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1 A influência do movimento tropicalista no seio da cultura brasileira atual1 Pérola Virgínia de Clemente Mathias UFRJ/RJ Resumo Este trabalho é uma tentativa de interpretação sobre o fato de o movimento tropicalista, ocorrido no Brasil no final da década de 1960, ser um episódio marcante da história cultural do país, cuja recepção se faz sentir pelo seu desdobramento como referência “em” e “para” novas produções artísticas atuais. Busco entender a influência do movimento tropicalista através da forma como ele é abordado no filme documentário “Tropicália”, de Marcelo Machado, lançado no ano de 2012. Foi possível apreender que a música se sobressai como o motor que deu vida ao movimento tropicalista e que a música popular brasileira da década de 1960 se impôs e se impõe no debate intelectual enquanto legítima representante da cultura brasileira, sendo considerada como um símbolo da modernidade do Brasil neste âmbito cultural. Palavras-chave: movimento tropicalista, cultura brasileira, música popular Introdução Este trabalho, que intitulei “A influência do movimento tropicalista no seio da cultura brasileira atual”, é uma interpretação a respeito da influência que a música popular brasileira da década de 1960 tem sobre as produções culturais e artísticas atuais – mais exatamente as dos últimos 5 anos -, especialmente a música produzida pelo movimento tropicalista, em diálogo com as demais linguagens artísticas que compuseram este movimento. Em setembro de 2012 foi lançado no Brasil o filme documentário “Tropicália”, dirigido por Marcelo Machado, que surgiu como uma promessa de recontar, no cinema, a história do movimento tropicalista de uma maneira nunca antes vista, de forma contemporânea e nova. O filme de Machado surge em um contexto em que a Tropicália parece ser usada como referência ou mote para diversos tipos de produções culturais e 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 artísticas no Brasil. Todas estas (re)produções ou representações, se apropriam do movimento como um símbolo da cultura brasileira moderna. Estas reproduções traduzem- se em exposições, homenagens, lançamentos de novos catálogos2, filmes e documentários sobre o movimento tropicalista ou a ele relacionados que são feitos quase todos os anos. O movimento tropicalista tem sido referência para a crítica artística, tem inspirado coleções de moda, é tema de festas de música brasileira em capitais como Rio de Janeiro e São Paulo e foi até mesmo tema de um projeto para a construção civil, como o condomínio “Tropicália” da Odebrecht em 2011. Todas estas referências foram conteúdo reproduzido por jornais como O Globo, periódico diário do Rio de Janeiro, no Brasil, e The Guardian, de Londres, na Inglaterra3. Há várias décadas o movimento tropicalista vem sendo celebrado e rememorado. Ele aparece como objeto de estudo na academia, na mídia e como referência para estas produções culturais de diversos tipos desde o final da década de 1970. Ou seja, há um período na história brasileira em que, devido à censura da ditadura militar não se podia falar no movimento, retomá-lo ou celebrá-lo. Mas assim que esta censura se arrefece, mesmo antes da implantação da democracia, ele volta a aparecer, como por exemplo nos estudos de Heloísa Buarque de Hollanda e Celso Favaretto, ambos de 1979. É por isto que não considero neste trabalho que as citações feitas ao tropicalismo em produções posteriores ao período de duração do movimento sejam um resgate ou uma “sobrevivência” de sua memória, muito menos algo que tem sido feito apenas nos últimos cinco ou dez anos4. A memória tropicalista é uma “presença” constante no imaginário de uma parte da produção artística, intelectual e cultural brasileira. A percepção desta presença me permitiu constatar que o movimento tropicalista é uma influência presente no seio da cultura brasileira atual. Há uma constante referência sendo feita a seu nome, a seus feitos e à sua “estética”. Mas como o movimento adquiriu esta visibilidade que parece, à primeira vista, maior do que outros movimentos culturais e artísticos que aconteceram contemporaneamente a ele, como a Jovem Guarda e a MPB? 2 Ver BASUALDO, 2007 e DUNN, 2008. 