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MEMÓRIA E PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL Hugo Moura Tavares E d u ca çã o M E M Ó R IA E P A T R IM Ô N IO H IS T Ó R IC O -C U LT U R A L H ug o M ou ra T av ar es Curitiba 2018 Memória e Patrimônio Histórico-Cultural Hugo Moura Tavares Ficha Catalográfica elaborada pela Editora Fael. T231m Tavares, Hugo Moura Memória e patrimônio histórico-cultural / Hugo Moura Tavares. – Curitiba: Fael, 2018. 178 p.: il. ISBN 978-85-5337-044-3 1. Patrimônio histórico - Proteção 2. Patrimônio histórico - Brasil I. Título CDD 363.69 Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. FAEL Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo Coordenação Editorial Raquel Andrade Lorenz Revisão Editora Coletânea Projeto Gráfico Sandro Niemicz Capa Vitor Bernardo Backes Lopes Imagem da Capa Shutterstock.com/Thiago Leite Arte-Final Evelyn Caroline dos Santos Betim Sumário Carta ao Aluno | 5 1. O conceito de cultura | 7 2. Memória e Patrimônio Cultural | 23 3. O patrimônio desde sua origem até o século XXI | 45 4. Patrimônio e Propriedade | 61 5. Patrimônio, representação e identidade | 73 6. Patrimônio Cultural no mundo | 87 7. As políticas públicas e o Patrimônio Cultural no Brasil | 97 8. Patrimônio Cultural e Meio Ambiente | 109 9. Os Marcos Legais | 121 10. Educação Patrimonial | 141 Gabarito | 151 Referências | 167 Prezado(a) aluno(a), O ensino da História requer do historiador análises diversas dos fragmentos deixados pelo passado. Nessa obra, serão apre- sentados conceitos pertinentes para a reflexão do uso do Patrimô- nio Cultural dentro do ensino da História. O autor apresenta nessa obra os percalços, conceitos e pro- blematizações profícuos para a compreensão do estudo do Patri- mônio Histórico-Cultural, a fim de possibilitar ao acadêmico uma preparação de qualidade para a execução de sua futura profissão. Essa obra pretende introduzir o futuro historiador ao conheci- mento dos bens patrimoniais de valor material, imaterial, natural e mundial, transmitindo segurança em sua formação. Desejamos uma excelente leitura e bons estudos. Carta ao Aluno 1 O conceito de cultura Nesse capítulo abordaremos o conceito de cultura. Partimos de como o conhecemos no nosso senso comum rumo a uma con- ceituação mais elaborada e complexa. Este conceito, como qualquer categoria científica, apresenta sua historicidade, isto é, mudou e adquiriu vários significados através do tempo, e conhecê-lo é importante. Nenhum conceito é estático, definitivo e esta perspectiva deve sempre estar na mente do leitor e do estudante. Dentre os inúmeros pensadores da cultura, destacamos a interpretação do intelectual galês Raymond Williams autor de, entre outros trabalhos, Cultura e Sociedade - de Coleridge a Orwell. Fundador dos chamados Estudos Culturais, esse autor trouxe importantes contribuições teóricas ao campo de estudos sobre a cultura. Do seu conceito de cultura comum é possível estabelecer uma ponte para a definição antropológica do termo. Assim, procuramos dar um panorama geral de como a Antropo- logia tratou a cultura e seus principais elementos formadores que nos ajudarão a compreender melhor os capítulos seguintes. Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 8 – 1.1 Cultura no nosso cotidiano No nosso cotidiano, quando uma pessoa é muito inteligente e tem muito conhecimento, costumamos dizer que ela tem cultura. Ter cultura, neste sentido, significa conhecer as belas artes, como música, pintura, literatura, filosofia etc. Também é usual as pessoas utilizarem este termo quando nos referimos a uma pessoa que estudou muito, frequentou o ensino superior, fez cursos de pós-graduação, enfim, que é “diplomada”! Na verdade, um significado está ligado ao outro. Ao afirmarmos que uma pessoa culta é aquela que tem muito conhe- cimento e que este conhecimento é consequência do estudo que ela tem, estamos querendo dizer que cultura se aprende na escola, na educação formal. E isto nos leva a acreditar que é esta educação formal que nos permitirá ter acesso e compreender as chamadas belas artes. Em outras palavras, a parcela da população que tem acesso à educação formal é a que tem acesso aos concertos de música, às galerias e museus de arte, às bibliotecas, às livrarias, aos cinemas e aos teatros. A partir desta lógica, quanto mais estudo, mais acesso à cultura e, em consequência, mais culto alguém será. Correto? Parcialmente, sim. Figura 1.1 – Cultura como acúmulo de conhecimento Fo nt e: S hu tte rs to ck .c om /Ic on ic B es tia ry . – 9 – O conceito de cultura Outro significado para este conceito está ligado a nossa identidade. No nosso cotidiano, quando vamos nos referir a uma característica única de um país, região ou cidade, utilizamos a palavra cultura. Quando apresentamos nossa cidade a um visitante, escolhemos aquilo que nos diferencia, que nos faz únicos. Levamos nosso visitante a um restaurante onde ele poderá apreciar um prato típico da nossa região, ou então conhecer um artesanato, experimentar uma bebida local, apreciar uma dança ou uma celebração religiosa. Como resultado, temos expres- sões como “churrasco gaúcho”, “cozinha amazonense” e “cerâmica mara- joara”, por exemplo. Quem nunca ouviu alguém falar que o brasileiro gosta de futebol e feijoada porque isto faz parte da nossa formação cultural? Ou, numa situ- ação inversa, numa discussão, quando queremos explicar um problema crônico, defendermos a ideia de que este problema não tem solução por- que é cultural. Assim, neste sentido, cultura não é sinônimo de conhecimento adqui- rido na educação formal ou manifestação artística. Diz respeito a algo mais profundo: tem a ver com nossa identidade, com aquilo que nos faz diferentes, por exemplo, dos árabes, dos japoneses, dos franceses, dos americanos etc. Figura 1.2 – Mulher baiana no Pelourinho, Salvador/BA Fonte: Shutterstock.com/Filipe Frazao. Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 10 – Pelo o que podemos perceber até o momento, o conceito de cultura é mais complexo e tem mais de um significado e, neste caso, dizemos que ele é polissêmico, do grego polysemos, cuja tradução é: algo que tem muitos significados. O fato de a cultura ser um conceito polissêmico acon- tece porque as palavras são criadas, produzidas e reproduzidas pelos seres humanos vivendo em sociedade. O que equivale a dizer que elas não têm sempre o mesmo significado, mudam no tempo e no espaço. Aliás, vários significados convivem uns com os outros. Este fato nos leva a perceber que cultura, como qualquer conceito, tem sua historicidade, e conhecê-la nos ajudará a compreendê-la melhor. 1.2 História do conceito de cultura Dentre os vários intelectuais que estudaram o tema, o intelectual galês Raymond Williams se destaca. Este pensador foi um dos fundado- res dos chamados Estudos Culturais e dedicou grande parte da sua vida profissional ao estudo da história do termo cultura. O fato de seu objeto de pesquisa na obra Cultura e Sociedade ter sido a tradição cultural bri- tânica, não invalida a importância da sua pesquisa para a reflexão mais ampla do conceito. De acordo com Tavares, a obra Cultura e Sociedade reconstitui historicamente os discursos sobre a cultura presentes na tradição britânica entre 1780 e 1950. Examina as ideias sobre cultura e sociedade e a mudança do sig- nificado desses termos desde os primeiros anos de consolidação da Revolução Industrial. Analisa as mudanças semânticas e suas relações com as mudanças sociais pelas quais passou a Inglaterra com o desenvolvimento e consolidaçãodo modo de produção capitalista. Seu livro identifica e estabelece uma tradição inglesa de debates sobre as relações entre a cultura e a sociedade que congrega autores dos mais diversos pontos de vista políticos. Em outras palavras, um dos méritos desse trabalho foi o de localizar essa tradição em obras de autores que comumente eram estuda- dos em separado. Isto é, procura focar as respostas que intelectu- ais ingleses dão às transformações sociais, políticas e econômicas pelas quais estão passando. (TAVARES, 2008, p. 14) – 11 – O conceito de cultura Saiba mais Quer conhecer mais sobre os Estudos Culturais? Para Stuart Hall, dire- tor do Centro Contemporâneo de Estudos Culturais da Universidade de Birmingham, entre 1968 e 1980, os estudos culturais tiveram sua origem nos trabalhos de Raymond Williams, Richard Hoggart e E. P. Thompson, autores de três textos que, surgidos no final dos anos 50, são considerados a base dessa disciplina: The Making of the English Working Class (1963), de Edward P. Thompson; Culture and Society, 1780-1950 (1958), de Raymond Williams; e The Uses of Literacy (1957), de Richard Hoggart. Para Hall, a importância dessas obras está no fato de que elas representaram uma ruptura dentro das ciências humanas na Inglaterra. Uma ótima dica para iniciar sua caminhada neste campo de estudos é a leitura destes dois livros: 2 CEVASCO, M. E. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001. 