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Sueli_Teixeira - Depressão no meio ambiente do trabalho ... caracterização como doença do trabalho.

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TRABALHO ESCRAVO ESTUDOS SOB AS
PERSPECTIVAS TRABALHISTA E PENAL
Organização:
Daniela Muradas Reis
Lívia Mendes Moreira Miraglia
Lília Carvalho Finelli
SUMÁRIO
PARTE I – O TRABALHO ESCRAVO NO ÂMBITO TRABALHISTA
Trabalho escravo: um depoimento
Margarida Barreto de Almeida e Cláudio Secchin
Trabalho escravo e cadeias de produção no capitalismo global
Isabelle Carvalho Curvo e Letícia Netto Martins de Oliveira
A fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego contra a escravidão contemporânea no
Brasil e seu processo administrativo interno
Theo Lucas Pinheiro Rocha
Escravidão contemporânea: reflexões sobre as principais características, atividades
econômicas relacionadas e responsabilidade do Estado brasileiro
Bárbara Beatriz Costa Araújo e Thaís de Menezes Gonçalves
A OIT, o trabalho escravo e o trabalho decente: análise sob a perspectiva brasileira
Lívia Mendes Moreira Miraglia
A escravidão contemporânea como ofensa máxima à dignidade do ser humano
Adriana Letícia Saraiva Lamounier Rodrigues
Trabalho escravo e “Lista Suja”: velhos e novos enfoques
Márcio Túlio Viana e Thiago Moraes Raso Leite Soares
PARTE II – O TRABALHO ESCRAVO NO ÂMBITO
PENAL
Trabalho análogo ao escravo: desdobramentos da modernização seletiva brasileira em suas
configurações atuais
Lília Carvalho Finelli
Do paradigma da propriedade à concepção da liberdade de escolha: definindo o trabalho
escravo para fins penais
Carlos Henrique Borlido Haddad
Tráfico de pessoas e trabalho escravo: da necessidade de tipificação do tráfico para o
combate ao trabalho escravo
Lília Carvalho Finelli e Thiago Moraes Raso Leite Soares
O tráfico de pessoas e o trabalho escravo
Raíssa Luana Rocha Siqueira Paiva
O crime de redução à condição análoga à de escravo: análise e crítica
Bárbara Ferreira Cangussu e Nayara Correa Henriques Pinto
A caracterização do crime de redução a condição análoga à de escravo no TRF da 1ª Região
Valena Jacob Chaves Mesquita
O Ministério Público Federal contra a escravidão contemporânea
Maria Clara Barros Noleto
 
 
Trabalho escravo: um depoimento
Margarida Barreto de Almeida
Cláudio Secchin
Certa vez fui estimulada por um amigo, que também é meu mestre , a escrever sob a forma
de depoimento. Dizia ele: “os depoimentos são mais fortes, aproximam o leitor do autor”.
Um sábio o meu professor, mas eu não o ouvi…
Acovardei-me porque achei muito difícil fazer, sob a forma de depoimento, a análise neutra
de um tema , requisito tão caro à ciência do conhecimento, inclusive à epistemologia das
ciências sociais, embora, nesta última, com menos rigor.
Hoje percebo que existia uma mensagem subliminar no seu aconselhamento: a de que
poucos são os atores que podem dar depoimentos vivos, reais sobre o fato social analisado. E
a de que no mundo do trabalho, esta condição é quase exclusiva dos Auditores Fiscais do
Trabalho, espectadores e agentes privilegiados.
Conhecemos a realidade por intermédio dos nossos próprios olhos, e não por intermédio dos
olhos de outrem ou dos olhos do processo. O contato direto com o ambiente de trabalho nos
diferencia dos outros operadores do Direito do Trabalho, porque somos os únicos em contato
real com o fato trabalhista e, portanto, em melhores condições para conhecer seus tons,
entretons e penumbras para, a partir daí, propor soluções para a situação específica abordada.
Ou, com uma ambição maior, intervir efetivamente na realidade.
Mas esse foco privilegiado, a par de nos diferenciar, também torna a nossa atividade mais
difícil. Não porque exija uma percuciência superior, mas porque não prescinde de um bom
controle emocional, de um bom equilíbrio. Ter contato direto com a exploração do ser
humano, muitas vezes a níveis degradantes, desperta em nós sensações controversas. Uma
nos compelindo a agir para pacificar os sentimentos melancólicos que a visão incômoda da
injustiça nos provoca; a outra, mais conscienciosa, nos compelindo a atuar racionalmente
buscando os fundamentos legais, as medidas eficientes, mas observando nossas limitações
pessoais, profissionais e institucionais.
Resolvi, então, mesmo depois de uma longa defasagem de tempo, seguir o conselho do meu
professor. Resolvi me aproximar do leitor, fugindo da escrita tradicional dos artigos
jurídicos. Resolvi, neste artigo, revelar o que vemos e sentimos, e parar de pensar na tão
preconizada neutralidade, até porque não dá para ser neutro quando se depara com a
escravidão. Resolvi fazer um depoimento. Um depoimento entrecortado por reflexões.
Mas não o faço só, e não é porque me sinto incapaz de fazê-lo. Deponho em coautoria,
porque é na companhia de colegas de profissão que geralmente nos deparamos com a
escravidão. E é em conjunto que analisamos os fatos, sensibilizamos, pacificamo-nos e
buscamos as soluções…
Aqui começamos a nossa história.
Há pouco tempo, cerca de 20 anos, pensávamos no trabalho escravo como parte de um
passado sombrio, distante. Embora proibido em nosso país, seja por intermédio do direito
pátrio , seja pela incorporação nele de pactos internacionais de direitos humanos, a
escravidão ainda é marca dos tempos atuais.
E o que pudemos notar nesses anos de atividade na inspeção do trabalho é que ela, muitas
vezes, é praticada de forma inconsciente seja pelo explorado, seja pelo explorador. Age
como se estivesse entranhada em nossa cultura, embora tenha adquirido características
próprias que a distinguem da escravidão do passado e que também a diferenciam de outras
formas de violações dos direitos humanos.
Escravo é aquele forçado a trabalhar – mediante ameaças psicológicas ou físicas; é aquele
convertido em propriedade de um “empregador”, geralmente mediante maltrato físico ou
mental, ou mediante ameaças de maltrato; é o trabalhador “desumanizado” e tratado como
uma mercadoria (ou mesmo comprado e vendido como uma “pertença”); é o trabalhador
limitado fisicamente ou restringido em sua liberdade; é o trabalhador submetido a jornadas
exaustivas e a condições degradantes de trabalho.
As configurações são inúmeras e normalmente se encruzam, mas aqui vamos nos limitar
àquelas que, com mais frequência, se estabelecem no meio rural, para delimitar os nossos
sujeitos e dar sentido à nossa história e ao nosso depoimento.
Quem é o empregador rural e o empregado do nosso relato?
Não é incomum identificar em algumas regiões do país a migração pela propriedade rural.
Pessoas saindo de suas regiões para desbravar outras áreas, buscar outras fontes de recursos.
Sem estrutura. Sem pavimentação. Regiões inóspitas, onde a lei ainda não chegou. Levando
outras culturas, assimilando poucas culturas. Arrasando a maioria delas. Extinguindo-as.
Impondo a sua vontade.
Também não é incomum que na busca por suas propriedades privadas, esses
empreendedores desbravadores, a par do seu pioneirismo e dificuldades consequentes: a)
tenham pagado um preço bem pequeno pela terra; b) tenham desmatado além do permitido
pela legislação ambiental; c) utilizem-se de trabalhadores vindos de outras partes do
território nacional nas atividades de desmatamento e formação de culturas agropastoris; d)
soneguem os direitos trabalhistas mais elementares para estes mesmos trabalhadores; e)
soneguem-lhes uma condição digna e um ambiente de trabalho saudável. Na busca pela
produtividade “ótima” desta propriedade privada, a superexploração do trabalho impera, com
sonegação salarial, com sonegação de saúde, com sonegação de alimento.
O empreendedorismo rural em foco utilizando-se do analfabetismo social do trabalhador,
que não tem consciência de seus direitos, dos limites de exploração dos recursos naturais,
integra uma rotina degradante tanto de valores humanos como ambientais. Domestica os
corpos e direciona a produção de modo a maximizar sua utilidade econômica e a reduzir, ao
mais baixo possível, o potencial reativo do trabalho humano.
Para a construção do Estado Democrático de Direito é imprescindíveluma leitura ética dos
princípios mantenedores da ordem econômica e social. Esse foi o balizamento instituído em
nossa Constituição Federal (art. 1º). Com efeito, o entrecruzamento dos pilares econômico
(livre iniciativa) e social (cidadania, valorização do trabalho, dignidade da pessoa humana) é
cogente à construção da sociedade democrática e à consecução dos objetivos fundamentais
da República Federativa do Brasil.
A livre iniciativa e a concorrência leal parametrizam os mercados, homogeneízam os
padrões de produção e trazem benefício à sociedade ao disponibilizar produtos de qualidade
e preço justo. Mas no preço destes produtos devem estar embutidos os valores sociais que a
Constituição elegeu como fundamentais, como por exemplo, o uso racional dos recursos
naturais, a preservação do meio ambiente e, sobretudo, a proteção da pessoa humana, com
sua dignidade.
Não é justo que o empreendedor responsável, cumpridor das normas tributárias e
trabalhistas, seja alijado do mercado por aquele sonegador dos direitos mais elementares do
ser humano com o fim único de reduzir custos. Por aquele que lucra com a mitigação da
vida, da cidadania trabalhista e previdenciária do trabalhador.
