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Instituto Real dos Meninos Cegos de Paris

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•.rapE t x ^ s S5^S><L Ji’S
?^R/Sé U • y *4^4M ) '
0 - ^ ^ m ’ ^A. /f Nrf^ l
MENINOS CEGOS DE PARIS
o instituto
D O S
SUA HISTORIA, E SEU METHODO DE ENSINO
POR
J . G U A D E V
TRADUZIDO POR
X a t u r a l «Io n i o «Io J n n o i r o c e x -n lu in i io do 
m e s m o I n s t i t u t o .
KIO DE JANEIRO
IY P O G R A P H U DE V. DE 1’AULA RJUTO 
Praça da ConslituiçJo n. 64.
1851.
' M W 's s 'i ftß-
S~v> < í í
í $
t A MEU PREZADO PAI ±
O SENHOR
MANOEL ALVARES DE AZEVEDO
Meu caro P a i. $
c*f>
O ffereeendo-vos este opusculo, que traduzi do írancez, nada mais 4* 
faço do que cumprir um dev^r de reconhecim ento. Com cfTeito; eu S 
era, por minha posição, destinado a viver desgraçadamoute em uma ob 
ignorância profunda,sem algum conhecim ento dos deveres impostos 4* 
a todos neste mundo, e que cada um deve desempenhar segundo ^ 
sua posição ; eu não teria conhecido esses gozos moraes, que ^ 
tantas vezes consolam o homem opprimido sob o peso de seus in - cb 
fortu n ios; em uma palavra, eu teria vivido a vida do bruto, teiia 4> 
passado inapercebido nesta terra, como um grão dc areia impclHdo 
peto venlo ; cm íim , poderá ser o ludibrio dc todo o desapiedado, 
que quizesse enganar-m e, c cm tão triste estado arrastaria a e x is - c /5 
tencia a mais insípida, que se possa imaginar. Vós com prehendes- 4> 
te - l’o bem ! Assim que, depois de haver tudo tentado para me ®p 
fazer recobrar o inapreciável sentido, dc que Dcos me privou, ^ 
vendo a inutilidade dos esforços c dos recursos da sciencia m e- 
dica, vós me enviastes á França para adquirir toda a inslrucção 4> 
compatível com a minha cegueira. Nem a saudade que vos devia ^ 
causar, e á minha extremosa mãi, a minha longa ausência, nem o $ 
graúdo sacrifício pecuniário, que vos foi preciso fazer, nada vos 4> 
desanim ou, nada vos fez recuar ! Agora, de volta da França, não 4> 
é justo que vos pague o devido tributo dc gratidão ? 4»
Se tenho alguma instrucçào; se posso ser util para alguma cous3, 
a vós o devo; se tenho alguns prazeres, so não passo uma vida ^ 
m onolona, se (para m e exprimir em breves termos) acho-m c r c s li- oh 
tuido á sociedade, de que a natureza como que me exclu ira, se 4> 
ainda me é dado conseguir alguma gloria : tudo isto é a vós que o T 
devo! É pois de razão que esta pequena obra, a primeira que sahc 2 
debaixo do meu nom e, vos seja dedicada. Acceitai por tanto esla 
oflcrla, meu caro P ai, não seguram ente porque corresponda a todos 4» 
os benefícios, de que vos sou devedor, senão como um penhor dos 4* 
sentim entos de meu coração : elle so espande con» a lisongeira J 
lembrança de que vosso amor paternal experimentará uma doce cb 
emoção vendo a primeira obra sabida desta penna, que s^m vós 4> 
nada teria escrip lo . *T
Recebei lam bem , com este livro, a segurança dc meu profunde T 
e eterno reconhecim ento, porque eu me lembrarei toda a minha ^ 
vida, que sem vós eu não teria sido nada, e que é por vós s ó , ©b 
depois dc Deos, que eu posso ser alguma cousa neste mundo.
Vosso Fjliio R e speito so e^Ocediente, ^ 
c / 'tS ^ e v e c /a .
S-w -m 8 g i i i í f m w m w w
I?Q 392VQI1(!) Q Q T O A D ID Íi if ib l i t
A cegueira já quasi nüo é uma desgraça. 
Palavras do Sr . D. P edro II ao T raductor.
Ninguém, cuido eu, duvidará da utilidade desta pequena 
obra, que traduzi do franccz. É ella de um gênero intei­
ramente novo: descreve a historia da educacão dos cégos. 
Nunca a antiguidade dellcs se occupou. De feito, durante 
uma longa serie de séculos, nada se tentou para melhorar 
sua sorte. Não só se esqueceram delles; ainda se fez m ais: 
mallrataram-n’os.
Lancemos as vistas para uma das potências mais celebres 
da antiguidade, e vejamos qual era ahi a sorte dos cégos, 
e dos surdos-mudos.
Porém (talvez se nos pergunte) de que potência imos 
fallar? Buscaremos o exemplo de algum povo barbaro ? 
Dos Scyihas, dos Godos, ou dos Sarmatas ? N ã o v a m o s 
fallar da Grécia ; do paiz das sciencias, das artes, da indus­
tria, do commercio; do paiz o mais civilisado das remotas 
eras, c em que o povo era tido em conta de muito humano.
Dirijamo-nos para Sparlha; abramos um seu livro ce­
lebre : o codigo de Licurgo. Que lemos ncllc ? Qual era 
a legislação dessa rival de Alhenas ? — Que lodos os que, por 
algum defeito, não podiam ser tileis d palria, fossem, apenas nas­
cidos, afogados no Eurotasso.
IV
Em llqma, a barbaridade chegou a lai auge, que Romulo 
vio-sc obrigado a promulgar uma lei que prohibia aos pais 
matar seus filhos, permiltindo-lhes comludo esta crueldade 
quando estes fossem aleijados.
Entretanto, se os homens não empregavam suas vistas 
para estas duas classes de desgraçados senão para despre- 
zal-os c opprimil-os, Deos não os abandonava. Dcos quiz 
que o livro por clle inspirado fosse o primeiro cm que se 
enxergasse uma palavra favoravel aos cégos c aos]surdos- 
ímulos. Foi por isso que, dezeseis séculos antes da era 
chrislã, cm uma época cm que todos os povos estavam 
ainda envoltos na mais densa barbaridade; foi por isso (ia 
dizendo) que clle assim se exprimia pela boca de Moysés : 
« Não maldigas o surdo, nem empeças os passos do cego. » Estas 
palavras, pronunciadas quando lodo o universo eslava ainda 
bem longe de aquilatar a força de sua unção, faziam já pre- 
sculir o principio de caridade que devia ser o caracter da 
lei divina. É este o principio, desenvolvido pelo christia- 
nisino, que inspirou ao grande liei S. Luiz a idéa de fundar 
o hospício dos Q uinzê-V in tjls; é este o principio que depois 
inspirou a Yalcnlim Ilauy a idéa da Instituição.
O fim de S. Luiz, fundando os Quinze- Vingls. foi o de dar 
um asylo a trezentos de seus guerreiros, a quem os Sarra­
cenos tinham arrancado os clhos; não era, pois, senão um 
hospicio. Nada tinha sido ainda tentado para a inslrucção 
dos cégos, e Yalcnlim ilauy foi o primeiro que para ellcs 
estabeleceu um syslema de ensino; a clle incontestavel­
mente coube esta gloria.
Alguns dos grandes homens, de que se honra a humani­
dade, tinham comludo iliuslrado a classe dos cégos. A tra- 
dicção quer que Homero tivesse perdido avista. No terceiro 
século da nossa era, Didimo, ainda que eégo, adquirio co­
nhecimentos cxlensissimos, ensinou theologia cm Alexan­
dria, c foi o luminar da igreja cgypcia. Foi o mestre de 
muitos dos grandes padres da igreja, c morreu em idade 
muito avançada. Camões e Milton foram também privados
V
da luz no fim da sua vida. Emfim, no decimo oitavo século 
o cégo Sounderson foi uma das celebridades malbcmaticas 
da Inglaterra, sem mencionarmos grande numero de outros 
cégos que se distinguiram em diversos generos.
Mr. Guadet, autor desta obra, começa tratando uma ques­
tão, muitas vezes discutida, mas nunca resolvida: quem 
foi mais mal aquinhoado pela natureza ? o cégo ou o surdo- 
mudo? A desgraça c igual sem duvida, porque, (como me 
escrevia um surdo-mudo, fallando do céo) se este me cortou 
a voz, roubou-te a vista. Mr. Guadel prova esta igualdade es­
tabelecida pela Providencia, opinando que sc os surdos- 
mudos são mais felizes que nós quanto ás faculdades phy- 
sicas, ficam muito áquem quanto ás faculdades moraes.
« Um, diz elle, cortará o nó gordio, á m aneira de A lexandre ; 
« outro, como QEdipo, domará o spltuigc, explicando o enigma. » 
Elle prova que a educação 6 dc direito devida aos cégos. 
« Se a educação, sc exprime elle, é para todos de direito natural, 
« cila é para os cegos de direito divino. » E de feito ; pensc-sc 
no numero infinito de cégos que vivem, ou antes vegetam 
na mais profunda miséria, na ignorância a mais crassa, c 
que sc tem dado aos vicios os mais reprehensiveis c noci­
vos ; observe-se como a educação podéra, ministrando-lhes 
meios de ganhar honeslamcntc a vida, evitaresses horro­
res ; e ninguém ahi haverá que conteste a utilidade, mesmo 
a necessidade de propagar e estender por todo o universo 
o systema de ensino que lhes é proprio.
Ainda que os cégos nasçam geralmente entre as classes po­
bres, muitos ha no estado medio dc fortuna, c mesmo no da 
riqueza, e é por isso que sua educação deve de necessidade 
ser dividida em tres ram os: intellectual, musical e indus­
trial. O primeiro é destinado a cultivar uma intclligcncia 
por ventura brilhante, a que quasi sempre a ignorância em­
pece o desenvolvimento, e que, vivificada pela sciencia, 
produz muitas vezes bellczas admiráveis. O segundo, além 
de proporcionar uma distracção aos que pertencem ás 
classes abastadas da sociedade, c um meio dc existência
VI
para os menos favorecidos da sorte. O terceiro é essen- 
cialmcnte um meio dc vida para aquelles a quem a natureza 
negou ouvido, ou vocação musical. Em regra devem todos 
cultivar a educação intellectual; não é comtudo indispen­
sável que os que se dedicam á industria profundem o en­
sino scientifico; até porque, salvas exccpções, os que se 
occupam simultaneamente dos dous ramos, em nenhum fica 
perito c habilitado. É facto ensinado pela expericncia. Na 
Instituição de Paris estuda-se bem, nos quatro primeiros 
annos, a inclinação dos alumnos, c só depois o applicam ao 
ram o, porque mostrou gosto e geito. Com os destinados á 
musica são comtudo menos severos, porque os cegos tem 
cm geral muito menos indisposição para cila do que para 
os trabalhos m anuàes; quanto a estes, os alumnos tem toda 
a liberdade na escolha. Em uma Instituição dc cegos não 
são admissíveis officios de mero luxo, e que não prestem 
alguma utilidade. Com quanto não seja impossível o ensino 
das linguas é pelo menos muito difficil; porque as letras 
empregadas pelos cegos occupam muito mais lugar do que 
as do alphabeto com mum ; um volume ordinário fórma, 
pouco mais ou menos, cinco dos nossos. Vê-se, pois, que ex­
tensão exigiria um diccionario. Penso entretanto que cm 
uma Iustituição fòra conveniente o ensino da liugua fran- 
ceza, além da nacional, por muito espalhada e de evidente 
interesse.