2 CEVASCO, M. E. Dez lições sobre os estudos culturais. São Paulo: Boitempo, 2003. Boa leitura! O termo cultura entrou na língua inglesa a partir do latim colere, habitar, do qual derivou colono e colônia. Também significava adorar, no sentido de culto religioso, e cultivar, no sentido de cuidar da terra e dos animais. Esse sentido prevaleceu até o século XVI. A partir de então, a palavra cultura começou a ser usada como o cultivo do espírito, das facul- dades mentais, algo que deveria ser cuidado desde a infância, de onde, provavelmente, surgiu a expressão “jardins da infância” em que o conhe- cimento/cultura poderiam ser cultivados (TAVARES, 2008, p. 12). No século XVIII, junto com civilização, cultura designa progresso intelectual e espiritual. Uma pessoa culta seria aquela que evoluiu nos seus estudos e o mesmo pensamento se estendia para as sociedades. Assim, Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 12 – os países europeus seriam o ponto máximo do desenvolvimento humano, para onde todos os povos do mundo deveriam se dirigir. Deste modo, quem seria considerado civilizado? Seria o indivíduo ou o país educado dentro daquela tradição humanista que buscava na antiguidade clássica o seu modelo de vida e educação. Seguindo este raciocínio, quem não seria civilizado? Aquelas pessoas ou sociedades que ainda viviam num estado natural, “bárbaro” e, comumente, afastados das metrópoles europeias. O iluminismo francês, no século XVIII, reforçou esta ideia de civili- zação. Só que, neste caso, o caminho rumo ao estado civilizado seria o da razão, o do pensamento livre e lógico. Pelo uso da razão, o homem chega- ria à civilização tendo como modelo a França setecentista. Neste modelo iluminista, ser civilizado reforça a ideia de cultura como resultado de um processo de educação. A pessoa culta seria aquela que foi “cultivada” nos valores da civilização e, principalmente, da civi- lização francesa. Se o pensamento francês estabeleceu uma relação íntima entre cul- tura e civilização, o pensamento alemão caminhou em sentido inverso. Numa interpretação nacionalista, para os alemães, cultura tinha a ver com aquilo que as pessoas sentem, intuem, enfim, algo ligado ao espírito e não à razão. Esta oposição entre razão e emoção ainda está presente nos dias de hoje em várias expressões artísticas como a música, a poesia, o cinema, os romances e, com certeza, já foi título de alguma telenovela. Enfim, o que estava em jogo era, do lado alemão, a tentativa de resgatar os valores morais, costumes e comportamentos tradicionais dos povos germânicos. Os alemães, no século XIX, estavam construindo uma nação unificada e precisavam difundir o sentimento de uma cultura nacional. Para isso, o conceito de civilização proposto pelos franceses não funcionava. Ele era muito universal, aplicável a todas as sociedades europeias. Para os germâni- cos, era necessário um conceito de cultura que representasse o modo de vida alemão em oposição a outros modos de vida de outras nações. Se você parar um pouco para refletir, perceberá que os conceitos apresentados no início do capítulo, de cultura como conhecimento e como modo de vida, tiveram seu surgimento neste período. – 13 – O conceito de cultura O desenvolvimento e a expansão do modo capitalista de produção, que teve na Revolução Industrial uma das suas expressões, influenciou a mudança semântica da palavra cultura. Durante o século XIX, na medida em que se percebia que, junto com o desenvolvimento capitalista havia uma perda dos valores humanos, e que civilizar “os bárbaros” (as populações colonizadas pelos europeus) tinha como consequência sua conquista, dominação e exploração, a palavra cultura sintetizou uma posição de crítica à sociedade industrial. Num mundo em acelerada transformação e perda de referências e valores, o cultivo do espírito humano, das belas artes, significava a resis- tência de um humanismo em vias de desintegração. Com isso, no século XIX, o termo cultura passou a ser associado ao processo geral de desen- volvimento “íntimo”, em oposição ao “externo”. Cultura passou a ser ligada às artes, religião, instituições, práticas e valores distintos e às vezes até opostos à civilização e à sociedade que surgiram com a Revolução Industrial. (TAVARES, 2008, p. 13). Se por civilização entendia-se “civilização industrial” dominada pelas máquinas e pelo materialismo, a cultura seria o último refúgio de um mundo em desintegração. Para estes pensadores, só seria possível desenvolver a cultura se ela estivesse afastada das influências nefastas da sociedade industrial e moderna. Temos que lembrar que este é o período das grandes aglomerações urbanas, quando milhares e milhares de pessoas se dirigiam às cidades em busca de emprego. Manchester, na Inglaterra, era uma cidade povoada por chaminés de fábricas, cortiços de operários, poluição, violência e problemas urbanos. Uma realidade bem distante do que se entendia por civilizado ou culto! A cultura, ameaçada pela sociedade industrial que transformava tudo em mercadoria, deveria ser salva e cultivada por poucos e para poucos. Nesta concepção, caberia a uma elite cultural organizada numa irmandade formar seus pares e garantir a manutenção e reprodução dos bens culturais ameaçados pelo progresso. Em termos da cultura como uma vida voltada para os sentimentos, para as emoções, o desenvolvimento industrial era o surgimento de uma Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 14 – realidade oposta a este ideal. Se a industrialização da sociedade e o seu progresso sem freios destruía tradições, era necessário buscar e valorizar uma forma de viver oposta a tudo isso. Um modo de vida “orgânico”, “natural” deveria se opor ao progresso sem medida! Quando o século vinte iniciou, além do sentido que permaneceu, de cultivo agrícola, outros três significados passam a conviver entre si: a) a cultura como resultado de uma ação educativa, formal ou informal. b) como consequência da primeira, também era vista como o con- junto de expressões artísticas e seus produtos, como a música, a literatura, a escultura, o teatro, a pintura, entre outras. As cha- madas belas artes que deveriam formar o bom gosto e o senso estético das pessoas. c) por fim, como algo ligado a um mundo utópico, perdido, puro, em oposição aos males da modernidade.Estes três sentidos atravessaram o século XX e, ainda hoje, parti- cipam do debate sobre a concepção de cultura. Porém, um outro fato contribuiu para ampliar o significado do termo: o surgimento e expansão da Antropologia. 1.3 O conceito antropológico de cultura A Antropologia enquanto ciência, derivada das ciências sociais, tem sua origem na especialização que as chamadas ciências humanas sofreram no século dezenove. Com a globalização, que teve sua aceleração com os descobrimen- tos marítimos a partir do século quinze, os europeus tiveram contato com várias sociedades. Alguns autores interpretam este encontro como um choque cultural que afetou tanto a Europa quanto os outros continentes. Após o choque inicial, os europeus iniciaram um esforço de com- preensão das sociedades contatadas. Fosse para melhor dominá-las, por meio da colonização, ou conhecê-las, para fins de comércio ou de conhe- – 15 – O conceito de cultura cimento científico, fato é que a existência destes “outros” exigiu esque- mas explicativos. Uma das propostas era a de estabelecer uma hierarquia, com base na ideia de civilização. Por este modelo, os europeus representariam o último estágio civilizatório e os demais povos, o início ou a fase intermediária. Assim, os indígenas brasileiros, por exemplo, estariam classificados como “bárbaros” ou “selvagens”. De acordo com este ponto de vista, para muitos europeus, a coloni- zação de outros povos tinha como um dos objetivos o de levar ao restante do globo os valores da civilização europeia, isto é, “ajudar” outros povos e nações a evoluírem. Outro aspecto que fortaleceu esta classificação do mundo entre “civi- lizados” e “primitivos” foi a teoria da evolução de Charles Darwin. Com sua obra A origem das espécies, Darwin defendeu e demonstrou a evolu- ção das espécies por meio do processo evolutivo da seleção natural. Para ele, as espécies vegetais e animais teriam se desenvolvido durante milha- res de anos, a partir de formas ancestrais.1 A teoria da evolução das espécies causou – e ainda causa – polêmica, mas fato é que foi interpretada de várias maneiras e influenciou a Antro- pologia. Influenciou negativamente ao possibilitar uma leitura equivocada da evolução das espécies, pela qual existiriam seres humanos evoluídos em oposição aos não evoluídos, ou, em outras palavras, superiores e infe- riores. Este fato demonstra como, em muitas ocasiões, certas ideias são utilizadas conforme convém a determinados interesses. O chamado “darwinismo social” influenciou e motivou teorias racis- tas que justificaram a escravização de seres humanos e até seu extermínio. Por estas teorias, o termo raça definiria as características físicas, psico- lógicas e culturais transmitidas desde os seus antepassados. As diferen- ças humanas seriam determinadas essencialmente pela biologia e, deste modo, os indivíduos de uma determinada raça herdariam, além dos traços físicos, habilidades e inteligência. 1 Para mais informações sobre Charles Darwin, acesse <https://www.ebiografia.com/char- les_darwin/>. Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 16 – Figura 1.3 – Campo de extermínio de Auschwitz, Polônia Fonte: Shutterstock.com/Lois GoBe. É claro que o darwinismo social influenciou a concepção de cultura e reforçou aquela que via nas manifestações culturais das sociedades ditas primitivas algo a ser desprezado ou, no máximo, objeto de curiosidade. No entanto, a Antropologia e as ciências humanas no geral, supera- ram o evolucionismo e, desde o final do século XIX, várias tendências teóricas surgiram e influenciaram o conceito de cultura. Dentre elas, o aparecimento da Antropologia Cultural. De acordo com Oliveira, podemos afirmar que o objeto do estudo da Antropologia é a pes- soa humana e a sua atividade. No caso da Antropologia Cultu- ral o objeto é o ser humano e os seus comportamentos, ou seja, o homem e a mulher enquanto integrantes de grupos sociais que fazem cultura. Por essa razão é possível dizer que o objetivo da antropologia é o estudo da humanidade como um todo, bem como das suas diversas manifestações e expressões. Assim sendo, pode- -se dizer que no seu objetivo a Antropologia se preocupa com a pessoa humana na sua condição de ser biológico, ser pensante, ser que produz culturas e ser capaz de organizar-se em sociedades estruturadas. (OLIVEIRA, [S.d.], p. 2) Se todo ser humano é um ser pensante e que se manifesta e se expressa de várias formas, o conceito de cultura se amplia e abrange, praticamente, todas as atividades humanas. Nós somos, ao mesmo tempo, produtores e produto da nossa cultura. Produzimos e somos produzidos pela cultura de maneiras diversas, no tempo e no espaço. – 17 – O conceito de cultura Deste modo, oposições binárias como cultura civilizada versus cul- tura primitiva, cultura de elite versus cultura popular; obra de arte versus mercadoria; não contribuem e não enriquecem o conceito. Ele é muito mais amplo e complexo e envolve as ideias que são os conhecimentos, os saberes e as filosofias de vida. A crença que consiste em tudo aquilo que se crê ou se acredita em comum. Os valores, ou seja, a ideologia e a moral que determi- nam o que é bom e o que é ruim. As normas que englobam tanto as leis, os códigos, como os costumes, aquilo que se faz por tradi- ção. As atitudes ou comportamentos, isto é, maneiras de cultivar os relacionamentos com as pessoas do mesmo grupo e com aque- las que pertencem a grupos diferentes. A abstração do comporta- mento, a qual consiste nos símbolos e nos compromissos coletivos. As instituições que funcionam como uma espécie de controle dos comportamentos, indicando valores, normas e crenças. As técnicas ou artes e habilidades desenvolvidas coletivamente. Os artefatos que são os instrumentos e utensílios usados para aperfeiçoar as técnicas e os modos de vida. (MARCONI; PRESOTTO, p. 27-31 apud OLIVEIRA, [S.d.], p. 2) Podemos perceber nesta citação o quanto o conceito se ampliou e abrange, praticamente, quase todos os aspectos da nossa vida. Em 1958, Raymond Williams escreveu Culture is ordinary, numa tra- dução livre, “cultura comum”. Este livro foi inovador por apresentar um conceito de cultura muito próximo ao antropológico. No seu início, mais parecido com a abertura de um romance do que de um trabalho científico - o narrador descreve uma experiência corri- queira: uma visita a uma catedral e o trajeto de retorno de ônibus. O que afinal une cada estágio percorrido pelo ônibus? É a palavra cultura o que une a catedral, o cinema, os campos arados, os castelos, o ferro trabalhado da escarpa, as fazendas, o moinho, o gasômetro, as minas. Em suma, ao longo da complexa e contestada história da palavra cultura, ela já foi usada para designar todas essas coisas (CEVASCO, 2001, p. 45). Williams afirma: crescer naquela região era ver a formação de uma cultura e suas modalidades de mudança. De pé no alto das montanhas eu olhava para o norte e via as fazendas e a catedral, ou para o sul, e via a fumaça e o clarão das fornalhas que compunham um segundo pôr Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 18 – do sol. Crescer naquela família era ver a formação de modos de pensar: o aprendizado de novas técnicas, a alteração das relações, o surgimento de novas linguagens e ideias. Meu avô, um trabalha- dor calejado, chorou em uma reunião da comunidade ao contar, preciso e emocionado, como tinha sido expulso pelo proprietário da fazenda da casa onde morava. Meu pai, não muito antes da sua morte, falava, calmo e contente, de como tinha fundado uma sec- ção do sindicato e um grupo do Partido Trabalhista no povoado onde morava, e, sem amargura, dos “homens de rabo preso” da nova política. Eu uso uma linguagem diferente, mas penso nessas mesmas coisas. (WILLIAMS apud CEVASCO, 2001, p. 118) A partir destareflexão, Williams conclui que ninguém detém a pro- priedade da cultura. Ela é de todos, porque todos produzimos, de uma forma ou de outra, a cultura. Ela não pode ser apenas proletária ou bur- guesa, da elite ou popular. Isto é o que ele quer dizer com a expressão cultura comum. A cultura é de todos, mas não é igual para todos. Ela é produzida e vivida de diferentes formas e sua riqueza está no encontro, na troca e no respeito às diferenças. Uma cultura comum sempre pressupõe a igualdade do ser e, principalmente, o acesso a qualquer das suas atividades: este é o sentido real do princípio de igualdade de oportunidades (WILLIAMS, 1969, p. 326). Assim, ao chegarmos no século XXI, a cultura deixou de ser pensada enquanto o produto de um determinado grupo social ou de um estágio de desenvolvimento, por exemplo, o de civilizado. Também deixou de ser ape- nas um modo de vida ou a expressão de uma determinada tradição folclórica. No entanto, se o conceito se ampliou tanto, algumas divisões didá- ticas são necessárias para uma compreensão melhor do que ele trata atu- almente. Assim, os antropólogos estabeleceram os elementos da cultura. Quais seriam? Muitos, como, por exemplo, ideias, crenças, valores, nor- mas, instituições, técnicas e artefatos. As ideias são o conjunto de conhecimentos, formais e informais. Se formais, comumente, são passados de geração para geração por meio da educação formal na escola. Se informais, por meio da educação não formal, pela família, pelos grupos de relacionamento ou instituições que trabalham com esta forma de ensino. Vale observar que, muitas vezes, – 19 – O conceito de cultura aquele conhecimento que num momento era considerado informal, acaba adquirindo um status de formal e é incorporado aos currículos escolares. Isto é, esta definição não é tão rígida e muda com o tempo. Por crenças definimos tudo aquilo que, individualmente ou em grupo, acreditamos. Algumas vezes com base racional e, em outras, por meio da fé institucionalizada, ou não, pelas religiões. Por valores podemos entender o que forma nossa ideologia, nossa moral, o que consideramos certo e errado, bom ou ruim. Quando nossos valores são organizados, compilados em leis e códi- gos, surgem os elementos chamados de normas. Então, as normas são as leis, os costumes coletivos seguidos pela tradição. Nos nossos relacionamentos com pessoas que pertencem ao nosso grupo social ou não, temos determinadas atitudes ou comportamentos. Algumas vezes estes comportamentos são passados pela família, pelo grupo de relação mais próximo e, popularmente, chamamos de “educação” e disto decorrem expressões como “mal-educado” ou “bem-educado”. Normas, comportamentos, atitudes e valores são produzidos e repro- duzidos pelo que denominamos instituições. De certa forma, as institui- ções garantem a permanência e a difusão dos elementos culturais. Podem ser instituições culturais, como os museus; educacionais, como as escolas e universidades; religiosas, como as várias igrejas e suas crenças. Enfim, as instituições, das mais simples às mais complexas, existem para preser- var e controlar nossos comportamentos. As sociedades, tanto as mais simples como aquelas mais comple- xas, desenvolvem e dominam determinadas técnicas e habilidades. Com o passar do tempo, muitas destas sociedades incorporam estas técnicas e habilidades em processos de manufatura ou de indústria mais sofistica- dos. Porém, quando pensamos em sociedades menos complexas, é possí- vel identificar certas habilidades e técnicas em vários ramos de atividade como a construção, a culinária, a agricultura, as artes, artesanato etc. Até mesmo a arquitetura e seus estilos trazem muito das técnicas e habilidades de um povo. Quem nunca ouviu falar da arquitetura grega, ou japonesa, dentre muitas outras? Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 20 – Por fim, existem os instrumentos e utensílios que as sociedades utili- zam para aperfeiçoar suas técnicas, habilidades, modos de vida. São cha- mados de artefatos. A Arqueologia tem nos artefatos um dos objetos de estudo e pelos quais procura reconstruir a vida cotidiana dos grupos huma- nos que viveram em épocas mais ou menos distantes. Uma rede de pesca criada e aperfeiçoada por uma comunidade de pescadores do Nordeste brasileiro é um artefato. Uma canoa de um grupo de ribeirinhos de um rio na Amazônia, também. Porém, até mesmo um aparelho de telefone celular pode ser considerado um artefato. São tantos e diferentes os artefatos que um dos problemas que se coloca é como classificá-los e qual o grau de importância de cada um. Podemos afirmar que é quase impossível medir a quantidade e a diver- sidade dos bens culturais de um país, de uma nação, enfim, de um povo. Muitos têm utilidade imediata, outros se destacam pela sua durabili- dade. E existem aqueles artefatos que produzem outros artefatos, como as máquinas, por exemplo. A arte de cozinhar, de acordo com uma receita, muitas vezes é o resultado de conhecimentos acumulados durante gera- ções! Já uma flecha é um exemplo de artefato que pode ser perdido no primeiro uso. As pirâmides são artefatos, as igrejas também. As casas ribeirinhas construídas à beira de algum rio da Amazônia, também. Enfim, o ser humano vem produzindo artefatos há milhares e milhares de anos. Este exemplo dos artefatos nos ajuda a compreender a complexi- dade do conceito de cultura, sua abrangência e o quanto ele se tornou amplo ao chegarmos no século atual. No, entanto, não com o objetivo de encerrar o tema, mas, didaticamente, enquadrá-lo, concluímos que a cul- tura se constitui de três elementos fundamentais: as ideias, as abstrações e os comportamentos. As ideias são elaborações mentais das coisas concretas e abstratas. Quando refletimos, contemplamos as ideias e conseguimos expressá-las em símbolos, sinais, sistemas, temos as abstrações. Por fim, de acordo com nossas ideias e abstrações configuramos modos de agir. Estes elementos numa ponta, nos fazem todos humanos e, em outra, estabelecem nossas – 21 – O conceito de cultura diferenças em termos culturais. E como podemos perceber estas diferen- ças? Por meio da observação do outro, por meio do olhar para aquilo que está “fora de nós” e que conosco dialoga. Os antropólogos chamam isto de “coisas que podem ser observadas num contexto extrassomático” (OLI- VEIRA, 2008, p. 3). Concluindo, para entendermos efetivamente o que é cultura, pode- mos resumir na seguinte frase: cultura é tudo o que nos faz iguais enquanto seres humanos, mas, ao mesmo tempo, diferentes uns dos outros. A capa- cidade de dialogar com a diferença na busca da nossa humanidade é o que torna este conceito tão amplo e tão rico na compreensão de quem somos no tempo e no espaço. Síntese Vimos nesse primeiro capítulo uma introdução ao conceito de cul- tura. Partindo do nosso senso comum, foi apresentada a trajetória histórica do conceito, formulada pelo intelectual Raymond Williams. Da história do conceito de cultura foram analisadas as definições de cultura comum e do conceito antropológico do termo e seus elemen- tos formadores: ideias, crenças, valores, normas, instituições, técnicas e artefatos. Figura 1.4 – Cultura Fonte: Rawpixel.com. Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 22 – Atividades 1. Descreva dois significados de cultura utilizados pelo senso comum. 2. De acordo com o texto, na sua trajetória histórica, quais signifi- cados adquiriu o conceito de cultura? 3. Qual a influência do darwinismo social na conceituação de cultura? 4. Descreva e explique os principais elementos da cultura dentro do conceito antropológico do termo. 2 Memória e Patrimônio Cultural A memória constitui uma seara do conhecimento estudada por diversas ciências. A memória enquanto instrumento que deve ser funcionalao indivíduo e à manutenção deste funcionamento é objeto de estudo constante da neurologia, por exemplo, e de seus interesses pelas falhas nessa ferramenta, como o mal de Alzheimer. A memória enquanto potência de salvaguarda de informa- ções e da recuperação consciente ou não destas informações, guardadas as devidas proporções e divergências sobre a confia- bilidade desta recuperação, tem sido há muitos anos um dos inte- resses da psicologia. Já a memória enquanto foco de reflexões sobre a própria existência de si e as possibilidades de ação a partir dela é, desde a Grécia Clássica, tema dos debates da filosofia. Ainda, enquanto objeto que pode ser moldado subjetiva- mente, enquanto matéria que pode ser eleita como principal em detrimento de outras em mesmo nível e enquanto submissa ao silenciamento, ou esquecimento, como preferem alguns teóricos, a memória tem sido também considerada, principalmente após a década de 1930, com maior proximidade pela história. Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 24 – A memória configura-se, assim, como um campo de interesses e olha- res variados, como objeto de diferentes análises, com variados fins e com resultados também bastante diversos. A memória pode ser entendida como a faculdade cerebral de lem- brar, a capacidade de armazenar informações, as imagens que ressaltam ao consciente de forma incontrolável, entre outras interpretações. A memória se apresenta, então, como algo racionalmente instrumentalizado, mas tam- bém como algo passivamente funcional. O que se considera ao tratar da memória em todos os aspectos é que a interpretação do passado realizada por meio dela é sempre fruto do pre- sente de quem tenta, quer ou consegue lembrar. A memória está ligada ao nosso presente, à nossa posição no mundo e na sociedade, tanto que em variados momentos de nossas vidas lembramos mais facilmente de coisas diferentes. A memória é, com isso, uma representação do passado fundamentada na vivência do presente. Não se trata de tirar de um baú informações há muito guardadas, mas sim tratar do que e como fazer para inseri-las no presente de quem lembra. 2.1 A memória, a humanidade e o tempo: um trajeto da memória no mundo ocidental da Pré-História à modernidade A memória está intimamente relacionada com as percepções de pas- sagem do tempo, de lembrança, do irremediável esquecimento, das forças que se opõem em brigas metafísicas e por vezes até reais para se sobrepo- rem umas às outras, de (re)afirmações, de justificações, relações do indi- víduo consigo e com os demais nos âmbitos sociais, e outras incontáveis atividades humanas nos processos históricos ocorridos que, em muitas das vezes, nem nos damos conta. Começando por considerar o início da atividade humana enquanto “sociedade organizada” ou como grupo em vias de civilização, podemos nos remeter aos grupos que se estabeleciam em cavernas ou em espaços que proporcionassem alguma forma de sedentarização, acabando com o nomadismo e proporcionando a capacidade de registro sobre si e sobre o – 25 – Memória e Patrimônio Cultural grupo. Nas cavernas mais famosas do mundo contemporâneo, destinos de visitas e de estudos intensos, as abordagens se dão de diferentes modos sobre os registros nelas encontrados. No Brasil, temos os complexos da Serra da Capivara e da Lagoa Santa. Na França, o complexo de cavernas de Lascaux, por exemplo, se tornou tão interessante aos olhos dos estudiosos e visitantes que tam- bém recebeu a alcunha de Capela Sistina da Pré-História. Descoberto na década de 1940, o sítio foi analisado pelo pré-historiador Henri Breuil e seus companheiros Jean Bouyssonnie e André Cheynier durante o decênio de sua descoberta. No fim deste período, em 1949, Breuil formou com Séverin Blanc e Maurice Bourgon outro grupo de estudos para o sítio. A intenção era a análise, a interpretação e a catalogação dos desenhos e objetos encontrados. Entre as décadas de 1950 e 1960, Breuil encomen- dou novos estudos que foram realizados por André Glory. Nos anos que se seguiram, Annette Laming-Emperaire, André Leroi-Gourhan e Norbert Aujoulat também estudaram o lugar. No interior das cavernas do complexo encontram-se pinturas e outras formas de registro que indicam bovinos, felinos, cavalos, cervos, cabras e outros animais, datados, os mais antigos, de dezessete mil anos, e os mais recentes, de quinze mil e quinhentos anos de idade, segundo os testes de Carbono 14. As primeiras interpretações feitas sobre Lascaux foram de temáticas arqueológicas, especialmente por se tratar de restos de ativida- des de grupos humanos extintos e com modos de vida há muito substitu- ídos e/ou transformados. Em seguida, a história da arte tratou de analisar os desenhos, as cores, as formas, e passou a produzir possíveis intenções sobre a visualidade daquelas figuras. Também, mais recentemente, e é aí que se aproxima dos estudos sobre a memória, o ato de registrar as formas animais, por exemplo, em Lascaux, passou a chamar atenção de estudio- sos da área dos estudos sobre a memória. As questões feitas remetem-se à intenção de terem sido realizados esses registros dentro das cavernas. Seria uma comunicação dos membros do grupo com outros que talvez não conhecessem a realidade apresentada nos desenhos? Seria uma forma de inscrever no tempo, cristalizando em formas nas paredes, as atividades realizadas? Seria, ainda, uma vontade de transmissão de algum conhecimento para futuras gerações? Sem poder Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 26 – responder especificamente estas perguntas, uma interpretação teórica que podemos fazer é que, irremediavelmente, talvez até sem esse intento, os registros inscrevem nas paredes da caverna, em suas diferentes passagens e salas, um conhecimento adquirido na experiência (da caça, do descobri- mento do ambiente, do contato com o que cercava os indivíduos daquele momento), acondicionado na memória e posteriormente recuperado e arti- culado nos desenhos que temos nos dias atuais. Novamente, talvez mesmo sem perceberem, os desenhos se tornam inevitavelmente uma forma de preservação de um conhecimento e de uma memória, neste caso a memó- ria de quem realizou a atividade de pintura, seja ela adquirida por meio de conversas entre pintores e caçadores, na possibilidade de haver esta divisão de atividades no grupo humano que ali habitou, ou por meio da vivência plena do ser em seu contexto que, posterior à sua realização, a marcou nas paredes de Lascaux. A realização destas pinturas, para além dos pontos de vista estéticos e/ou artísticos, tem o potencial inato de transmissão de um saber que foi recebido e maturado em uma memória. Memória esta trabalhada para que se recuperasse este saber e se registrasse. Vale sempre lembrarmos que essas flexões da memória em receber, aninhar e recuperar informa- ções nem sempre são resultado de um ato consciente, mas, pelo contrário, passa despercebido. Passando para as sociedades já “desenvolvidas” da perspectiva que temos hoje de civilização, cultura, sedentarização, formas de governança e interpretações do mundo, podemos analisar as sociedades da antigui- dade. O Egito Antigo (séculos 3.150 a.C. a 31 a.C.), civilização que rece- beu a admiração dos gregos como um berço das civilizações, bem como colocamos atualmente sobre os próprios gregos este princípio, estabele- ceu algumas relações com a memória em diferentes frentes. São famosas as pirâmides egípcias, túmulos dos faraós aonde se guardavam, além do corpo mumificado do líder, objetos especiais para aquela pessoa e bens que denotassem seu poder e riqueza. As pirâmides marcavam suntuosa- mente o local de sepultamento destes líderes e, sendo grandes e facilmente visíveis, mantinham na memória dos vivos a presença deles. Nem todos os líderes egípcios, ou os homens mais poderosos destacivilização foram sepultados em pirâmides como as que mais facilmente lembramos, claro, – 27 – Memória e Patrimônio Cultural outros foram sepultados em criptas de pedra, por vezes subterrâneas, sob as dunas de areia, e também