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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA INSTITUTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA E DEFESA DE DIREITOS HUMANOS KATTARINE KELLY SERGIO DE SENA COSTA O CONCEITO DE ESCRAVIDÃO SOB A PERSPECTIVA DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO FRENTE AO DIREITO INTERNACIONAL BOA VISTA - RR 2017 KATTARINE KELLY SERGIO DE SENA COSTA O CONCEITO DE ESCRAVIDÃO SOB A PERSPECTIVA DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO FRENTE AO DIREITO INTERNACIONAL Monografia apresentada como pré- requisito para a conclusão do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal de Roraima – UFRR. Orientador (a): Prof. MsC. Raimundo Paulino Cavalcante Filho BOA VISTA - RR 2017 Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP) Biblioteca Central da Universidade Federal de Roraima Bibliotecária responsável: Maria de Fátima Andrade Costa - CRB-11/453-AM C837c Costa, Kattarine Kelly Sérgio de Sena. OO ccoonncceeiittoo ddee eessccrraavviiddããoo ssoobb aa ppeerrssppeeccttiivvaa ddoo oorrddeennaammeennttoo jjuurrííddiiccoo bbrraassiilleeiirroo ffrreennttee aaoo ddiirreeiittoo iinntteerrnnaacciioonnaall :: uumm eessttuuddoo àà lluuzz ddaa nneeooeessccrraavviiddããoo ddee iimmiiggrraanntteess vveenneezzuueellaannooss eemm RRoorraaiimmaa / Kattarine Kelly Sérgio de Sena Costa. – Boa Vista, 2017. 45 f. : il. Orientador: Prof. Me. Raimundo Paulino Cavalcante Filho. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) - Universidade Federal de Roraima, Curso de Direito. 1 - Escravidão contemporânea. 2 - Ordenamento jurídico brasileiro. 3 - Direito internacional. I - Título. II - Cavalcante Filho, Raimundo Paulino (orientador). CDU - 341.231.3(811.4) KATTARINE KELLY SERGIO DE SENA COSTA O CONCEITO DE ESCRAVIDÃO SOB A PERSPECTIVA DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO FRENTE AO DIREITO INTERNACIONAL Monografia apresentada como pré- requisito para a conclusão do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal de Roraima – UFRR. Área de concentração: Direitos Humanos. Defendida no dia 31 de janeiro de 2018 e avaliada pela seguinte banca examinadora: _________________________________________________________ Prof. MsC. Raimundo Paulino Cavalcante Filho Orientador/Curso de Direito - UFRR _________________________________________________________ Prof. Dr. Fernando César Costa Xavier Curso de Direito - UFRR __________________________________________________________ Profª. Esp. Lívia Dutra Barreto Curso de Direito - UFRR Aos meus pais, minha irmã e meu namorado, pois sem eles, minhas conquistas não teriam significado algum. São as nossas escolhas, mais do que as nossas capacidades, que mostram quem realmente somos. (Alvo Dumbledore) RESUMO O presente trabalho tem como objetivo apresentar o conceito contemporâneo de escravidão no ordenamento jurídico brasileiro e no Direito Internacional. Analisa, primeiramente, quais diplomas internacionais tratam do conceito de escravidão, e qual conceito é adotado: clássico, pré-moderno ou contemporâneo. Como também, a legislação brasileira referente ao tema. Após a análise do instituto nos diplomas legais nacionais e internacionais, passa-se a examinar as principais decisões do Supremo Tribunal Federal acerca do tema, sobretudo, relacionadas ao artigo 149 do Código Penal (crime de redução à condição análoga à de escravo). Nesse tópico, aprecia-se quais os argumentos utilizados pelos Ministros na construção da definição do que seja escravidão, principalmente em contraponto a mera violação de direitos trabalhistas. Por último, utiliza-se o caso dos imigrantes venezuelanos em Roraima para evidenciar as novas manifestações da exploração por trabalho escravo e demonstrar a aplicabilidade do conceito moderno de escravidão. Assim, pelo que foi constatado ao longo do estudo, verifica-se que o conceito contemporâneo de escravidão é adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pois, dispensa-se para sua configuração a existência da restrição à liberdade de locomoção do trabalhador, bastando a submissão a condições de trabalho degradante, e que, frente ao Direito Internacional, o posicionamento brasileiro é mais atual e avançado. Ainda, que a adoção dessa definição mais moderna se faz necessária tendo em vista a permanência dessa prática no Brasil, e que a restrição desta deve ser encarada como retrocesso em âmbito de Direitos Humanos. Palavras-chave: Escravidão contemporânea. Ordenamento jurídico brasileiro. Direito Internacional. ABSTRACT The present work aims to present the contemporary concept of slavery in the Brazilian legal system and in International Law. It analyzes, first, which international diplomas deal with the concept of slavery, and which concept is adopted: classic, pre-modern or contemporary. As well, the Brazilian legislation regarding the subject. After analyzing the institute in national and international legal texts, the main decisions of the Federal Supreme Court on the subject, mainly related to article 149 of the Criminal Code (crime of reduction to the condition similar to that of slave), are examined. In this topic, one appreciates the arguments used by Ministers in the construction of the definition of what is slavery, mainly in counterpoint to the mere violation of labor rights. Finally, the case of the Venezuelan immigrants in Roraima is used to show the new manifestations of the exploitation by slave labor and demonstrate the applicability of the modern concept of slavery. Thus, it was verified throughout the study that the contemporary concept of slavery is adopted by the Brazilian legal system and in the jurisprudence of the Federal Supreme Court, since the existence of the restriction on freedom of movement of the worker, simply submitting to degrading working conditions, and that, in the face of international law, Brazilian positioning is more current and advanced. Also, that the adoption of this more modern definition is necessary in view of the permanence of this practice in Brazil, and that the restriction of this should be considered as a retrocession in the scope of Human Rights. Keywords: Contemporary slavery. Brazilian legal system. International right. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10 1.CONCEITO CONTEMPORÂNEO DE ESCRAVIDÃO ........................................... 12 1.1 DIREITO INTERNACIONAL ................................................................................ 12 1.2 ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ........................................................17 2. DESCUMPRIMENTO DE NORMAS TRABALHISTAS EM CONTRAPONTO À ESCRAVIDÃO MODERNA ....................................................................................... 25 3. A NEOESCRAVIDÃO DE IMIGRANTES VENEZUELANOS EM RORAIMA: APLICABILIDADE DO CONCEITO .......................................................................... 35 CONCLUSÃO ........................................................................................................... 41 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 43 10 INTRODUÇÃO A prática de escravidão tem marcado a história da humanidade desde antes de Cristo, e, legalizada ou não, fez parte de muitas coletividades. Infelizmente, essa grave violação aos Direitos Humanos ainda se encontra presente sob muitos aspectos na sociedade contemporânea. As leis abolicionistas nacionais não foram suficientes para acabar com a prática, por isso foi desenvolvido, sobretudo ao longo do século XX, vasta legislação internacional sobre o tema. Acontece que, mesmo após esse amplo debate, tanto no âmbito doméstico quanto em âmbito internacional, reside imprecisão acerca do conceito de escravidão e suas formas análogas, quais sejam, trabalho forçado, servidão e servidão por dívidas. O Brasil, país marcado pela desigualdade social e má distribuição de terras, por muito tempo se manteve omisso quanto à existência de trabalho escravo. Mas após o reconhecimento internacional da permanência dessa prática no país, em 1995, tem implementado medidas no combate dessa realidade e se tornou destaque mundial no enfrentamento do trabalho escravo. A escravidão moderna é mais sutil, pois nem sempre tem a presença de correntes ou de jagunços armados. O que acarreta dificuldade na identificação das situações de exploração. Diante desse quadro ambíguo, na qual de um lado há vasta legislação no combate à escravidão e de outro há nebulosidade dos critérios que a definem, o resultado é a impunidade. