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A influência do movimento tropicalista no seio da cultura brasileira atual_PerolaMathias-29RBA

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A influência do movimento tropicalista no seio da cultura brasileira atual1 
Pérola Virgínia de Clemente Mathias 
UFRJ/RJ 
Resumo 
Este trabalho é uma tentativa de interpretação sobre o fato de o movimento tropicalista, 
ocorrido no Brasil no final da década de 1960, ser um episódio marcante da história 
cultural do país, cuja recepção se faz sentir pelo seu desdobramento como referência “em” 
e “para” novas produções artísticas atuais. Busco entender a influência do movimento 
tropicalista através da forma como ele é abordado no filme documentário “Tropicália”, 
de Marcelo Machado, lançado no ano de 2012. Foi possível apreender que a música se 
sobressai como o motor que deu vida ao movimento tropicalista e que a música popular 
brasileira da década de 1960 se impôs e se impõe no debate intelectual enquanto legítima 
representante da cultura brasileira, sendo considerada como um símbolo da modernidade 
do Brasil neste âmbito cultural. 
Palavras-chave: movimento tropicalista, cultura brasileira, música popular 
 
Introdução 
Este trabalho, que intitulei “A influência do movimento tropicalista no seio da 
cultura brasileira atual”, é uma interpretação a respeito da influência que a música popular 
brasileira da década de 1960 tem sobre as produções culturais e artísticas atuais – mais 
exatamente as dos últimos 5 anos -, especialmente a música produzida pelo movimento 
tropicalista, em diálogo com as demais linguagens artísticas que compuseram este 
movimento. 
Em setembro de 2012 foi lançado no Brasil o filme documentário “Tropicália”, 
dirigido por Marcelo Machado, que surgiu como uma promessa de recontar, no cinema, 
a história do movimento tropicalista de uma maneira nunca antes vista, de forma 
contemporânea e nova. O filme de Machado surge em um contexto em que a Tropicália 
parece ser usada como referência ou mote para diversos tipos de produções culturais e 
 
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de 
agosto de 2014, Natal/RN. 
2 
 
artísticas no Brasil. Todas estas (re)produções ou representações, se apropriam do 
movimento como um símbolo da cultura brasileira moderna. Estas reproduções traduzem-
se em exposições, homenagens, lançamentos de novos catálogos2, filmes e documentários 
sobre o movimento tropicalista ou a ele relacionados que são feitos quase todos os anos. 
O movimento tropicalista tem sido referência para a crítica artística, tem inspirado 
coleções de moda, é tema de festas de música brasileira em capitais como Rio de Janeiro 
e São Paulo e foi até mesmo tema de um projeto para a construção civil, como o 
condomínio “Tropicália” da Odebrecht em 2011. Todas estas referências foram conteúdo 
reproduzido por jornais como O Globo, periódico diário do Rio de Janeiro, no Brasil, e 
The Guardian, de Londres, na Inglaterra3. 
Há várias décadas o movimento tropicalista vem sendo celebrado e rememorado. 
Ele aparece como objeto de estudo na academia, na mídia e como referência para estas 
produções culturais de diversos tipos desde o final da década de 1970. Ou seja, há um 
período na história brasileira em que, devido à censura da ditadura militar não se podia 
falar no movimento, retomá-lo ou celebrá-lo. Mas assim que esta censura se arrefece, 
mesmo antes da implantação da democracia, ele volta a aparecer, como por exemplo nos 
estudos de Heloísa Buarque de Hollanda e Celso Favaretto, ambos de 1979. É por isto 
que não considero neste trabalho que as citações feitas ao tropicalismo em produções 
posteriores ao período de duração do movimento sejam um resgate ou uma 
“sobrevivência” de sua memória, muito menos algo que tem sido feito apenas nos últimos 
cinco ou dez anos4. A memória tropicalista é uma “presença” constante no imaginário de 
uma parte da produção artística, intelectual e cultural brasileira. 
A percepção desta presença me permitiu constatar que o movimento tropicalista é 
uma influência presente no seio da cultura brasileira atual. Há uma constante referência 
sendo feita a seu nome, a seus feitos e à sua “estética”. Mas como o movimento adquiriu 
esta visibilidade que parece, à primeira vista, maior do que outros movimentos culturais 
e artísticos que aconteceram contemporaneamente a ele, como a Jovem Guarda e a MPB? 
 
