando portanto o saber do nome 
poder sobre a própria coisa, faz-se já na Grécia prim itiva a distin-
47. Sobre a discussão a esse respeito entre Gadamer e B etti, cf. G A D A ­
M E R , op. cit., pp. 492 ss.
4 8 . A respeito do problema da linguagem em geral, cf. sobretudo K. O. 
'j A P E L , “ D ie Idee der Sprache in der Tradition des Humanismus von Dante 
l! bis V ico” , A rchiv fü r Begriffsgeschickte, vol. 8, Bonn, 1963; B. L IE B R U C K S ,
Sprache und Bewusstsein, Frankfurt, 1964 e segs; H .-G . G A D A M E R (e d .) 
Das Problem der Sprache (8 .° Congresso Alemão de F ilo so fia ), Heidelberg, 
1966; G . JANOSKA, D ie sprachlichen Grundlagen der Philosophie, Graz, 1962.
H istória do Problema 27
ção entre çuaig e Xoyoç, ou seja, entre mundo e palavra, realidade 
e enunciado lingüístico. Em Heráclito, entretanto, essa dualidade 
é mantida numa unidade de tensão, enquanto o Xaystv ainda não 
se fixa numa “designação” posterior e exterior do objeto, mas en­
tende-se o Xoyoç como aquilo que originariamente desvenda o ser 
e o sentido.49 Desde o Crátilo de Platão e sobretudo nos escritos 
lógicos de Aristóteles, tomou-se predominante a concepção da 
linguagem como simples sistema convencional de sinais para de­
signar conteúdos já pensados, visando a compreensão na socie­
dade. A palavra refere-se ao conceito, e a linguagem à essência 
das coisas. Quanto mais se procura atingir pelo pensamento a es­
sência eterna e imutável, mais se deve entender e apreciar a lin ­
guagem como pertencente a este mundo passageiro e transitório. 
O pensamento puro (voeetv do voug alcança o predomínio sobre o 
Xoyoç da linguagem (Xeyetv).50
Essa concepção da linguagem, na qual aparece em primeiro 
| plano a função designadora dos objetos, mas não se divisa mais 
a totalidade viva do acontecimento lingüístico em sua prim itiva 
função criadora e reveladora do sentido, penetra na tradição de 
quase toda filosofia ocidental. E la fica valendo para a filosofia 
estóica da linguagem, do mesmo modo que para a escolástica 
medieval, tanto para o realismo como para o nominalismo na 
disputa dos universais, ou até para Guilherme de Ockham, embora 
este critique, a partir do uso concreto da linguagem, a concepção 
realista de Platão. A visão da linguagem como pura designação 
não será superada nem pelo racionalismo, com seu modelo lin ­
guístico de uma “mathesis universalis” (matemática universal) em 
Descartes e Leibniz, nem pela crítica lingüística do empirismo em 
Locke e Berkeley. Além disso, a moderna teoria lingüística dos 
sinais se une à mudança do pensamento do ser para a essência; 
dessa forma, a palavra como sinal subordina-se à pura essência.
49. C f. H . B O E D E R , Grund und Gegenwart der frühgriechischen P hi­
losophie, D en Haag, 1962, principalm ente pp. 73 e segs.; J. L O H M A N N , "Z ur 
Begegnung von griechischen und frühchristlichen Logosdenken” Lexis IV , 
Lahr i. B., 1954.
50. C f. K. O . A P E L , "D e r philosophische W ahrheitsbegriffeiner inhaltlich 
orientiert Sprachwissenschaft” , Sprache, Schlüssel zur W e lt (Hom enagem a L . 
W eisgerber). Düsseldorf, 1959; W . W IE L A N D , D ie aristotelische Physik, 
Göttingen, 1962.
28 Questões Fundamentais de Hermenêutica
2. Uma concepção orgânica e originalmente total da lingua­
gem surge apenas no século X V III e começo do século X IX , pre­
parada de certo modo por Giambattista Vico (fl7 4 4 , mas desen­
volvida sobretudo por Johann Georg Hamann ( t 1788), Johann 
G ottfried Herder ( t 1803) e W ilhelm von Hum boldt ( f 1835) 51. 