Cabe ao Estado promover a justiça, acoimando aquele que resolveu criar um “atalho” com o
escopo de reduzir o preço do seu produto, praticando a sonegação de tributos, de direitos, de
vida.
A cegueira oficial ante a realidade da escravidão durou até 1995. Neste ano foi criado pelo
Governo Federal o Grupo Executivo para Repressão ao Trabalho Forçado – GERTRAF que
funcionou até o ano de 1997. Era composto por Ministérios que possuíam algum
tangenciamento com a questão do trabalho escravo, sendo organizado e dirigido pelo
Ministério do Trabalho e Emprego, representado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho.
Seus representantes, porém, foram, aos poucos, delegando as representações para servidores
subordinados e sem poder de decisão, o que levou o grupo a paralisar suas atividades ao final
do ano de 1997.
Em 1999, ante a proliferação das denúncias de trabalho escravo, o GERTRAF foi reativado
pela Secretaria de Inspeção do Trabalho, tornando-se o único fórum interinstitucional a tratar
do assunto. Suas atividades eram as mesmas do momento anterior, embora no novo formato
dele participassem também alguns entes convidados, entre eles organizações não
governamentais, a exemplo da Comissão Pastoral da Terra.
Nos três anos que se sucederam ao final da década de 90, a então Divisão de Apoio à
Fiscalização Móvel – DAFM vinculada à Secretaria de Inspeção do Trabalho, que fora
tratada como o “braço operativo” do GERTRAF, tornou-se a unidade, dentro da estrutura da
Fiscalização do Trabalho, responsável pela organização das fiscalizações de campo e triagem
de denúncias de trabalho escravo (apresentados por órgãos públicos, organizações não
governamentais, sindicatos, trabalhadores, dentre outros).
Da mesma forma, a ela competia a recepção dos relatórios gerados pelas equipes de
fiscalização – os Grupos Móveis de Fiscalização – e o encaminhamento destes a outros
órgãos, visando guarnecê-los de subsídios para abertura de inquéritos policiais, propositura
de ações civis, penais e adoção de outras providências pertinentes a cada caso.
Embora implantada toda uma rotina e estrutura para combate ao trabalho escravo, fato até
então inédito no país, era com pesar que se percebia que o esforço conjunto, a dedicação
incansável dos agentes envolvidos e o compromisso dos órgãos entidades partícipes ainda
não eram suficientes para combater o mal. As denúncias de trabalho escravo proliferavam e
não era incomum a mesma propriedade ser penalizada pela prática de trabalho escravo mais
de uma vez.
As dimensões continentais do país e o curto braço punitivo do Estado eram alguns dos
problemas a serem enfrentados. Mas existiam outros…
1 A lista suja e sua história
Foi analisando os registros contidos nos relatórios de fiscalização dos grupos móveis de
combate ao trabalho escravo, que a direção da DAFM percebeu que muitas das propriedades
rurais, visitadas e autuadas pelas equipes móveis, ostentavam placas contendo informações
sobre os recursos que patrocinavam o desenvolvimento das atividades rurais na região,
associando-os ora a estabelecimentos bancários estatais, ora a fundos federais de
desenvolvimento. Concentrando-se, então, na busca de informações acerca da origem
daqueles recursos, os técnicos da DAFM descobriram que estes provinham do Ministério da
Integração Nacional e de estabelecimentos bancários estatais.
Ora, que contrassenso! Como é possível que o Estado puna a prática do trabalho escravo,
mas ao mesmo tempo financie a atividade que a explora? Como construir um estado
democrático de direito, sustentado nos pilares dos valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa, se o próprio Estado, que deveria promovê-lo, submerge-se em contradições,
semelhando incapaz de ponderar sobre os valores que resguarda?
Foi neste contexto, que os técnicos da DAFM, que já era a responsável pela rotina do
GERTRAF – Grupo Executivo para Repressão ao Trabalho Forçado, concentraram esforços
para impedir a concessão de tais recursos a favor de estabelecimentos identificados pela
fiscalização do trabalho como praticantes de trabalho escravo.
E seu fundamento era simples: o Governo Federal (e instituições financeiras a ele
vinculadas) não pode financiar a atividade neoescravocrata. Tem, na verdade, o dever de
combatê-la.
O esforço concentrado dos técnicos do Ministério do Trabalho e Emprego resultou, mediante
negociação e parceria com o Ministério da Integração Nacional, em uma proposta de
normativo, a ser editado por aquela pasta, determinando que o estabelecimento praticante do
trabalho escravo tivesse financiamento bloqueado e o vencimento deste antecipado, não
podendo ser objeto de nova concessão até a eliminação pelos responsáveis da situação
determinante da existência do trabalho escravo.
As ações do Ministério da Integração Nacional, relacionadas à concessão ou à suspensão de
financiamento já concedido, seriam subsidiadas por informações advindas das fiscalizações
do Ministério do Trabalho e Emprego. Mediante a confecção de um cadastro realizado pela
DAFM, baseado no resultado das ações fiscais realizadas, seria criada e alimentada uma
espécie de lista onde seriam identificados os proprietários e estabelecimentos flagrados pela
fiscalização trabalhista como exploradores de trabalho escravo. Essa lista foi intitulada à
época “cadastro de empregadores praticantes do trabalho escravo”.
Inobstante com feições delineadas e fundamentos claros, o cadastro angariou fortes
resistências, políticas e jurídicas. E foi por esta razão que a portaria que tratou do assunto do
Ministério da Integração Nacional (Portaria nº 1.150, de 18 de novembro de 2003), apenas
recomendou o bloqueio dos recursos e o vencimento antecipado dos contratos de
financiamento dos estabelecimentos praticantes do trabalho escravo.
Somente em 2004, por intermédio da Portaria nº 540, conhecida como a “lista suja” do
trabalho escravo, é que o Ministério do Trabalho e Emprego regulou o tema, criando
normativamente “o cadastro de empregadores praticantes do trabalho escravo”, o qual seria
atualizado semestralmente e remetido aos órgãos públicos e instituições financeiras para fins
de limitar a concessão de financiamentos públicos aos neoescravocratas.
Paralelamente, desde o início dos anos 2000, a Secretaria Especial de Direitos Humanos
(pasta que à época não possuía status de Ministério subordinado à Presidência da República),
fazia gestões para que o trabalho escravo passasse a integrar o arcabouço temático dos
direitos humanos. A Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – CDDPH, criada
pelo então Secretário Especial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, iniciou tal
gestão por intermédio de reuniões com os integrantes do GERTRAF (Grupo Executivo de
Repressão ao Trabalho Forçado) e, ainda,da Organização Internacional do Trabalho e das
entidades representativas dos trabalhadores (Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura – CONTAG) e dos empregadores rurais (Confederação Nacional da Agricultura
– CNA).
Com o passar dos anos e com a criação do CONATRAE (Conselho Nacional de Erradicação
do Trabalho Escravo), o trabalho escravo entrou definitivamente na pauta de atividades de
Estado, deixando de ser um ato de governo e inserindo-se integralmente na temática dos
direitos humanos. Portanto, não havia mais sentido para que o cadastro de empresas
praticantes do trabalho escravo (criado pela Portaria nº 540, citada) continuasse sob a tutela
única do Ministério do Trabalho e Emprego.
Neste sentido, a edição da Portaria Interministerial nº 2, de 13 de maio de 2005, data
comemorativa da abolição da escravatura, por intermédio da qual o Ministério do Trabalho e
Emprego e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República tornaram-se
conjuntamente responsáveis pelo cadastro de empregadores que tenham submetido
trabalhadores a condições análogas à de escravo.
Art. 3º […]
§ 2º – À Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República competirá
acompanhar, por intermédio da CONATRAE, os procedimentos para inclusão e exclusão de
nomes do cadastro de empregadores, bem como fornecer informações à Advocacia-Geral da
União nas ações referentes ao cadastro.
Normativos desta mesma natureza, repudiando a prática de exploração do trabalho escravo,
foram adotados por outros órgãos e entidades federais (Ministério da Agricultura e IBAMA,
por exemplo) e também se reproduziram nas esferas estaduais. A título ilustrativo, no estado
de São Paulo foi editada a Lei nº 14.946, de 28 de janeiro de 2013, que dispõe sobre a
cassação da inscrição no cadastro de contribuintes do Imposto sobre Operações Relativas à
Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e
Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, de qualquer empresa que faça uso direto ou
indireto de trabalho escravo ou em condições análogas.
Esta iniciativa também foi incorporada por conselhos estaduais que tratam da questão do
trabalho escravo no Maranhão, Ceará, Piauí, Rio de Janeiro e Mato Grosso, este último,
inclusive, com um plano estadual para a conscientização e criação de empregos para os
trabalhadores advindos do trabalho escravo, um projeto denominado de “ação integrada”,
que envolve diversos atores estaduais e municipais, numa cruzada de conscientização e
enfrentamento do tema.
E porque sua norma era simples e seu mandamento equitativo, a lista suja adquiriu
repercussão ainda maior do que aspirava: além de ser um cadastro que desaprova o
praticante de trabalho escravo como beneficiário de contratos de financiamentos públicos,
passou a servir de referência para identificação dos maus empregadores e dos seus produtos.
Adquiriu status de repulsa formal à escravidão.