2 Ver BASUALDO, 2007 e DUNN, 2008. 
3 Ver como referência o site: http://tropicalia.com.br/. Sobre a polêmica construção da Odebrecht, ver O 
Globo, 31/08/2012: <http://oglobo.globo.com/politica/odebrecht-assina-acordo-com-caetano-desiste-de-
batizar-condominio-como-tropicalia-5970256>. E, sobre a Tropicália na moda atual (de 2008), ver a 
matéria publicada on-line: “Totem revive a Tropicália no Fashion Rio”, em: 
<http://ego.globo.com/Gente/Noticias/0,,MUL593800-9798,00-
TOTEM+REVIVE+A+TROPICALIA+NO+FASHION+RIO.html. Último acesso em: 28 abr. 2014 
4 Dunn (2008) trabalha com a ideia de “revivescência” do tropicalismo quando analisa as diversas 
manifestações feitas nos últimos anos que se remetem ao movimento da década de 1960 ou o celebram. 
3 
 
Quais as características dele que impactam e são relevadas nestas novas produções 
artísticas, a exemplo do filme de Machado? 
O filme de Machado foi escolhido como objeto deste trabalho porque, 
diferentemente dos outros exemplos citados como parte desta produção cultural 
influenciada pelo movimento tropicalista, ele busca refletir sobre a história do 
tropicalismo, seus marcos, seus atores e seu contexto político, reivindicando a criação de 
um novo discurso sobre esta história. Enquanto os demais exemplos se utilizam do 
movimento tropicalista como algo já dado, que significa apenas pela sua imagem ou 
estética, o filme levanta a questão da complexidade da formação de um movimento 
cultural, a relação deste com o contexto da ditadura militar e traz, como resultado de sua 
pesquisa, novas imagens e informações sobre o período entre 1967-1972. 
Neste artigo, descrevo alguns dos elementos contidos neste documentário para 
demonstrar a centralidade que a música popular adquiriu no debate artístico da década de 
1960 e o papel protagonista dos músicos no próprio movimento tropicalista. Mostro 
também a relação desta produção artística com a especificidade do período político 
brasileiro, que é enfatizada pelo filme. Esta descrição é uma forma de abordar o que é o 
discurso “contemporâneo” sobre a história da tropicália que foi anunciada pelo diretor. 
Esta descrição aborda que a centralidade do papel da música acontece tanto no 
desenrolar do movimento tropicalista, quanto nas representações que são feitas dele hoje. 
Ressaltando que isto se dá mesmo que seja sabido que a tropicália não se configurou 
apenas enquanto um movimento musical, mas um movimento amplo das artes. Este papel 
assumido pela música no movimento tem uma forte ligação com a configuração do campo 
social e do campo cultural brasileiro na década de 1960, que consolidou o processo que 
torna a música popular brasileira um locus privilegiado de debate intelectual, 
principalmente devido ao engajamento de compositores e intérpretes no debate político e 
nas questões sociais da época. Santuza Naves (2010) chamou esta produção musical 
peculiar de “canção crítica”. Identifico o que a autora descreve como tendo um reflexo na 
configuração do campo cultural ainda hoje no Brasil, em que a música popular brasileira, 
especialmente a tropicalista, que trouxe o diálogo entre a vanguarda europeia e a tradição 
nacional, foi e continua sendo exportada como símbolo da arte brasileira mais 
desenvolvida. A música popular brasileira da década de 1960 se tornou umdiscurso 
artístico e social intelectualmente legitimado sobre o Brasil. 
4 
 