guardavam em si o corpo mumificado e os bens do sepultado. Essas tumbas, pirâmides ou não, denotam alguns valo- res simbólicos agregados ao morto que ali jaz e ainda sublinham que esses valores não devem, ou não deviam em seu contexto, ser esquecidos, por isso um sepultamento com intenção de preservação ao eterno da materia- lidade relativa ao que morreu. A perpetuação destes valores que, unidos, gerariam um senso de respeito, juntamente com a manutenção da memória de seu nome e suas louváveis ações, eram uma intenção e uma consequência desta forma de sepultamento, sendo este rito produtor e produto da memória social sobre alguém. Muitas vezes os nomes destes sepultados foram apagados pela ação dos ventos e do atrito das pedras com a areia, mas, como intenciona- vam os egípcios, paira sobre o deserto oriental do Egito um senso imate- rial de alguma santidade, algum heroísmo, alguma consideração elevada acerca dos que ali estão, justamente pelas vias que possibilitaram este modo de serem encerrados, enlevando suas memórias que chegam a nós hoje de diferentes formas, mais anônimas que individualizadas, mas che- gam. A memória do grupo de pessoas ali encerradas é ainda presente, não nas memórias vivas de nosso tempo, mas justamente na intenção de não serem esquecidas, porque hoje sabemos que essa era a vontade e, sendo novamente produtor e produto dessa atividade, nos lembramos. Outra relação dos antigos egípcios com a memória está, novamente, no ato de se mumificar. A mumificação possibilitava a preservação do corpo, como podemos comprovar com as numerosas múmias egípcias espalhadas pelo mundo. Ao mumificar o morto, eram retirados do corpo todos os órgãos internos, exceto o coração, porque era ele que mantinha a sabedoria, as emoções, a alma, a personalidade e a memória da pessoa. Todo esse conteúdo era necessário ter consigo no além-vida para se passar pelo crivo das sete portas e ter o próprio coração pesado na balança, a qual faria o julgamento no Tribunal de Osíris, do merecimento do morto ser castigado ou de poder acessar novamente os benefícios que possuía na vida terrena, mas em outra existência, na eternidade. Mais uma vez, a memória se apresenta como conteúdo essencial ao ser, dessa vez na morte, porque por meio da memória o morto teria acesso ao que foi instruído pelo Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 28 – Livro dos Mortos. O Livro era um compilado de várias sugestões de res- postas, ações e comportamentos a serem executados durante o julgamento no Tribunal de Osíris, como que um manual para se conseguir acessar a outra existência, a da alma, e lembrar dessas indicações era de extrema importância. Por isso, a memória, contida no coração preservado do corpo mumificado, era essencial. Na Grécia Antiga (1.100 a.C. até 146 a.C.), a memória também teve um local de destaque na vida e nas reflexões dos filósofos. Precisamos sempre lembrar que a Grécia Antiga é o momento em que a humanidade passa a considerar filosoficamente a memória e seu papel na sociedade e que, da perspectiva do processo histórico humano, é um tempo bastante considerável, uma vez que nesta época temos o que consideramos o início da filosofia ocidental. Mnemosine, ser mitológico, era filha de Urano e Gaia, então, uma titânide, divindades anteriores aos deuses mais comu- mente conhecidos como Zeus, seus dois irmãos e seus filhos. Mnemosine era a divindade que guardava todas as lembranças e possibilitava a recupe- ração das informações. Ela está, então, mais intimamente relacionada ao ato de lembrar que à memória propriamente dita. O trabalho de Mnemo- sine seria o de evitar o esquecimento, representado na cultura da Grécia Antiga principalmente pelo rio Lete, que cruza a morada dos mortos e do qual as almas tomavam a água antes de reencarnarem, esquecendo-se assim de existências anteriores. Ironicamente, a guardiã da atividade de lembrar quase nunca é lembrada por essa possibilidade, mas sim por ser mãe das musas que influíam também na vida da sociedade grega. Por possuir a lembrança, Mnemosine também representava a posse da razão, uma vez que, dotado de suas lembranças, é mais fácil ao indivíduo agir de forma consciente, coerente e racional. Sem a memória, a pessoa estaria fadada ao desequilíbrio de si, de suas ações e decisões. A importân- cia da memória, na época da deusa em questão, se dava pela não existência de escrita, portanto, toda forma de conhecimento só podia ser registrada na memória, recuperada pela lembrança e transmitida oralmente. Uma vez que, nesse período da crença nos deuses, não existia ainda o alfabeto, o conhecimento que Mnemosine tratava de não se deixar esquecer eram os saberes basilares para a vida e para a existência: o funcionamento do uni- verso, os ciclos da vida, os modos de agir no mundo e, como não deixou de ser em nenhum tempo da história humana no qual existiram governos, – 29 – Memória e Patrimônio Cultural não deixaria esquecer também a memória dos seres notáveis, como os imperadores e heróis. Ainda na mitologia grega antiga, Zeus liderou os demais deuses na bata- lha contra os Titãs. Vitoriosos, os deuses se estabeleceram como os ocupantes do Olimpo, com poderes plenos. Zeus, sabendo que Mnemosine era uma titâ- nide e sabendo da sua também destruição juntamente com seus companhei- ros, teve medo de ter suas honras, glórias, vitórias e decisões esquecidas, por isso disfarçou-se de pastor e foi encontrar Mnemosine, com quem dormiu por nove noites, dando origem às nove Musas que perpetuariam, sob as ideias do novo líder do Olimpo, as lembranças para a nova etapa na Grécia. Intimamente relacionada a Mnemosine, a mnemotécnica foi desen- volvida da antiguidade grega (por volta de 1700 a.C.). Como o nome explicita, considera a memória como técnica, como arte, de aprendizado consciente. A técnica em questão trata a memória como uma folha em branco na qual é realizada a escrita mental, usando como elementos diver- sos locais e imagens, portanto, a fonte principal da memória deixa de ser a oralidade, como no tempo da titânide, e passa a ser a imagem. Por se tratar de um instrumento de aprendizado, o armazenamento é confiável, e a recuperação, a lembrança das informações, é idêntica à de quando foi registrada na memória. Neste caso, o tempo não é importante, mas sim o espaço. O conteúdo a ser recordado e o motivo desta recordação não inte- ressam à técnica, ela não considera o nexo entre a lembrança e as articu- lações a partir dela, pois, simplesmente possibilita o resgate de uma infor- mação apreendida e registrada. A relação estabelecida entre os conteúdos e a memória por meio da mnemotécnica é puramente a de um depósito de informações e a atividade de recuperá-las quando seja necessário. Também na Grécia Clássica a memória passou a ser refletida como uma potência, como algo natural, como o instrumento não controlável de atividades humanas individuais e sociais. A consideração nesta área das potencialidades da memória está na capacidade de formação de identidade do ser e do grupo, e aqui o tempo é importantíssimo, pois ele interfere na memória: quanto maior o tempo entre a inscrição da informação na memória e a articulação de recuperá-la, mais difícil se torna a atividade. Há, nestes casos, a diferença entre o que se arquiva e o que se recupera, então, o objeto do armazenamento é diferente do da recordação. Esta diferença se dá porque, no processo de recordação, há deslocamentos, Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 30 – deformações, distorções, revalorações, renovações do conteúdo em voga, então, o conteúdonão fica em um lugar cem por cento seguro do ponto de vista da manutenção do conteúdo em integralidade, ele sofre alterações. Nesta visão mais abstrata e incontrolável da memória, ela é dotada de leis próprias e desconhecidas porque pode, por conta própria, esquecer ou reprimir lembranças, assuntos, temas, em contrapartida à técnica que é dura contra o esquecimento, relegando ao tempo um lugar de inércia, e que é dotada de métodos que propiciam a lembrança. Independentemente da visão escolhida, é notável desde a Antiguidade que a relação entre lem- brar e esquecer é íntima, propiciando, inclusive, uma a outra e medindo forças entre si de uma forma não perceptível a nós, seres humanos. Em todos os casos, desde os filósofos gregos a humanidade tem consciência de que o homem pode armazenar (funcional) e recordar (cultural). Dentre os pensadores da época, Platão é o mais salientado desde então. As controvérsias existentes sobre a autoria de Platão sobre os tex- tos que conhecemos é antiga. Platão teria sido aluno de Sócrates e com ele teria aprendido o valor da fala, da oralidade, da conversa, do diálogo, e por isso preferia estas formas de conhecimento aos registros. Platão apa- rece como o autor dos textos registrados, mas paira ainda a dúvida sobre a autoria do conteúdo deles. Teria sido Sócrates o pensador primeiro das considerações, como aparece nos textos platônicos, ou teria sido o pró- prio Platão que teria feito de Sócrates apenas uma personagem de suas passagens registradas em texto? O que devemos considerar em análises sobre a memória é o conteúdo trazido a nós dos tempos clássicos. Desde Platão, a memória é mais considerada como uma atividade consciente que inconsciente. Essa visão sobre ela permanecerá até o século XIX, no qual será dividido entre o lembrar consciente e a lembrança inconsciente, como veremos mais adiante. No Fedro, o texto mais importante sobre a memória nas obras platô- nicas, Sócrates aparece lembrando o mito do deus egípcio Thoth, respon- sável pela técnica e pelo “conhecimento científico” no Egito Antigo. Em um encontro com o rei Tamuz, Thoth lhe apresentou a arte, a técnica