2 E o seguro-desemprego
João Batista Gomes da Silva. Auditor Fiscal do Trabalho do concurso de 1994. Em suas
atividades como participante assíduo do Grupo Móvel de Fiscalização do Trabalho Escravo,
percorreu mais de 10.000 km, entre estradas, fazendas, rios, vilas, vilarejos, povoados.
Conhecia como poucos o Brasil. Conhecia como poucos a realidade do trabalhador rural
brasileiro. Seu comportamento, discreto e sereno, não impunha sombra à sua seriedade no
desempenho das competências de Auditor Fiscal do Trabalho.
O trabalhador rural, especialmente aquele submetido às condições contemporâneas de
escravidão, tem seu próprio dialeto, uma forma própria de se expressar. João Batista sabia
ouvi-lo, traduzia para o direito trabalhista seus reclames e suas dúvidas. A cada ação fiscal
empreendida nos rincões, empenhava-se, como se fosse a primeira. Indignava-se como se
fosse surpresa.
Certa feita, em determinada reunião do Grupo Especial de Fiscalização Móvel em Brasília,
dentre as muitas que participou, João Batista estava tenso, preocupado. Não concordava com
a rotina desempenhada pelo Grupo de Fiscalização. Achava que deveria ser criado algo novo
para dar mais instrumentalidade à política de erradicação do trabalho escravo.
Nas reuniões do Grupo Especial de Fiscalização Móvel com os representantes da Secretaria
de Inspeção do Trabalho eram tratados todos os assuntos: da forma de emprego da força
humana para a fiscalização, passando pelos procedimentos administrativos gerais até
possíveis inovações. Triagem das denúncias, diálogo com os parceiros, normas de conduta
dentro das equipes de fiscalização, os limites financeiros impostos pelas normas
administrativas e legais para atuação do grupo, análise dos perfis de novos voluntários para
se integrarem, dentre outros assuntos.
Calado quase todo o tempo, João Batista pensava. Ao final da reunião, foi franqueada a
palavra a todos para mais alguma sugestão, algum outro assunto. Foi quando João Batista
manifestou-se.
– Por que o trabalhador escravo não tem acesso ao seguro-desemprego?
As situações de escravidão no final da década de 1990, caracterizadas pela fiscalização do
trabalho, ocorriam quase que exclusivamente no ambiente rural. Além disso, concentravam-
se em determinadas atividades, como o roço de mata secundária, desmatamento, abertura de
fronteiras agrícolas, construção e manutenção de cercas delimitadoras da propriedade e dos
pastos, carvoarias, retirada de raízes.
Estas atividades normalmente perduravam por curtos períodos de tempo, dificilmente
superiores a seis meses, prazo mínimo de vigência do contrato de trabalho, exigido para fins
de concessão do benefício do seguro-desemprego . Ao término da execução das atividades
contratadas, os trabalhadores nada recebiam, devido às dívidas contraídas no processo de
escravidão (aliciamento – deslocamento – alimentação – compra de ferramentas e vestuário
– pagamento de hospedagens – descontos feitos pelo intermediador – “gato”), o que,
invariavelmente, fazia com que o trabalhador procurasse outro ciclo o mais próximo de onde
se encontrava, gerando verdadeiros hotéis pioneiros e uma bolsa de mão de obra fácil e
barata.
Foi proposto ao Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador, colegiado que
conta com representantes dos trabalhadores, empregadores e Estado, com sua rotina
parametrizada pela Secretaria de Políticas Públicas de Emprego do Ministério do Trabalho e
Emprego – SPPE –, a extensão do direito ao seguro desemprego ao trabalhador submetido à
escravidão.
E então, porque João Batista indignou-se, porque se sensibilizou com a triste história de
milhares de trabalhadores, a Lei nº 7.998/90 ganhou mais um artigo:
Art. 2o-C O trabalhador que vier a ser identificado como submetido a regime de trabalho
forçado ou reduzido a condição análoga à de escravo, em decorrência de ação de fiscalização
do Ministério do Trabalho e Emprego, será dessa situação resgatado e terá direito à
percepção de três parcelas de seguro-desemprego no valor de um salário mínimo cada,
conforme o disposto no § 2o deste artigo.
§ 1o O trabalhador resgatado nos termos do caput deste artigo será encaminhado, pelo
Ministério do Trabalho e Emprego, para qualificação profissional e recolocação no mercado
de trabalho, por meio do Sistema Nacional de Emprego – SINE, na forma estabelecida pelo
Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador – CODEFAT.
§ 2o Caberá ao CODEFAT, por proposta do Ministro de Estado do Trabalho e Emprego,
estabelecer os procedimentos necessários ao recebimento do benefício previsto no caput
deste artigo, observados os respectivos limites de comprometimento dos recursos do FAT,
ficando vedado ao mesmo trabalhador o recebimento do benefício, em circunstâncias
similares, nos doze meses seguintes à percepção da última parcela.
3 COPAÍBA
“O ano é 2009. Éramos seis. Seis Auditores Fiscais do Trabalho e seis Policiais Federais. O
ambiente hostil. Severo pelo calor e pelas estradas poeirentas, esburacadas, que transferiamsolavancos internos aos veículos por nós ocupados. O pouco que restou da floresta nativa em
Piçarras – PA, abrigava a atividade do desmatamento e manutenção das cercas. O roço da
mata secundária, crescida pela ausência da nativa, a juquira. Mato duro de conter seu avanço.
Atividade árdua e pesada feita pelo trabalhador escravo involuntário, inconsciente de sua
situação deplorável.
Adentramos à propriedade de um antigo cliente. Já visitado em outras oportunidades pela
mesma equipe. Constrangido a cumprir as normas trabalhistas já explicadas, orientadas,
autuadas.
Não aprendeu. Deixou à míngua alguns já miseráveis pelo descaso, pela aludida
inconsciência. Pelo risco mínimo de ser vítima de um “déjà vu”.
Chega o Estado, imponente, incrédulo. Inaugura-se novamente o interrogatório usual aos
desassistidos de tudo. Identifica-se o mesmo mal: a situação análoga a de escravo.
Sintomas? Dívidas impagáveis. Água turva. Alimentação precária. Saúde debilitada. Esforço
demasiado. Atividade pesada. Sol a sol. Habitação imunda. Higiene? Dinheiro?
Dentre os infortunados está Galdino. Há 30 anos não via a família. Natural de Currais
Novos, no Rio Grande do Norte, José Galdino da Silva – Copaíba, como gosta de ser
chamado – saiu de casa com 10 anos de idade para trabalhar no Norte. Nunca estudou.
Durante 40 anos, veio passando de fazenda em fazenda, de pensão em pensão, trabalhando
com derrubada de mata e roça de pasto. Nunca teve a carteira de trabalho assinada e perdeu a
conta de quantas vezes não recebeu pelo trabalho que fez. Copaíba nunca se casou nem teve
filhos. Não conseguia dormir direito. Tinha os pesadelos da vida que o acompanhavam.
Nunca conseguiu juntar dinheiro para retornar à sua cidade e rever a família.
Copaíba foi localizado pelo Grupo Móvel, resgatado. Recebeu de indenização trabalhista
mais de R$ 5 mil. Iria comprar uma casa. Voltar à sua cidade. Voltou Copaíba. Voltou José
Galdino da Silva”.
Trabalho escravo e cadeias de produção no capitalismo global
Isabelle Carvalho Curvo
Letícia Netto Martins de Oliveira
1Introdução: o trabalho escravo e seus números
É comum as pessoas pensarem que o trabalho escravo não existe mais, que é algo distante de
nossas vidas. Pensando assim, nem vemos que se estima em 29,8 milhões o número de
pessoas em regime de escravidão ao redor do mundo, sendo que, dentre elas, a grande
maioria tem entre 18 e 24 anos de idade. Pensando assim, também deixamos de enxergar as
mais diversas formas que o trabalho escravo pode assumir na atualidade, formas difusas,
ocultas, em países de primeiro ou terceiro mundo, no campo ou na cidade, em fábricas,
fazendas e ambientes domésticos. Atinge crianças e idosos, negros, brancos e indígenas,
nacionais e imigrantes. Apesar de ser proibido por quase todos os países do mundo, ele
persiste. Apesar de inúmeros instrumentos internacionais que o proíbem, ele persiste. Por
quê?
O Brasil dá sinais mais claros da existência e persistência do trabalho escravo. De 2003 a
2013 houve 2.650 denúncias de trabalho escravo no país, envolvendo 65.907 trabalhadores.
Desses, “apenas” 42.717 foram libertados, a maioria deles nos estados do Pará, Maranhão,
Mato Grosso e Tocantins, regiões de fronteira com a Amazônia e com forte presença de
atividades como pecuária, carvoaria e outras lavouras. Mas o sudeste não ficou longe, e
somente em 2013 foram resgatados 435 trabalhadores em condições análogas à de
escravidão em Minas Gerais, sendo que na cidade o trabalho escravo se concentra mais nas
indústrias têxteis, construção civil e transporte de valores. O triste é constatar que, se
levarmos em conta as dimensões continentais do país, e a estrutura de fiscalização ainda
precária que temos, os números talvez estejam muito aquém da realidade do trabalho escravo
no Brasil.
Os números do trabalho escravo, no Brasil e no mundo, parecem questionar a tese segundo a
qual o capitalismo não conviveria com formas arcaicas de trabalho. Na verdade, a realidade
mostra que ele não só as mantém, mas delas se beneficia, e isso explica uma parte das razões
dessa continuidade. Segundo a rede internacional Walk Free, não há dúvidas de que o que
move o trabalho escravo é a sua rentabilidade: ele gera ao menos 32 bilhões de dólares
anualmente, sendo metade nos países desenvolvidos. E não há capital sem trabalho, mesmo
que nas condições mais precárias.