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, o reconhecimento e a compreensão das atuais formas de exploração dos trabalhadores em situações limites como as que caracterizam o trabalho em condições análogas à escravidão são os primeiros passos para o enfrentamento consistente desse crime. Por isso, urge necessidade de estudar o conceito contemporâneo de escravidão no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo frente à legislação internacional sobre o tema. Desse modo, buscar-se-á com este trabalho a apresentação do tema, delimitando os aspectos legais que envolvem a escravidão, em um primeiro momento no cenário internacional, quais tratados e convenções tratam do assunto, e depois no ordenamento jurídico brasileiro, dentre a Constituição Federal e leis, inclusive da recente Portaria MTB nº 1.129, que modificou os critérios de 11 identificação da escravidão no Brasil. Posteriormente, serão analisadas as principais manifestações jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal acerca da escravidão, dando ênfase em qual conceito adotado pelo Tribunal e nos argumentos utilizados em contraponto a esse conceito. No terceiro e último capítulo, utilizar-se-á a questão dos imigrantes venezuelanos em Roraima para demonstrar os contornos que a escravidão moderna assume, a fim de ratificar a aplicabilidade do conceito de escravidão contemporânea, e o porquê de sua necessidade. Optou-se por utilizar nesse estudo a abordagem qualitativa, tendo em vista que é, sobretudo, descritivo e tem como alicerce a interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados. Na pesquisa, utiliza-se a coleta de dados por meio de análise bibliográfica, com a apreciação de materiais já publicados, inclusive da imprensa. 12 1. CONCEITO CONTEMPORÂNEO DE ESCRAVIDÃO 1.1 DIREITO INTERNACIONAL Apesar de o processo de eliminação da prática da escravidão ter iniciado ainda no século XVIII, a permanência dessa prática, no século XX, influenciou no surgimento de uma consciência internacional sobre o tema. Assim, a origem da matéria, em âmbito internacional, não se diferencia do surgimento de outros temas de direitos humanos, pois ocorreu em paralelo a criação dos organismos internacionais. A despeito das diversas iniciativas bilaterais e multilaterais para proibir a escravidão no século XIX, o primeiro tratado interacional que, especificamente, proibia a escravidão foi a denominada Convenção sobre a Escravatura, firmada em 1926, e se deu, ainda, no âmbito da Liga das Nações, também conhecida como Sociedade das Nações (SDN), que existiu entre 1919 e 1947 e antecedeu à ONU. Em seu Artigo 1º, ela define escravidão da seguinte forma: Artigo 1º. Para os fins da Presente Convenção, fica entendido que: 1º A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sôbre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade; Esse conceito de escravidão tem como pressuposto básico, o exercício dos atributos do direito de propriedade de uma pessoa sobre a outra, é a denominada escravidão clássica ou chattel. Na doutrina de Brion Davis (2001, p. 49): Em geral, tem sido dito que o escravo possui três características definidoras: sua pessoa é a propriedade de outro homem, sua vontade está sujeita à autoridade do seu dono e seu trabalho ou serviços são obtidos através da coerção. Esta convenção foi sucedida pelo Protocolo de 1953 e pela Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Praticas Análogas a Escravatura de 1956. Apesar do lapso temporal de 30 anos entre as duas convenções, esta repete o texto de 1926 acerca do conceito de escravidão. A Convenção de 1956 trouxe, ainda, outros conceitos, dentre eles, o conceito de “Pessoa de condição servil”, regulado nos Artigos 1º e 7º §2º: 13 SEÇÃO I INSTITUIÇÕES E PRÁTICAS ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO Artigo 1º Cada um dos Estados Membros à presente Convenção tomará todas as medidas, legislativas e de outra natureza, que sejam viáveis e necessárias, para obter progressivamente e logo que possível a abolição completa ou o abandono das instituições e práticas seguintes, onde quer ainda subsistam, enquadrem-se ou não na definição de escravidão assinada em Genebra, em 25 de setembro de 1926: §1. A servidão por dívidas, isto é, o estado ou a condição resultante do fato de que um devedor se haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou os de alguém sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses serviços não for eqüitativamente avaliado no ato da liquidação da dívida ou se a duração desses serviços não for limitada nem sua natureza definida. §2. A servidão, isto é, a condição de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume ou por um acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa outra pessoa, contra remuneração ou gratuitamente, determinados serviços, sem poder mudar sua condição. [...] SEÇÃO IV DEFINIÇÕES Artigo 7º Para os fins da presente Convenção: §1. "Escravidão", tal como foi definida na Convenção sobre a Escravidão de 1926, é o estado ou a condição de um indivíduo sobre o qual se exercem todos ou parte dos poderes atribuídos ao direito de propriedade, e "escravo" é o indivíduo em tal estado ou condição. §2. "Pessoa de condição servil" é a que se encontra no estado ou condição que resulta de alguma das instituições ou práticas mencionadas no artigo primeiro da presente Convenção. Segundoa redação desses artigos, a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Praticas Análogas a Escravatura de 1956 distingue a situação de escravidão da situação de servidão. Este último, apesar de também recair sobre si a restrição à liberdade, não possui como característica o exercício do direito de propriedade de uma pessoa sobre a outra. Esse conceito de servidão, presente na referida Convenção, relaciona-se ao conceito denominado de escravidão pré-moderna. Xavier (2017, on-line), nessa linha, assevera: [...] a escravidão pré-moderna passou a ser definida pela restrição ou controle, de forma ilícita e sistemática, sobre a autonomia individual e a liberdade de movimento de alguém, ofendendo o bem mais precioso da 14 modernidade liberal: a liberdade individual. Por meio da Convenção de 1956, o Estado Parte se compromete a tomar medidas legislativas ou de outra natureza que sejam necessárias e viáveis para obter progressivamente a abolição das instituições e práticas análogas a escravidão. Como também prevê que o ato de escravizar uma pessoa ou de incitá-la a alienar sua liberdade ou a de alguém na sua dependência, para escravizá-la deve constituir infração penal. Em paralelo, houve também o surgimento da Organização Mundial do Trabalho – OIT, fundada após a I Guerra Mundial, em 1919, com o objetivo de promover a justiça social e, assim, contribuir para a paz universal e permanente. Ao longo dos anos, a OIT tem lançado, para adoção de seus Estados-membros, convenções e recomendações internacionais do trabalho. Em 1930, a OIT aprovou a Convenção 29, chamada Convenção sobre Trabalho Forçado, outro marco no combate à escravidão e suas formas análogas, em âmbito internacional. Esta Convenção, traz em seu Artigo 2, o conceito de trabalho forçado ou obrigatório: Art. 2 — 1. Para os fins da presente convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade. Mais uma vez, a legislação internacional trouxe variações do conceito de escravidão. Pode-se dizer que, em linhas gerais, a definição de trabalho forçado ou obrigatório utiliza características do conceito pré-moderno de escravidão, na medida em que se vale do preceito de restrição da liberdade do indivíduo. Mas essa definição vai além e incorpora no item 2 do Artigo 2, situações que não podem ser consideradas como trabalho forçado ou obrigatório, nos seguintes termos: 2. Entretanto, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ não compreenderá, para os fins da presente convenção: a) qualquer trabalho ou serviço exigido em virtude das leis sobre o serviço militar obrigatório e que só compreenda trabalhos de caráter puramente militar; b) qualquer trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas normais dos cidadãos de um país plenamente autônomo; c) qualquer trabalho ou serviço exigido de um indivíduo como conseqüência de condenação pronunciada por decisão judiciária, contanto que esse 15 trabalho ou serviço seja executado sob a fiscalização e o controle das autoridades públicas e que dito indivíduo não seja posto à disposição de particulares, companhias ou pessoas privadas; d) qualquer trabalho ou serviço exigido nos casos de força maior, isto é, em caso de guerra, de sinistro ou ameaças de sinistro, tais como incêndios, inundações, fome, tremores de terra, epidemias, e epizootias, invasões de animais, de insetos ou de parasitas vegetais daninhos e em geral todas as circunstâncias que ponham em perigo a vida ou as condições normais de existência de toda ou de parte da população; e) pequenos trabalhos de uma comunidade, isto é, trabalhos executados no interesse direto da coletividade pelos membros desta, trabalhos que, como tais, podem ser considerados obrigações cívicas normais dos