da escrita, considerando sobre a necessidade de distribuí-la entre as pessoas e sobre a potência que seria agregada à memória a partir do uso da escrita. O rei alerta ao deus sobre os possíveis malefícios da técnica criada, uma – 31 – Memória e Patrimônio Cultural vez que o criador tem a tradição de enxergar apenas os benefícios de suas invenções. O debate contido no Fedro não está em torno da existência da escrita, porque ela, sim, auxilia a humanidade com a possibilidade de se registrar informações, mas na interação da escrita com a memória. A intencionalidade de Thoth ao criar a escrita era a de potencializar a memó- ria, dificultando o esquecimento, mas o que o rei Tamuz alerta e Sócrates pontua no diálogo é que, uma vez podendo confiar à escrita as informa- ções, as pessoas deixariam de se importar com a memória chamada na obra de verdadeira. A escrita seria uma falsa memória, uma representação do que a memória de fato é, e nunca conseguiria acessar a essência do con- teúdo ou do conhecimento contido na memória viva das pessoas. A escrita separaria o caráter de vida que o conhecimento tem estando armazenado nas próprias pessoas. A escrita se apresenta no Fedro, dessa forma, como uma ferramenta que pode auxiliar a lembrança, mas não pode ocupar o lugar da memória no registro e na recuperação das coisas que inscrevemos nela. A compara- ção estabelecida da escrita se dá com a pintura. O pensador alega que uma pintura é uma representação de uma cena da vida humana, mas nunca a vida humana em essência. Elas têm a aparência de vida, mas não a vida, tanto que, se perguntarmos algo às pessoas pintadas em alguma cena, elas não nos respondem, apenas as vivas podem nos responder. Neste pensa- mento, a escrita uma vez realizada pode ser distribuída a qualquer parte, para qualquer pessoa, mas não leva a intenção essencial, a vontade pri- meira do discurso quando este foi formulado, desconsiderando inclusive quem é o alvo do discurso. A escrita causa, segundo o filósofo, ao contrário de potência à memó- ria, uma potência ao esquecimento, porque as pessoas, novamente, rele- gariam aos documentos, aos textos e às palavras a função de lembrar, que está naturalmente e desde os tempos imemoriais a cargo do indivíduo, não de instrumentos. O esquecimento considerado nessa filosofia é o esqueci- mento “nas almas”. Há de ser lembrado que a alma platônica era apresen- tada como um bloco de cera no qual se marcam coisas, portanto, no qual se inscrevem conteúdos, e dependendo da forma como essa gravação se dá no bloco de cera é que podemos mais fácil ou mais dificilmente recuperar, recordar. A alma, que é no caso da memória tratada como um bloco de Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 32 – cera, é diferente da alma cristã ocidental. A alma neste tempo é uma reali- dade psíquica individual, parecida com a recuperada por Freud quando o psicanalista fala dos traumas, por exemplo. O bloco de cera, parte responsável pela memória em nossa psique individual, é onde são registradas coisas que se tornam lembranças (carac- teres, imagens, cheiros, modos), e a qualidade da gravação, e consequen- temente da facilidade de lembrar, depende de dois elementos: da qualidade da cera (que pode ser mais dura/firme ou mais mole/informe) e da quali- dade da força com a qual as coisas são gravadas no bloco (mais forte ou mais fraca). Se um bloco de cera está muito duro e a gravação se dá com muita força, como em uma situação traumática ou de acidente, o bloco pode se quebrar no momento da inscrição da informação, criando marcas sensíveis e dolorosas, por exemplo. Também, se a cera é muito firme a gravação muito fraca, como em situações nas quais vivemos, mas não prestamos muita atenção, a marca é muito superficial e não conseguimos lembrar com efetividade. Se o bloco de cera for muito mole, sem nenhuma firmeza, qualquer que seja a gravação pode ser feita de forma incorreta e que possa ser distorcida depois, portanto, lembraríamos de uma forma distorcida das coisas. Pela alegoria platônica, são sempre instáveis a força e a dureza da cera e é justamente dessa relação que se dá a qualidade da gravação e a posterior facilidade de lembrar. Com isso, a escrita então exauriria a função da gravação no bloco de cera, porque a lembrança seria relegada a um instrumento externo ao ser, que é alheio à natureza humana. Sobre essas gravações, também chamadas de imagens mnemônicas, Platão lembra que existe uma capacidade passiva da presença delas em nossas vidas. Isso se dá pela atividade inconsciente da lembrança. Quando menos esperamos, lembramos de alguma informação ou momento e, muitas vezes, é assim que se dão as lembranças necessárias para a manutenção da vida cotidiana. Quando vamos, por exemplo, ao trabalho, depois de muito realizarmos o mesmo caminho, já o fazemos de maneira inconsciente e quase nunca paramos para pensar que sabemos o que sabemos ou que lem- bramos o que lembramos, justamente porque essas imagens mnemônicas se apresentam quando precisamos sem que nos esforcemos para tal. Voltando à alegoria de Platão, a escrita se tornaria estéril quanto a posse da essência do discurso. A verdade da fala, do intento do discurso, – 33 – Memória e Patrimônio Cultural se daria exclusivamente no momento da troca do ser com o outro por meio do diálogo, e o texto não conseguiria carregar consigo esse poder. O texto escrito, publicado e difundido não teria em si, como o discurso tem, a possibilidade de ser contestado, questionado, revisto, readaptado a novas realidades, sendo ele petrificado, monótono, inerte, imutável, lembrando que a troca e a possibilidade de contraponto eram essenciais na Grécia Clássica.Outro tópico que não se deve esquecer é que, neste tempo, a existên- cia humana está vinculada a uma pré-existência da alma (psique) e nessa existência não terrena as pessoas tiveram contato com as verdades essen- ciais do mundo, ainda que disformes, e por mais que tenham se banhado nas águas do Lete, o rio que as fariam esquecer desse conhecimento do mundo, da vida e do todo, a escrita traria um risco de que as pessoas relembrassem de alguma coisa. Na Idade Média, as relações com a memória, assim como nos tempos anteriores, foram variadas, mas vale considerar especialmente as relações com a religião e com o poder. Na Idade Média, a Igreja Católica colocou- -se em um local de importância e de poder, de onde interferia ativamente na vida cotidiana das pessoas. A religião católica, oficializada e difundida na Europa pelo Império Romano, foi aos poucos substituindo o culto aos deuses tidos pela Igreja como pagãos, como Zeus e seus companheiros olimpianos. Os templos da religião oficial da Antiguidade, com os deuses diversos, seus panteões e etc., eram templos que valorizavam o contato do indivíduo com algo divino, maior, superior, e também eram espaços acessados apenas pelos sacerdotes e pelas virgens devotadas ao deus que ocupava cada templo. Os templos eram espaços tão divinos que apenas as divindades, as virgens (que eram puras por não terem sido corrompidas pelo mundo) e os sacerdotes podiam acessar o espaço interior deles, os devotos ficavam no lado externo cultuando. O início da religião católica apostólica romana se deu no culto aos ancestrais, que era realizado no Império Romano em pequenos altares domésticos. O espaço era reservado para a lembrança dos mortos por parte dos vivos, portanto, a manutenção da memória de indivíduos por outros inscritos em seus círculos íntimos. Após a oficialização da religião cató- lica como a religião do Império Romano, por meio do Edito de Milão, em Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 34 – 313 d.C., esta não era mais proibida nem eram caçados os seus praticantes. Para se inscrever no cotidiano das cidades e das pessoas, os antigos tem- plos e outros prédios não necessariamente religiosos foram aos poucos se transformando em espaços católicos. A ideia dessa ação era a de inserir na prática social a atividade católica, substituindo aos poucos e de forma sutil àquela pagã, que havia existido até então, evitando algum trauma ou impacto negativo das pessoas para com a religião católica. Durante as ações da Igreja Católica na Idade Média ocidental, outras foram as relações com a memória. As confissões, por exemplo, trazem à tona a vontade e a capacidade criada pela Igreja de se execrar da memória os sentimentos de culpa mediante a franca fala sobre as faltas cometidas e o pagamento das devidas penitências. Os sacerdotes tinham o poder, dotado por meio da agregação de valores simbólicos, de ouvir, dar a solução e aca- bar com as marcas negativas da vida das pessoas, portanto, de suas pró- prias memórias. Outra função da memória na Idade Média, com o poder extremado da Igreja Católica como o primeiro estamento da sociedade, foi a de substituir os antigos heróis pelos santos. A agregação de valores era a mesma: a exaltação de uma pessoa a um patamar superior aos demais, reles mortais. A criação desses ícones nada mais é que a manutenção da memória de alguém dotada de glórias, vitórias, abnegações e ações essen- ciais ao governo, no caso da Antiguidade, e à Igreja, no caso medieval. Ser considerado santo na Idade Média ou herói na Antiguidade era receber os louvores, especialmente no post mortem, por atividades desempenhadas em vida e reconhecidas por quem pode agregar ou não os valores simbólicos essenciais para a eternização do nome e da vida de alguma pessoa. Como exemplo, temos Santo Agostinho, logo nos primeiros séculos do catolicismo. Nascido no ano de 354 na atual Argélia, só aceitou o cristianismo e seu próprio batismo em 387. Até o batismo, cometia os pecados comuns aos seres humanos: quando jovem, roubava frutas das árvores dos