Fica claro que o capitalismo em sua fase atual só se reinventa nas formas de exploração do
trabalho humano e extração de mais valia, não hesitando, em seu processo de expansão, em
aproveitar-se de práticas tão “bárbaras” quanto o trabalho escravo. Talvez seja justamente
porque vemos essas práticas como “arcaicas”, como coisas do passado, é que temos
dificuldade de enxergá-las no presente, de enxergá-las, afinal, como estruturalmente ligadas
ao sistema capitalista.
2 Capitalismo global e cadeias de produção
A partir de meados dos anos 70 vemos nascer quase que um novo mundo, um misto do novo
e do velho. Com a globalização ficamos com a impressão de um mundo único, onde estamos
todos conectados no mesmo tempo-espaço, efêmero e veloz. Aumentam os fluxos, seja entre
pessoas e informações, seja entre bens e capitais, facilitados pelas novas tecnologias, que são
tão presentes em nosso cotidiano. A globalização que parece nos unir ao outro lado do mapa
é também, ou mais que tudo, uma globalização econômica. Como diz Delgado, a
globalização é na verdade uma fase do capitalismo em que se estreitam as relações
econômicas, e esse modelo se expande para o restante do globo, apoiado sob o discurso
(neo)liberal.
Nesse processo de internacionalização da economia mundial, relativizam-se Estados e
fronteiras, em nome de uma total readequação das estratégias de produção e distribuição das
empresas, agora transnacionais. O mercado encontra-se totalmente integrado, em parte como
decorrência das tecnologias de informação, que revolucionaram os fluxos econômicos,
permitindo a ágil transferência de dados, recursos financeiros e informações. Em um mundo
global, o mercado não dorme – gira 24 horas por dia, independe de fusos. Antes
marcadamente nacionais, os mercados tornam-se globais, sendo articulados pelas grandes
networks ou cadeias globais.
A regra do atual capitalismo é um pequeno conjunto de empresas – ou melhor, de grupos
econômicos – que operam em nível global e de longe decidem o que, como, quanto e onde
produzir bens e serviços. É o que Dupas chama de concentração por especialização: as
empresas se tornam fisicamente menores, transferindo suas pequenas unidades produtivas
para outros lugares mais vantajosos, mas em termos econômicos elas continuam grandes,
sendo determinantes em nível global. Principalmente em setores como transporte aéreo,
medicamentos, fast-food e automobilístico. Para se ter uma ideia, os cinco maiores
fabricantes de veículos detêm 40% da produção mundial, e os dez maiores, 60% .
Com tal nível de concentração, fica até difícil falar em setores primário, secundário ou
terciário, pois um mesmo grupo econômico pode se ocupar, por exemplo, da produção de um
carro, mas também oferecer serviços de empréstimo, trabalhar com ações, vender seguros,
ter empresas subsidiárias de logística, distribuição e marketing. Um mesmo grupo
econômico pode deter capitais em diferentes mercados, pode atuar em distintas fases da
produção em rede. O agronegócio, por exemplo, nada mais é que uma grande articulação dos
três setores, passando pelos insumos, máquinas, serviços, beneficiamento dos produtos,
distribuição e comercialização. Agropecuária, indústria e serviços, todos estão
organicamente interligados e articulados por um grupo econômico.
A concentração não significa, no entanto, que as pequenas e médias empresas
desapareceram. Pelo contrário, seu papel nunca foi tão central. Em todos os setores, a busca
por eficiência e redução máxima de custos leva a uma extrema fragmentação do processo
produtivo, antes concentrado em umaúnica fábrica, fordista, que detinha todas as fases da
produção, reunia em um mesmo espaço trabalhadores, produtos e sindicatos em massa.
Enquanto que a maior parte das decisões das grandes corporações são realizadas nos países
desenvolvidos, onde há maior oferta de mão de obra qualificada, para além desse pequeno
núcleo a cadeia se ramifica em inúmeros países, produtores, distribuidores, que passam a
funcionar em rede. No primeiro nível estão as atividades de concepção, design, marketing,
pesquisa e tecnologia, enquanto que no segundo nível, fragmentado na periferia, estão as
atividades mais intensivas, rotineiras, com baixa tecnologia e mão de obra desqualificada.
Sendo uma rede flexível, que pode mudar geograficamente, ela se adapta aos movimentos do
mercado, aos custos de produção, ao custo da mão de obra, aos mercados consumidores,
somente por critérios de eficiência. Não há um padrão único de distribuição ou fixação das
empresas, elas se movem junto com os fluxos econômicos.
Como símbolo da nova divisão internacional do trabalho, tomemos como exemplo a Nike, a
maior fabricante de tênis do mundo, mas que não produz um cadarço sequer . Diretamente, a
Nike emprega aproximadamente 15 mil pessoas, localizadas principalmente nos países
centrais, onde ficam os serviços de design, marketing, distribuição, processamento de dados,
logística de vendas e administração. Assim como outras grandes empresas, entretanto, ela
tem toda a sua produção baseada em uma grande cadeia de subcontratações, terceirizações e
franquias, o que, na ponta do sistema, gera indiretamente cerca de 90 mil empregos,
especialmente no Vietnã, China e Indonésia.
Segundo os grandes grupos econômicos, os produtos das empresas subsidiárias são apenas
“encomendas”; há liberdade e autonomia desses “fornecedores” para que prestem serviços a
outras empresas. No entanto, a realidade não parece ser exatamente assim. De longe são
estabelecidas grande parte das regras que deverão ser seguidas pelas empresas subsidiárias:
seja as estratégias de produção, seja as de mão de obra. Quem determina os preços e prazos,
quem estabelece como será o produto, suas cores, seu design, formato, não é a empresa
subcontratada. Normalmente ela trabalha somente para alguns, e só assim, com uma inserção
subordinada aos interesses dos grandes grupos, é que as pequenas e médias empresas podem
sobreviver nesse mercado globalizado.
Os grandes grupos econômicos não fazem e não querem fazer a seguinte pergunta: de onde
vem a redução de custos das empresas subsidiárias? Na busca por menores custos, alimenta-
se uma cadeia de terceirizações, franquias, informalidade, diversidade de contratos e formas
de assalariamento. No limite, o trabalho é tão precarizado que conceituá-lo como escravidão
torna-se justificado. As empresas menores, subcontratadas, tornam-se então o cerne de toda a
rede, fornecendo tudo que interessa aos grupos econômicos: redução dos custos totais e
eliminação de riscos, que ficam longe de suas vistas e de sua responsabilização jurídica e
econômica.
Com isso, externalizam seus riscos: é bem mais fácil romper um contrato de subcontratação
do que fechar uma indústria própria, acarretando desgastes de imagem e problemas legais. O
mesmo se aplica à utilização de expedientes como trabalho informal, sonegação fiscal e
agressão ao meio ambiente. Quando isso ocorre, geralmente a subcontratada local é que
assume o risco de eventuais operações irregulares.
A ampla reorganização dos processos produtivos em nível global também redefiniu os
processos de trabalho tidos como regra até então. Pois o mesmo grupo econômico que
define, dos países centrais, as regras de produção para as subsidiárias dos países
subdesenvolvidos define novas técnicas de gestão de mão de obra a serem utilizadas, como
parte da chamada reestruturação produtiva, ou ainda, acumulação flexível. Vê-se que quem
mais paga por esse sistema de redução de custos é quem realmente está na ponta da cadeia:
os trabalhadores.
Nos países desenvolvidos, a globalização econômica mostra sua face perversa no
desemprego estrutural, tanto em decorrência de antigas empresas que transferem suas plantas
para outros países, quanto pelo advento das tecnologias e demais mudanças no emprego
formal. Nos países de terceiro mundo, por outro lado, ela se mostra especialmente perversa
na total precarização dos empregos ofertados. Vemos se fortalecer o subemprego, o
descumprimento generalizado das leis trabalhistas e a flexibilização de muitas delas. O que
está em jogo, portanto, não é somente a quantidade de empregos, mas sua qualidade. E tanto
o desemprego estrutural quanto a precarização em massa, duas faces da mesma moeda,
passam a ser justificados por empresas e governos como parte da necessária redução de
custos, da necessária busca por maior competitividade.
Do ponto de vista do trabalho, as empresas nacionais reproduzem a estrutura piramidal que
divide países desenvolvidos e subdesenvolvidos. No ápice, no “núcleo estável” da empresa,
empregos formalizados e bem qualificados, com direitos trabalhistas garantidos e
perspectiva de carreira. Caminhando para a base, vemos que também as empresas
intermediárias horizontalizam a produção, recorrendo a outras subcontratadas e empresas
terceirizadoras, aumentando a cadeia e externalizando outra vez os riscos. A terceirização,
que pode ocorrer dentro ou fora da empresa, liga-se à denominada teoria do foco, trazida por
Antunes, na qual tudo aquilo que não seja o “conteúdo mínimo da atividade empresarial”
pode ser transferido a terceiros, reduzindo o espaço produtivo original daquela empresa, ou
expandindo-o para além de suas fronteiras visíveis.
Essa horizontalização estende-se às subcontratadas, às firmas ‘terceirizadas’, acarretando a
expansão dos métodos e procedimentos para toda a rede de fornecedores. Desse modo,
flexibilização, terceirização, subcontratação, CCQ, controle de qualidade total, kanban, just
in time, kaizen, team work, eliminação do desperdício, ‘gerencia participativa’, sindicalismo
de empresa, entre tantos outros pontos, são levados para um espaço ampliado do processo
produtivo.