As novas produções que trazem o tropicalismo como referência ou como conteúdo 
se utilizam desta imagem englobante e total do movimento, mesmo que privilegiando a 
música, pois esta é seu principal produto de sucesso. 
 “Vocês não estão entendendo nada!” 
A tropicália foi considerada um movimento cultural que, além da produção 
coletiva e da força do sentido do grupo em seu seio, promoveu um debate e uma 
transformação na arte brasileira que não diziam respeito unicamente à questão estética – 
como fora outrora a postura dos músicos da Bossa Nova (NAVES, 2012). A tropicália se 
configurou reivindicando a construção de uma nova imagem do Brasil a partir da criação 
de uma forma experimental e inovadora para as diferentes linguagens artísticas. Assim, o 
que chamamos hoje “tropicália” ou “movimento tropicalista” configura-se por uma 
série de ações artísticas que buscou se fixar no contexto da arte brasileiro construindo um 
diálogo com questões que refletiam sobre a condição política ditatorial do país, a 
desigualdade social que caracterizava a forma de organização social e estabelecendo um 
diálogo com demais segmentos artísticos de massa. A tropicália tentava se inserir neste 
contexto como um movimento de arte de vanguarda, mas assumindo uma concepção de 
vanguarda que se assemelhava mais ao Modernismo brasileiro do que às vanguardas 
europeias do início do século XX. Pois a tropicália estabeleceu como fundamental o 
diálogo entre a criação experimental, base da vanguarda europeia, com o resgate da 
tradição da cultural nacional. 
Ao falar a todo momento neste texto sobre “cultura”, é preciso especificar que o 
termo aparece aqui de formas diferentes, ora como um conceito antropológico, ora como 
um uma expressão corrente da linguagem cotidiana para se referir aos trabalhos artísticos, 
intelectuais, acadêmicos, ao meio de produção de notícias, etc. 
Mesmo aplicando-o de formas diferentes, me refiro sempre a uma ideia comum 
de cultura, no sentido de dizer sobre um sistema de comunicação, um código que é 
utilizado e interpretado de forma comum pelos indivíduos de uma sociedade. Este código 
é mais ou menos estável. Ele permite a comunicação, ao mesmo tempo em que os 
indivíduos agem sobre ele de forma única no processo de interpretação. Os artistas 
trabalham com estes códigos de forma a traduzi-los, reinventá-los, confirma-los, etc., 
dialogando uns com os outros (VELHO; VIVEIROS DE CASTRO, 1980). 
5 
 
A cultura, tal como a entendia Max Weber (1979), é um “segmento finito do 
decurso infinito e destituído de sentido próprio do mundo, a que o pensamento conferiu 
um sentido e uma significação”. Somos homens de cultura: adotamos uma posição frente 
ao mundo e lhe atribuímos sentido. Assim, o conhecimento de uma realidade cultural é 
uma forma de conhecimento subordinada a pontos de vista particulares, em que é preciso 
referir os elementos da realidade a valores culturais universais e destacar as conexões 
revestidas de significado. 
Falar em “cultura brasileira” pode ser duplamente problemático. Primeiro, porque 
esta expressão pode pressupor uma totalidade cultural cujas fronteiras da cultura e da 
política coincidem, prejudicando a identificação de códigos diferentes dentro de uma 
sociedade moderna e complexa. E, segundo, porque pode pressupor uma homogeneidade 
cultural. Porém, o termo “cultura” e a expressão “cultural” serão usados aqui no sentido 
de decodificar e identificar relações entre os códigos, que estão sendo construídos de 
forma constante pelos indivíduos que integram o tecido da cultura (enquanto uma esfera 
de valores na composição da vida social – e não como uma reificação), os artistas que 
revelam esta decodificação e os sociólogos e antropólogos que analisam e relevam as 
diferenças existentes neste âmbito. 
 “Tropicália”, o documentário dirigido por Marcelo Machado (2012), é uma 
narrativa cronológica do intervalo entre os anos de 1967 a 1972, que mostra o contexto e 
o desenrolar do que ficou conhecido como movimento tropicalista. Assim como a maior 
parte da bibliografia sobre o tema, é considerado no filme que o movimento tenha durado 
dois anos, de 1967 a 1969, iniciado com a busca de Caetano Veloso e Gilberto Gil por 
uma transformação estética, aliada ao enfrentamento de uma concepção de nacionalismo 
e engajamento político presente na arte brasileira naquele momento. Seu fim teria 
ocorrido com o exílio político dos músicos, que vai de 1969 até 1972, e também de outros 
artistas que decidem/precisam deixar o país naquele momento de censura 
(FAVARETTO, 1979; BASUALDO, 2007; COELHO, 2010). 
O filme traça a relação do momento e da movimentação artística destes anos 
imbricada ao panorama político. A violência desencadeada pela censura do governo 
ditatorial, e agravada nestes dois anos destacados no filme, foi definidora do que podia 
ser expressado na arte brasileira, no como isto era feito e por quem. O filme mostra, 
principalmente através do encadeamento de imagens destes anos, que a condição política 
6 
 