vizinhos, tinha divergências com a mãe por conta da reli- gião, sendo ela muito devota de Cristo; e frequentava espaços em que se encontravam facilmente prostitutas e outros elementos que representa- vam alguma degradação social. Antes de se tornar um sacerdote, Agos- tinho escreveu suas Confissões nas quais, como o nome indica, entrega suas faltas cometidas em sua vida pré-cristã. As confissões publicadas – 35 – Memória e Patrimônio Cultural não se destinavam só à Igreja, para que fosse aceito como um pecador arrependido, mas sim para que a sociedade visse nele o arrependimento e a validação moral de sua entrada na Igreja Católica. Uma vez perdo- ado pela Igreja e também moralmente pela sociedade, Agostinho pôde ingressar em sua vida sacerdotal e se tornou para a Igreja um homem de extrema importância para as articulações das ideias cristãs, além de for- mular pensamentos que foram basilares para o estabelecimento do poder do catolicismo sobre a vida ocidental. Outro caráter da memória medieval, repetido em certa medida na Modernidade, é o de justificação da ocupação do poder. Quando se esta- belecem os governos monárquicos após a dissolução das antigas Cidades- -Estados e também do Império Romano, as cidades foram evacuadas por conta das ocupações territoriais por parte dos chamados “bárbaros”, quem e porquê ocupa o poder é um dos temas em pauta. A própria rotulação de “bárbaros” aos que invadiram os territórios do Império Romano é um modo de inscrever na memória coletiva europeia o caráter negativo destes grupos como invasores, perigosos, não civilizados e outros adjetivos que desmere- cessem suas posições. Foi silenciada nesse momento a memória destes gru- pos que invadem os territórios romanos, grupos esses que foram em grande medida dominados ou expulsos pelo próprio Império Romano quando das expansões territoriais, portanto, chamar a tomada de terras pelos romanos de “expansão” e a mesma ação pelos outros grupos menores de “invasão” já nos mostra um modo de tarjar a identidade e a memória coletiva destes grupos. Uma vez estabelecidos os feudos, retomado o modo rural de vida, imensas extensões de terras, larga produção agrícola e etc., a ocupação dos cargos se dá, muitas vezes, especialmente em momentos de conflitos, pela comprovação ou pela justificativa deste ou daquele outro possível gover- nante. A justificativa se deu, por vezes, por meio de documentos que foram relembrados com a função de comprovar a afirmação de uma ocupação em detrimento de outra, por exemplo, os livros de linhagens. Alguns livros de linhagens traziam crônicas escritas, diziam estes mesmos, contempo- raneamente aos governantes de cada período e para justificar sua subida ao poder, o quase rei buscava nos livros sua sustentação no sentido de mostrar que sua linhagem, sua família, seu sangue era há muito tempo o ocupante do cargo, portanto, se seguiria essa tradição. Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 36 – A diferença nessa ação de ocupar o poder e se justificar, especialmente, justificar a memória do poder ao rei e a memória de saber que ele é o rei ao povo, entre o Medievo e a Modernidade, está na proximidade do poder com a Igreja Católica. Durante a Idade Média, a Igreja também servia como uma validadora dessa memória de poder do rei e de sua linhagem, abençoando-o e seguindo em harmonia com as decisões reais. Na Modernidade, mesmo que ainda tenhamos vivido momentos de presença religiosa forte, aos pou- cos os poderes reais vão se afastando da Igreja Católica e o poder real se sus- tenta por ele mesmo e pela memória criada sobre ele para a própria realeza, para a nobreza que a circunda e para os demais estamentos sociais. Um dos testemunhos sobre a manutenção da memória por meio da linhagem real na Modernidadesão as pinturas que retratam os reis. Nos castelos, as galerias com pinturas trazendo as figuras da família real, desde os tempos mais antigos possíveis, são abundantes, na tentativa de tornar visualmente didática a transmissão natural do poder de uma geração para a outra. As galerias mostram, por exemplo, um rei que tenha tomado o poder em um ano, depois outro que ocupou o cargo quinze anos depois (filho do primeiro), depois outro ocupante do trono vinte e cinco anos depois (neto do primeiro), ainda mais adiante o retrato de outro rei que ocupou o cargo trinta e oito anos depois (bisneto do primeiro), tão logo se tornava lógico que o tataraneto do primeiro, que é parte natural da linhagem dessa família, ocupará o poder em seguida na ausência de seu pai, guardadas, claro, as especificidades de cada reinado, cada território e cada modelo de transmissão de poder. O que nos interessa aqui é como as galerias de arte das monarquias modernas, principalmente as que se enquadram no Antigo Regime, ajudaram a tornar mais fácil o entendimento da transmissão do poder, tentando diminuir as contestações. 2.2 A memória no mundo contemporâneo: o mundo pós-revoluções burguesas – o caso do século XVIII A partir das revoluções burguesas no fim do século XVIII, especial- mente da Revolução Industrial, da Revolução Francesa e da Independên- cia Norte-Americana, as relações das sociedades ocidentais se alteraram – 37 – Memória e Patrimônio Cultural de maneira profunda, mas bastante sutil em relação à memória. É nesse momento que temos, por exemplo, o surgimento dos museus e o começo do trabalho com os patrimônios (histórico, artístico, cultural), exatamente para mediar as relações da memória com a sociedade. O primeiro fato a ser observado é que as revoluções burguesas torna- ram mais democráticos os acessos ao saber, à cultura e à própria produção da memória. Essa participação democrática ainda estava longe de ser a con- temporânea, com direito de vez, voz e espaço para todos os indivíduos, pois estava restringida aos burgueses que ocuparam o poder, que era até então posse das monarquias, e não a participação integral da sociedade de um modo totalizante. O camponês pobre, agricultor pequeno, o chão de fábrica (que inclusive surge nesses momentos) continua sendo o que é. Quem ascende ao poder são os burgueses que antes eram do estamento social da população em geral, mas tinham posses e especialmente os meios de produ- ção que articulavam as economias dos territórios antes monárquicos. Com os museus e patrimônios, o trabalho foi muito objetivo e sua ação foi muito amena. O caso francês é o mais didático: após a Revolução Francesa e a deposição da monarquia, os burgueses, agora governantes, precisavam colocar no cotidiano da população que a vida francesa seria outra, que a administração seria outra, que a monarquia tão tradicional não mais estava onde estava de costume, mas que, ao mesmo tempo, estava tudo bem e não havia a necessidade de choques ao contato com isso tudo. A alteração complexa na administração francesa, para ser aceita de maneira mais branda, exigiu um trabalho ainda mais complexo que foi executado com os museus, galerias e patrimônios. Os museus históricos, primeiramente, tinham o papel de selecionar e musealizar objetos e bens da antiga monarquia com o novo caráter de propriedade pública. As obras de arte da monarquia francesa, por exemplo, foram transformadas em uma coleção artística pública, mantida pelo Estado Francês, materializada fortemente no Museu do Louvre. Dessa forma, a monarquia não desapareceria tão drasticamente da vida francesa, pois esta- ria presente nos retratos, nas paisagens encomendadas, nas obras compradas ou conquistadas militarmente em outros territórios. A diferença é que a cole- ção não era mais um capricho real, mas sim uma coleção pública que seguia articulando a memória coletiva, como um instrumento do novo governo. Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 38 – O Estado Francês teve o trabalho de eleger “o que e porque” da antiga França seria transformado em objeto de museu para amenizar as altera- ções no território. Dessa forma, a ausência monárquica teria sua presença materializada e encerrada nos museus. Dentro dos museus, o discurso dos governantes era administrado da maneira mais conveniente possível, colo- cando, por exemplo, um histórico da administração monárquica do país levando a França a colapsos econômicos, sociais e políticos, mostrando, no discurso museológico, que a monarquia havia exaurido o país e a ela mesma e que, portanto, o novo governo era uma nova chance de seguir adiante. Por trás disso tudo estava a noção de que não se poderia implodir toda uma tradição de vida e começar uma nova, como se um país todo desaparecesse de repente e outro surgisse do nada. As transições, lembre- mos, são moderadas do ponto de vista da memória que, neste exemplo, pode ser moldada e difundida da maneira mais conveniente àquele que está no poder, exatamente para justificar esse poder. Os patrimônios, outro exemplo, foram o modo encontrado para tornar em ícone cristalizado no tempo as ações da monarquia. Lugares, coleções, livros etc. foram elei- tos como patrimônios para que fossem mesmo um marco entre a antiga França e o Estado Francês pós-revolução. Os patrimônios eleitos seriam, como são até hoje, preservados, mantendo a presença monárquica amiúde, e o que restasse seria dizimado e alterado aos poucos. Como no caso dos museus e das coleções de arte, isso traria a oportunidade de uma alteração calma e sem choques na memória da população. 