Para além dessas fronteiras estão também trabalhadores, invisíveis, e fica claro que “quanto
mais o trabalho se distancia das empresas principais, maior tende a ser a sua precarização”.
Na ponta desse espaço produtivo ampliado, ou das networks globais, não é raro vermos
empresas fantasma, informalidade, ausência de direitos trabalhistas ou qualificação dos
trabalhadores, alta rotatividade, descumprimento das normas mínimas de saúde e segurança.
Vemos o desrespeito generalizado dos direitos trabalhistas, pois a lógica é a redução de
custos.
Como coloca Dupas, “enquanto seleciona, reduz, qualifica – e, portanto, exclui no topo, a
nova lógica das cadeias inclui na base trabalhadores com salários baixos e contratos
flexíveis, quando não informais”. Em uma lógica perversa, a globalização econômica e seu
braço toyotista produzem no topo da pirâmide uma “elite”, ainda que também instável,
enquanto do outro lado produzem somente o aumento das desigualdades sociais. É o que
friamente diz o relatório do Banco Mundial, de 2007: “uma característica comum – baixos
salários – identifica tais trabalhadores como o centro do problema da pobreza. Os pobres
[…] não podem se dar ao luxo de ficar desempregados: eles são obrigados a aceitar o
subemprego”. Quem não tem opção é obrigado a aceitar as mais diversas formas de trabalho.
E é assim que começa o ciclo do trabalho escravo:
Os percursos mais frequentes da escravidão já são bem conhecidos: primeiro, a cidade
pequena, a falta de trabalho, as barrigas vazias; depois, o gato que chega, as promessas de
dinheiro, a sensação de aventura; então, a mãe que implora, o pai que abençoa, o orgulho de
se aventurar no mundo; depois o caminhão, o ônibus ou o trem, a cachaça alegrando a
viagem, a noite escondendo os caminhos, a dívida subindo a cada pratode comida; por fim,
a fazenda, o fiscal, a arma e às vezes a fuga, a volta e o recomeço.
Retomando o art. 149 do Código Penal, que prevê o trabalho em condições análogas à de
escravidão, vemos que existem duas grandes hipóteses em que ele será verificado. A
primeira delas é o trabalho forçado, que inclui também a servidão por dívida. Tratam-se de
formas de restrição de liberdade, seja pela restrição da locomoção dos trabalhadores, seja
mantendo vigilância ostensiva sobre eles, seja por dívidas, ou ainda apoderando-se de seus
objetos pessoais. Ou seja, nesse caso, o trabalho será considerado como análogo à escravidão
quando são utilizados meios físicos, psicológicos, ou diversos outros, para que o trabalhador
fique retido no local de trabalho. Assim foi definido pela OIT, na Convenção nº 29: “a
expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ compreenderá todo trabalho ou serviço exigido
de uma pessoa sob ameaça de sanção e para o qual não tenha se oferecido espontaneamente”.
No capitalismo global, as formas de trabalho forçado se reinventam, podendo assumir
feições mais ou menos sutis. Podem ocorrer mediante sequestro, confinamento, pelas mais
diversas coações psicológicas e violências físicas, por falsas promessas, não pagamento de
salários e demais direitos trabalhistas, retenção de documentos. Mas a ameaça talvez seja a
forma menos visível, seja ameaça de represálias financeiras, físicas, demissões, supressão de
direitos, denúncia às autoridades, privação de necessidades básicas, tal como alimentação e
moradia. Com esse conjunto de violências e ameaças não se pode falar em uma real
liberdade de ir e vir, e mais, em uma real liberdade de trabalho.
A falta de alternativas para um contingente que não possui qualquer qualificação, a não ser a
própria força de trabalho e a ausência de empregos regulares, tanto no campo quanto na
cidade, obrigam os trabalhadores a aceitarem condições precárias de trabalho.
Como muitos dos trabalhadores não têm condições financeiras para não entrar e, depois, para
sair das redes do trabalho escravo, vários são os que conscientemente continuam nessas
condições. Tanto é assim que mesmo após as libertações pelo MTE, vários retornam aos
mesmos patrões, ou a outros que reproduzem a lógica. Serão eles livres? A liberdade é,
portanto, um elemento complexo, o que nos faz pensar que talvez o próprio sistema
capitalista, convivendo ao mesmo tempo com opulências e misérias, seja quem permite e
reforça o trabalho escravo.
Na cidade ou no campo, a restrição direta ou indireta da liberdade funciona como elemento
central para que os trabalhadores aceitem as condições de trabalho impostas, os baixos
salários e os mais diversos descumprimentos à legislação trabalhista. É assim que chegamos
à segunda hipótese, o trabalho degradante, que geralmente anda ao lado da primeira hipótese.
A questão central aqui é a dignidade do trabalhador, afrontada por condições degradantes de
trabalho ou jornadas exaustivas. É importante notar que todo trabalho forçado é também
degradante, mas a recíproca não é verdadeira, e a restrição da liberdade de ir e vir é o que os
diferencia.
Uma interessante pesquisa realizada pela OIT, que procurou entender o perfil dos atores
envolvidos no trabalho escravo, entrevistou diferentes trabalhadores e perguntou-lhes a
seguinte questão: o que é trabalho escravo? Suas respostas foram as mais diversas, mas dão a
exata medida de como na perspectiva dos próprios trabalhadores trabalho forçado e
degradante na maioria das vezes coexistem, coexistindo também a perda de dignidade e de
liberdade:
“a pessoa que vai trabalhar na fazenda a vida inteira sem ganhar quase nada”, “a gente
trabalhar muito e ganhar pouco”, “na cidade da gente falam uma coisa e depois é outra;
nunca é do jeito que falam”, “não dá tempo de folga, nem pra beber água”, “explorar o
trabalhador; o trabalhador fazer o que ele não pode, o máximo que o corpo pede”, “quando
sofre humilhação e a alimentação não é boa”, “você tá trabalhando e uma pessoa tá com uma
arma; você quer parar pra descansar e ele fica avexando pra trabalhar; aí eu acho que é”
O trabalho degradante será caracterizado quando existentes jornadas exaustivas ou condições
degradantes de trabalho. Como são definidas cada uma dessas situações? A Orientação nº 3
da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, do MPT, define que
“jornada de trabalho exaustiva é a que, por circunstâncias de intensidade, freqüência,
desgaste ou outras, cause prejuízos à saúde física ou mental do trabalhador, agredindo sua
dignidade, e decorra de situação de sujeição que, por qualquer razão, torne irrelevante a sua
vontade”.
Apesar da limitação legal da jornada de trabalho, bem como das horas extras, existe no
Brasil uma cultura da sobrejornada. Faz parte do cotidiano a sua extrapolação, deixando a
sensação de que basta pagar as horas extras, não importando o número de horas prestadas.
Isso quando elas são pagas pelo empregador. Apoiado por trabalhadores e empregadores, o
descumprimento se torna um ciclo, em especial em tempos de um capitalismo global, que
exige ao máximo ao trabalhador, dando-lhe o mínimo.
Por um lado, as empresas conseguem, com a realização permanente de horas extras, escapar
da contratação de força de trabalho adicional necessária às metas de sua produção e, com
isso, desembolsar menos recursos com salários, contribuições, direitos, benefícios, mesmo
quando paga mais pelas horas adicionais e, por outro lado muitos trabalhadores vislumbram,
na realização de horas extras, uma forma de complementar salários historicamente abaixo de
suas próprias necessidades e das de sua família, e que, muitas vezes, não satisfazem o que é
básico para sua sobrevivência imediata. […] Há ainda aqueles que temem perder o emprego
como represália da empresa caso se neguem a fazer horas extras e os que acreditam que o
trabalho em sobrejornada, além de facilitar o atingimento das metas impostas pela empresa,
revelaria seu comprometimento com esta, o que, teoricamente, favoreceria a manutenção do
emprego.
Por outro lado, a legislação atual não leva em consideração que o número de horas
trabalhadas pode estar de acordo com a lei, mas dependendo da intensidade da jornada, ela
pode desencadear uma fadiga física e mental igual ou maior à da sobrejornada. Nos últimos
500 anos, os ritmos do trabalho se revolucionaram, seja pelas máquinas, seja pelos relógios e
gerência do tempo. Prolongam-se as jornadas, eliminam-se intervalos, são criados trabalhos
noturnos, turnos ininterruptos de revezamento, bancos de horas, trabalhos em feriados e fins
de semana. Isso com a proteção da lei, algo que só se intensifica com a reestruturação
produtiva, imposta a todas as etapas e empresas da cadeia, onde são exigidos funcionários
polivalentes, que saibam atuar em equipe, com o máximo de competência e no menor tempo.
É preciso que se tenha o corpo e a alma do trabalhador, mas a quais custos individuais e
sociais?