membros da coletividade, contanto, que a própria população ou seus representantes diretos tenham o direito de se pronunciar sobre a necessidade desse trabalho. Posteriormente, em 1957, a OIT, após ter verificado que a convenção de 1926, relativa à escravidão, previa que medidas úteis devem ser tomadas para evitar que o trabalho forçado ou obrigatório produza condições análogas à escravidão, e que a convenção suplementar de 1956 visava a obter a abolição completa da escravidão por dívidas e da servidão, tornou a se manifestar sobre o assunto através da Convenção n. 105 sobre a Abolição do Trabalho Forçado. A característica preponderante dessa norma internacional reside no fato de ela estabelecer medidas úteis mais específicas no combate ao trabalho escravo, nas quais os países signatários se comprometem a diversas iniciativas. Esta não traz nenhuma manifestação conceitual sobre escravidão, trabalho forçado ou servidão, de modo que se vale desses conceitos trazidos nas Convenções de 1926, 1930 e 1956. A Convenção sobre a Abolição do Trabalho Forçado estabelece que trabalho forçado jamais pode ser usado para fins de desenvolvimento econômico ou como instrumento de educação política, de discriminação, disciplinamento através do trabalho ou como punição por participar de greves (Artigo 1º). E, ainda, enumera certos fins para os quais o trabalho forçado nunca pode ser imposto, mas sem alterar o conceito básico na lei internacional. A proibição da escravidão também se encontra, de forma não específica, em outros instrumentos internacionais. No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, dispõe em seu Artigo 4 que “ninguém será mantido em escravidão ou servidão” e que “a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, dispõe em seu 16 artigo 8.1 e 8.2 que “ninguém poderá ser submetido à escravidão”, que “a escravidão e o tráfico de escravos, em todos as suas formas, ficam proibidos” e que “ninguém poderá ser submetido à servidão”. Instrumentos regionais também fazem referência a tal proibição. Nesse sentido, podem ser citadas a Convenção Europeia de Direitos do Homem, de 1950, que dispõe sobre a proibição da escravidão, da servidão e do trabalho forçado de maneira genérica em seu artigo 4.372 e a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, de 1981, a qual proíbe a escravidão em conjunto com outras formas de exploração e degradação do homem, como o tráfico de escravos, a tortura, as penas e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. No âmbito regional da América, o Artigo 6 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 dispõe que ninguém pode ser submetido a escravidão ou a servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas, e ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Esta também não se preocupa em apresentar definições específicas sobre o que seria escravidão, servidão, e trabalho forçado ou obrigatório. Mas expõe, no item 3, situações que não constituem trabalhos forçados ou obrigatórios. Essas exceções, tal qual a Convenção 29 da OIT, fazem referência ao serviço militar e mesmo assim a trabalho de natureza puramente militar; obrigações cívicas normais, trabalho de presos condenados judicialmente, desde que trabalhem sob supervisão da autoridade pública; trabalho em casos de emergência, como guerras ou calamidades, e pequenos serviços comunitários. O Mercosul também possui documento que trata das vítimas de trabalho forçado. Na declaração contra o tráfico de pessoas e o trabalho escravo, feito em 2015, os signatários (Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e Venezuela) se comprometem a impulsionarpolíticas regionais em matéria de prevenção, combate e reinserção das vítimas no mercado de trabalho. Importante ressaltar, que, de acordo com o The Global Slavery Index 20161 – feito pela ONG internacional Walk Free Foundation – é estimado em 45,8 milhões o número de pessoas submetidas a alguma forma de escravidão moderna no mundo. Independentemente da variação das concepções locais, a pesquisa utilizou como 1 Disponível em: < https://www.globalslaveryindex.org/download/>. Acesso em: 03.12.2017. 17 definição para escravidão moderna a situação de exploração na qual a pessoa não pode se recusar a deixá-la em virtude de ameaças, violência, coerção ou abuso de poder. Por conseguinte, há na comunidade internacional a preocupação no combate à prática escravocrata, que por muito tempo manchou a História da humanidade. Tal preocupação é manifestada pela existência das diversas convenções sobre o tema tanto regionais quanto globais – as principais mencionadas na presente pesquisa – as quais, trazem definições sobre o que seria escravidão e suas formas análogas, como trabalho forçado ou obrigatório, servidão e servidão por dívida. Não obstante, essas definições terem seguido do conceito clássico de escravidão para o conceito pré-moderno, não se pode dizer que alguma norma internacional, hoje, traz, de forma expressa, o conceito contemporâneo de escravidão, pois, estão atreladas à restrição de liberdade. Nas palavras de Xavier (2017, on-line): Essa preocupação com a dimensão da liberdade ambulatorial remonta aos primórdios dos sistemas liberais modernos, em que interessava à conjuntura econômica desregular a livre iniciativa e a liberdade de ação (inclusive da força de trabalho), livrando-as de qualquer controle estatal ou de corporações privadas que representassem forças opressivas contrárias às leis de mercado. A OIT, no Relatório sobre a Aliança global contra trabalho forçado2, de 2005, enfatiza que, o próprio conceito de trabalho forçado, conforme definido nas normas da OIT sobre a matéria, não foi ainda bem assimilado e que, em muitos lugares, as expressões como “escravidão moderna”, “práticas análogas à escravidão” e “trabalho forçado” podem ser usadas sem muita precisão para se referir a condições precárias e insalubres de trabalho, inclusive de salários muito baixos. 1.2 ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO A história do trabalho forçado no Brasil está diretamente relacionada ao tráfico de escravos, que perdurou até 1850. Consoante o The Global Slavery Index 2016 – feito pela ONG internacional Walk Free Foundation - o Brasil possui 2 Disponível em: < http://www.oit.org.br/node/316>. Acesso em: 03.12.2017. 18 aproximadamente uma população de 161.100 (cento e sessenta e um mil e cem) pessoas em situação de escravidão. Apesar desse número alarmante, o Brasil é destaque no cenário mundial no combate a escravidão, reconhecido internacionalmente pela OIT no Relatório Uma Aliança Global contra o Trabalho Forcado. E isso se dá pela conjugação da legislação brasileira e de programas de governo. Como em diversas outras garantias individuais e sociais, o marco nacional do combate à escravidão foi a Constituição de 1988. A Constituição Federal de 1988 repudia a prática do trabalho escravo ou forçado, seja por disposições expressas, como o artigo 243, seja através de princípios, sobretudo o da liberdade e o da dignidade humana, presentes nos artigos 1º e 5º. Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, destaca Barroso (2010, p. 253): O princípio da dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios que se pode considerar incorporado ao patrimônio da humanidade, sem prejuízo da persistência de violações cotidianas ao seu conteúdo. Dele se extrai o sentido mais nuclear dos direitos fundamentais, para tutela da liberdade, da igualdade e para a promoção da justiça. No seu âmbito se incluí a proteção do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute dos direitos em geral. Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade. O elenco de prestações que compõem o mínimo existencial comporta variação conforme a visão subjetiva de quem o elabore, mas parece haver razoável consenso de que inclui, pelo menos: renda mínima, saúde básica e educação fundamental. Há, ainda, um elemento instrumental, que é o acesso à justiça, indispensável para a exigibilidade e efetivação dos direitos. Além disso, o artigo 7º apresenta diversas garantias para um trabalho digno, sendo este também um dos fundamentos da República presente no artigo 1º: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; Segundo Gabriela Delgado (2006 apud MIRAGLIA, 2010, p. 9042): [...] entende-se que os direitos trabalhistas de indisponibilidade absoluta estão previstos em três grandes eixos jurídicos, positivados pelo Direito do Trabalho brasileiro [...]