É também pelo muito lugar que occupam as letras do 
alphabeto dos cegos, que as obras, de que nos servimos 
para estudar, devem ser muito resumidas. Para adquirir co­
nhecimentos mais extensos, é preciso seguir o systema ado- 
ptado na Instituição de Paris; todos os dias ha uma meia 
hora de leitura para os alumnos. 11a cinco divisões de le i­
tura que correspondem ás cinco classes d iarias; na primeira 
lê-se a historia sagrada e obras apropriadas ás idades dos 
meninos; na segunda a historia geral da antiguidade ; na 
terceira a historia rom ana; na quarta a historia da F rança; 
e na ultima um curso de lilleralura, tirado de diversos au-
VII
lores, como de Laharpe, Villcmain, Baranle, etc., etc. Esta 
ullima é feita pelo instituidor Mr. Guadet.
É innegavel a utilidade destas leituras que contribuem 
mais que muito para a iustrucção dos cégos.
Para que os destinados ao ramo industrial não sejam pri­
vados de noções geraes de historia c das sciencias, faz-se- 
lhes todos os dias, durante uma hora, uma leitura de bons 
autores francezcs e estrangeiros. Para não perturbal-os em 
seus trabalhos, esta leitura tem lugar á noite, das oito ás 
nove horas.
Eis o que se pratica na Instituição de Paris, e o que 
deve praticar-se em todo o estabelecimento bem dirigido. 
Insisti sobre as leituras, conscio, por experiencia própria, 
de sua muita importância (1).
E haverá quem pretenda que senão deve estabelecer cm 
todos os paizes instituições para cégos? Ninguém ousará 
sustcnlal-o. Por este meio dão-se á sociedade braços c 
talentos, de que ella estaria privada, braços, e talentos que 
pòdern servil-a e illustral-a. Para prova desta verdade, 
lancemos as vistas sobre a França. Uns, como Mrs. Moncou- 
teau e Gaulhier, são conhecidos por músicos c compositores, 
outro (Ur. Montale), adquire medalhas nas exposições na- 
cionaes pela boa composição de seus pianos, um outro, Mr. 
Foucault, aperfeiçoa o systema peculiar de escripta, inventa 
novas machinas, c, além dos louvores de seus companheiros 
reconhecidos, recebe de juizes imparciacs diflerentes me­
dalhas como recompensa de seu genio» Cincoenta bancos 
de orgão são occupados por organistas cégos sabidos da 
Instituição. Um outro cégo, Mr. Alex. Itodcmbach, educado 
também na Instituição de Paris, publicou um grande nu­
mero de obras, e é, desde muito tempo, representante de 
seu município na camara dos deputados da Bélgica. Emfim 
um grande numero de obreiros cégos, como torneiros, ta-
(I) O traduetor entrou para a Instituição em 1814, com iO annos de 
idade, e sahio cm 1850, contando 16.
VIII
pccciros, marceneiros, etc., etc., ganham hoje sua vida de 
uma maneira honesta e pacifica. Depois deste quadro, aliás 
toscamente desenhado, que governo não invejará a gloria 
de fundar um semelhante estabelecimento ? Quanto a nós, 
devemos esperar tudo do grande Imperador, que felizmente 
nos rege, e dos iliustrados conselheiros da sua co ròa; nós 
conhecemos bem de perto sua bondade para duvidar um 
só momento de que clle deixe de acolher com entliusiasmo, 
e de dar sua alta e munificente protecção a um projecto 
que a nada menos tende do que a restituir, por assim dizer, 
á existência, uma grande porção de seus súbditos.
IÜo de Janeiro, 20 de maio de 1851.
O Traductor.
M E N I N O S C E G O S
H I S T O R I A .
Aquelles a quem a nalurcza recusou ou a sensibi­
lidade do tacto, ou a percepção do gosto, ou o sen­
tido do olfato, ficam de certo privados de algumas 
idéas, de algumas sensações; mas não deixam por 
isso de gozar da vida coramum aos outros homens, 
e apenas, quando muito, podem reputar-se menos 
favorecidos da providencia em relação a outros a 
quem ella tratou mais liberalmente. Não acontece o 
mesmo com o cógo, e o surdo-mudo, por isso que 
os sentidos da vista, c do ouvido, representam na 
organisação humana um papel muito mais interes­
sante que os outros sentidos.
Mais de uma vez se tem agitado uma alta questão 
de philosophia moral, que se apresenta muito natu- 
ralmenle ao espirito dos pensadores. Qual dos dous 
é mais infeliz, océgo, ou o surdo-mudo? Os senhores 
Alex Rodenbach, e F. Berlhier, um cégo, e o outro
1
- 2 -
surdo-mudo, sustentaram a este respeito theses 
conlradictorias: o primeiro náo hesitou em pronun­
ciar-se a favor dos cégos, e com isso não apresentou 
senão uma opinião commum a todos os seus com­
panheiros de infortúnio: o segundo, intérprete fiel 
dos surdos-mudos, não vacillou em collocar o 
surdo-mudo acima do cégo. Esta discussão provou 
sómente duas cousas: primo que a educação póde 
fazer tanto dos cégos, como dos surdos-mudos, ho­
mens de verdadeiro mérito; secundo que a Provi­
dencia ao lado da desgraça collocou a consolação.
É preciso porém dizermos que nem os cégos, 
nem os surdos-mudos estão convenientemente habi­
litados para decidir semelhante questão, que apre­
senta evidenlemenle duas faces. Póde o cégo cal­
cular toda a extensão do que perde não vendo? Não 
podemos por certo julgar daquillo que náo conhe­
cemos. Póde o surdo-mudo dar toda a importância 
ás vantagens da palavra? Por sem duvida que elle 
não as póde apreciar. Além disto nos parece impos­
sível que o cégo não dê ao ouvido, e o surdo-mudo 
á vista mais importância do que estes dous sentidos 
tem no estado normal, pelo simples facto que num 
o ouvido, e no outro a vista suppre tanto quanto é 
possível o sentido que lhes falta.
O surdo-mudo tem por certo uma vantagem in­
contestável sobre o cégo pelo que diz respeito ás 
faculdades physicas, o cégo porém é muito superior 
ao surdo-mudo no que toca ás faculdades intelle- 
ctuaes; esta é a lei que nos parece ter estabelecido a 
natureza. Examinemos os arrazoados dos senhores— 3 —
ltodenbach e Berliner, e veremos que o primeiro 
falia da intelligencia, e o segundo das faculdades 
physicas. Pois bem; todos dous tem razão encarando 
a questão a seu modo, e errariam por consequência 
se a encarassem pelo lado opposto. llodenbach nos 
apresenta o lado intellectual; Berliner, o advogado 
dos surdos-mudos, o lado material. A questão por 
tanto nos parece resolvida.
É mais que yerdade, que a ausência do sentido 
que a natureza recusou ao cégo deixa um vasio im- 
menso no seu ser physico; condemnado a uma triste 
inacção, elle soffre, definha, e não adquire as mais 
das vezes senão um desenvolvimento incompleto; 
não é mesmo raro que, victima de alguma dessas 
enfermidades, que mortificam o homem e gastam 
insensivelmente a vida, não possa chegar á idade 
adulta. No mundo material que o cerca, o cégo não 
se dirige senão ao acaso, e perde-se, se uma mão 
compassiva não vier em seu soccorro; deste mundo 
elle só conhece osobjectos sobre que póde facil­
mente levar a mão; um grande numero destes es­
capa por certo ao seu conhecimento, já pelo seu 
volume, já pela distancia em que estão collocados: 
elle saberá por exemplo o que é uma pedra, uma 
fructa, um passaro; não póde porém ter uma idéa 
completa de um rochedo, de uma arvore, de um 
elephante; não póde fazer idéa do aspecto de um 
edifício, de uma paisagem, do firmamento; além 
disto, desses objectos, que elle apalpa, o cégo 
conhece a forma, o volume, mas ignora a còr, por 
isso que, apezar de tudo o que se tem dito em con-
— 4 —
Irario, o lacto não póde fazer apreciar as còres: 
finalmentc, é sempre de uma maneira imperfeita 
que o cógo conhece todos aquelles objeclos que 
pódem chegar ao seu conhecimento.
Se encararmos a questão pelo lado iulellectual, 
pondo de parle algumas idéas, que o cógo não póde 
adquirir, algumas noções que não póde ler, elle está 
quasi nas mesmas condições que o geral dos ho­
mens. O cógo adquire, cominais facilidade que nós, 
as idéas simplices ou complexas, que o lacto, o 
gosto, c o olfato podem Iransmittir ao seu espirito. 
Finalmenle, gozando do ouvido e da palavra, esses 
dous preciosos instrumentos da inlelligencia, estão 
constanlemente cm relação com o mundo moral, e 
a conversação, fonte inesgotável de conhecimentos 
de toda a especie, a conversação de que os cégos 
nunca se fartam, não tem para estes nenhum mys- 
lerio. Debaixo deste ponto de vista o surdo-mudo 
fica muito áqucm.
Poderiamos por tanto resumir a questão da ma­
neira seguinte: o cógo e o surdo-mudo, não illustra- 
dos, são como estrangeiros, o primeiro no mundo 
physico, o segundo no mundo moral. O surdo- 
mudo diante das difficuldades maleriaes, ven- 
cel-as-ha muito melhor do que o cógo; diante porém 
das difficuldades moraes o cógo será muito mais 
feliz do que o surdo-mudo. Um, qual outro Alexan­
dre cortará o nó gordio; o outro, verdadeiro OEdypo 
domará o Sphinge explicando o enygma. Parece- 
nos que esta diflerença radical entre os cégos e os 
surdos-mudos mostra quanto é infeliz a idéa de
- 5 —
querer reunir estas duas classes em uma mesma 
instituição. Pois quel Será por meio da palavra, 
estranha ao surdo-mudo, que instruireis o cégo? 
Será por meio de signaes, que o cégo não compre- 
hende, que instruireis o surdo-mudo? Ao cégo ensi­
nareis a musica, essa arte feita exclusivamenle para 
o ouvido; ao surdo-mudo o desenho, a pintura, 
que faliam exclusivamenle aos olhos, e apezar disso 
abrireis uma escola commum, dareis os mesmos 
professores aos cégos e aos surdos-mudos? Podereis 
educar conjunclamente meninos que não podem 
comprehender-se, entre quem não existe nenhum 
meio de communicação, que não podem ter os 
mesmos divertimentos, os mesmos exercícios, a 
mesma linguagem, que não podem Gnalmente viver 
a mesma Yida, quer physica, quer intellectual? 