A busca da chamada produção enxuta visa a eliminação de todo tipo de desperdício, de tudo
que é considerado improdutivo, o que pressupõe a utilização máxima de todos os recursos,
neles compreendidos o tempo e, considerado como qualquer outro recurso, o trabalho
humano. Os trabalhadores devem reproduzir prescrições rigidamente definidas. A ordenação
do tempo é calculada não mais pela média, mas pelo menor tempo obtido no cumprimento
das tarefas. Assim, foi estabelecido um sistema rígido de pressão e de aceleração contínua no
ritmo de trabalho, que deixa pouca ou nenhuma margem para que os trabalhadores possam
adequar o trabalho às suas características e limites, elevando substancialmente as cargas de
trabalho física e psíquica. O modelo visa ainda a eliminação de pausas no trabalho (as
chamadas ‘porosidades’) e é exercido um controle cerrado do tempo de trabalho. A
eliminação de pausas e/ou controle cerrado dos tempos restringe, ainda, o estabelecimento de
vínculos,de laços de amizade e solidariedade, o que, juntamente com a lógica de competição
e com a manipulação do medo do desemprego, favorece, dentre outras coisas, a
intensificação de práticas de assédio moral. A par disso, práticas características do modelo –
tais como terceirização de setores considerados secundários, eliminação de estoques (just in
time), qualidade total, competição entre setores, defeito zero – passaram a exigir dos
trabalhadores tarefas de controle da produção e de qualidade, que antes eram
responsabilidade exclusivas das chefias. Passou-se a exigir que o trabalhador seja
polivalente, criativo, multifuncional e subjetivamente engajado, capaz de resolver até mesmo
de se antecipar frente a imprevistos que possam comprometer o equilíbrio da produção e
disposto a se empenhar em atingir metas fixadas unilateralmente pelo empregador.
Concomitantemente, tem sido adotado um modelo de gestão que se caracteriza pelo estímulo
à competitividade entre os trabalhadores, pela adoção de avaliações individuais de
desempenho, pela divulgação de resultados comparativos das metas atingidos, dentre outros.
As transformações em torno da gestão do tempo, em sua quantidade ou qualidade, nos faz
repensar os paradigmas clássicos do trabalho escravo, que hoje se mostra mais que nunca
vinculado ao capitalismo global. Da mesma forma, o conceito de trabalho em condições
degradantes também é problematizado. Segundo a Orientação nº 4 da Coordenadoria
Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, do MPT, “condições degradantes de trabalho
são as que configuram desprezo à dignidade da pessoa humana, pelo descumprimento dos
direitos fundamentais do trabalhador, em especial os referentes a higiene, saúde, segurança,
moradia, repouso, alimentação ou outros relacionados a direitos da personalidade,
decorrentes de situação de sujeição que, por qualquer razão, torne irrelevante a vontade do
trabalhador”.
Na prática as situações mais comuns são alojamentos em péssimas condições, com paredes,
pisos e canais de ventilação inadequados, quando não inexistentes, sem conforto térmico,
proteção contra animais; péssimas condições de higiene e limpeza, saneamento, coleta de
lixo, muitas vezes feita pelos próprios trabalhadores; superlotação; instalações elétricas
precárias, com risco de explosões e incêndios; não fornecimento ou fornecimento de itens de
baixa quantidade e qualidade, tais como camas, colchões, armários, cobertores e toalhas;
áreas de vivência e lazer precárias, obrigando os trabalhadores a adquirir eletrodomésticos
tais como televisão e rádio; não utilização de medidas de proteção coletivas e individuais em
face de situações de risco; não fornecimento de água potável e comida quando era obrigação
do empregador.
Tudo isso nos leva a crer que o meio ambiente de trabalho é um conceito amplo, diz respeito
ao espaço físico, mas também ao cumprimento da jornada, cumprimento dos demais direitos
trabalhistas, dos indicadores de saúde e segurança, dos mais diversos aspectos da dignidade
humana no trabalho. Diante disso, fica claro que a precariedade desse trabalho, ou a
existência de trabalho em condições degradantes, são responsabilidades de quem se beneficia
dos produtos do trabalho, seja na forma de bens, seja na forma do lucro. Portanto, há toda
uma rede, nacional e global, que se alimenta e reproduz o trabalho escravo, com suas várias
manifestações na atualidade.
3 A responsabilização em cadeia
A nova configuração da empresa no mundo globalizado (a empresa-rede) é facilmente
visualizada na indústria têxtil, na qual se encontra a exploração do sweating system, ou
“sistema do suor”. Esse modelo consiste no fracionamento da produção em uma cadeia de
pequenas e microempresas, concorrentes entre si, gerando um sistema de subcontratação
estabelecido em virtude do menor preço. A intensa pulverização da cadeia produtiva leva à
redução do valor dos salários e submete os trabalhadores a jornadas extenuantes e a péssimas
condições de trabalho, normalmente desenvolvido em um ambiente que se confunde com a
própria residência (sweatshops).
A confusão entre o ambiente de trabalho e a moradia dos trabalhadores dificulta a
fiscalização pelo Poder Público, permitindo que esse sistema se estabeleça e prolifere
rapidamente, alimentado sobretudo pela imigração irregular, que leva os migrantes
estrangeiros , em situação de vulnerabilidade econômica e social, a se sujeitarem a condições
laborais degradantes, caracterizadoras das formas contemporâneas de escravidão.
Além disso, a negativa das empresas que ocupam o topo da cadeia produtiva das indústrias
têxteis em reconhecer sua responsabilidade quanto às obrigações trabalhistas inadimplidas
pelas oficinas de costura também é um entrave no enfrentamento do trabalho em condições
análogas à de escravo. Os grandes magazines sustentam, em regra, que sua atividade
finalística é apenas o design do produto, e não a manufatura. Alegam, assim, que a relação
mantida com os fornecedores é lícita, fundamentada em legítimo contrato de facção, razão
pela qual não são responsáveis pelo que ocorre na relação entre os trabalhadores e as oficinas
de costura contratadas por seus fornecedores diretos, mesmo porque desconhecem as
condições a que estão sujeitos tais trabalhadores.
Por outro lado, a responsabilização do empregador direto, por si só, não resolve a questão,
pois ele, segundo Bignami,:
[…] esse sujeito que, frequentemente, é um ex-costureiro, ou uma figura mesclada de
costureiro e empresário, que conhece o ofício e está a meio caminho entre o empregador e o
empregado, entre o capital e o trabalho, entre explorar e ser explorado, como uma figura
metamorfósica sartreana: metade vítima, metade cúmplice na Nova Questão Social.
Assim, a única forma de impedir efetivamente a manutenção da mão de obra escrava em
casos de subcontratação em rede é, primeiramente, desvendando os elos da cadeia produtiva,
para, em seguida, nela interferir. De acordo com Fabre, o Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE) tem mapeado a rede de suprimentos das grandes grifes, a partir da análise de dados
fornecidos pela Receita Federal do Brasil, e deflagrado operações em face das oficinas de
costura que lhes estão estruturalmente vinculadas.
No caso da detentora da grife M. Officer, por exemplo, o Ministério Público do Trabalho
(MPT) agiu de forma semelhante: por meio do cruzamento dos dados fornecidos pela
Receita Federal, constantes de notas fiscais emitidas pela tomadora de serviços e suas
intermediárias, com as informações constantes do Cadastro Geral de Empregados e
Desempregados (CAGED), foi possível constatar que alguns fornecedores tinham elevada
produção, com pequena movimentação financeira e poucos empregados, o que levantou a
suspeita acerca da exploração da mão de obra escrava.
Feito o mapeamento da cadeia de produção das grandes empresas, é necessário que haja a
responsabilização dos seus integrantes, que, de alguma forma e em algum momento do
processo produtivo, também se beneficiam dessa prática. Busca-se, assim, evitar que o
mercado absorva a produção resultante desse trabalho indigno, que atinge não apenas os
trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo, mas também a economia, na
medida em que, ao transformar em mercadoria esses trabalhadores, impede o crescimento do
mercado consumidor e gera uma vantagem indevida a quem se utiliza dessa prática, levando
à concorrência desleal.
Dessa forma, de acordo com Bignami:
As experiências e soluções para pôr fim ao sweating system nas relações de trabalho passam
necessariamente pela responsabilização solidária em cadeia, por meio da 0oportuna revisão
das premissas de fundação do Direito do Trabalho e da absorção do conceito da nova
empresa que surgiu com a economia global: a empresa-rede.
Somente com a quebra do ciclo gerador da demanda por empresas que forneçam produtos a
custos muito reduzidos é que alcançaremos resultados no combate ao trabalhoescravo. Caso
contrário, o problema se perpetuará: as grandes varejistas têxteis continuarão contratando
outros fornecedores que lhes proporcionam maiores lucros, às custas de quem está no outro
extremo da cadeia produtiva: o trabalhador.
Esse parece ser o caso, por exemplo, da empresa que detém a marca M. Officer. Após
diversas diligências realizadas pelo MTE em conjunto com o MPT, verificou o Parquet que
as situações flagradas de trabalho em condições análogas à de escravo não constituíam casos
isolados, mas verdadeiro modelo de produção da varejista têxtil, com o propósito de reduzir
custos. Esse modus operandi fica claro ao se examinar o depoimento prestado pela gestora
do Departamento de Compras dessa empresa, em seu relato sobre o funcionamento do
processo de escolha dos fornecedores, a que chama de sourcing:
Informou ainda saber que existem fornecedores que chegam a quarteirizar a produção para
cerca de quarenta subcontratados. Mencionou ainda existirem poucos fornecedores em que
toda a produção é internalizada, elaborada completamente por costureiros próprios, mas que
esses casos são raros e acabam encarecendo a produção. Por esse motivo acabam priorizando
os fornecedores que subcontratam, por representar custos mais baixos de produção.
(destaques no original)
A concorrência desleal causada pela utilização da mão de obra escrava na cadeia produtiva
de algumas empresas acaba por gerar um círculo vicioso de desrespeito aos direitos
fundamentais e sociais dos trabalhadores. Diante da redução de custos provocada pela
exploração do trabalho escravo por seus concorrentes, as empresas, para se manterem em
atividade, são obrigadas a adotar as mesmas práticas de superexploração dos trabalhadores,
seja diretamente, seja por meio da importação de produtos de países onde os direitos
trabalhistas mínimos não são observados.