. O primeiro eixo diz respeito aos direitos fixados pelas normas de tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil. O segundo eixo refere-se aos direitos fundamentais dos 19 trabalhadores previstos no art. 7º da Constituição da República de 1988. O terceiro eixo encontra-se positivado nas normas infraconstitucionais, por exemplo, na Consolidação das Leis Trabalhistas, que preceitua direitos de indisponibilidade absoluta no que tange a saúde e segurança no trabalho, identificação profissional e proteção contra acidentes do trabalho, entre outros. Em 2014, foi aprovada a Emenda Constitucional 81, que modificou a redação do artigo 243, para inserir nele a chamada desapropriação confiscatória pelo uso de trabalho escravo. Anteriormente, a única hipótese de se retirar um bem do domínio do seu detentor, sem pagar indenização alguma, era quando na utilização do imóvel para o cultivo ilícito de plantações de psicotrópicos. In verbis: Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 81, de 2014) Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 81, de 2014) Tanto quanto o tráfico negreiro, a concentração de terras também é um importante fator na conservação dessa prática, por isso, essa Emenda Constitucional, que tramitou no Congresso Nacional desde 1999, representou uma grande vitória no combate ao trabalho escravo. Além disso, Brasil é signatário de diversos tratados internacionais que vedam expressamente a submissão de seres humanos a trabalhos forçados. Podem ser citados, entre outros: Convenção e Protocolo Adicional sobre Escravatura; Convenção Suplementar Relativa à Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; Convenção n. 29 da Organização Internacional do Trabalho(OIT) sobre Trabalho Forçado. No Brasil, a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas a Escravatura de 1956 foi aprovada pelo Decreto Legislativo n. 66 de 1965, junto da Convenção de 1926 e o Protocolo de 1953. Em 1966 foi efetuado o depósito do instrumento brasileiro de adesão junto ao Secretário-geral das Nações Unidas e, por meio do Decreto n. 20 58.563, de 1966, deu-se a promulgação. Mas foi somente em 1995 que o país reconheceu internacionalmente a permanência de trabalho forçado, perante o Comitê de Direitos Humanos, o qual solicitou ao Governo a criação de medidas para repelir práticas de trabalho forçado e sanção criminal para essas práticas. Foi quando o Governo passou a tomar medidas mais efetivas para combatê-lo. Exemplo disso, foi a implantação, em 1995, do Grupo Especial sobre Fiscalização Móvel, baseado no Ministério do Trabalho, para fortalecer o sistema de inspeção do trabalho e para certificar-se de que acusações de trabalho forçado são sistematicamente investigadas. Outro exemplo, mais recente, foi a criação, em 2003, da chamada “Lista Suja” do trabalho escravo no Brasil. A lista foi criada para divulgar os nomes das empresas que foram autuadas pelo uso do trabalho análogo ao escravo a partir da fiscalização do Ministério do Trabalho, e que tiveram estas autuações confirmadas após um processo administrativo. Ainda em 2003, através da Lei n. 10.803 alterou-se a redação do artigo 149 do Código Penal, que passou a prever como crime, não só o trabalho análogo ao de escravo, mas também o tráfico interno para esse fim e a servidão por dívida: Redução à condição análoga à de escravo Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando- o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003) Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003) § 1o Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003) I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003) II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003) § 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003) I – contra criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003) II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003) Pode-se dizer, que, em linhas gerais, a meins legis foi de proporcionar que o 21 tipo penal abarque o maior número de situações possíveis, trazendo conceitos genéricos e que exigem interpretação, como o termo situações degradantes de trabalho. O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se manifestar acerca do tema, o que será aprofundado no próximo capítulo da presente pesquisa. Nessa perspectiva, traz-se à colação a doutrina de Magalhães e Maciel (2017, on-line): Segundo o Código Penal Brasileiro, há quatro modalidades de execução de trabalho escravo. A primeira modalidade refere-se ao “trabalho forçado”, a partir da qual o trabalhador ou não se ofereceu espontaneamente ao serviço ou não consegue deixá-lo, caracterizando um regime de servidão no qual a mobilidade do trabalhador é cerceada e posto à serviço do empregador. A segunda forma é através de jornada exaustiva. Ela não significa tão somente jornada prolongada, mas também caracteriza aquelas circunstâncias em que o trabalhador está submetido a um grau tão extremo de superexploração de sua força de trabalho em que suas energias não são repostas devidamente, ocasionando danos à sua saúde física e/ou mental. A alta rotatividade existente em muitos setores de atividade econômica e a superexploração da força de trabalho que caracteriza o capitalismo dependente brasileiro dá-nos a real dimensão do quanto essa forma de execução de trabalho escravo pode ser comum em nosso país. A terceira forma faz menção às condições degradantes não apenas das relações de trabalho em si como também da situação de higiene, saúde, segurança, alimentação e moradia a que os trabalhadores estão submetidos. No campo e nas cidades, ambientes de trabalho e de alojamento insalubres e prejudiciais à saúde do trabalho são, também, elementos que configuram trabalho análogo à escravidão. A quarta e última modalidade é, desafortunadamente, muito aplicada a trabalhadores migrantes, sejam eles internos ou internacionais: a servidão por dívidas. Inúmeras pesquisas sobre mobilidade no Brasil têm revelado práticas de servidão de trabalhadores migrantes por anos a fio em razão de gastos que o empregador dispende no transporte dos trabalhadores de sua região de origem até o local de trabalho. Parte ou mesmo todo o salário é retido para a compensação destes custos e de “benefícios” que o empregador oferece, como alojamento, alimentação e vestimenta, também estes frequentemente precários. Ocorre que, recentemente, em Outubro de 2017, foi aprovada pelo Governo Federal3 a Portaria MTB n. 1.129, que dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho, nos termos do artigo 2-C da Lei n. 7998, de 11 de janeiro de 1990: Art. 1º Para fins de concessão de beneficio de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser identificado como submetido a regime de trabalho 3 Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2017/10/governo-cria-regras-para-criminalizar- quem-mantem-trabalho-escravo>. Acesso em 03.12.2017. 22 forçado ou reduzido a condição análoga à de escravo, nos termos da Portaria MTE nº 1.153, de 13 de outubro de 2003, em decorrência de fiscalização do Ministério do Trabalho, bem como para inclusão do nome de empregadores no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo, estabelecido pela PI MTPS/MMIRDH nº 4, de 11.05.2016, considerar-se-á: I - trabalho forçado: aquele exercido sem o consentimento por parte do trabalhador e que lhe retire a possibilidade de expressar sua vontade; II - jornada exaustiva: a submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria; III - condição degradante: caracterizada por atos comissivos de violação dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou físicos, e que impliquem na privação da sua dignidade; IV - condição análoga à de escravo: a) a submissão do trabalhador a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária; b) o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, caracterizando isolamento geográfico; c) a manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto; d) a retenção de documentação pessoal do trabalhador, com o fimde reter o trabalhador no local de trabalho; Como pôde ser observado, os conceitos de trabalho escravo e de trabalho forçado, antes amplos, foram regulamentados por meio dessa Portaria, o que alterou os critérios de classificação, restringindo suas hipóteses. Novamente, o Supremo Tribunal Federal foi provocado a manifestar-se, e suspendeu a referida Portaria. Essa Portaria também causou consternação ao condicionar a publicação da denominada Lista Suja da escravidão à autorização do Ministro do Trabalho, cargo político preenchido pela escolha do Presidente da República. No dia 29 de Dezembro de 2017, menos de três meses após a publicação da Portaria MTB n. 1.129, o Ministério do Trabalho publicou uma nova portaria com conceitos de trabalho em condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego. Nas palavras de Tadeu Rover (2017, on-line): O texto traz uma nova definição de jornada exaustiva e condição degradante, desta vez seguindo o conceito moderno de que não é necessária a coação direta contra a liberdade de ir e vir para que fique configurado o trabalho escravo. Além disso, a norma também acaba com a exigência da autorização do ministro do Trabalho para divulgação da lista suja das empresas autuadas por manter trabalhadores em condição de escravidão. A Portaria MTB 1.293 manteve válidas as regras em vigor há quase 15 anos, que se coaduna com o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal 23 acerca do conceito de escravidão. In verbis: Art. 1º Para fins de concessão de benefício de seguro-desemprego ao trabalhador que for encontrado em condição análoga à de escravo no curso de fiscalização do Ministério do Trabalho, nos termos da Portaria MTE n.