Combinações taes seriam sempre deploráveis. Col- 
locai os cégos e surdos-mudos no meio de homens 
providos de lodos os sentidos, e ahi tanto uns como 
outros encontrarão Iodas as doçuras, todos os soc- 
corros de uma tal sociedade. Reunir porém os 
surdos-mudos e os cégos, seria roubar a ambos a 
unica consolação que podem ter, isto é, a vida no 
meio de homens, que os comprehendam, com 
quem elles possam relacionar-se; seria ao mesmo 
tempo falta de senso e barbaridade. Dir-se-ha que o 
mundo poderá vir a ser o olho do cégo, e o cégo o 
ouvido do surdo? Seria engenhoso, mas é falso, 
porque nem tal olho poderá transmittir o que vir, 
nem um tal ouvido poderá fazer comprehender o 
que ouvir.
— 6 —
Separemos por tanto océgo do surdo-mudo. Dei­
xemos aos homens de saber, que de coração se con­
sagram ao ensino dos surdos-mudos, o cuidado 
exclusivo de iniciar na vida intellectual essas almas 
embrutecidas; consagremos nosso tempo e nossos 
meios á missão mais simples e mais modesta de 
applicar ao ensino dos cégos os processos especiaes 
creados a favor delles.
De ba muito pensamos que essa semi-Iuz intelle­
ctual, que é partilha do cégo ainda não illustrado, 
deve muitas Yezes causar-lhe soffrimentos moraes, 
e que esse pouco, que elle conhece, servirá apenas 
para fazel-o sentir tudo quanto ignora. O mudo 
póde não ter consciência de sua inferioridade; 
quem sabe mesmo se por causa de sua grande 
dextreza mimica não se julga superior a nós outros? 
Além disto, que peso podem elles dar ao movimento 
de nossos lábios que apenas notam quando falía­
mos? Não está no mesmo caso o cégo; este mede 
a cada instante com pezar a distancia immensa que 
o separa daquclle que vè; elle tem mil occasiões de 
avalial-a; a cada instante ouve junto de si expres­
sões de piedade, por certo bem importunas.
Parece-nos ainda que desta differença deve neces­
sariamente resultar uma outra. O surdo-mudo não 
deve de certo querer adquirir conhecimentos, cuja 
existência não póde mesmo suspeitar; entretanto 
que o cégo arde ordinariamente no desejo de alar­
gar o circulo daquelles que ja possue. O cégo cons­
tantemente limando e polindo sua intelligencia com a 
dos outros homens, como diz Montaigne, na escu­
7 —
ridão das trevas láo favoravel á meditação, experi­
menta um desejo insaciável de aprender; ó uma 
febre que o devora, e uma febre nós vemos muitas 
vezes produzir eífeitos verdadeiramente extraordi­
nários. Um pobre menino bretão ouviu dizer que 
em Paris havia uma escola para os cégos. Deixa logo 
suafamilia, seu paiz natal, e com uma rabeca na 
mão, tendo por guia um outro menino, chega de­
pois de muitas difficuldades, que sua linguagem 
pouco conhecida tornava ainda maiores, á porta do 
nosso Instituto. Mas, ai delle! Sua idade não per- 
milte que lhe abramos nossas portas. Todavia elle 
encontra de um lado alguns professores caridosos 
da Instituição, que lhe ensinam as sciencias e a 
musica; de outro lado almas bemfazejas, que com- 
movendo-se de tanta coragem e constância, lhe 
abrem um asylo, onde em paga de tantos trabalhos 
elle gozada vida material. Consagrando todos os 
dias algumas horas para o estudo, como seu cora­
ção trasborda de alegria! Tres annos tem decorri­
do desde então; e o pobre cégo ainda não sentiu 
um só dia esfriar sua resolução.
No cégo a faculdade de aprender cslã em relação 
com o desejo de saber; ao lado da necessidade a 
Providencia collocou os meios de salisfazel-a. Os 
cégos ouvem mais, e melhor do que nós, por isso 
que são menos dislrahidos pelos objectos exteriores; 
reflectem mais, meditam mais, por isso que vivem 
mais comsigo mesmo; tem mais memória, porque 
são obrigados a confiar a esta faculdade maior 
numero de idéas, que nós, que temos o recurso
— 8 -
dos signaes proprios para despertal-as. Resulta de 
ludo isto, que os cégos adquirem uma razão mais 
precoce, sentem mais depressa as vantagens do tra­
balho, e a ellc se entregam de melhor vontade; em­
pregam nos seus estudos um raciocinio bem for­
mado,e seus progressos são muito mais rápidos. 
Elles tem, ó verdade, uma faculdade de menos que 
nós, mas os outros sentidos se aperfeiçoam na razão 
dos serviços que prestam quando chamados para 
supprirem o que falta. 0 tacto e o ouvido principal­
mente adquirem uma sensibilidade tal, que com 
difficuldade poderemos apreciar.
Finalmcnle, se é de direito natural que todos os 
seres tenham certo gráu do instrueçáo, da qual se 
não deve privar nenhum menino, seria um aclo 
barbaro que se estabelecesse uma excepçáo só para 
o cégo; por quanto, se para qualquer outro a ins- 
trucção é de direito natural, para o cégo é de direito 
divino, porque ella é qual raio consolador mandado 
do céu até seu espirito.
Honra pois a Yalenlim Haüy, que primeiro leve 
a idéa de abrir uma escola para os cógosl Honra a 
Valcnlim Haüy, que consagrou sua fortuna, e sua 
vida para essa obraadrairavell Honra aValentim 
Haüy, que, resenlido da ingratidão desuapatria, 
foi ao estrangeiro despertar os espiritos adorme­
cidos, e consolar os desgraçados!
— 9 —
CAPITULO rilIMEIRO.
ORIG EM E ESTADO PR IM IT IV O DO IN ST IT U T O .
Valenlim Haüy conta de uma maneira simples e 
bem triste como concebeu a idéa do estabelecimento 
de uma escola nacional para os cegos (1). «Um facto 
novo e bem singular, diz Valenlim llaüy, no fim do 
anno de 178G ou principios de 1787, attrahiu lia 
alguns annos uma multidão de povo d entrada de 
um dos cafés dos passeios públicos, onde a melhor 
gente costuma ir á tarde descançar um pouco das 
fadigas do dia. Oito a dez pobres cégos, trazendo 
todos oculos, postados diante de uma estante cheia 
de musica tocavam uma symphonia desafinada, 
que parecia excitar o riso dos circumslanlcs...Um 
sentimento bem differente se apoderou de nossa 
alma, e concebemos logo a possibilidade de realisar 
com vantagem para esses infelizes os meios dos 
quaes elles se serviam apparentemcnle, e de uma 
maneira tão ridícula. Então dicemos comnosco 
mesmo. Não conhece o cégo os objectos pela diver­
sidade de suas fôrmas? For ventura engana-se clle 
quanto ao valor dc uma moeda? Porque não distin­
to Nús escrevemos a lusloria do Instituto dos cegos, o não a biograpliia 
de Valenlim Haüy. Desta trata M. Dufau com todo o cuidado, e para clle 
enviamos nossos leitores.
2
— 10 —
guiria olle um dó dc um sol, um a de um f , se po- 
dessc apalpar estes caracteres (1)?»
Eis por tanto achada a base fundamental para o 
ensino dos cégos. 0 que fazemos cornos olhos, clles 
deviam fazel-o com o tacto; seus dedos finalmente 
deviam prestar-lhes as mesmas vantagens que nos 
prestam os nossos olhos.
Não estava porém ainda tudo feito. Iiaüy tinha 
apenas concebido a idéa geral. Mas a Providencia, 
como querendo testemunhar a Iiaüy sua adhcsão a 
tão nobres sentimentos, conduziu a Paris em 1784. 
uma menina allemãa, que, bem que cóga desde a 
idade de dous annos, tinha recebido muita instruc- 
ção, c era também excellenle musica. Mlle. Pa- 
radis, tal era seu nome, tinha tido por mestre ura 
cégo como cila chamado Weisscmbourg, que priva­
do da vista na idade de sete annos tinha com tudo 
adquirido conhecimentos variados. Já não era por 
tanto uma illusão ; os cégos podiam receber uma 
educação liberal; podiam, por assim dizer, ser resti­
tuídos á sociedade.
Iiaüy proseguiu no seu intento; meditou sobre os 
meios empregados por alguns cégos para instruir-sc. 
Saundcrson linha composto uma machina de cal­
culo; era uma laboa dividida em pequenos quadra­
dos collocados horisontalmente c em distancias
(I) Iiaüy Précis liist. <lc 1'Inst. des Enf. av. p. 119 no livro intitulado— 
Ensaio sobre a educação dos cégos. A esta pequena obra devo eu muitos 
detalhes, bem como ao livro dc M. Galliod, discípulo dc Iiaüy, impresso em 
rclovo com o titulo dc— Noticia histórica sobre o estabelecimento dos me­
ninos cégos.
— 11
iguaes, cada quadrado linha nove fusos, e era pelas 
difierentes posições dc cavilhas collocadas nesses 
fusos que ellc exprimia Ioda a especie de numero; 
esta machina servia igualmente para a geometria 
por meio de fios, que passados á roda das cavilhas, 
representavam ao tacto as figuras que as linhas tra­
çadas a lapis ou á tinta representam á nossa vista. 
O cégo du Puysseaux tinha ensinado a lèr a seu filho 
cora caracteres .moveis em relevo.— MUe.deSali- 
gnac fazia também uso dos mesmos caracteres. 
Lamouroux também os empregava, mas só para a 
musica. — Wcissembourg tinha-se habituado tanto 
com os caracteres em relevo, que elle mesmo os 
traçara com uma penna; tinha aprendido a geogra- 
phia em mappas ordinários divididos por fios guar­
necidos de pedrinhas de vidro de difierentes gros­
suras para indicar as diversas ordens de cidades e 
cobertas de arèa gelada de difierentes maneiras para 
distinguir os mares, comarcas, províncias, etc. Weis- 
sembourg calculava sobre uma taboa pequena quasi 
como a de Saunderson. Mademoiscllc Paradis final­
mente tinha aprendido a soletrar com letras de pa­
pelão, e a lèr phrases feitas com a ponta dc um alfi­
nete cm papelão fino. Tinha uma pequena prensa c 
caracteres moveis com os quaes imprimia cm papel 
phrases, que compunha á maneira dos impressores, 
c entretinha por este modo correspondência com 
seus amigos. Haüy mandou construir algumas ma- 
chinas, poz cm pratica alguns dos processos de que 
acabámos de fallar para melhor poder formar um 
juizo sobre elles; depois tendo sempre cm vista ser
— 12 —
util a esta classe de infelizes que, privados de vista e 
de fortuna, não tinham senão o penoso e triste re­
curso de mendigar, imaginou um plano rjeral de ins­
tituição para os meninos cégos, ajuntando ás desco­
bertas, de que já fallámos, outras que lhe eram 
próprias (1).