Para Hamann, cuja concepção da linguagem apóia-se na doutrina 
cristã do Logos, juntando-se a um sentido recém-desperto da his­
tória, linguagem não é outra coisa senão razão e não uma deno­
minação posterior de alguma coisa já pensada ou conhecida; pelo 
contrário, a linguagem é “ mãe da razão e da revelação, seu alfa 
e ômega” 52: “razão é linguagem, Xoyoç” 53. Na linguagem realiza-se 
a percepção e compreensão prim itivas; ela é o instrumento e ao 
mesmo tempo o critério da razão . . . Nela reside a razão pura e 
conjuntamente sua crítica” 54. Já nessas palavras se prenuncia a 
crítica a Kant, que toma mais explícita na Metacrítica à Crítica ãa 
Razão Pura, de H erderss, com a objeção de que o retrocesso trans­
cendental de Kant até as condições prévias da possibilidade de 
conhecimento objetivo não chegou até a linguagem, não mostrou 
o acontecimento lingüístico como condição de conhecimento de 
objetos, nem exclareceu a origem e a essência da linguagem. E n ­
quanto até então se tinha quase sempre colocado a linguagem na 
ordem técnica apenas, como expressão e enunciado do conheci­
mento, Herder funda a linguagem no sentimento, na vivência ime­
diata que cria uma expressão. Entretanto, assim se tem somente 
o conteúdo, e não a forma, que é obra da reflexão, da consciência, 
mas de tal modo que ambos os elementos se compenetram igual­
mente na origem e fazem brotar a linguagem.
D a maneira mais clara se vê, porém, uma nova concepção 
da linguagem em W ilhelm von Hum boldt, que luta antes de tudo 
por uma compreensão da unidade viva da linguagem 56. Para ele,
51. C f. sobretudo E . C ASSIEER, Philosophie der symbolischen Formen, 
l . a parte: “ D ie Sprache” , Berlin, 1923, pp. 89-106.
52. D e Hamann a Jacobi: Briefwechsel m it Jakobi, ed. por Gildemeister, 
Gotha, 1868 (Cassirer 9 3 ).
53. D e Hamann a Herder, Schriften (R o th ), Vn, pp. 151 s. (Cassi­
rer, 9 3 ).
54. D e Hamann a Scheffner, Schriften (R o th ), V II, p. 216 (Cassirer 9 3 ). 
Ver a respeito R. U N G E R , Hamanns Sprachtheorie, München, 1905.
55. J. G. H E R D E R , Verstand und Erfahrung, Vernunft und Sprache, eine 
M etakritik zur K ritik der reinen V ernunft, Leipzig, 1799. C f. ID E M , Sprach- 
phüosophische Schriften, ed. por E . H eintel, Ham burg, 1960.
56. C f. E . CASSIRER, op. cit., pp. 98-106.
História do Problema 29
trata-se de uma unidade, por oposição ao espirito individual e obje­
tivo, porque de fato cada um fala sua língua, mas ao mesmo tempo 
é introduzido por ela numa comunidade linguística e, dessa forma, 
no “espírito objetivo” de uma configuração histórica e cultural da 
humanidade. A linguagem é, além disso, a unidade na oposição 
de sujeito e objeto, na medida em que não estamos diante de uma 
objetividade subsistente e já dada — diríamos hoje: entendida po­
sitivamente — mas só na linguagem descobrimos o mundo e infe­
rimos seu sentido, visto que “as línguas não são propriamente meios 
de apresentar a verdade já conhecida, mas antes instrumentos para 
descobrir o ainda desconhecido” S7. Assim é primeiramenté na lin ­
guagem que se oferece a totalidade de uma cosmovisão e é somente 
nessa totalidade já enunciada verbalmente que consiste a obje­
tividade. Eis também por que a linguagem deve ser considerada e 
entendida em seu todo. A abstração e a análise de palavras e regras 
isoladas, como se faz na dissecação científica, nunca esclarecerá 
essa totalidade. Quando Hum boldt afinal entende a linguagem 
como a síntese de matéria e forma, remonta a Kant, mas ao mesmo 
tempo o ultrapassa. Kant vira em todo o conhecimento uma “síntese 
do m últiplo”, a multiplicidade do conteúdo da intuição sensível 
é levada à unidade por ação espontânea do sujeito e pensada como 
una. A síntese é guiada e possibilitada por princípios aprioristas 
da unidade, os conceitos puros de entendimento, surgidos da uni­
dade transcendental do puro “eu penso”. Se, porém, em Kant o 
conhecimento se consuma, como síntese do m últiplo, no juízo, 
exprimindo-se portanto lingüisticamente na proposição, Hum boldt 
vê nele um evento lingüístieo, no qual uma determinação formal 
se junta à função significadora de conteúdo de um conceito, fazendo 
com que esse pensamento, transposto para determinada categoria 
de pensamento, ou seja, inserto em determinado oontexto lingüís- 
tico, se refira ao todo da linguagem e por ele seja compreendido. 