brasileira moldou as trajetórias, as formas de ação, as pautas e os debates de composição 
do cenário cultural. 
Destaco aqui uma cena que me parece estruturante na montagem do filme de 
Machado. É a primeira cena, que abre o filme, uma imagem inédita recuperada de um 
arquivo: trata-se de uma apresentação de Caetano Veloso e Gilberto Gil em Lisboa, em 
agosto de 1969. Ali, os dois compositores são apresentados como “nomes da moderna 
música de vanguarda do Brasil” e responsáveis por um movimento musical que se inseria 
dentro de um movimento geral chamado “tropicalismo”. O apresentador pergunta a 
Caetano e Gil se o que eles estavam fazendo naquele momento ainda podia ser chamado 
de “tropicalismo”. Caetano Veloso assume a posição e responde que ele e Gilberto Gil, 
bem como as músicas que produzissem a partir daquele momento, eram “irresponsáveis” 
ao movimento tropicalista, pois o tropicalismo já não existia mais enquanto movimento. 
Em seguida, o apresentador do programa de televisão pede que Caetano Veloso explique 
o que é o tropicalismo. E então a cena é cortada e voltará a ser repetida quando a linha 
cronológica iniciada em 1967 chega novamente a agosto de 1969. 
Pude interpretar que fica posto no filme dois posicionamentos a partir daí: 1) que 
houve um movimento geral denominado “tropicalismo”, que abarcava também um 
movimento musical; 2) que há uma delimitação de marcos históricos muito claros com a 
eleição dos anos de 1967 para seu início e o de 1969 para seu fim, legitimando a voz e o 
discurso de Caetano Veloso na cena citada, quando ele diz que o tropicalismo já não existe 
mais enquanto movimento. 
Esta cena dá o tom da narrativa, pois é a única que quebra o enredo cronológico, 
sendo mostrada duas vezes como um plano sequência interrompido. 
A concepção sobre o movimento tropicalista contida no filme tende a alargar a 
concepção da visão tropicália enquanto tomada pelo tropicalismo musical5 ao relacionar 
 
5 Há um debate, desde o “batismo” do movimento com o nome “tropicalismo” pela imprensa, ainda em 
1968, sobre a diferença entre “Tropicália” e “tropicalismo”. “Tropicália” era o nome de uma obra de 
Hélio Oiticica, a qual Caetano Veloso toma emprestado para intitular uma de suas principais canções 
deste ano. O ano de 1967 dá as bases para que o tropicalismo ecloda e é no ano de 1968 em que ele se 
consolida, no momento em que também surge a denominação de “tropicalismo” no artigo que Nelson 
Motta escreve para a sua coluna no jornal Última hora, “A cruzada tropicalista”. É a partir destemomento que há a difusão do termo “tropicalismo” para caracterizar as produções deste grupo de artistas 
com propostas mais ou menos em comum. Sobre a denominação do movimento e as diferentes fontes, ver 
o texto “Introdução” de Santuza Naves e Frederico Coelho (NAVES, COELHO, 2007). O termo 
“tropicália” passa a ser considerado pelos artistas, ainda naquele momento, como o nome que contém a 
essência do movimento. Enquanto que “tropicalismo” significada a moda explorada pela mídia, uma coisa 
de momento (CAMPOS, 2008). Há também o estudo de Frederico Coelho, “Eu, brasileiro, confesso 
7 
 