Em razão disso, é importante que as medidas adotadas no combate ao trabalho escravo sejam
internacionalizadas, a fim de evitar que a produção nacional seja substituída pela importação
de produtos feitos por trabalhadores escravizados em outros países, longe do alcance da
legislação brasileira, como já tem ocorrido no setor do vestuário, segundo informações
prestadas pelo Sindicato das Costureiras de São Paulo, na CPI do Trabalho Escravo.
Constatou-se que há um descompasso entre o crescimento desse setor e a contratação formal
de costureiros, o que pode ser explicado por dois fatores, considerando a inexistência de
tecnologia capaz de substituir o trabalho dessa categoria: de um lado, pelo aumento das
importações; de outro, pela redução de trabalhadores formais, sobretudo em razão do
aumento do número de imigrantes que ingressam irregularmente no país em busca de
trabalho (na indústria têxtil, bolivianos em sua maioria, seguidos por peruanos e paraguaios).
Uma das medidas sugeridas na referida CPI, em relação às importações, é a indicação à
Presidência da República, ao Ministério das Relações Exteriores e ao Presidente do
Congresso Nacional para que estudem a adoção de mecanismo já utilizado nos Estados
Unidos (“List of Goods Produced by Child Labor or Forced Labor”, conhecida como Lista
DOL): a confecção de uma listagem que revela em quais indústrias de qual país foi
registrada a utilização de mão de obra escrava ou trabalho infantil. Essa lista seria um
importante instrumento para os empresários evitarem que tais fornecedores façam parte de
sua cadeia produtiva e para que os consumidores também possam selecionar as empresas
comprometidas com sua função social, boicotando aquelas que descumprem os direitos
trabalhistas, como já ocorreu com a Nike.
No plano nacional, a criação da “Lista Suja do Trabalho Escravo”, pela Portaria n. 540/04 do
MTE (em substituição à Portaria nº 1.234/03), tem sido um importante instrumento de
combate a essa prática, aliada à Portaria nº 1.150/03 do Ministério da Integração Nacional
(MIN). A “Lista Suja” consiste em um cadastro de empregadores que tenham mantido
trabalhadores em condições análogas à escravidão, sendo que a inclusão do nome do infrator
somente ocorre após decisão administrativa final relativa aos autos de infração lavrados pelo
órgão fiscalizador. A Portaria nº 1.150/03 do MIN, por sua vez, determina a remessa
semestral da referida lista aos bancos administradores dos Fundos Constitucionais de
Financiamento, recomendando-lhes que se abstenham de conceder financiamentos e
incentivos aos integrantes do cadastro. Foi o que ocorreu com a empresa COSAN, maior
produtora de álcool e açúcar do mundo: após serem resgatados trabalhadores escravos em
uma de suas fornecedoras e ter seu nome incluído na Lista Suja, o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) suspendeu a liberação de empréstimos que
já haviam sido aprovados – suspensão posteriormente revogada, em virtude de liminar
concedida pela Justiça do Trabalho, que determinou sua retirada da lista .
Outra importante constatação da CPI do Trabalho Escravo foi o fato de que, em crimes de
motivação financeira, como é o caso do crime de redução do trabalhador às condições
análogas à de escravo, a sanção penal não se mostra tão eficaz no combate a essa forma cruel
de exploração do trabalhador quanto a sanção econômica, sobretudo quando se trata de
modelo de produção que envolve diversas empresas, articuladas em rede. Dentre os fatores
apontados, merece relevância o fato de que os agentes criminosos têm ciência de que é mais
lucrativo manter a atividade delituosa e correr o risco de responder a eventual processo do
que agir em conformidade com a lei. Ademais, continuam auferindo os lucros decorrentes do
delito praticado no decorrer do processo criminal. A par disso, por se tratar de crime
cometido ao longo de uma cadeia produtiva, a dificuldade na individualização da conduta
criminosa daqueles que a integram é elemento que pode impedir a punição penal de quem
mais lucra e se beneficia com a exploração do trabalho escravo: aquele que está no topo da
cadeia.
Pensando nas sanções econômicas para quem se utiliza da mão de obra escrava, o Governo
do Estado de São Paulo adotou uma medida administrativa pioneira: editou a Lei nº
14.946/13, que prevê a cassação do registro de contribuinte do ICMS de empresas nas quais
se constate a exploração do trabalho em condições análogas à escravidão ao longo de sua
cadeia produtiva. Assim estabelece seu artigo 1º:
Artigo 1º – Além das penas previstas na legislação própria, será cassada a eficácia da
inscrição no cadastro de contribuintes do imposto sobre operações relativas à circulação de
mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual intermunicipal e de
comunicação (ICMS) dos estabelecimentos que comercializarem produtos em cuja
fabricação tenha havido, em qualquer de suas etapas de industrialização, condutas que
configurem redução de pessoa a condição análoga à de escravo.
A referida lei ainda impõe aos sócios dessas empresas, pessoas físicas ou jurídicas, o
impedimento de exercerem o mesmo ramo de atividade, pelo prazo de 10 anos, mesmo que
em estabelecimento distinto daquele, e a proibição de entrarem com pedido de inscrição de
nova empresa, no mesmo ramo de atividade (art. 4º, incisos I e II e § 1º). Além disso, o § 2º
do art. 4º estabelece, em caso de contribuinte optante pelo Simples Nacional, que a cassação
da eficácia da sua inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS implicará,
cumulativamente, a perda do direito ao recebimento de créditos do Tesouro do Estado,
instituído pelo Programa de Estímulo à Cidadania Fiscal do Estado de São Paulo (Lei nº
12.685/07), e o cancelamento dos créditos já calculados ou liberados, referentes ao
mencionado programa.
Não há dúvidas de que o impacto causado por essas sanções econômicas – tanto no caso da
aplicação da Lei nº 14.946/13, como da inclusão da empresa na Lista Suja, ou em uma
relação semelhante à Lista DOL – refletirá também no mercado de ações. A partir domomento em que houver a responsabilização pela utilização da mão de obra escrava de todos
aqueles que compõem a cadeia produtiva, de modo a afetar a projeção dos negócios, os
acionistas e investidores passarão a se importar mais com esse tema, como já ocorreu nos
casos da grife Le Lis Blanc e da MRV Engenharia. Nesse sentido, é válida e de extrema
relevância a indicação proposta pela CPI do Trabalho Escravo a ser feita à BM&F Bovespa,
para incluir, entre os critérios para atuação no “Novo Mercado”, a cadeia produtiva livre de
mão de obra escrava. A exigência de elementos de transparência geraria efeitos positivos
para o mercado, que investiria com mais segurança, e para a empresa, que teria uma melhor
valorização de suas ações, auxiliando, em última análise, no combate à escravidão
contemporânea.
No âmbito da responsabilidade social, o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho
Escravo tem importante papel. Consiste em um acordo que envolve diversas empresas e
associações comerciais, em que os signatários se comprometem a eliminar a mão de obra
escrava ao longo de sua cadeia produtiva, seja pela recusa na compra de mercadorias em que
tenha ocorrido essa prática, seja pelo apoio a ações de combate à escravidão e de
reintegração dos trabalhadores submetidos a tal tratamento.
Os Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) firmados, perante o Ministério Público do
Trabalho, pelas empresas que se utilizam da mão de obra escrava em sua cadeia produtiva
também desenvolvem a noção de responsabilidade social de quem está no topo da cadeia
pelas obrigações legais descumpridas ao longo dela. Nesse sentido, a assunção de
compromissos relativos à realização constante de auditorias nos fornecedores e à obrigação
de rescisão contratual com aqueles que exploram o trabalho escravo apresenta-se como mais
uma forma de combate a essa prática.
É preciso considerar, contudo, que nem sempre ocorre de a empresa ocupante do topo da
cadeia produtiva firmar Termo de Ajustamento de Conduta perante o MPT, quando é
constatada a existência de trabalho escravo em alguma das etapas do processo produtivo.
Assim, resta ao Parquet ajuizar Ação Civil Pública, para buscar o reconhecimento de sua
responsabilidade jurídica pela violação aos direitos dos trabalhadores e sua condenação
solidária, com todas as demais empresas que compõem essa rede de subcontratações, a
adequar o ambiente de trabalho às normas legais e a pagar indenização por danos morais
coletivos.
Nos casos em que as empresas negam sua responsabilidade, como já exposto, sua defesa, em
regra, é no sentido de que os trabalhadores resgatados pela fiscalização estariam vinculados
aos fornecedores com quem mantinham relações de natureza comercial, ou com os
fornecedores destes. Alegam, assim, desconhecimento total da situação de precariedade
vivida por tais trabalhadores.
Ainda que se entenda tratar-se de legítimo contrato de facção, e não da hipótese de
terceirização ilícita (em atividade-fim da tomadora, de modo a atrair a aplicação da Súmula
nº 331, I, do TST), cabe a responsabilização jurídica do tomador final. Para tanto, o MPT
tem fundamentado seu pedido nas Ações Civis Públicas com base em diversas teorias, como,
por exemplo, a da cegueira deliberada, proveniente do Direito Penal. Baseada na teoria da
culpa, ela é invocada nas hipóteses em que o tomador final se coloca, deliberadamente, em
situação de ignorância quanto à possível ocorrência de exploração de mão de obra escrava ao
longo de sua cadeia produtiva, embora tenha elementos suficientes para desconfiar de tal
prática, em razão dos baixos valores pagos aos seus fornecedores pelas peças produzidas e
por se tratar de um fato que notoriamente ocorre no ramo têxtil. Assim, “a teoria da cegueira
deliberada reconhecerá responsabilidade àquele que propositalmente se coloca em situação
de ignorância, omitindo-se quanto a um dever razoável de cautela”.