º 1.153, de 13 de outubro de 2003, bem como para inclusão de administrados no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo, estabelecido pela Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH n.º 4, de 11 de maio de 2016, considera-se em condição análoga à de escravo o trabalhador submetido, de forma isolada ou conjuntamente, a: I - Trabalho forçado; II - Jornada exaustiva; III - Condição degradante de trabalho; IV - Restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho; V - Retenção no local de trabalho em razão de: a) Cerceamento do uso de qualquer meio de transporte; b) Manutenção de vigilância ostensiva; c) Apoderamento de documentos ou objetos pessoais. No Relatório sobre a Aliança global contra trabalho forçado, de 2005, a OIT asseverou: Dois problemas, porém, parecem presentes em quase todo o mundo. Primeiramente, salvo poucas exceções, não há uma definição precisa de trabalho forçado, o que dificulta sua identificação e punição. Em segundo lugar, e em conseqüência do problema anterior, são muito poucos os processos contra o delito de trabalho forçado em todo o mundo. Instala-se assim um círculo vicioso: legislação pouco clara, pouco ou nenhum recurso para ações penais e limitada conscientização ou publicidade, redundando na falta de pressão com vista a uma legislação mais precisa, e assim por diante. No Brasil, os problemas mencionados pela Organização também estão presentes. O ordenamento jurídico brasileiro acerca da escravidão e suas formas análogas, composto pela Constituição Federal de 1988, convenções internacionais ratificadas, leis ordinárias e atos infralegais, apesar de vasto e enérgico no combate à prática escravagista, ainda levanta, de certo modo, debate acerca do conceito de escravidão. Exemplo disso é a aprovação da Portaria MTB n. 1.129, que coloca em dúvida alguns conceitos legais, que não são claros, abrindo espaço para interpretações ambíguas. Nesse sentido, mostra-se trazer a cotejo a doutrina de Vito Palo Neto (2008, p. 2): Partimos da hipótese que não há um consenso em relação ao que possa ser considerado trabalho escravo nos dias de hoje e essa dúvida acaba por 24 agravar o quadro, pois contribui para a impunidade. A maior dificuldade que depara ao buscar uma definição do trabalho escravo está relacionada à diversidade de situações encontradas. José de Souza Martins alerta que é necessário ir além de busca de um conceito, deve ser feito um estudo aprofundado do problema, além do necessário rigor na investigação e na interpretação. Para o referido sociólogo, é inútil fazer uma espécie de receita para definir o trabalho escravo com a finalidade de simplificar a tarefa daqueles que precisam lidar com o problema, pois a dinâmica social não seria alcançada por um conceito, tornando esse expediente provisório e ineficaz para a solução adequada (MARTINS, 1999). Hoje, a base da definição do que seja escravidão contemporânea, no Brasil, é, sobretudo, fonte de construção jurisprudencial, principalmente devido ao fato de as Convenções internacionais ratificadas pelo país se referirem apenas ao conceito pré-moderno. Desse modo, partindo-se da ideia de que é preciso mais do que garantir a livre locomoção, o Brasil foi vanguardista no cenário internacional ao adotar, em suas decisões judiciais, o conceito contemporâneo de escravidão. 25 2. DESCUMPRIMENTO DE NORMAS TRABALHISTAS EM CONTRAPONTO À ESCRAVIDÃO MODERNA Segundo o Relatório da Relatora Especial ONU sobre Formas Contemporâneas de Escravidão4, incluindo suas causas e consequências, feito em 2010, a maior quantidade de vítimas de trabalho escravo no Brasil são trabalhadores originários das regiões norte e nordeste, dos Estados que se caracterizam por serem os mais pobres, com maiores índices de analfabetismo e de emprego rural. As atividades que mais empregam trabalho escravo são a criação de gado, a agricultura em grande escala, o desmatamento e a exploração de carvão. Essa realidade fez com que o Brasil, em 2016, fosse considerado responsável pela violação ao direito a não ser submetido à escravidão, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso "Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde". Esse caso envolveu 85 trabalhadores resgatados da Fazenda Brasil Verde, localizada no estado do Pará, no ano 2000, e foi o primeiro caso sobre escravidão e tráfico de pessoas decidido pela Corte Interamericana, de modo que esta teve a oportunidade de desenvolver e atualizar o conteúdo destes conceitos, de acordo com a Convenção Americana e o Direito Internacional, conforme destacado pela própria Corte, em publicação oficial5: Ao analisar o caso, a Corte observou que o conceito de escravidão e suas formas análogas evoluiu e não se limita à propriedade sobre a pessoa. Desta maneira, para defini-la deve-se observar a demonstração do controle de uma pessoa sobre outra, que chegue a equiparar-se à perda da própria vontade ou a uma diminuição considerável da autonomia pessoal. Essa manifestação do exercício “de atributos da propriedade”, nos dias atuais, deve ser entendida como o controle sobre uma pessoa que lhe restrinja ou lhe prive significativamente de sua liberdade individual, com intenção de exploração mediante o uso, a gestão, o benefício, a transferência ou o despojamento de uma pessoa. Em geral, este exercício se apoiará e será obtido por meio de violência, fraude e/ou a coação. Na sentença, a Corte enfatizou nos seguintes termos: A Comissão afirmou que o Direito Internacional proíbe a escravidão, a servidão, o trabalho forçado e outras práticas análogas à escravidão. A proibição da escravidão e de práticas similares forma parte do Direito 4 Disponível em: < http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/trabalho-escravo/relatorio-da-relatora-especial-onu-sobre-formas-contemporaneas-de-escravidao/view>. Acesso em: 10.12.2017. 5 Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/comunicados/cp_44_16_por.pdf>. Acesso em 16.12.2016. 26 Internacional consuetudinário e do jus cogens. A proteção contra a escravidão é uma obrigação erga omnes e de cumprimento obrigatório por parte dos Estados, a qual emana das normas internacionais de direitos humanos. A proibição absoluta e inderrogável de submissão de pessoas a escravidão, servidão ou trabalho forçado está também estabelecida na Convenção Americana e em outros instrumentos internacionais dos quais o Brasil é parte. Entretanto, em relação ao conceito de escravidão, deixou de avançar, pois afirmou que “o trabalho forçado se refere aos serviços prestados sob a ameaça de uma pena e que é prestado sem a vontade das vítimas.” Mais uma vez, o conceito utilizado leva em consideração a restrição à liberdade de locomoção. A propósito, as palavras de Xavier (2017, on-line): O caso julgado pela jurisdição interamericana tratava de trabalhadores limitados de facto em sua liberdade de locomoção, vigiados por capatazes armados, proibidos de se evadir e constantemente ameaçados. [...] É possível que essa diferença entre os casos não tenha dado a melhor oportunidade para que a Corte IDH, neste primeiro caso, desenvolvesse e atualizasse a sua definição jurídica de escravidão na direção de uma compreensão mais contemporânea do fenômeno. Outra explicação é a de que o sistema interamericano tenderia, necessariamente, para interpretações mais liberais (centradas na ideia de liberdade individual), o que faria com que a própria vedação da escravidão não fosse examinada como uma questão econômica, social ou cultural, haja vista a incompetência material da Corte IDH para o julgamento de direitos dessa natureza. A jurisdição nacional, ao contrário, tem mostrado avanço significativo no tema escravidão. Em dezembro de 2007, o Supremo Tribunal Federal do Brasil fixou o critério definitivo, no Recurso Extraordinário n. 398041, de que a Justiça Federal é a instância competente do Poder Judiciário para julgar os delitos relativos a condições análogas às de escravo previsto no artigo 149 do Código Penal brasileiro: DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. ART. 149 DO CÓDIGO PENAL. REDUÇÃO Á CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. TRABALHO ESCRAVO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. CRIME CONTRA A COLETIVIDADE DOS TRABALHADORES. ART. 109, VI DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. A Constituição de 1988 traz um robusto conjunto normativo que visa à proteção e efetivação dos direitos fundamentais do ser humano. A existência de trabalhadores a laborar sob escolta, alguns acorrentados, em situação de total violação da liberdade e da autodeterminação de cada um, configura crime contra a organização do trabalho. Quaisquer condutas que possam ser tidas como violadoras não somente do sistema de órgãos e instituições com atribuições para proteger os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também dos próprios trabalhadores, atingindo-os em esferas que lhes são mais caras, em que a Constituição lhes confere proteção máxima, são enquadráveis na categoria dos crimes contra a 27 organização do trabalho, se praticadas no contexto das relações de trabalho. Nesses casos, a prática do crime prevista no art. 149 do Código Penal (Redução à condição análoga a de escravo) se caracteriza como crime contra a organização do trabalho, de modo a atrair a competência da Justiça federal (art. 109, VI da Constituição) para processá-lo e julgá-lo. Recurso extraordinário conhecido e provido. (STF - RE: 398041 PA, Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 30/11/2006, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12- 2008 EMENT VOL-02346-09 PP-02007) Assim, o crime previsto no artigo 149 do Código Penal (Redução à condição análoga a de escravo), introduzido pela Lei n. 10.803/2003, tem tratamento distinto desde a definição de sua competência para julgamento. Sendo encarado como crime que vai além da relação de trabalho entre autor e vítima, que envolve direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, como dignidade da pessoa humana, na vertente do direito à liberdade e do direito ao trabalho digno. Em 2012, a Ministra Ellen Grace, Relatora no Inquérito n. 2.131 Distrito Federal - que tratava possível trabalho escravo de trinta e oito trabalhadores no período de janeiro a fevereiro de 2004, na localidade de Boa Vista, Município de Piçarras, no Estado do Pará - manifestou-se no sentido de que a noção de condições degradantes corresponde ao trabalho realizado em determinadas condições que afrontam a dignidade da pessoa do trabalhador, asseverando, ainda: De acordo com a lição de José Cláudio Monteiro de Brito Filho, “o trabalho em condições análogas à de escravo é reconhecido, hoje, a partir do momento em que há o desrespeito ao atributo maior do ser humano que é a sua dignidade, e que ocorre, do ponto de vista do trabalho humano, quando é negado ao trabalhador um conjunto mínimo de direitos que a Organização Internacional do Trabalho convencionou denominar trabalho decente, e que são os Direitos Humanos específicos dos trabalhadores” (Trabalho com redução à condição análoga à de escravo: análise a partir do trabalho decente e de seu fundamento, a dignidade da pessoa humana. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (coords.). Trabalho escravo contemporâneo. São Paulo: LTr e ANAMATRA, 2005, p. 126). Assim, o trabalho em condições degradantes e o trabalho forçado são antíteses do denominado trabalho decente, sendo espécies do gênero “trabalho em condições análogas à de escravo”. Essa noção vai muito além da presença ou não da restrição de liberdade, ou seja, um trabalho permanece sendo degradante caso haja violação da dignidade do trabalhador, mesmo que lhe seja proporcionada sua livre locomoção. É citada como exemplo de situação degradante, a submissão do trabalhador a jornada exaustiva, no caso em tela, há elementos colhidos na investigação que dão conta da jornada diária de trabalho das 06h00min às 18h00min, de segunda-feira ao sábado, sendo 28 que no domingo vários trabalhadores ainda cumpriam jornada no período das 06h00min às 12h00min. Nesse mesmo Inquérito, o Supremo Tribunal Federal, fixou entendimento de que a persecução penal relativa à suposta prática do crime previsto no artigo 149 (redução à condição análoga à de escravo) do Código Penal independe do prévio desfecho dos processos trabalhistas em curso, ante a independência de instâncias. Esse entendimento foi reiterado no julgamento do RE 459510, (Relator p/ acórdão Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgamento em 26.11.2015, DJe 12.4.2016). Na ocasião, o Plenário do STF assentou que “o bem jurídico objeto de tutela pelo art. 149 do Código Penal vai além da liberdade individual, já que a prática da conduta em questão acaba por vilipendiar outros bens jurídicos protegidos constitucionalmente como a dignidade da pessoa humana, os direitos trabalhistas e previdenciários, indistintamente considerados” e que “é dever do Estado (lato sensu) proteger a atividade laboral do trabalhador por meio de sua organização social e trabalhista, bem como zelar pelo respeito à dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III)”. Ainda em 2012, agora no Inquérito 3.412 Alagoas, o Supremo Tribunal Federal avançou ainda mais em sua jurisprudência, adotando, claramente, o conceito de escravidão contemporânea, chamada de moderna na ementa: PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIARECEBIDA. Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas alternativas previstas no tipo penal. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos 29 requisitos legais. (STF - Inq: 3412 AL, Relator: Min. ROSA WEBER, Data de Julgamento: 11/09/2014, Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-196 DIVULG 07-10-2014 PUBLIC 08-10-2014) O Supremo Tribunal Federal reafirmou, em 2014, no Inquérito 3.564 Minas Gerais, ser desnecessária a coação física da liberdade de locomoção para configurar a prática de submissão à escravidão: PENAL. PROCESSUAL PENAL. DENÚNCIA. CRIMES DE REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO E DE ALICIAMENTO DE TRABALHADORES. DESNECESSIDADE DE VIOLÊNCIA FÍSICA PARA A OCORRÊNCIA DO DELITO. PARA A CARACTERIZAÇÃO DO DELITO BASTA A REITERADA OFENSA AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO TRABALHADOR, VULNERANDO SUA DIGNIDADE COMO SER HUMANO. PRESCRIÇÃO QUANTO AO DELITO DE FRUSTRAÇÃO DE DIREITO TRABALHISTA. DENUNCIADO COM IDADE SUPERIOR A SETENTA ANOS. RECEBIMENTO PARCIAL DA DENÚNCIA. I A inicial acusatória contemplou a qualificação do acusado, a classificação do crime e o rol de testemunhas, apresentou informações essenciais sobre a prática das condutas, preenchendo os requisitos do art. 41 do CPP. II Prescrição da pretensão punitiva estatal em relação ao delito de frustração de direito trabalhista, considerando a pena máxima cominada ao tipo penal (dois anos de detenção) e o fato de o prazo do art. 109, V, do Código Penal necessitar ser reduzido à metade (art. 115 do CP); a prescrição é, inclusive, anterior à remessa dos autos a esta Corte. III A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende ser desnecessário haver violência física para a configuração do delito de redução à condição análoga à de escravo. É preciso apenas a coisificação do trabalhador, com a reiterada ofensa a direitos fundamentais, vulnerando a sua dignidade como ser humano (Inq 3.412, Redatora p/ Acórdão: Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, DJe 12/11/2012). IV Presentes os indícios de materialidade e autoria, a denúncia foi parcialmente recebida para os crimes de redução a condição análoga à de escravo e de aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional, tipificados nos arts. 149 e 207, § 1º, ambos do Código Penal. (STF - Inq: 3564 MG, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 19/08/2014, Segunda Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-203 DIVULG 16-10-2014 PUBLIC 17-10- 2014) Ocorre que, nos julgados mencionados, o Ministro Gilmar Mendes manifestou preocupação da necessidade de uma distinção entre o eventual descumprimento de legislação trabalhista e o trabalho escravo. No seu voto vista do Inquérito n. 2.131 Distrito Federal, ele tentou demonstrar que, a despeito da gravidade do contexto em que foram encontrados os trabalhadores rurais, a violações às normas trabalhistas por eles suportadas não são suficientes para configurar trabalho escravo. Essa conclusão foi baseada, sobretudo, em dois aspectos. O primeiro, na ausência de coação a liberdade de locomoção dos empregados: 30 Consigno que a propriedade dista em 6 (seis) quilômetros do povoado de Boa Vista e, ainda, que, na Fazenda, não foram encontradas armas ou agentes encarregados de compelir os trabalhadores a permanecerem no local. Também se constata que não houve fugas ou coibição de saídas da propriedade por qualquer via. Não houve uso de força física para manter os campesinos no local. Quanto à rotina de execução das atividades, observo que não havia qualquer controle sobre a jornada de trabalho – formal ou pelo uso de vigilância; não havia repouso remunerado e, conforme depoimentos