A lheoria estava pois assentada; as theorias po­
rém enganam muitas vezes, e Haüy sabia-o tão bem 
que quiz ensaiara sua antes deapplical-a em grande 
escala. O acaso fez com que elleachasseum homem, 
que o céo parecia tcr-lhc enviado. François Le 
Sueur, cégo seis semanas depois de nascer, era de 
familia pobre; era bem criança quando começou a 
conhecer quanto era pesado a seus pais, e tinha to­
mado o partido que lhe restava para alliviar o peso 
de sua miséria: elle esmolava á porta de uma das 
nossas igrejas, e assim esteve até a idade de dezeseis 
annos.
Haüy logo que o vio inspirou-lhe a esperança de 
melhor sorte, e umnobreenlhusiasmoparao estudo. 
Lc Sueur dividio o dia em duas partes; uma consa­
grada a prover sua existência, e a outra aos exerci­
dos intellectuaes, que foram coroados de promptos 
resultados (2).
Haüy leu immediatamcnte em uma sociedade 
acadêmica uma memória sobre a educação dos có- 
gos, e mostrou, cm apoio do que lia, os resultados
(1) IJaiiy, Essai sur 1’Educ. des aveugles. Avant. propos. p. V et VI.
(2) Assim conta Haüy, mas Gailliod assegura que o mestre pagava mui­
tas vezes ao discípulo para poder dispor de todo o tempo que lhe fosse
preciso.
— 13 -
que tinha obtido com o moço Le Sueur. O presidente 
da sociedade, o celebre intendente de policia Lenoir 
ficou surprehendido não só da memória como dos 
conhecimentos do cégo, communicou logo suas im­
pressões aos ministros, e o Conde de Vergennes, o 
Barão de Breteuil, e os Senhores de Calonne, e do 
Miromesnil quizeram também assistir aos exercícios 
de Le Sueur; todos á porfia procuraram animal-o 
com generosas gratificações (1).
Dous grandes passos estavam dados: a cxperiencia 
se tinha pronunciado, e a altenção publica se tinha 
despertado. A Sociedade Philanlropica (e este titulo 
não era então immerecido), que dava a doze meni­
nos cégos uma pensão mensal de doze libras, con­
fiou-os aos cuidados de Ilaüy; ella pagou mesmo 
quem conduzisse muitos desses meninos de casa á 
escola; e vice-versa (2); ordinariamente era um ir­
mão, uma irmã, quem percebia essa módica retri­
buição.
A SociedadePhilanlropica não parou ahi; ella 
comprehendeu mais dignamente a sua missão. Mui­
tos de seus membros, os Senhores de Yillequier, 
gentil homem da Camara, de Vergennes, ministro
(I) Ilaüy, Préci3 hist. de l’Insl. des enfants aveugles, p. 121.
( î) A escola esteve a principio na rua Coquiliere; em 1780 mudou-sc 
para a rua Notre Dame des Victoires, para a casa que tinlia então o n. 18, 
defronte do lugar em que cslà liojo a Boisa. (Haüy, Précis hist., p. 121, 
et Prospectus, modele n. X, imprimé ï la On de l’Essai sur l’éducation des 
aveugles.— Galliod, Notice liist., p. 9 et 10). Poder-se-bia deduzir do que 
escreveu o Dr. Guillié, em uma obra que a este respeito como a muitos ou- 
Iros, esta bem longe de ser cxacta, que a escola dos cégos esteve desde 
1781 na rua .Votre Dame rfes Victoires, o que é erro queinfolizniente lem 
sido muitas vezes repetido.
da casa do Rei, Desessart, Mandai, Tassin de Létaug 
(1), cncarregaram-se conj anela mente com Haüy da 
administração da escola; nobre e respeitável pro­
tecção que elevava o estabelecimento á estima pu­
blica, chamava a confiança dos pais, e excitava a 
emulação dos discípulos! E na verdade como não 
ter interesse por uma escola onde os de Yillequier e 
os de Ycrgennes se apresentavam, por assim dizer, 
como seus instituidores? Que familia não solicitaria 
a honra de confiar seus filhos a taes protectores? 
Que menino deixaria de senlir-se orgulhoso quando 
chamado por taes homens (2)? « Seja-nos permit- 
tido, dizia Haüy, nomear lodos os membros desta 
sociedade respeitável, que não tendo nem reputação, 
nem fortuna a adquirir, quizeram partilhar coin- 
nosco, modeslamcnte e em silencio os numerosos tra­
balhos a que somos obrigados na direcção do estabe­
lecimento (3)1 »
A principio poder-se-hia crer que o acaso linha 
feito com que Valentim Haüy encontrasse um desses 
prodígios, que a natureza algumas vezes como que 
se diverte cm formar, e que nenhum outro cógo po­
deria como Lc Sueur vencer tantas difticuldades: 
mas quando sobre quatorze cégos (tal era o seu nu­
mero no principio de 1785), apenas houve Ires, cu­
jos progressos foram lentos, por isso que como
(1) Gailliod, Nol. hist., p. 10.
(2) Mandat vinha ordinariamente fazer a chamada de manhã. E’ o mesmo 
Mandat, ex-capilâo das guardas francezas, que chefe de um batalhão da 
guarda nacional, foi encarregado de defender as Tuilherias no dia 10 do 
agosto e morreu assassinado.
(3) Haüy, Prccis hist., p. 122.
muito judiciosaraenle observa Haüy, gozaudo estes 
ainda de um ligeiro raio de luz, seu tacto se desen­
volvia muito menos, não foi mais possível duvidar 
da efíicacia dos processos empregados para ins- 
lruil-os.
Nada mais faltava ao fundador da escola dos cé- 
gos e á mesma escola do que o suffragio publico dos 
sábios; e este não se fez esperar. A academia das 
sciencias chamada a julgar do methodo de Ilaüy, 
reconheceu que muitas tentativas e dillerenles meios 
se tinham até então empregado, com mais ou menos 
successo, para a instrucção dos cegos, mas que nin­
guém tinha ainda pensado em reunir os dillerenles 
systemas e discutil-os para poder formar então um 
methodo seguido e completo. Examinando depois 
os processos empregados pelo proprio director do es­
tabelecimento, diz a commissão relatora (1). «Haüy 
emprega as letras em relevo para que o cégo se acos­
tume a reconhecel-as pelo tacto, como o menino, 
que começa a aprender a lèr, reconhece pela vista 
as letras escriptas ou impressas.—Estas letras são 
separadas e moveis como as dos impressores; for­
mam-se com ellas linhas sobre uma laboa cheia de 
encaixes onde se introduz a extremidade da letra; 
quando o cégo conhece-as bem, elle mesmo as 
vai procurar nas casas onde eslão dispostas, e ar- 
ranja-as sobre a taboa como um compositor de ty- 
pographia.»
P ) Relatores: os Srs. Duque de la Rochefoucauld, Desmarcts, Detnours, 
et Vieq-d’Azir. Vide o relatorio no livro de Uaüv, pag. 127. Este relato- 
rio é de 18 de fevereiro de 1785.
— 10 —
Foi assim que Fe Sueur tinha aprendido a ler, c 
este processo podia dizer-se o do cégo de 1’uysseaux 
e de Mlle. de Salignac, como observam os relatores 
da Academia; mas, continuam elles, e aqui a in­
venção não póde ser disputada a V. Ilaüy. « Haüy 
sentio a necessidade de procurar um meio para for­
mar livros para uso dos cégos, afim de que podes- 
semlôr por si sós. Imaginou portanto imprimir em 
papel grosso de maneira que as letraspodessem con­
servar um relevo sufficiente para que o cégo podesse 
lòr pelo tacto. Nós vimos um desses livros em que 
o cégo leu as phrases, que se lhe indicavam. » Ilaüy 
declara mesmo como leve a idéa de imprimir em re­
levo. «Observámos que uma folha de papel sahindo 
da imprensa, diz ellc, apresentava no verso todas as 
leiras em relevo, mas na ordem contraria áquella 
porque lemos. Fizemos fundir caracteres typogra- 
pliicos em sentido opposto do que são geralmento 
feitos, e com um papel molhado, como aquellc de 
que se servem os impressores, chegámos a tirar o 
primeiro exemplar, que tinha até então apparecido 
com letras, cujo relevo podesse distinguir-se pel o 
tacto (1).»
(1) Essai su r l'éducalion dcsavcugles, p. 19 et 2 0 . Gailliod explica da 
m aneira seguinte a origem da im pressão em relevo : um dia por acaso veio 
ás mãos d eL e S ueur um bilhete de enterro im presso cm papel grosso sobre 
0 verso do qual elle pOde reconhecer a letra o. Ilaüy snrprehendido fez logo 
com a ponta do cabo do seu canivete, apoiando-a um pouco m ais forlem ente 
sobre um papel grosso, le tras, que o discípulo pôde logo reconhecer, o que 
lhe deu a idéa dos livros e da escrip la em relevo. A escrip la dos discípulos 
de Haüy era com efieito a mesma que aqui indica Gailliod, Ilaiiy a rran ­
jo u tam bém os seus prim eiros rnappas segundo este processo. Cailliod, 1’récis 
h is t ., p. 5 e t 6 .
— 17 —
« Os processos empregados para os cálculos, con­
tinuam os relatores, são semelhantes aos que des­
crevemos para as letras ; o cégo colloca os algaris­
mos sobre a taboa, e faz todas as operações sobre os 
numeros inteiros cora a mesma facilidade: por esse 
meio porém as operações sobre as fraeções seriam 
muito mais longas e complicadas, llaüy simpliíl- 
cou-as formando para esta cspecie de calculo caracte­
res feitos para conterem ao mesmo tempo o numera­
dor e o denominador, sendo uma parte delles amo­
vível para poder-se ã vontade substituir tal ou tal al­
garismo e desta maneira, com um pequeno numero 
de caracteres differentes, póde o cégo fazer todas as 
operações sobre as quantidades fraccionarias. »
« llaüy, lè-sc ainda no relaiorio, não pôde reduzir 
tanto o numero de signaes necessários para a mu­
sica; cada um dos caracteres contém as cinco linhas 
c os quatro inlcrvallos com um só signal; foi-lhe 
mesmo preciso formar lambem alguns outros para os 
signaes que se acham accidentalmcnte acima c abaixo 
das cinco linhas ordinárias; c apezar desta multi­
plicidade o cégo rcconhccc-os facilmente graças ã 
boa ordem em que estão collocados. »
« O processo para o estudo da geographia é 
pouco mais ou menos o que emprega Weissem- 
bourg, O contorno das differentes divisões é um re­
levo, e o cégo apalpando' reconhece os differentes 
paizes pela sua forma: poder-se-ha empregar, para 
fazer reconhecer as cidades ou outros pequenos 
objectos,' relevos de diversas fôrmas, e as matérias, 
como a aréa, o vidro, etc., que se pódem facilmcute
— 18
conhecer pelo tacto, para distinguir os mares, os la­
gos, os rios, c concebc-sc que não é difficil o m ulti­
plicar esses signaes tanto quanto for necessário. »
Peço perdão ao leitor de entrar em todos estes de­
talhes; escrevendo porém a historia de uma escola 
especial, não quereria omiltir cousa alguma que po- 
desse interessar já aos que nos lerem por simples 
curiosidade, já também áquelles quedesejarem es­
tudar seriomente a matéria.