4 Considerações finais
As inúmeras denúncias de exploração da mão de obra escrava revelam que essa chaga social
persiste no mundo de hoje, assumindo as mais variadas formas, e atinge pessoas de todos os
lugares, independentemente de raça, cor ou idade.
O capitalismo, no mundo globalizado, não apenas convive com essas formas de
superexploração dos trabalhadores como as alimenta e delas se beneficia, já que se trata de
um “negócio” extremamente lucrativo.
A globalização econômica trouxe consigo um novo modelo de empresa, fisicamente menor,
mas que permanece grande em termos econômicos, envolvendo, por vezes, segmentos
econômicos diversos. Essas empresas, que atuam em nível global e se ocupam das atividades
de concepção, design, marketing, pesquisa e tecnologia, estão articuladas em rede com
pequenas e médias empresas, que lhes estão estruturalmente vinculadas e exercem atividades
que não exigem alta tecnologia nem maior qualificação da mão de obra.
Por ser uma rede flexível, ela se move conforme os fluxos econômicos, buscando se
estabelecer onde os custos de produção são mais baixos. Os grandes grupos econômicos não
se importam, contudo, com a origem dessa redução, já que o que lhes interessa é auferir
maiores lucros e eliminar os riscos de uma responsabilização jurídica e econômica. Ocorre
que, com isso, alimentam a prática da exploração da mão de obra escrava, pois o trabalhador,
que se encontra no outro extremo da cadeia produtiva, é quem absorve os efeitos dessa
redução de custos.
Diante disso, a responsabilidade em cadeia é o caminho que deve ser trilhado no combate à
escravidão contemporânea. É preciso compreender que, no mundo globalizado, as empresas
estão articuladas em rede e, para quebrar o ciclo do trabalho escravo, é imprescindível
interferir nessa cadeia.
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60.
A fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego contra a escravidão contemporânea no
Brasil e seu processo administrativo interno
Theo Lucas Pinheiro Rocha
1 Introdução
A escravidão contemporânea é hoje uma das celeumas mais avassaladoras da história da
humanidade. No Brasil, apesar da Lei n.º 3.353, de 13 de maio de 1888 ter abolido
legalmente a escravidão em território nacional, vê-se que, embora passados 126 anos de tal
feito, a prática ainda persiste. De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego, órgão da
Administração Federal responsável pelo combate in loco do trabalho em condições análogas
à de escravo, mais de duas mil pessoas são libertadas por ano no Brasil por encontrarem-se
submetidas a trabalhos em condições degradantes, que configura o trabalho análogo ao de
escravo.
Por tal razão, o presente artigo vem analisar a atuação do Ministério do Trabalho e Emprego
no combate à escravidão contemporânea, elucidando a legislação vigente, a competência de
seus atuantes – Auditores Fiscais do Trabalho, bem como o processo administrativo
trabalhista instaurado pelo Ministério do Trabalho e Emprego para aqueles tomadores de
serviço que são flagrados utilizando mão de obra análoga à escravidão.
2 O Ministério do Trabalho e Emprego
O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) é um órgão da Administração Pública Federal,
haja vista a competência da União para organizar, manter e executar a inspeção do trabalho
(art. 21, XXIV da CR/88). A Consolidação das Leis do Trabalho também dispõe acerca da
existência de órgão de âmbito nacional que atue na observância das condições de segurança
e da medicina do trabalho (art. 155, II da CLT).
O art. 1º do Decreto nº 5.063, de 3 de maio de 2004, prevê a natureza e competência do
MTE, destacando que:
Art. 1o O Ministério do Trabalho e Emprego, órgão da administração federal direta, tem
como área de competência os seguintes assuntos:
I – política e diretrizes para a geração de emprego e renda e de apoio ao trabalhador;
II – política e diretrizes para a modernização das relações do trabalho;
III – fiscalização do trabalho, inclusive do trabalho portuário, bem como aplicação das
sanções previstas em normas legais ou coletivas;
IV – política salarial;
V – formação e desenvolvimento profissional;
VI – segurança e saúde no trabalho;
VII – política de imigração; e
VIII – cooperativismo e associativismo urbanos. (Grifei)
O Ministério do Trabalho e Emprego atua por meio de seus Auditores Fiscais do Trabalho
(AFT), servidores públicos imbuídos do dever legal de fiscalizar as relações de trabalho. Os
AFT exercem a auditoria sob o prisma da segurança e da saúde no ambiente laboral, o que
pode levar à caracterização do trabalho em condições análogas ao de escravo.
3 Competência dos Auditores Fiscais do Trabalho e a caracterização do trabalho em
condições análogas à de escravo
A norma que regulamenta a competência dos Auditores Fiscais da União, Lei n.º 10.593, de
6 de dezembro de 2002, prevê que:
Art. 11. Os ocupantes do cargo de Auditor-Fiscal do Trabalho têm por atribuições assegurar,
em todo o território nacional:
I – o cumprimento de disposições legais e regulamentares, inclusive as relacionadas à
segurança e à medicina do trabalho, no âmbito das relações de trabalho e de emprego;
II – a verificação dos registros em Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS,
visando a redução dos índices de informalidade;
III – a verificação do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS,
objetivando maximizar os índices de arrecadação;
IV – o cumprimento de acordos, convenções e contratos coletivos de trabalho celebrados
entre empregados e empregadores;
V – o respeito aos acordos, tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil seja
signatário;
VI – a lavratura de auto de apreensão e guarda de documentos, materiais, livros e
assemelhados, para verificação da existência de fraude e irregularidades, bem como o exame
da contabilidade das empresas, não se lhes aplicando o disposto nos arts. 17 e 18 do Código
Comercial.
Sendo assim, o Auditor Fiscal do Trabalho tem a incumbência legal de fiscalização in loco
para verificar se há o cumprimento da legislação trabalhista em cada relação de emprego.
Por meio de tal verificação, o AFT analisará se o trabalho é degradante, podendo configurá-
lo, destarte, como trabalho análogo ao de escravo.
No que concerne aos instrumentos para a erradicação do trabalho escravo, cite-se a Instrução
Normativa n.º 91, de 5 de outubro de 2011 do Ministério do Trabalho e Emprego. Segundo
esta norma, uma vez identificado o trabalho realizado em condição análoga à de escravo,
configura-se atentado aos direitos humanos fundamentais, sendo dever do Auditor Fiscal do
Trabalho colaborar para a sua erradicação.
Os Auditores Fiscais usam como supedâneo o arcabouço legislativo vigente para se
caracterizar o trabalho em condições análogas ao trabalho escravo, valendo-se do art. 149 do
Código Penal brasileiro e as Convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT).
Diante das disposições legais, o primeiro contato com a situação fática é realizado pelos
membros do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, cabendo-lhes, por meio da inspeção do
trabalho, verificar a ocorrência de situações que configurem o trabalho em condições
análogas à de escravo. Verificam, por exemplo, se o trabalho está em condições degradantes,
insalubres, sem observância das normas de saúde, segurança, ou sequer proteção ao
exercício laborativo.
3.1 Atuação direta dos AFT contra a escravidão contemporânea: Grupo Especial de
Fiscalização Móvel
O Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) regulado pela Portaria do MTE n.º 265 de
06 de junho de 2002, realiza ações fiscais voltadas, especialmente, para o combate ao
trabalho escravo. É composto por Auditores Fiscais do Trabalho, membros do Ministério
Público do Trabalho, Delegados e Agentes da Polícia Federal, Policiais Rodoviários
Federais, dentre outros órgãos que eventualmente possam ser chamados a colaborar.
Criado em 1995 pelas Portarias n.º 549 e 550 da Secretaria de Fiscalização do Trabalho do
Ministério do Trabalho, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel foi criado para atuação
específica no meio rural e investigação de denúncias de trabalho escravo. Era, inicialmente,
ramo especializado do Grupo Interministerial para Erradicação do Trabalho forçado
(GERTRAF) e foi uma das primeiras medidas do governo brasileiro para o combate ao
trabalho escravo no Brasil.
Hodiernamente, não sobejam dúvidas acerca da importância da atuação do Ministério do
Trabalho e Emprego por meio do GEFM. Conforme dados do próprio MTE, a cada dia, mais
de cinco pessoas em média são libertadas do trabalho em condições análogas ao de escravo
no país . Das Unidades Federadas, Minas Gerais é a que mais liberta trabalhadores nessa
situação, totalizando mais de 2.000 trabalhadores no ano de 2013. O Pará contou com 1.808
trabalhadores resgatados, seguido por Goiás (1.315), São Paulo (916) e Tocantins (913).
Desde o nascedouro da fiscalização no Brasil, no fim do século passado, até os dias atuais,
foram mais de 46.478 mil trabalhadores libertos em todo o país, conforme os dados do
próprio MTE.
O balanço do primeiro semestre de 2014 foi realizado pelo Ministério do Trabalho e
Emprego que enalteceu a atuação do GEFM:
O Ministério do Trabalho e Emprego divulga o levantamento sobre as operações de combate
ao trabalho análogo ao de

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