imagens ao movimento que vão além das obras que, em geral, são classificadas como 
tropicalistas. Estas obras são: a instalação “Tropicália”, de Hélio Oiticica, o filme “Terra 
em transe”, de Glauber Rocha, a peça “O rei da Vela”, do teatro Oficina, o livro “Pan 
América”, de José Agrippino de Paula e, especialmente, as apresentações das canções 
“Alegria, alegria” e “Domingo no parque”, de Caetano Veloso junto aos Beat Boys e de 
Gilberto Gil junto aos Mutantes, respectivamente, no III Festival da Música Popular 
Brasileira na TV Record. Estas últimas, consideradas deflagradoras do movimento. Estas 
obras são aquelas que receberam uma espécie de chancela tropicalista. Um todo mais ou 
menos fechado e estável. Não se questiona na bibliografia6 o porquê de estas obras, e 
justamente estas, terem tal classificação, mas busca-se compreender o que as liga 
enquanto já pertencentes a um grupo comum. 
A classificação destas obras como tropicalistas é algo que deve ser discutido e 
problematizado, mas não aqui, em que busco compreender a centralidade da música no 
seio do movimento tropicalista e como isto faz com que ele seja uma influência e seja 
utilizado como referência para as mais diversas produções artísticas e culturais atuais. 
No filme de Machado, todas estas obras são mostradas junto a alguma declaração 
de seus autores. Há imagens com declarações destes artistas sobre o que estavam fazendo, 
como por exemplo a de Glauber Rocha, que diz em uma declaração que 
Terra em transe, Tropicália [a instalação de Hélio Oiticica], Rei da 
Vela, relações existem, mas são relações... eu não sei se tem relação 
nenhuma, não. Esse papo, aliás, eu já enchi o saco. De forma que 
tropicalismo pra mim é Caetano e Gil. O teatro de José Celso Martinez 
é a explosão do teatro revolucionário no Brasil, que lidera a luta do 
teatro no terceiro mundo. E Terra em transe é Terra em transe, que é 
filme meu e eu não vou falar 
 
Junto a esta declaração de Glauber Rocha, imagens do filme “Terra em transe” 
são mostradas, enquanto se ouve a introdução da música “Tropicália”, de Caetano Veloso, 
acompanhando a imagem. Assim, reforça-se a ideia trazida pelo discurso de Caetano 
Veloso, já narrada em seu livro “Verdade Tropical”, de que o filme de Glauber Rocha, 
assim como as demais obras citadas, influenciou a concepção do tropicalismo como um 
movimento que parte das ações dele e de Gilberto Gil em suas apresentações musicais 
(VELOSO, 1997). 
 
minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970”, que aprofunda a 
discussão sobre a semântica e a semiologia dos termos Tropicália x tropicalismo musical (COELHO, 
2010). 
6 Como em Süssekind, 2007. 
8 
 