O mesmo relalorio falia de um a m aneira precisa 
sobre o estado do estabelecimento no principio do 
anno de 1785. « Le Sucur, dizem os relatores, exe­
cutou aos olboá da Academia, todos os trabalhos de 
que fallámos, c nós o vimos fazei-o com promptidáo 
e facilidade; repelio lodos detalhadam ente, e mesmo 
alguns de mais; leu por exemplo caracteres cursivos 
feitos com a ponta de um alfinete em papel grosso, 
e outros escriptos com a ponta do cabo de um cani­
vete, cujo relevo era pouco considerável; leu-os com 
mui ta facilidade, e agora trabalha para em pregar 
letras metade menores do que as que foram apresen­
tadas á Academia (1).
« Não só este moço é instruído, mas elle é ainda 
o mestre dos outros cégos, a quem Iransmille os 
seus conhecimentos pelo mesmo processo porque
(1) UaUy fez no principio fundir letras m uilo grossas ('“'0 .0133) que 
serviam para a leitura e operações arilhm elicas; fez depois fundir letras mais 
pequenas (“>0.0015) que serviam para a impressão dos livros em relevo; todos 
se apartavam da fórtua ordinaria, e eram como o meio termo entro os ca­
racteres lypograpliicos c os que formamos quando escrevemos, llaüy empre­
gava também algumas vezes para a leitura as leiras de madeira em vez das 
de metal. Souv. <le U. CailliuJ.
10 —
aprendeu. Nós vimos esla escola que apresenta um 
espectáculo curioso e ao mesmo tempo triste; mui­
tos meninos cégos, de ume de outro sexo, aprendem 
de um mestre lambem cégo, recebem alegres a ins- 
trucção que se lhos communica com o maior inte­
resse, e todos parecem gloriar-sc de adquirir uma 
nova exislencia. » Os relatores observam que a edu­
cação dojovenLeSueur, aclualmenle com 17 annos, 
data apenas dc oito mezes. « Este infeliz, dizem 
elles, tendo nascido cego e na indigência, não pôde 
adquirir pelos outros sentidos senão idéas as mais 
triviaes..., e se os successos dc que fomos testemu­
nhas, lazem honra á intelligencia do discípulo, elles 
devem causar satisfação e gloria ao mestre, cujo 
talento bemfeitor merece o reconhecimento pu ­
blico (1). » A escola contava jã mais de vinte dis­
cípulos.
O relatorio lido á Academia não falia nem de mu­
sica, nem de trabalhos manuaes. Julgamos porém 
que já nessa época os discípulos de Haüy se da­
vam aos trabalhos manuaes c talvez também á 
musica (2).
(1) Por erro se altribuio esle rclalorio a Condorcct, que não fez senã 
certificar que eslava conforme com o original a copia que Ilaiiy fez im­
primir.
(2) Na primeira reunião dos membros da Sociedade Philanlropica encar­
regados do administrar a escola conjnnclaménte com Ilaiiy dccidio-sc: « Que 
os cégos, que estavam occupados em fiar n'uma machina de invenção do Snr. 
IJildebrand, se reuniríam á escola de V. Ilaiiy. Uildebrand conscntio n isso , 
fez transportar a machina para o estabelecimento e foi por isso recompensa­
do pela Sociedade. • Galliot, A'olice hist., p. I I . Reformou-se esta maclti- 
na substituindo—lho rodas. Então fazia-se lambem cordão, rêde, c bolsas. 
Haüy, Essaisur Vii. des neeiigles, p. 117, note 21 .
— 20 —
Como quer que seja o suíTragio da Academia de 
Sciencias acabou de assegurar a opinião publica á 
escola dos cógos, c todos á porfia procuravam tra­
balhar a favor delia.— Assim a Academia Real de 
Musica deu no dia 10 de fevereiro de 1780 (l), no 
palacio das Tuilherias, um concerto cm beneficio 
dos cógos. O Abbade Aubert compoz as letras c 
Gossec a musica de um liymno que excitou a com­
paixão a favor destas crianças:
Para cm nós cumular os leus favores 
Nossas palpebras abre um só instante,
E depois para sem pre, ó céu, nos priva 
E c vòr raiar de Pliébo a luz brilhante.
Contemplem nossos olhos os semblantes 
Daquelles, cuja mão nos auxilia,
E , de novo cerrados, nossas almas 
Sua imagem guardarão com alegria.
Os meninos cógos foram os adores nesta solemni- 
dade, onde cada um mostrou o que sabia.
O Lyceu, o Museu, a sala de correspondência dis- 
pularam-se a preferencia de vór no seu recinto os 
meninos cógos balbuciarem, para nos servirmos da 
expressão de seu digno Direclor, os primeiros ele­
mentos da leitura, do calculo, etc.— Os exercícios 
dos cógos terminavam sempre por uma collecía a 
favor destes infelizes. Estas quantias eram lançadas 
na caixa da Sociedade riiilanlropica encarregada de 
prover ás despezas do estabelecimento.
(1) Ilaiíy diz umas vezes 19, outras vezes 17 de fevereiro. A escola eslava 
ainda na rua Coquilliòrc. Souv. de M. Gailliod.
— 21 —
Finalmcnte no dia 2G dc dezembro de 178G os 
meninos cégos foram chamados a Versailles para fa­
zerem os seus exercícios dianle do Hei e de Ioda a fa­
mília real, c o programma dessa fesla nos deixa co­
nhecer detalhadamente a instituição de Haüy nessa 
época (1).
Vinte e quatro meninos cégos (15 rapazes e 9 me­
ninas) e um menino com vista figuram neste exer­
cício, isto é : 17 pensionistas da casa philantropica 
de Paris (10 rapazes c 7 meninas), 1 pensionista da 
casa philantropica de Versailles, 2 meninas postu­
lantes, 2 meninos admillidos graluilamcnle, e ou­
tros dous que pagavam em beneficio dos meninos 
cégos.
Eis o programma dos exercícios:
« l.° Alguns instantes antes da chegada do Rei a 
« maior parte dos discípulos largarão os trabalhos 
« manuacs, c executarão com muitos instrumentos 
« uma introducção musical. Durante este tempo c 
« até o fim do exercício os outros continuarão a tra- 
« balhar.» A orchcslra compunha-se de í rabecas, 
1 contralto, 1 rabecão, 2 ilaulas, 2 cornetas, c um 
outro discípulo tocava piano. Outro dirigia a orches- 
tra pequena (2). Pelo que diz respeito aos trabalhos 
manuacs, 2 discípulos fiavam, 4 faziam meia, 3 fa­
ziam cordas, 1 cintas, 1 trança para bolsas, 2 íille-
(1) Viile esse programma impresso no fim üo Ensaio sobre a ctlncaçâo 
ilos meninos céijos. \ oscola cra enlão na rua Noire Dame des Vicloircs. 
Sonv. île il. Gaillioil.
(2) Souv. do M. Gailliod.
___ 22 ___
les,—4 faziam ivdes, 1 moldes de cera (1), 2 com­
punham, 2 imprimiam, c 1 encadernava. »
« 2." Iluard, 2.” alumno, comporá logo que lhe 
« for ditado, uma phrase dada á abertura de qual­
quer livro francez por S. M. »
Huard tinha grande disposição para a poesia. 
Compoz sobre a Instituição dos cégos uma ode (2) 
que recitou, segundo dizem, diante do Rei e sua co­
mitiva. Esta ode foi impressa muitas vezes.
« 3.° Le Sueur, l.° alumno, que estará fóra da 
« sala quando se lhe ditar uma phrase, entrará im- 
« mcdialamenle, lerá a dita phrase, c arranjará por 
« sua ordem todas as letras na caixa. »
« 4.° O mesmo Le Sueur resolverá qualquer cal- 
« culo arilhmelico, que se proponha. »
« 5.“ Auroy, menino com vista, com 4 annos e 3 
« mezes de idade, discípulo de um cégo, lerá pela 
« primeira vez.» O menino Auroy começou as pri­
meiras lições de leitura no dia 5 de dezembro (3).
« 0.° DiíTerentes alumnos lerão immediatamenle 
« que lhe abrirem os livros. »
« 7.° Le Sueur lerá logo que se lhe apresentar 
« uma phrase escripta cm relevo sobre papel. »
« 8.° O mesmo Le Sueur comporá uma chapa 
« de impressão para os que tem vista, entretanto 
« que Huard fará uma outra para os cégos. »
(1) Caras, cabeças, braços, etc. liste discípulo linha vista, c cnlrou para 
a Instituição na idade de 13 annos.
(2) Gailliod, p. 19, vide também llaüy, Essai sur l'cd. des «v., p. 118. 
et 124.
(3) Haiiy. Essai sur 1’éd. des av., p. 113, note u.
« 9.* Le Sucur soffrcrádiíYerentes exames de geo- 
« graphia cm mappas a relevo. »
« 10. Na occasião dc parürcm Suas Mageslades c 
« a família real, os alumnos cantarão o seu hyrnno 
« que terminará pela execução de um rondo em 
« musica. » Este hyrnno é o mesmo que foi cantado 
no concerto dado no principio do anno pelos artistas 
da Academia lleal de Musica, e fará de ora em diante 
parte de todos os exercíciosdos meninos cégos.
Contemplem nossos olhos os semblantes, etc.
O Rei, a Rainha, os Príncipes moslráram-se muito 
satisfeitos, e os meninos cégos estiveram oito dias 
hospedados no palacio de Versaillcs.
Logo depois destes exercícios, que tiveram lugar 
na presença do Rei, Ilaiiy, publicou com o titulo de 
Ensaio sobre a educação dos céçjos, um livro que foi 
impresso por seus discípulos, parte em relevo, parte 
em letras ordinárias. Este livro que é a perfeita ima­
gem do espirito e do coração do instituidor da es­
cola dos cégos, ao mesmo tempo que nos mostra to­
das as suas vistas, lodos os seus ensaios, nos pene­
tra de profunda estima por seu caracter. Lendo este 
livro não sabemos o que mais devemos admirar, se 
os engenhosos esforços da inlclligencia de seu autor, 
ou se a pureza de sua alma. « Com quanto nada se 
« tenha inventado, diz Ilaüy, que não excite logo 
« os clamores da inveja e da ignorância, nós nos li- 
« songeamos de que nossa Instituição nada tem que 
« temer de seus golpes. Sua natureza, as luzes do 
« século em que vivemos, a boa indole de nossos
« concidadãos, lado nos assegura que, na continua- 
« ção de nossa obra, só leremos de resolver objee- 
« ções propostas por uma crilica sabia e bem inlcn- 
« cionada, que auxiliará nossos esforços em vez dc 
« arrefcccl-os. Assim responderemos a Iodas aquel- 
« las que disserem respeito ás causas que deram lu- 
« gar á Instituição c aos seus meios dc ensino. Fa- 
« remos mais: procuraremos afastar da imaginação 
« de nossos leitores tudo o que poderia illudir 
« áquellcs, que não assistiram aos nossos excrci- 
« cios, e a quem partidários exagerados de nossa 
« Instituição poderiam apresentar como maravilha 
« o que não c senão um facto muito natural. »
« Ensinar aos cógos, diz Ilaiiy, a leitura em livros 
« a relevo, c por meio desta leitura ensinar-lhes a 
« imprimir, a escrever, o calculo arilhmetico, as 
« linguas, a historia, a geographia, as mathemati- 
« cas, a musica, etc.; ensinar a esses infelizes as 
« differenles artes e officios, a fazer ròdcs, meias, 
« a brochura dos livros, a íiar, a tecer, etc.; l.° para 
« que os das classes abastadas possam passar a 
« vida dc uma maneira agradayel; 2.° paraarran- 
« car á mendicidade os que não são favorecidos da 
« fortuna, e reslituil-os á sociedade dando-lhes 
« meios dc subsistência: tal é o nobre íim dc nossa 
« Instituição. »
Pelo que diz respeito aos meios dc ensinar poucas 
cousas ha que não tenham sido descriptas; nada ha 
de novo senão no que loca á escripla c aos mappas 
geographicos.