dos trabalhadores (fls. 310-323), não trabalhar aos domingos significava o não recebimento da diária correspondente àquele dia da semana. E o segundo, no fato de que, para o contexto local, as condições de vida proporcionadas pelo empregador, não distavam em muito das condições vivenciadas pela população do lugar: Não descuro do fato de que o trabalho no campo brasileiro está longe de atingir as condições ideais, todavia não é razoável poetizar sobre a realidade agrária brasileira e inferir, do dia a dia das pessoas pobres das matas e dos sertões, verdadeiras manifestações de escravidão, compreendendo a existência de quadrilhas organizadas, formadas por tomadores de trabalho que seriam – como afirma o relatório – os neoescravagistas. As condições de vida de regiões paupérrimas do Brasil repetem-se nas condições de trabalho, e não é razoável qualificá-las de criminosas por esta exclusiva razão, como quer o relatório de fls. 22-56. Além disso, há preocupação de que, uma análise muito ampla do que seria escravidão, acabe por esvaziar o preceito trazido pelo tipo penal do artigo 149 do Código Penal: [...] em razão de o tipo penal do art. 149 do CPB ser excessivamente aberto, a caracterização do delito de redução a condição análoga à de escravo tem se prestado à fixação de conceitos ideológicos, o que impõe a esta Corte uma análise acurada, sob pena de compactuar com a utilização do direito penal para fins outros que não a proteção do mínimo ético, indispensável ao convívio em sociedade. O Ministro se referiu ainda, a “um discurso panfletário que salta aos olhos”, e que tanto o Relatório de Fiscalização do Grupo Especial Móvel, do Ministério do Trabalho e Emprego, quanto a denúncia do Ministério Público Federal, estavam contaminados por esse discurso. Diante dessa constatação, não posso deixar de pontuar que o relatório, que deveria ser de fiscalização e, portanto, demonstrativo das condições de trabalho encontradas no local, perde-se em um discurso político-ideológico de afirmação da existência de um neoescravagismo, ao talante dos servidores que o assinam. 31 Desse modo, o Ministro utilizou para construção de seu voto, o conceito de escravidão pré-moderna, a qual leva em conta, principalmente, a restrição à liberdade física do trabalhador: Após essa digressão, penso que, por “trabalho escravo”, deve-se entender aquele marcado pela restrição à liberdade do trabalhador, pela retenção, redução a valor ínfimo ou gratuidade salarial, pela coação, ameaça ou violência do empregador contra o trabalhador. No trabalho escravo, há submissão involuntária da vítima ao poder do empregador-dominador. [...] A Convenção nº 29 (de 1930) da Organização Internacional do Trabalho– sobre trabalho forçado ou obrigatório –, ratificada pelo Brasil em 1957, define “trabalho forçado” como “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob ameaça de sanção e para o qual ela não tiver se oferecido espontaneamente”. No Inquérito n. 3.412 Alagoas, o Ministro, novamente expressou inquietação acerca dos critérios utilizados para definir trabalho escravo: E acho até, pelo conhecimento que tenho da área rural, vejo as portarias do Ministério do Trabalho, que estão servindo de subsídios para a interpretação da legislação penal, e confesso que fico até um pouco assustado. [...] A partir de um referencial da legislação ou interpretar esse referencial a partir de portarias do Ministério do Trabalho, sem qualquer conotação negativa, é, a meu ver, absurdo. Não é razoável para a esfera penal, para a esfera da criminalização. Impõe que nós definamos claramente esse elemento essencial do tipo que é a liberdade individual. Apesar de sua incisiva manifestação, o Ministro Gilmar Mendes restou vencido nos mencionados julgados. Assim, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que para configuração de trabalho escravo não há necessidade de cerceamento da liberdade individual. A condição de trabalho degradante basta para configurar trabalho análogo, e entende-se por condição degradante aquela que viola direitos fundamentais do indivíduo, os quais abrangem direitos fundamentais do trabalhador. Não são condições fáticas locais que mudam o que foi definido em legislação. Nessa linha de raciocínio, urge pontuar que o crime tipificado no artigo 149 do Código Penal mostra-se como sendo uma grave violação de direitos humanos, e não somente do trabalhador. A tipificação foi resultado de política criminal, que por meio da Lei n. 10.803/2003, alargou as hipóteses de incidência da norma. Entendeu o legislador infraconstitucional que a permanência dessa prática, no Brasil, merecia ser objeto de repreensão pelo Direito Penal. 32 A despeito da ausência de pretensão de adentrar no mérito dos casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal, pode-se coligir de forma clara que, ao utilizar Portarias do Ministério do Trabalho como norte para definir o que seria trabalho degradante, o tema não se esgota em si mesmo, uma vez que o que o define é o resultado que as violações aos preceitos definidos na norma trabalhista geram: a coisificação do ser humano. No mesmo traço de reflexão, mostram-se convenientes os seguintes escritos: Certas empresas são ‘espremedoras de sucos’. Fazem vibrar a corda afetiva, utilizam seu pessoal pedindo sempre mais, prometendo mil coisas. Quando o empregado, usado, não é mais suficientemente rentável, a empresa livra-se dele sem o menor escrúpulo. O mundo do trabalho é extremamente manipulador: mesmo quando, em princípio, o afetivo nele não está diretamente em jogo, não é raro que, para motivar seu pessoal, uma empresa estabeleça com ele uma relação que ultrapassa em muito a relação contratual normal que se pode ter com um empregador. Exige-se dos empregados que invistam corpo e alma em seu trabalho, em um sistema que os sociólogos Nicole Aubert e Vicent de Caujelac qualificam de ‘managinário’, transformando-os, assim, em ‘escravos dourados’. Por um lado, exigem-se demasiado deles, com todas as consequências de estresse daí decorrentes; por outro lado, não há o menor reconhecimento em relação a seus esforços e a sua pessoa. Eles se tornam peões intercambiáveis. Além disso, em certas empresas age-se de modo que os empregados não fiquem por muito tempo no mesmo cargo, no qual poderiam adquirir um maior número de aptidões. Preferem mantê-los em estado permanente de ignorância, de inferioridade. Toda originalidade ou iniciativa pessoal perturba. Cassam-se os élans e as motivações recusando-se toda responsabilidade e toda formação. Os empregados são tratados como colegiais indisciplinados. Não podem rir ou ter um ar descontraído sem serem chamados à atenção. Às vezes se lhes pede que façam uma autocrítica durante as reuniões semanais, transformando assim os grupos de trabalho em humilhação pública." Cognominando tal fato de “coisificação”, “robotização dos indivíduos”, adverte a referida doutrina que a maior parte dos trabalhadores veem-se em uma situação “excessivamente frágil para fazer algo mais que protestar interiormente e baixar a cabeça, à espera de dias melhores”.6 Nesse ínterim, no dia 23 de Outubro de 2017, a Ministra Rosa Weber julgou Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 489 Distrito Federal ajuizada pelo partido político Rede Sustentabilidade, em face da Portaria do Ministério do Trabalho n. 1.129, de 13.10.2017, que disciplina a concessão de benefício de seguro-desemprego ao trabalhador identificado como submetido a regime de trabalho forçado ou reduzido a condição análoga à de 6 HIRIGOVEN, Marie-France. Ob. cit., p. 96. 