Também aqui encontramos de novo, mas agora com relação ao 
aoontecimento lingüístieo, o problema da compreensão do parti­
cular no todo de um contexto de sentido e de significação, herme- 
neuticamente importante. “Também aqui, matéria e forma, recep­
tividade e espontaneidade — como antes as oposições de individual 
e “geral”, de “subjetivo” e “objetivo” — não são fragmentos soltos,
57. “ Über das vergleichende Sprachstudium“ (1 8 2 0 ): Obras, IV , pp. 
2 Í ss. (Cassirer 102).
3 * Questões
30 Questões Fundamentais de Hermenêutica
de que se compusesse o processo da linguagem, mas momentos 
necessariamente conexos desse mesmo processo genético, só se­
paráveis em nossa análise” S8.
Essa nova concepção da linguagem, tanto original como to- 
talizante, que aparece em Hamann, Herder e Humbold, mal teve 
em seu tempo reconhecido seu significado filosófico: não se impôs 
totalmente. Já muitas vezes se aludiu ao que há de trágico em 
que, de um lado, a grande filosofia da época, o idealismo trans­
cendental, que vai de Kant a Hegel, não tenha captado essas indi­
cações, fazendo da linguagem um problema explícito e não de­
senvolvendo uma filosofia da linguagem 59, ao passo que, do outro 
lado, o novo impulso a uma compreensão mais profunda da lingua­
gem, por mais legítimo e justificado que seja no fundo, não tenha 
nem de longe alcançado o nível filosófico do idealismo especula­
tivo, não passando de proposições iniciais de um desenvolvimento 
sistemático, e, por isso, não chegando a se impor. A filosofia da 
linguagem ficou à margem do pensamento filosófico.
3. Por intermédio da hermenêutica de Schleiermacher é que 
se tem pela primeira vez em D üthey uma concepção transcen­
dental — hermenêutica da linguagem, visando a “compreensão” — 
reduzida, em todo caso, ao âmbito das ciências do espírito — pelo 
todo de um acontecimento histórico e lingüístico, mostrando con- 
seqüentemente a este como condição da possibilidade da com­
preensão histórica. Isso penetra, como já se indicou, no pensamento 
de Heidegger, o qual retoma e leva adiante o problema, enquanto, 
já no Ser e Tempo fundamenta a linguagem na compreensão exis­
tencial-ontológica e histórico-hermenêutica da existência. A lingua­
gem pertence à constituição existencial do ser-aí ( Dasein) como 
compreensivo “ser-no-mundo”. Se, porém, o Heidegger posterior 
se ocupa sempre mais intensamente com a linguagem, sobre­
tudo na obra Unterwegs zur Sprache (1959), sucede aí, de certo 
modo, um aprofundamento e, conjuntamente, um estreitamento de 
sua concepção da linguagem. Aprofundamento enquanto procura
58. E . CASSIRER, op. c it, p. 105.
59. Mostram princípios de filosofia da linguagem em Hegel: f. D E R B O - 
L A V , “ Hegel und die Sprache. E in Beitrag zur Standortbestimmung der Sprach- 
philosophie im Systemdenken der

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