Ilaiiy declara que tentou debalde o emprego das
tintas em relevo, o que o induzio a mandar fazer 
umapenna de ferro não fundida para podcl-a apoiar 
fortcmenle em papel grosso, e escrever letras (pie 
podessem ler-sc pelo verso da follia (1). Os cégos lia- 
l)iluavam-sc a escrever seguindo com um ponteiro 
letras gravadas em uma chapa de metal; quando já 
conheciam a fórma das letras, para escreverem di­
reito punham sobre o papel uma especic de rama 
de impressão guarnecida de muitos cordões peque­
nos parallclos, na distancia de pouco mais ou me­
nos dous centímetros entre um c outro, que serviam 
para dirigir a mão. li preciso confessar que estas 
tentativas não tiveram nem podiam ler resultados 
muito uleis. Quanto a fazel-os escrever conio nós, 
ou por meio da penna ou do- lapis, IXaiiy nem 
mesmo o tentou. Occupado sempre do nosso ponto 
do vista, dizia clle, isto ó, tornar a nossa instituição 
ulil a todos os respeitos, julgamos que apenas po­
deria ser curioso ensinar aos cégos a escrever, uma 
vez que não podessem lòr o que escrevessem (2).
Nos seus mappas geographicos Haüy contentava- 
se cm marcar os limites com fios de ferro delicados 
c arredondados, por isso que linha observado que 
era sempre a difíerença ou da fórma ou da grandeza 
de cada parle de um mappa que ajudava os alum- 
nos a dislinguil-a uma da outra. « Imaginamos este 
« meio, dizia Haüy, de preferencia a qualquer ou-
O ) Vide a nota da pag. !8 .
(2) Haüy, Essai su r l c d . dos aveuglcs, p. 60 . DilTcrcnles ensaios sc 
fizeram depois, mas todas as m achinas e lodos os processos inventados para 
este efteilo deixam uiuilo a desejar.
h
« Iro, por causa da facilidade que nos dá do impri- 
« mir um grande numero de nossos mappas origi- 
« naes para o uso dos cégos. » Todavia este ponto 
necessita ser complelamentc explicado: lomavam-sc 
dous mappas semelhantes; collocava-se o primeiro 
sobre uma folha de papelão, applicava-se depois, 
aos contornos dos dilTercnlcs paizes, com colla 
forte, um íio de ferro coberto de papel; cobria-se 
o lodo com o segundo mappa untado de massa ; 
eslendia-se um pedaço debaclilha dobrada sobre o 
mappa, e passava-se por cima em lodos os sentidos 
um cylindro para fazer sobresahir o relevo formado 
pelo íio de ferro (l). Este syslema foi empregado 
na Instituição até estes últimos tempos, em que 
foi substituído com muita vantagem.
O que Ilaüy nos diz da musica nos deixa bem 
vêr o que elle pensava desta arte e sua utilidade para 
os alumnos. «Traçando o plano de educação dos 
« cégos não tínhamos a principio encarado a rnu- 
« sica senão como um acccssorio proprio para fa- 
« zel-os descançar de seus trabalhos. Porém as dis- 
« posições naluraes da maior parle dos cégos para 
« esta arte, os recursos que cila póde trazer a mui*
« tos delles, o interesse que parece inspirar áquclles 
« que assistem aos nossos exercícios, tudo nos levou 
« a sacrificar nossa opinião particular á utilidade 
« geral. Os cégos tem disposições naluraes para esta 
« arte: um numero considerável d’entre elles, des- 
« providos de meios de vida, abraçam logo porne- 
« cessidade uma profissão, para a qual já tinham
(I) Gailliod, Notice liist., p. 7 ct 8. Vide tambom a nota da pag. 13.
— 2 7 —
« antes muito gosto. Nossa Instituição vai pois aju- 
« dal-os já no estudo, já na pratica desta arte. >/ 
Ilaiiy alludc aqui á musica impressa cm relevo; a 
experiencia porém não confirmou suas previsões. 
Elle pede por fim a seus leitores que não considerem 
a musica, que ouvem no exercício dos cógos, senão 
como um honesto passatempo que foi obrigado a 
conceder a seus alumnos. Todavia seu engenhoso 
espirito, e talvez mais ainda seu exccllenle coração, 
sempre propenso a adivinhar o hem, fazia-o desde 
então entrever que a musica podia vir a ser um dia 
de muita utilidade para seus filhos adoptivos (l). 
Quanto aos trabalhos manuaes, Ilaiiy nos diz tudo 
quanto já sabemos, mas do seu livro vè-se que ellcs 
tinham a seus olhos grande importância. « Não 
« lemos medo de dizer, escrevia elle, que, se conti- 
« nuaremaajudar-nos.um dia virá em que lodos os 
« cégos occupados com trabalhos proveitosos, csla- 
« rão a abrigo da indigência (2). »
Qualquer que lòr certos capítulos do Ensaio sobra 
a educarão dos céijos, não poderá deixar de fazer a 
triste reflexão de que elles foram escriptosmais para 
repellir as hostilidades de alguns incrédulos e 
mesmo maldizentes, do que para esclarecer um pu­
blico justiceiro. « Em que póde ser util a vossa es- 
« cola, diziam alguns ao direclor dos cégos? Salisfa-
(1) Ilaiiy dizia, pensando em alguns cégos músicos de profissão:— Que 
consolação não leriamos sc pudcsseinos um dia lirar d'unia arlo Ião agra­
darei meios de subsistência para um grande numero de4es infelizes, o 
vêl-a lornar-se, por uma feliz escolha, o iiiilrum calo da beneficência! - 
Es:ai sur 1'éd. des av. p. 116 nolc 10.
(2 ) Ilauy, Essai sur l'cd des av. p. 1 1 7 ,no te20.
— :28 —
« zcis o amor proprio dos cégos com fortuna, nisso 
« concordamos nós; mas quaes as vantagens para os 
« outros? Dando aos vossos cégos uma educação com- 
« plela,segundo o vosso plano, lerieis o projecto de po- 
« voar a republica das letras c das artes de sábios,de 
« professores c de artistas capazes, ainda quecégos, 
« de figurar nella,e mesmo de encontrar meios certos 
« de subsistência nos seus proprios trabalhos (I)?» 
« Não, respondia modestamente Haüy, em nada 
« leremos a prelcnção de fazer concorrer o mais ha- 
« bil dos nossos cégos com o mais medíocre dos 
« sábios ou dos artistas com vista; mas quando na 
« falta destes aqucllcs poderem ser de alguma ma- 
« neira uteis, então nós os recommendaremos á be- 
« nevolencia publica; e se não for nem o gosto dos 
« talentos, nem a necessidade de empregal-os que 
« soccorra aos nossos cégos, talvez seja o amor da 
«humanidade. Quantas vezes não lemos já visto a 
« bencficencia prescrever engenhosamente trabalhos 
« para estes infelizes com o fim de soccorrel-os sem 
« ofiender-lhes o amor proprio?» Eis o que respon­
dia o instituidor da escola dos cégos, e appellava 
com confiança para o futuro. A expcricncia confir­
mou por sem duvida as previsões de Ilaüy, ultra­
passou-as mesmo. A esses incrédulos, a esses delra- 
clores fracos e invejosos Haüyp oderia dizer hoje ; 
—percorrei todos os pontos da França, visitai a offi- 
cina deste, que faz cestos, daquelle que faz escovas, 
daquelle outro que tece, cégos que vivem de seu Ira-
0 ) Ilaüy, Iíssai sur l'éd. ilcs av. ji. 10 cl 11.
— 29 —
bailio; ide a casa desse cégo fabricante de pianos, Ião 
celebre na sua arlc; ide assistir ás classes de solfejo 
ou de harmonia, ou ás lições de instrumentos feitos 
pelos cégos,subi ao côro das igrejas, e em cincoenla 
delias vereis os cégos tocando orgãos, ide ouvir a 
execução de todos esses pedaços de musica desde a 
mais simples até á symphonia a grande orcheslra 
compostos e executados pelos cégos; entrai no gabi­
nete de estudo ou na classe desses professores de 
malhemalicas, de physica, de historia natural, de 
geographia, bellas letras, todos cégos—: Haüy pode­
ria ainda ajuntar :— Percorrei a Europa, percorrei 
mesmo os dous m undos, e vereis como todos os povos 
abraçaram o meu melbodo de ensino, e abriram 
escolas para os cégos—: Podia finalmcnte ainda 
dizer—: escutai e ouvireis em tòdos esses lugares o 
meu nome saudado com respeito c reconhecimento 
por lodos esses cégos arrancados á miséria e á igno­
rância; e vinde então dizer-rne, sc sois capazes: para 
que serve vossa Instituição? O que pretendeis fazer 
dos cégos? Ah! retirai, retirai depressa essas pala­
vras inconsideradas, ou temei que cilas chamem so­
bre vós a cólera dos homens e o castigo do céu I—
Quando se puhlicou o livro de Haüy, isto é, no 
principio do anno de 1787, a escola dos cégos, sus­
tentada sempre pela Sociedade Pbilanlropica, con­
tava trinta alumnos (l), entre os quaes havia al­
guns filhos de pais abastados, que pagavam uma
(1) Haüy, Précis. hisl. pag. 123.
— 30 —
mensalidade a favor da escola (1). Os trabalhos ma- 
nuaes feitos pelos cégos, e pagos sempre generosa- 
mente, o que se concebe bem, e as oífertas dos visi­
tantes que nunca se retiravam sem deixar uma prova 
de seu interesse pelo bem-estar do estabelecimento, 
concorriam lambem para alliviar as despezas da 
Sociedade Philantropica. Estes exercícios termina­
vam sempre pelo hymno:
Contemplem nossos olhos os semblantes, etc.
Alguns annos decorreram sem notável alteração no 
estabelecimento (2). A musica só tomou algum de­
senvolvimento, graças aos cuidados de Gossec, cujo 
nome deve ficar ligado á origem do Instituto dos cé­
gos, e a alguns outros artistas, que concorreram 
muito de sua parte para introduzir o gosto pela mu­
sica no estabelecimento dos cégos. O primeiro, como 
já vimos, gostava decompór cantos ou pedaços de 
orebestra para os cégos, os segundos ensinavam a 
pratica dos instrumentos (3). Emprégo muitodepro- 
posito a palavra pratica, porque muito difficilmenle 
os meninos cégos conheciam as notas que davam. 