2.3 Os séculos XIX e XX e as interpretações da memória Do século XVIII ao século XIX, e depois ao XX, os estudos em memó- ria se diversificaram, principalmente pelo caráter de ciência atribuído aos saberes e pela democracia cada vez maior na produção e estudo do assunto. As ciências citadas no começo do texto passaram a ocupar seus espaços de interesse no campo da memória e cada uma começou a produzir por si, no intuito de entender o fenômeno da memória nas sociedades humanas. No fim do século XIX, Henri Bergson, filósofo e diplomata francês, trata a memória de uma maneira ainda não rotulada como tal, mas que já – 39 – Memória e Patrimônio Cultural está nos debates sobre o tema desde Platão: a memória de hábito. Bergson trata o ato de lembrar de dois modos: o lembrar autêntico, natural, espontâ- neo; e o lembrar consciente, racional, que é bastante vinculado ao aprendi- zado. Se percebermos, isso alude às ideias da mnemotécnica e da recorda- ção presentes da Grécia Clássica, mas que, por meio do caráter científico, passam a ser revalorizados no mundo contemporâneo. Um exemplo prático sobre os dois modos de lembrar de Bergson pode ser o aprendizado de uma nova língua e a atividade de tradução: no começo, quando sabemos ainda pouco sobre a nova língua, precisamos associar conscientemente as pala- vras de nosso idioma nativo ao idioma aprendido e, portanto, fazemos um esforço racional para tal; quando já estamos acostumados com o conheci- mento acerca da outra língua, quando conhecemos bem o conteúdo, con- seguimos fazer a tradução de maneira espontânea, às vezes até automática, ainda que consciente. O aprender com esforço e empenho sobre o assunto, é o momento mais fácil de esquecermos também, porque o conhecimento está sendo pouco a pouco inscrito em nossa memória. Quando estamos acostumados, faz-nos parecer que nunca nem aprendemos esse conteúdo, como se nos fosse natural e automático, e aí considera-se, por Bergson, a memória de hábito. Quando o que foi aprendido fica apreendido em nosso cotidiano, vira hábito e não é mais um lembrar racional. Sigmund Freud, pai da psicanálise, também ponderou sobre a memó- ria nos fins do século XIX e na passagem para o século XX. O psicanalista retomaa ideia platônica do bloco de cera, mas troca a alegoria por uma lousa-mágica, o brinquedo infantil no qual se escreve e se apaga quando se quer. Freud alude ao tema tratando do guardar ou não as informações na memória e das transformações que as informações sofrem quando arma- zenadas nela. Para ele, se buscarmos nas camadas mais antigas das nossas memórias, encontraremos temas e lembranças que achamos esquecidos, mas que em verdade estão apenas escondidos sob outros assuntos. Ainda, Freud trata do trauma: para o autor, todas as pessoas têm uma proteção psíquica para evitar o trauma, que seria uma violência à nossa individu- alidade, e essa proteção é o susto, o espanto. Quando o trauma é gerado, essa proteção psíquica é violada e uma marca profunda e não esperada é deixada em nossa individualidade psicológica. Durante um período, Freud tratou do tema da memória recalcada, que seria a atividade inconsciente e natural do cérebro para esconder de si mesmo as temáticas que nos assus- Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 40 – tam e que nos atrapalham. Depois de atender os soldados retornados da Primeira Guerra Mundial, Freud passou a pensar no trauma como uma marca profunda, que ainda viola a proteção psíquica do indivíduo, e que pode se esconder por vezes e que por mais que não seja externalizado em palavras, pode se apresentar em ações, fatos, comportamentos. Assim, a memória de um trauma, como a situação de uma guerra, pode ficar intrin- secamente marcada na pessoa em sua mais recôndita individualidade. Na década de 1930, Maurice Halbwachs, sociólogo francês da escola durkheimiana passou a trabalhar a ideia de memória coletiva. Até então, os estudos em memória eram muito voltados para o entendimento da memó- ria enquanto formadora do indivíduo e, após Halbwachs, novas interpre- tações foram colocadas em voga, especialmente as que incidem sobre o caráter coletivo da memória. Os estudiosos que seguiram Halbwachs por vezes criticaram o caráter romântico com o qual a memória era tratada por ele, pois, em sua obra a memória coletiva é apresentada como uma cria- ção natural do convívio humano, sem interferências conscientes, apenas com a interação sociocultural do homem com seus pares. Os discordantes dessa teoria passaram a tratar a memória como um tecido volátil, metafí- sico ao extremo e lugar de jogos de poder muito intensos e sempre atuais nos quais quem tem mais poder (econômico, político, informativo etc.) consegue sobrepor a memória que lhe desagrada e ocupa o espaço de ter o discurso com o qual concorda difundido socialmente. Walter Benjamin, pensador e crítico marxista, por mais que pouco ortodoxo, pensa as relações de memória à luz de Freud, mas incluídas na lógica da luta de classes. As reflexões dele se enquadram na análise de como permitir ao público uma memória das classes inferiores, não só as dos dominantes. A intenção de colocar em pauta essas memórias era a de possibilitar novas interpretações da história, fugindo do domí- nio de alguma hegemonia. Para Benjamin, a dificuldade de se executar essa intenção está no fato de que a memória individual, privilegiada até o século XIX, tem um só narrador e, então, criar um acordo sobre ela é fácil, já a memória coletiva tem muito mais narradores, e criar um discurso que seja satisfatório a todos ou pelo menos para a maioria seria muito difí- cil. Benjamin queria, essencialmente, como é comum aos marxistas, dar espaço público aos silenciados. – 41 – Memória e Patrimônio Cultural Na década de 1940, o escritor alemão W. G. Sebald tratou, sem usar o termo em si, da memória envergonhada. Segundo ele, havia uma falha grave na literatura alemã pós-guerra por não tratar do sofrimento alemão durante a Segunda Guerra Mundial. Para ele, os alemães foram estigma- tizados de um modo totalizante pelo sofrimento judeu, como se todos os alemães fossem os responsáveis, e, após o fim do governo nazista e a liber- tação dos judeus sobreviventes do Holocausto, os alemães que também sofreram com destruições massivas em suas cidades por conta dos bom- bardeios ingleses, não trataram suas próprias memórias. Ele aponta para os temas tratados na literatura alemã da geração de 45 em diante e aponta para a ausência dos temas sobre o horror da guerra para os próprios ale- mães, porque estes estariam estigmatizados e envergonhados pelo estigma que receberam como responsáveis pelos horrores do Holocausto. Paul Ricoeur, filósofo e pensador francês, também do pós-guerra, trata das mudanças profundas impostas aos indivíduos que viveram o trauma da guerra em diferença com os que não participaram. Para ele, o homem que passou pelo combate bélico da guerra ou o que sofreu nos campos de concentração têm traumas que não permitem que se lembrem de si mesmos da mesma maneira que as pessoas que não passaram por essas situações. Para Ricouer, quem passou por uma situação que aproxima a pessoa da morte, lembra de si com mais importância à manutenção da própria vida do que aquele que não passou por situações de risco iminente de morte. Com isso, o autor coloca no plano político o que deve ou não ser lembrado do ponto de vista dos horrores ou dos acontecimentos traumá- ticos. É cunhado, então, o termo da justa memória, que é a medida exata com a qual um assunto deve ser tratado ou não do ponto de vista político/ público. Um exemplo é que a França primeiramente negou que, durante o domínio nazista, no governo Vichy, estregou muitas crianças judias aos militares alemães. Hoje, reconhece o feito e tem eventos para lembrar no intuito de se desculpar com a população que se sente afetada com isso, colocando o assunto em âmbito público na medida correta para poder se desculpar pelo feito, mas sem estigmatizar ou desmerecer os afetados. Na mesma temática, Michael Pollak, sociólogo e historiador austrí- aco, na década de 1980, trata do tema da memória da Segunda Guerra Mundial, mas do ponto de vista dos sobreviventes do Holocausto. Para Memória e Patrimônio Histórico-Cultural – 42 – ele, ao retornar para a Alemanha e para a Áustria, por mais que tenham sofrido nestes mesmos territórios, os judeus não receberam a atenção que talvez precisassem para tratar suas memórias traumáticas. Unindo as duas ideias, a de Pollak e a de Sebald, podemos perceber dois grupos distin- tos e fechados em si: os alemães estigmatizados e envergonhados pela alcunha generalista de nazistas, que se ocuparam em reconstruir as cida- des destruídas pelos ataques aéreos; e os judeus sobreviventes que, ao retornar, não receberam a atenção para tratar seus traumas e foram obri- gados a se inserir na dinâmica de reconstrução das cidades para que se incluíssem como parte da sociedade novamente. Pollak também salienta a importância da memória, das experiências compartilhadas e das sensações de pertencimento comuns entre os indivíduos que, através dos conteúdos registrados na memória e evocados para a geração de empatia, formavam grupos sociais. O termo das memórias subterrâneas é criado por ele para considerar os saberes e as trajetórias silenciadas, mas que nunca são apa- gadas e apenas esperam o momento de retornar ao público em momento oportuno, porque, no caso da Segunda Guerra Mundial, os judeus sobrevi- ventes não terem tratado suas memórias corretamente ao voltar à Alema- nha certamente lhes gerou um mal-estar individual, no grupo étnico judeu e na sociedade de uma forma geral, pela tragédia do Holocausto e a não consideração do tema como se deveria. 2.4 Temas contemporâneos em memória Na atualidade, há temas ainda tratados pelos estudiosos da memó- ria, alguns bastante antigos, outros mais contemporâneos. A formação das identidades ainda está muito em pauta, mas agora considerando o mundo globalizado. Como se criam as identidades individuais e de grupo em um mundo que tem acesso às
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