 No filme de Machado, o tempo todo a música é utilizada como a expressão 
artística que dá tom à narrativa. E mostra-se ali que muitas das produções posteriores às 
obras tropicalistas, citadas acima, que são feitas ao longo da duração do movimento, tem 
uma relação intrínseca com as canções que são compostas – ou seja, a música do 
movimento tropicalista se comunicava através de outros suportes, além do formato 
“canção” e de sua apresentação pelos compositores e intérpretes. A música construiu 
neste período uma linguagem visual muito própria a ela, fruto de seu diálogo com as artes 
plásticas e visuais, com o cinema e o teatro, que se expressava nos figurinos, nas 
performances dentro e fora do palco e nas capas de discos. O filme mostra imagens 
sucessivas dos músicos – Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes, Gal Costa 
- com os cineastas, com os artistas plásticos, suas apresentações nos festivais, a inserção 
deles nos programas de TV, nos debates estudantis e nas passeatas contra a ditadura (meio 
em que Glauber Rocha, Hélio Oiticica e José Celso Martinez, por exemplo, não apareciam 
e/ou não são mostrados). 
Imageticamente, o filme de Machado funde as produções artísticas diversas e 
heterogêneas do período de 1967 a 1969 em sua narrativa. Estas imagens – os Parangolés 
e Tropicália de Hélio Oiticica, as capas de disco feitas pelo designer Rogério Duarte, as 
passeatas e manifestações políticas, os filmes de Glauber Rocha, José Agrippino de Paula, 
Leon Hirzman e André Oliveira - são coladas ali, sobrepostas, fundidas. Mas é a música 
que, como trilha sonora, está dando sentido a este boom de imagens no filme. 
Os debates, conflitos e mudanças ocorridos no meio musical na década de 1960 
foram propulsores de uma transformação estética radical da arte brasileira que não ficou 
restrita à música, por isso é frisado sobre seu diálogo com as demais linguagens artísticas 
para formação do “movimento”. Há a centralidade da música popular neste cenário por 
causa de uma série de razões. Uma delas é a de que a música era a forma de arte com 
maior penetração e absorção entre as camadas sociais. Era a expressão artística que 
veiculava nos meios de comunicação de massa como o rádio e a TV (em expansão no 
Brasil na década abordada). Na TV, em horário nobre, aconteciam os Festivais de Música 
Popular Brasileira e os Festivais Internacionais da Canção, iniciados em 1965 e 1966, 
respectivamente, e que a partir de 1967 gestaram uma disputa ideológica entre a MPB e 
o tropicalismo. A música tinha, portanto, grande inserção no âmbito da vida social, em 
seus debates e no cotidiano de uma determinada camada da população das cidades. 
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O que quero chamar atenção é que é dito imageticamente e discursivamente no 
filme de Machado que o movimento tropicalista não é apenas um movimento musical. 
Que ele só se configurou enquanto movimento porque houve o diálogo entre artistas e 
linguagens artísticas diversas. Mas é a música que, claramente, se sobressai ali e dá o tom 
e o direcionamento do filme. Tanto que o filme segue o percurso feito por Caetano Veloso 
e Gilberto Gil, do momento de lançamento das bases do tropicalismo no Festival de 1967, 
da concepção do disco-manifesto “Tropicalia ou Panis et circencis” em 1968, da prisão e 
do exílio dos dois em 1968/1969, da passagem dos dois por Portugal e Londres de 1969 
a 1972, até o momento em que, novamente os dois, Caetano e Gil, retornam ao Brasil, 
chegando à Bahia, sua terra natal. 
Enxergo que o filme de Machado mostra diretamente, assim como os outros 
exemplos que citei na introdução, que a proporção da influência do movimento 
tropicalista no seio da cultura brasileira atual gira em torno da música. Porém a forma 
como o filme se refere e se utiliza do tropicalismo em sua concepção é diferente da 
utilização do tropicalismo como referência para realização de festas de música popular 
brasileira, como referência para a crítica musical ou para idealização de coleções de moda. 
O filme documentário de Machado explora a concepção do tropicalismo e a construção 
de sua história quando elabora uma narrativa que ressalta os episódios relacionados ao 
evento de forma cronológica. O que é o “tropicalismo” no filme não está dado, sua 
proposta foi apresenta-lo, mostrando a relação dos músicos com os demais artistas e 
pontuando, ao mesmo tempo, os eventospolíticos e as ações artísticas ano a ano. 
E para compreender esta questão da centralidade da música no movimento 
tropicalista e na incidência que o movimento tem hoje na produção artística e cultural, 
recorro ao que Santuza Cambraia Naves categorizou como “canção crítica”. Pois, para 
pensar esta “cultura brasileira” que designo no título deste trabalho, o conceito de canção 
crítica me permite enxergar a penetração das transformações suscitadas e atribuídas à 
música para além do campo musical ou mesmo do campo artístico. 
A “canção crítica” quer dizer sobre o momento em que a música popular no Brasil 
se tornou o locus por excelência do debate intelectual. O compositor, que passa a ser visto 
como um artista moderno, se coloca e é percebido como “crítico da cultura” – assumindo 
um papel e adquirindo um status diferente do que tivera o músico popular até a década de 
1940 (NAVES, 2010; 2013). E ele atua desta forma tanto no processo de composição, 
como externamente a ele, quando se dirige às questões culturais e políticas do país. Assim, 
10 
 