Neste mesmo anno, 1787, os músicos da escola de 
llaiiy locaram cm Santo Eustaquio em uma solem- 
nidade religiosa: no dia 29 de junho muitos aluin-
(1) Uma pessoa que morava no corpo principal do edifício recebia a lu tn - 
nos pensionistas, quando OS pais assim o queriam; a escola porém não re­
cebia senão externos. Vide o progrnmma impresso no fim do livro do llaiiy, 
exem plar n. 10.
(2) D'ora em diante deixarem os o livro de HaUy; nosso guia será o do 
M. Gailliod.
(5) Gailliod, Notioe hist. p. 8.
— 31 —
nos fizeram a sua primeira communhão, e os meni­
nos cógos executaram por occasião da missa muitos 
motéles compostos por Gossec: era a primeira vez 
que se atreviam a voar tão alto. A orcheslra era com 
tudo a mesma de Versailles.
Sete mezes depois, a 13 de fevereiro de 1788, ve­
remos os mesmos meninos aos pés de um outro al­
tar. Era a vespera de S. Valenlim. Tinha-se levan­
tado no estabelecimento uma pequena capella; o 
irmão do fundador da escola, o celebre Abbade 
llaüy a tinha benzido, e todos os meninos abi vi­
nham rogar a Deos peio seu digno Instituidor, por 
seu pai adoplivo. Depois da cercmonia teve lugar 
um concerto. Um dos alumnos, o joven Iíuard, que, 
como já vimos, tinha-se feito notável por algumas 
peças de poesia, tinha composto um côro final em 
honra de Valenlim llaiiy, cuja musica era de 
Gossec (1):
RECITATIVO.
Am igos, p a ra sem pre re sp e item o s 
De nosso In s titu id o r nom e e ta le n to :
Em nós, supp rin d o o e rro cia n a tu ra ,
Da luz seu genio substitue o invento .
c Or o .
G eneroso m o rta l, que o sc r nos dás !
C elebrem os te u zelo e b en efíc io s;
Só lú p odes ro u b a r da n a tu reza 
Altos seg redos p a ra nós p ro p íc io s ;
(1) Gailliod, Notice hist. pag. 23 ct püce C.
- 32
S im ; teus c u id a d o s , tu a p ac iên c ia ,
V encendo affoitos d a c e g u e ira os vicios,
N ossas lag rim as tris te s e n x u g a ra m ,
E os nossos p eza res d issiparam .
UMA VOZ.
Os seus soccorros ficam na lembrança,
Pois reanimam nossa fraca csp’rança :
Sc os olhos p a ra a luz fechados ’s lão ,
Os p e ito s se a b re m p a ra a g ra tid ã o .
CÔRO.
G eneroso m o r ta l , q u e o se r nos d á s !
C e leb rem o s teu zelo c b e n e f íc io s ; e tc .
Foi de certo este um dia de verdadeira felicidade 
para o Instituidor e para os discípulos. Estes eram 
então em numero de 50 (1).
Tendo sido crescido o numero dos instrumentistas 
e mais ainda o dos harmonistas, Haüy propoz ao 
Cura de Santo Euslaquio se queria que os cégos lo­
cassem e cantassem na procissão de Corpus Christi, 
e com geral admiração cllcs acompanharam a pro­
cissão. A’sabida desta teve lugar uma missa musical. 
Esta ceremonia não deixa de ter alguma importância 
na historia da Instituição, porque nessa occasião a 
Sociedade Philantropica deu aos alumnos uma ves­
timenta, em cujos botões lia-se: Instituição dos Me­
ninos Cégos, e as letras iniciaes das palavras Socie-
(1) Haüy, Prccis lilst., imprimo in reliof cm 1788, p. 39.
^ > * s r
— 3 3 —
♦/atíe Pliilantropica. Assim crescia pouco a pouco o 
estabelecimento (1).
Entre os mesmos cégos, havia um com exlraordi- 
nario talento para a musica, era o joven Gailliod, 
que tinha entrado para a Instituição a 19 de março 
de 1787 com dez annos de idade. Um de seus cama­
radas, que, segundo suas expressões, arranhava na 
rabeca, deu-lho um instrumento, e elle por sua 
vez também arranhou na rabeca. Um outro, que lo­
cava segunda clarineta na pequena orchestra, cahio 
doente; disse-se a Gailliod que era preciso que elle 
o substituísse; Gailliod recebeu algumas noções do 
seu collega c tocou chfrineta. Desde 1788, com 11 
annos de idade, o joven Gailliod tocava nessa or­
chestra, ora segunda clarineta, ora segunda rabeca. 
É preciso com tudo confessar que, se este facto pro­
va a favor do talento do joven musico, de quem te­
remos ainda muitas occasiões de fallar, não dá por 
certo uma alta idéa da orchestra em geral. Gailliod 
convém francamente hojeque com efieilo a orches- 
tra era bem pobre; que, no interesse d’um estabele­
cimento ainda tão novo, tinha-se mais em vista a 
quantidade do que a qualidade dos músicos; que 
muitos destes ahi estavam pro forma, que alguns 
mesmos, que podiam compromelter a reputação dc 
toda a orchestra, tinham untado os arcos com cebo 
em rez de resina (2).
(1) Gailliod, Notice hist., p. 21, et 25. No concerto dado cm t78G pela 
Academia Real de Musica os alumnos trajaram uma vestimenta de cOr cin­
zenta, que se podia então considerar como um uniforme.
(2) Souv. de M. Gailliod.
— 3 4 —
Como alguns alumnos dc Ilaüy já davam liçóos a 
meninos com vista, seu instituidor abriu em 1789, 
a bem delles, uma classe contribuinte para os dc um 
e outro sexo. Nesta classe os professores cégos ensi­
navam a leitura, o calculo, gramrnalica, geographia 
e historia. As meninas cégas ensinavam ás que ti­
nham vista. Para as lições de escripta c desenho ha­
via nas classes decuriões com vista. Havia então 
tres classes no estabelecimento: a dos cógos, a dos 
meninos e a das meninas com vista; dous soldados 
suissos eram encarregados da policia das classes dos 
rapazes: uma mulher de fóra do estabelecimento era 
encarregada da classe das meninas. As duas classes 
com vista tinham pouco mais ou menos cem meni­
nos, a dos meninos era muito maior que a das me­
ninas. À classe para os que não eram cégos durou 
apenas de 1789 a 1791 (1).
Ilaüy comprehcndia muito bem que não bastava 
fazer cousas boas, mas que mesmo no interesse des­
sas cousas importava que ellas fossem muito conhe­
cidas. Assim clle não perdia a occasião de chamar a 
allenção do publico para a sua escola e seus alum­
nos. Haüy pensava mesmo que, a bem do seu esta­
belecimento ainda tão novo, era necessário que os 
alumnos apparecessem a fim de solicitarem um in-
(I) Gailliod, not. hist., p. 26 , et sotw. T inha-se então impresso para 
os cégos um resumo da grammatica francesa de Wtiilly, e o Calhecismo 
de Paris. lmprimio-se lambem ao mesmo lempo parle d’iim oSalutQfis Ue 
Coussec, bem como oulros pedaços de musica que os cégos aprendiam por 
si mesmos; é verdade porém que esta musica não deu grandes resultados. 
Ilaüy empregava na impressão da gramrnalica um syslema de abreviação, que 
não compensava seus inconvenientes.
— 3o -
tercsse de oulro gencro. Luiz XVI esua còrtc li- 
nham vindo repcntinamenle dc Vcrsailles a Paris, e 
os músicos da capella ainda senão tinham reunido 
nas Tuilhcrias; llaiiy pediu então e foi-lhe concedi­
do fazer celebrar por seus alumnos uma missa mu­
sical no palacio do Hei, diante do Principe e sua fa­
mília (1).
Por este meio a orcheslra e o coro dos meninos 
cégos fizeram-se cada vez mais conhecidos; e no an- 
no seguinte, 1790, muitas igrejas solicitaram dc Va- 
lenlim llaiiy missas com musica.
Nessas solemnidades havia sempre uma collecla 
a favor do estabelecimento dos cégos (2).
Entretanto a revolução marchava a grandes pas­
sos, e seus princípios occupavam todas as cabeças: 
os cógos também começaram a sonhar com a inde­
pendência, c um dia proferiram gritos de viva a li­
berdade! llaiiy deu a esses grilos o valor que elles 
poderiam merecer, veio com um volume dc Lafon- 
tainc na mão, e leu no meio de seus discípulos uma 
fabula applicavel áscircumslancias d'então; os maio­
res comprehenderam a fabula, e a maior ordem rei­
nou no estabelecimento. Outro perigo porém mais 
real ameaçava o estabelecimento: a Sociedade Thi- 
lantropica perdia todos os dias muitos dc seus mem­
bros, c para logo não pôde mais sustentar o Institu­
to dos cégos; houve então uma crise bem difflcil de 
vencer, e o futuro parecia ainda mais assustador. 
Haüy não se deixou illudir; comprehendeu bem que
(1) GaíUiotl, not. hist., p. 26, clsouv.
(2) Gailliod, not. hist., p. 27 et 28.
36 —
debalde empregaria todos os seus esforços para lu­
tar contra a miséria, e dirigio suas supplicas ao go­
verno. Haüy esperou por muito tempo; a revolução 
porém fazia-se em nome da humanidade, em suas 
bandeiras se lia que lodos os homens são irmãos, e 
o estado adoptou os meninos cégos: começou então 
uma nova era para a Instituição de Haüy.
CAPITULO SEGUNDO.
P E U IO D O D E D E C A D Ê N C IA .
(1,901 — 1811).
. No primeiro período desta historia vimos o genio 
ü\a beneficencia levantar á custa de nobres esforços 
unh desses monumentos que fazem época nos annaes 
da humanidade. 0 segundo porém que se apresenta 
agora diante de nós mostra pelo contrario a foice da 
destruição constantemente suspensa sobre o Institu­
to dos cégos.
0 Instituto passou a ser um estabelecimento na­
cional; Valentim Haüy deu graças ã Deos, e julgou 
sua obra mais que nunca consolidada, e seus filhos 
adoptivos ao abrigo da miséria; só lhe restava gozar 
da posição honrosa que a patria acabava de conce­
der-lhe. A illusão porém não durou muito tempo, e 
bem depressa o Instituto dos meninos cégos teve de 
passar por provas muito mais cruéis, do que as que 
tinha então soffrido; Haüy teve mais que nunca de
— 37 —
defender a obra de sua creação contra as misérias do 
tempo e o máo genio dos homens.
Por um primeiro decreto com data de 21 de julho 
de 1791 (1), a assembléa nacional decidio que o si­
tio e os edifícios do convento dos então chamados 
Celestinos em Paris, perlo do arsenal, « seriam to­
dos destinados para as escolas de educação dos sur­
dos-mudos e dos cégos de nascença. » Um segundo 
decreto de 28 de setembro (2) conformou estas dis­
posições e organisou a Instituição dos cégos de nas­
cença. Este ultimo decreto creou um primeiro dire- 
ctor (Valenlim Haüy), um segundo, um adjunto, 
dous inspeclores chefes de ofGcina, duas dirccloras 
dentre as meninas mestras de trabalhos, quatro 
mestres de musica, tanto Yocal, como instrumental, 
todos com vista; finalraente oito repetidores cégos; ao 
todo dezenove professores, para os quaes abonava-se 
a somma de 13,900 libras. Todos tinham casa, e, á 
excepção do primeiro e segundo director, também 
mesa.