33 escravo e a inclusão de nome no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo (“lista suja”). Nessa decisão7, a qual suspendeu a integralidade da referida Portaria, a Ministra afirma que utilizar da Portaria como meio interpretativo restritivo da norma que define trabalho escravo, “divorcia-se da compreensão contemporânea, amparada na legislação penal vigente no país, em instrumentos internacionais dos quais o Brasil é signatário e na jurisprudência desta Suprema Corte”, asseverando nos seguintes termos: O art. 1º da Portaria do Ministério do Trabalho nº 1.129/2017 introduz, sem qualquer base legal de legitimação, o isolamento geográfico como elemento necessário à configuração de hipótese de cerceamento do uso de meios de transporte pelo trabalhador, e a presença de segurança armada, como requisito da caracterização da retenção coercitiva do trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída. Omite-se completamente, ainda, quanto à conduta, tipificada na legislação penal, de restringir, por qualquer meio, a locomoção de alguém em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Afasta-se, assim, do conteúdo material da legislação de repressão ao trabalho escravo e, em consequência, deixa de cumprir o seu propósito. Desse modo, por meio desta recente decisão, mesmo que em sede de cautelar, resta evidente que a posição do Supremo Tribunal Federal acerca da escravidão, é aquele que se coaduna com a definição de escravidão moderna: Como revela a evolução do direito internacional sobre o tema, a “escravidão moderna” é mais sutil e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. O ato de privar alguém de sua liberdade e de sua dignidade, tratando-o como coisa e não como pessoa humana, é repudiado pela ordem constitucional, quer se faça mediante coação, quer pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno, com impacto na capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação, também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. Por evidente, não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se, no entanto, a afronta aos direitos assegurados pela legislação regente do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se submetidos os trabalhadores a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes, com a privação de sua liberdade e de sua dignidade, resulta configurada, mesmo na ausência de coação direta contra a liberdade de ir e vir, hipótese de sujeição de trabalhadores a tratamento análogo ao de escravos, nos moldes do art. 149 do Código Penal, com a redação que lhefoi conferida pela Lei nº 10.803/2003. 7 Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF489liminar.pdf>. Acesso em: 10.12.2018. 34 Assim, pode-se afirmar que quando se fala em trabalho escravo no Brasil contemporâneo, está se referindo à condição de exploração da pessoa, onde esta é coagida a prestar serviços de qualquer natureza em condições degradantes, sem que se possa modificar essa situação. O progresso jurisprudencial foi construído tendo por base situações de trabalho escravo em meio rural, no qual, a exploração fica evidenciada, principalmente pelo isolamento geográfico das fazendas. Apesar de essa ser a conjuntura mais comum do trabalho escravo no Brasil, existem outras realidades da escravidão moderna, inclusive em meio urbano, onde as características de trabalho escravo se tornam ainda mais sutis. Como será analisada no próximo capítulo, uma dessas situações é a questão dos imigrantes venezuelanos em Roraima. 35 3. A NEOESCRAVIDÃO DE IMIGRANTES VENEZUELANOS EM RORAIMA: APLICABILIDADE DO CONCEITO A evolução no conceito de escravidão acompanha o surgimento das novas modalidades de exploração de seres humanos. No Brasil, desde 1995, ano em que o país reconheceu formalmente a existência do trabalho escravo contemporâneo no seu território, mais de 52.000 trabalhadores foram resgatados de situações análogas à escravidão e receberam os seus direitos trabalhistas8. Colhe-se do relatório do Escritório Brasil da Organização Internacional do Trabalho9: Em um país historicamente marcado por grandes desigualdades sociais, o reconhecimento e a compreensão das atuais formas de exploração dos trabalhadores em situações limites como as que caracterizam o trabalho em condições análogas à escravidão são os primeiros passos para o enfrentamento consistente desse crime. O aumento do número de denúncias relacionadas à situação de escravidão coincide com o avanço do fenômeno denominado Globalização, o que leva a intuir uma correlação de piora das condições de trabalho decorrentes desse fenômeno mundial. Sendo a imigração, tanto interna quanto externa, também favorecem essa exploração (NETO, 2008, p. 36). A Constituição Federal de 1988 não diferencia nacionais e estrangeiros quanto à garantia de liberdade e dignidade, bem como, ao trabalho digno. A despeito do debate acerca dos estrangeiros não residentes, o caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988 dispõe que os direitos fundamentais são assegurados aos “brasileiros e estrangeiros residentes no País”. Acontece que, por vezes, essa população, por se encontrar em situação de comprovada vulnerabilidade, sobretudo em razão da língua e desconhecimento de seus direitos trabalhistas, submete-se a trabalhos que não lhe garantem o patamar mínimo civilizatório, de tal modo, que podem se enquadrar no conceito contemporâneo de escravidão. Quando se trata dos imigrantes, soma-se à vulnerabilidade a alocação 8 Disponível em: <http://escravonempensar.org.br/sobre-o-projeto/o-trabalho-escravo-no-brasil>. Acessado em 05.07.2017. 9 Disponível em: <http://www.oit.org.br/node/316>. Acesso em 09.01.2018. 36 discriminatória nos setores mais pesados da produção, a remuneração ainda menor em relação aos brasileiros e fraudes contratuais que impedem os imigrantes sem domínio do idioma de receber qualquer direito trabalhista pós-demissão10. Como explica Neto (2008, p. 16): Os casos de escravidão encontrados nos dias de hoje estão frequentemente relacionados à miséria, à baixa instrução e à falta de oportunidades. Não é por acaso que as regiões mais pobres do Brasil são as principais fontes de mão de obra escrava no país. No entanto, os locais de exploração de mão de obra escrava são diversos do local de origem dos trabalhadores, pois é justamente quando esses trabalhadores saem em busca de melhores condições de vida que acabam se tornando vítimas de um sistema de exploração (BRETON, 2002), que os reduzem à condição de escravos. Assim, a condição de imigrante é uma característica comum identificada no trabalho escravo. Essa característica pode ser observada tanto na situação de trabalhadores nacionais como estrangeiros. O que vai mudar em um caso ou em outro é a forma de coação. Nos últimos anos, o Brasil tem sido destino de um número cada vez maior de pessoas, oriundas de países como o Haiti, Bolívia e Congo além de pedidos de refúgio de indivíduos que fogem de conflitos armados em países do Oriente Médio, África e Ásia. As causas são diversas, mas majoritariamente marcadas pela busca por melhores condições de vida. Durante o primeiro seminário do ciclo de Diálogos no Centro de Estudos Migratórios (CEM) de 201711, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) apresentou dados relativos às ações de fiscalização e de combate ao trabalho escravo empreendido pelo MTE no estado entre 2010 e 2016, relacionando-os com migração. Neste período, de todos os trabalhadores que foram resgatados por meio destas ações do MTE, 35% eram imigrantes. Ou seja, um em cada três dos trabalhadores resgatados pelas ações de combate ao trabalho escravo no Estado de São Paulo é imigrante. Uma realidade recente, mas preocupante em termos de Direitos Humanos, é o fluxo migratório de venezuelanos em Roraima. Diante da crise política e econômica na Venezuela agravada no ano de 2014, a qual deu causa à escassez de itens de necessidade básica e medicamentos, além do aumento da criminalidade, 10 Disponível em: < https://demografiaunicamp.wordpress.com/2017/03/29/35-dos-resgatados-em-acoes-de- combate-ao-trabalho-escravo-sao-imigrantes/>. Acesso em 09.01.2018. 11 35% dos resgatados em ações de combate ao trabalho escravo são imigrantes. Disponível em: < https://demografiaunicamp.wordpress.com/2017/03/29/35-dos-resgatados-em-acoes-de-combate-ao- trabalho-escravo-sao-imigrantes/>. Acesso em 09.01.2018. 37 milhares de venezuelanos cruzaram a fronteira de seu país com o Brasil12. Em 2017, de acordo com ONGs internacionais e as agências da ONU, a crise política, econômica e social no país vizinho levou a mais de 30 mil venezuelanos a cruzarem a fronteira para o Brasil. As estruturas de serviço público não estavam preparadas para receber essa população, gerando uma vulnerabilidade socioeconômica dos imigrantes, o que acarretou diversos problemas sociais, sendo noticiados inclusive casos de escravidão13. Diante da gravidade do quadro, foi executado no Estado o projeto Missão Roraima. Segundo o Relatório Missão Roraima14: O Projeto foi financiado pela União Europeia (UE) e resultou da pareceria entre o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e a Defensoria Pública da União. Além disso, contou com a participação na elaboração e execução de representantes de outras agências da ONU, como o Alto Comissariado da Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Organização Internacional para as Migrações (OIM) e Fundo para Populações das Nações Unidas. O Projeto Roraima consistiu em uma missão itinerante da Defensoria Pública da União de 1 (uma) semana, ocorrida no período de 23/10 à 27/10/2017, no Estado de Roraima. A missão foi composta de 4 (quatro) Defensoras Públicas Federais, lotadas em diferentes estados do Brasil, integrantes dos Grupos de Trabalho de Assistência às vítimas de Tráfico de Pessoas e GT Migrações e Refúgio. Este grupo de Defensoras contou com o apoio da unidade da DPU/RR para prestar assistência aos imigrantes venezuelanos no Estado. Como parte do projeto, foram realizadas
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