segundo Santuza Naves, os compositores populares articularam arte e vida ao estender a 
atitude crítica para além dos aspectos formais da canção se tornando, assim, um pensador 
da cultura. E isto, no tropicalismo, não foi apenas o caso dos compositores: vide as 
posições e produções de Oiticica, Glauber Rocha e Rogério Duarte. O ponto é que a 
produção da música popular se torna legítima enquanto posicionamento intelectual e 
envolve todas as demais produções que estavam a sua volta (NAVES, 2007) 
Diferentemente dos exemplos da introdução, que utilizam o tropicalismo como 
uma referência que significa alguma coisa já concebida, por exemplo, como a crítica 
musical que utiliza o termo como sinônimo de vanguarda ou de música que busca mesclar 
diferentes ritmos, instrumentos e tradições7, o filme de Machado quer cunhar uma 
concepção própria sobre o que é o movimento e explicá-la ao público. Assim, o filme 
incorre no risco de cair numa reificação ao qual ele, supostamente, se contrapõe. Pois 
entendo que o filme também parte da oposição a alguma história da tropicália que supõe 
que já seja conhecida: por isso o pré-lançamento do filme anunciava que seria trazido 
uma “visão contemporânea” sobre o movimento e que o cartaz do filme estampa a frase 
do famoso discurso de Caetano Veloso no Festival de 1968: “Vocês não estão entendendo 
nada!”. 
O que posso afirmar quanto à tentativa do filme de responder sua própria questão, 
o que é o tropicalismo, é que ele deixa expresso algumas relações. Uma delas, é que os 
eventos e criações artísticas daquele momento são indissociáveis dos acontecimentos 
políticos daqueles anos de 1967 a 1969 e depois até 1972. Outra, é que há um diálogo 
entre diversas linguagens artísticas e alguns artistas-chave – que não são apenas aqueles 
das obras escolhidas como tropicalistas, mas também outros nomes foram e são de 
fundamental importância para compreensão do movimento: além de Caetano Veloso, 
Gilberto Gil, Glauber Rocha, Hélio Oiticica, Agrippino de Paula e José Celso Martinez; 
também Rogério Duarte, Os Mutantes, Rogério Duprat, Jorge Ben, Gal Costa, Tom Zé, 
José Carlos Capinan e Torquato Neto. 
 
 
 
7 Ver, por exemplo, a crítica musical “O tropicalismo renovado do Maglore” no jornal O Globo. 
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/o-tropicalismo-renovado-do-maglore-8976406>. Último 
acesso em: 30 de mai 2014. 
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Conclusão 
O que entendo com o lançamento de um filme como o de Marcelo Machado é que 
o tema do tropicalismo não está esgotado, pois por mais que já se tenha pesquisado e 
falado sobre o assunto nos últimos 40 anos, a pesquisa do filme nos traz como resultado 
de pesquisa arquivos e imagens inéditos do período. 
Quanto à incidência do movimento como influência para a produção cultural e 
artística brasileira atual, posso intentar dizer que o movimento tropicalista adquiriu esta 
visibilidade, mais do que os outros fenômenos musicais também influentes na cultura 
brasileira da década de 1960, como a Jovem Guarda e a MPB, por algumas razões: 1) A 
Tropicália foi um movimento amplo, de diálogo entre linguagens artísticas que 
convergiram tanto no debate estético formal, quanto no debate sobre a condição político-
social do Brasil (ainda que esta convergência não signifique uma homogeneidade dentro 
do movimento); 2) Porque a música teve este papel central e promoveu a quebra de 
paradigmas comportamentais com suas ações performáticas, ideias políticas arrojadas e 
impacto visual – resultado conseguido por mérito, sim, de seus compositores, mas 
também por causa deste diálogo citado com as demais linguagens artísticas e uma atuação 
em grupo; 3) A centralidade do papel da música nesta movimentação toma projeções no 
âmbito da cultura e da vida social por este status da categoria “canção crítica” que se 
consolida na década de 1960, em que o compositor se legitima enquanto persona 
intelectual. 
Assim, a Tropicália é hoje apreendida como um signo do Brasil moderno, o marco 
da arte brasileira de vanguarda que é exportada, junto com seus artistas, talentos, obras, 
ideias e, sobretudo, inovação – numa espécie de reversão de um movimento antropofágico 
ocorrido na produção artística tropicalista naquele momento. O tropicalismo se tornou 
este fenômeno vitorioso de um momento da arte brasileira, que compõe uma história 
cultural também vitoriosa e que suplanta a esfera da arte e da cultura, se inserindo 
diretamente na vida social com a legitimação de seu posicionamento intelectual. Falar da 
tropicália hoje ou usá-la como referência “em” e “para” novas produções é auto-legitimar 
uma produção através de um discurso cuja legitimação já está garantida. 
As demais conclusões as quais eu me propus a chegar no resumo que enviei para 
o GT, que adentram e propõem novas pesquisas e considerações sobre as teorias e os 
métodos para se pensar as apropriações culturais contemporâneas da música (tais como 
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na criação e nas formas de circulação da arte hoje – sampleamento, creative commons, 
distribuição on-line, digitalização, etc.), relacionando-as ao aspectos inovadores trazidos 
pelo movimento tropicalista neste sentido, serão demasiado longas para esta apresentação 
e tornarão o debate muito difuso para a ocasião. 
 
Referências Bibliográficas 
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