O primeiro director dos cégos e o primeiro dirc- 
elor dos surdos-mudos deviam apresentar os candi­
datos para os differentes empregos ao departamento 
de Paris, isto é, á autoridade departamental, á qual 
pertencia a nomeação. Os cégos de nascença deviam 
ser de preferencia admittidos áquelles empregos que 
sua enfermidade e seus talentos melhor lhes permit- 
tissem desempenhar.
O mesmo decreto creava também pensões gratui-
(1) Promulgado a 29 do mesmo raez.
(2) Promulgado a 12 de outubro seguinte.
38 —
las a trinta alumnos pobres, que seguissem então as 
escolas. Elle concedia, mas por um anno sómenle, 
ató o momento da organisaçáp geral da inslrucção 
publica em França, uma somma de 10,500 libras 
na razão de 350 libras para cada pensão (1).
O mordomo dos surdos-mudos foi lambem o dos 
cégos; as despezas deviam ser feitas cm coramum 
tanto para uns, como para outros, de maneira que o 
todo devia constituir um só e mesmo estabelecimen­
to debaixo da vigilância e inspecçáo do departamen­
to de Paris.
Bem singular por certo foi esta organisaçáo que 
pela primeira vez operava a reunião destas duas clas­
ses de infelizes, cégos e surdos-mudos, que incum­
bia ao director dos surdos-mudos a organisação do 
pessoal do Instituto dos cegos, que creava dezenove 
mestres ou mestras para trinta alumnos, que funda­
va um estabelecimento publico sem lhe dar suf- 
íicienles meios desubsislencia, porque 10,500 libras 
eram por certo pouco para o sustento c despezas de 
educação de trinta alumnos, comdezesele mestres ou 
mestras á mesa.
O decreto todavia ordenava e foi sempre observado 
que aos cégos pertenceriam no Instituto lodos os em­
pregos que elles podessem desempenhar, o que não 
só era judicioso, mas também justo, por isso que de 
um lado os meninos cégos conheciam que não era 
inútil a educação, que selhes dava, de outro lado le-
(I) Estas duas sommas de 15,900 c de 10,500 libras deviam ser tiradas das 
rendas do hospício dos Quinze-Vingis, e, quando estas não bastassem, d# 
lhesouro nacional.
— 39
riam conslanlemenle diante de si bellos exemplos a 
seguir, provas incontestáveis de que á custa de tra­
balho poderiam zombar da enfermidade, e á custa 
do talento crcar uma posição honrosa na sociedade. 
Haüy leve muita influencia no projecto desse uécrc- 
to sem todavia poder fazer entrar nelle todas as suas 
vistas.
Conforme esse decreto nomeou segundo direclor 
um homem que tinha muitas Yezes composto musica 
para os meninos cégos, um homem cmíim, que 
desde muito tempo lhes dava lições de piano com o 
maior desinteresse. A escolha de Gobert foi não só 
uma prova do reconhecimento, como da boa admi­
nistração de Haüy.
Finalmente o decreto de 28 de setembro de 1791 
nunca leve inteira execução: a assembléa consti­
tuinte foi substituída pela legislativa antes que a ins- 
trucção publica fosse organisada; a assembléa le­
gislativa leve pois de occupar-se por sua vez do Ins­
tituto dos surdos-mudos c do dos cégos dc nascença. 
Esta assembléa por decreto dc 10 de setembro de 
1792 decidio que os fundos decretados precedente- 
mente para estas duas Instituições seriam pagos até 
nova ordem pela thesouraria nacional; mas quiz ao 
mesmo tempo que o poder executivo fixasse sem 
demora, segundo a lei e os princípios de justiça, a 
época em que deveria começar a contar-se o subsi­
dio de cada um dos professores, que tivessem estado 
ou estivessem ainda em exercício no estabelecimento: 
a assembléa legislativa quiz ainda que o mesmo po­
der executivo tomasse as mais exactas informações
— 40 -
sobre o grau de utilidade de cada um dos lugares de 
professor, que não estavam ainda preenchidos, e 
désse de tudo conta á assembléa nacional, a quem 
cçmpetia legislar. O primeiro decreto portanto só 
teve meia execução.
Quem não sabe porém que os desgraçados acon­
tecimentos de 1792 e dos annos seguintes não deixá- 
ram ao governo tempo de occupar-se dos cegos de 
nascença, que estiveram por certo quasi inteira­
mente abandonados?
Além disto o subsidio já tão mesquinho, que rece­
biam, não foi pago senão em assignados, que desde 
então soífriam enorme baixa, de sorte que o Insti­
tuto cahio na miséria. Com o fim de obter alguns 
recursos Haüy estabeleceu uma typographia, onde 
trabalhavam os meninos com vista debaixo da direc­
ção de Le Sucur. Logo que o chefe da typographia 
via que o trabalho faltava, ia acompanhado de 
um dos discípulos procurar freguezes: esta lypogra- 
phia deu algum pequeno lucro (l). Os exercícios pú­
blicos também deram algum interesse, mas debalde 
o honrado Instituidor empregava uma perseverança 
digna de admiração, elle não podia preservar seus 
queridos filhos dos horrores da miséria.
Foi nestas circumstancias que Paris no dia 10 de 
agosto de 1793, festejou a approvação da nova cons­
tituição (chamada do anno primeiro); um acompa-
(I) Gailliod, Souv. Esta typographia existia antes no pequeno estabele­
cimento da rua Nolre Dame des Vicloires. Ilaiiy tinha conservado duas 
prensas, uma para a impressão ordinaria, e a outra para a impressão em 
relevo. Lc Sucur linha dirigido lambem o primeiro estabelecimento.
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nhamcnto numeroso, e ao mesmo tempo bizarro, 
como todas as ceremonias publicas desse tempo, par- 
tio da Bastilha, percorreu os boulc varls, a praça da 
Concordia, a explanada dos Inválidos, e chegou ao 
campo de Marte, onde cada um veio jurar sobre o 
aliar da palria de defender o acto constitucional. 
Nesta festa os discípulos do Haüy apresentaram-se 
puchados por um carro.
No mez de maio do anno seguinte a opera repre­
sentou uma Satis-culotide em cinco aclos, intitulada 
a Reunião do 10 dc agosto, quo foi a representação 
fiel da festa civica. Os cincos actos figuravam as cinco 
estações do cortejo, a cada estação um dos persona­
gens cantava ou recitava um pedaço analogo ás cir- 
cumstancias. Nove disci pulos de Haüy, Ires homens 
eseis mulheres cantaram, quando lhes locou a.sua 
vez, uma ariaque começava pelas seguintes palavras:
Ainda que privados dc ver a luz, etc.
Os solos foram cantados por uma menina que tinha 
bella voz, c que cantou depois no café do Palacio 
Real chamado café dos cègos.
naüy era homem de idéas liberaes e amava por 
isso os principios da revolução; confiando nella, ti­
nha talvez concebido a esperança de melhorar a 
sorte dos infelizes a quem se tinha dedicado. Pôde 
portanto, não só por gosto, como por calculo, vêr 
sem pezar os seus alumnos tomando parle nas solcm- 
nidades da republica: mas que dôr e que tristeza 
quando esses meninos, entrando no Instituto, ahi 
encontravam apenas um pedaço de pão!
G
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Além ilislo nesses tempos desgraçados um pensa­
mento dominnva lodos os pensamentos, uma neces­
sidade todas as necessidades: resistir ao inimigo. 
Em todos os pontos da França fazia-se polvora, fa­
bricavam-se espingardas, fundiam-se peças. Por 
Ioda a parle as íabricas nacionaes se tinham conver­
tido em manufacturas de armas, e apparelhos mili­
tares. O convento dos Celestinos foi lambem escolliido 
para esse fim: nos seus corredores, nos seus claus­
tros, na sua igreja, fundiram-se peças, fabricaram-so 
carreias, barracas, cartuchos, etc. Foi no meio des­
tes instrumenlosde guerra que viveram muito tempo 
os cégos e os surdos-mudos.
Como é de crer os estudos soíTrcram extraordina­
riamente com este estado de cousas; e pelas memórias 
de Gailliod sabemos que o estabelecimento dos cégos 
era então apenas conhecido pelo nome de escola. 
Os surdos-mudos foram muito mais felizes mudan­
do-se para outro lugar, entretanto que os cégos con­
tinuaram a viver miseravelmente no convento dos 
Celestinos.
Depois da mudança dos surdos-mudos Le Sueur 
foi o despenseiro dos cégos, e com qnanto desempe­
nhasse as funcçõos desse cargo com todo o zelo e 
intelligencia, achava-se muitas vezes em embaraços 
para sustentar os meninos cégos (1).
( I ) Sua assignalura cm todas as contas ora ura grifo, que ficou cm poder 
de Gailliod. Algumas vezes I.e Sueur era obrigado a reprim ir o genio muito 
liberal de Haiiy, o que fazia no in teresse mesmo do estabelecim ento (Souv. 
<lc M. Gailliod); c por isso talvez que o Dr. Guillié disse que clle tinha sido 
ingrato para com o sou antige m estre, accusação contra a qual protestam 
seus antigos condiscípulos.
No fim porém do anno de 1794 os cégos foram 
para a casa das filhas dc Santa Catharina ou Calha* 
rinetas, na rua dos Lomba rdos; mas essa mudança 
dc pouco lhes valeu. Os tempos eram tão cruéis para 
elles (era o anno da fome) que ficaram perlo dc um 
anno nas Catharinetas sem poder recomeçar os seus 
trabalhos.
Por Gm a situação critica dos cégos attrahio as 
vistas da convenção, e por uma lei de 28 de julho dc 
1795 esta assembléa reconsliluio a Instituição, ao 
menos m nom ine, dando-lhe porém o caracter de uma 
officina, e não o dc escola. Os cegos foram mesmo 
conhecidos pelo titulo de cégos trabalhadores, o que 
mostra perfeitamente o espirito que presidio d sua 
reorganisação, o que de certo estava conforme com 
as idéas e lendencias da época.
A lei crcava 86 pensões gratuitas (uma por cada 
departamento) a beneficio dos cégos de 7 a 16 annos 
pertencentes d classe pobre; decretava a somma dc 
500 francos que a republica pagaria por cada um 
dos Ires primeiros annos de estada na Instituição, c 
250 francos para o quarto anno. No quinto e ultimo 
anno supprimiam-se estas pensões.
A lei conservava o primeiro e segundo instituidor,, 
não havia senão um adjuncto, que nomeava um se­
gundo, que devia prehencher as funeções de despen­
seiro; reduzia o numero dos repetidores de oito a 
quatro; cm conformidade porém com o decreto da 
fundação da escola, que determinava que

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