3 Ver como referência o site: http://tropicalia.com.br/. Sobre a polêmica construção da Odebrecht, ver O Globo, 31/08/2012: <http://oglobo.globo.com/politica/odebrecht-assina-acordo-com-caetano-desiste-de- batizar-condominio-como-tropicalia-5970256>. E, sobre a Tropicália na moda atual (de 2008), ver a matéria publicada on-line: “Totem revive a Tropicália no Fashion Rio”, em: <http://ego.globo.com/Gente/Noticias/0,,MUL593800-9798,00- TOTEM+REVIVE+A+TROPICALIA+NO+FASHION+RIO.html. Último acesso em: 28 abr. 2014 4 Dunn (2008) trabalha com a ideia de “revivescência” do tropicalismo quando analisa as diversas manifestações feitas nos últimos anos que se remetem ao movimento da década de 1960 ou o celebram. 3 Quais as características dele que impactam e são relevadas nestas novas produções artísticas, a exemplo do filme de Machado? O filme de Machado foi escolhido como objeto deste trabalho porque, diferentemente dos outros exemplos citados como parte desta produção cultural influenciada pelo movimento tropicalista, ele busca refletir sobre a história do tropicalismo, seus marcos, seus atores e seu contexto político, reivindicando a criação de um novo discurso sobre esta história. Enquanto os demais exemplos se utilizam do movimento tropicalista como algo já dado, que significa apenas pela sua imagem ou estética, o filme levanta a questão da complexidade da formação de um movimento cultural, a relação deste com o contexto da ditadura militar e traz, como resultado de sua pesquisa, novas imagens e informações sobre o período entre 1967-1972. Neste artigo, descrevo alguns dos elementos contidos neste documentário para demonstrar a centralidade que a música popular adquiriu no debate artístico da década de 1960 e o papel protagonista dos músicos no próprio movimento tropicalista. Mostro também a relação desta produção artística com a especificidade do período político brasileiro, que é enfatizada pelo filme. Esta descrição é uma forma de abordar o que é o discurso “contemporâneo” sobre a história da tropicália que foi anunciada pelo diretor. Esta descrição aborda que a centralidade do papel da música acontece tanto no desenrolar do movimento tropicalista, quanto nas representações que são feitas dele hoje. Ressaltando que isto se dá mesmo que seja sabido que a tropicália não se configurou apenas enquanto um movimento musical, mas um movimento amplo das artes. Este papel assumido pela música no movimento tem uma forte ligação com a configuração do campo social e do campo cultural brasileiro na década de 1960, que consolidou o processo que torna a música popular brasileira um locus privilegiado de debate intelectual, principalmente devido ao engajamento de compositores e intérpretes no debate político e nas questões sociais da época. Santuza Naves (2010) chamou esta produção musical peculiar de “canção crítica”. Identifico o que a autora descreve como tendo um reflexo na configuração do campo cultural ainda hoje no Brasil, em que a música popular brasileira, especialmente a tropicalista, que trouxe o diálogo entre a vanguarda europeia e a tradição nacional, foi e continua sendo exportada como símbolo da arte brasileira mais desenvolvida. A música popular brasileira da década de 1960 se tornou umdiscurso artístico e social intelectualmente legitimado sobre o Brasil. 4 As novas produções que trazem o tropicalismo como referência ou como conteúdo se utilizam desta imagem englobante e total do movimento, mesmo que privilegiando a música, pois esta é seu principal produto de sucesso. “Vocês não estão entendendo nada!” A tropicália foi considerada um movimento cultural que, além da produção coletiva e da força do sentido do grupo em seu seio, promoveu um debate e uma transformação na arte brasileira que não diziam respeito unicamente à questão estética – como fora outrora a postura dos músicos da Bossa Nova (NAVES, 2012). A tropicália se configurou reivindicando a construção de uma nova imagem do Brasil a partir da criação de uma forma experimental e inovadora para as diferentes linguagens artísticas. Assim, o que chamamos hoje “tropicália” ou “movimento tropicalista” configura-se por uma série de ações artísticas que buscou se fixar no contexto da arte brasileiro construindo um diálogo com questões que refletiam sobre a condição política ditatorial do país, a desigualdade social que caracterizava a forma de organização social e estabelecendo um diálogo com demais segmentos artísticos de massa. A tropicália tentava se inserir neste contexto como um movimento de arte de vanguarda, mas assumindo uma concepção de vanguarda que se assemelhava mais ao Modernismo brasileiro do que às vanguardas europeias do início do século XX. Pois a tropicália estabeleceu como fundamental o diálogo entre a criação experimental, base da vanguarda europeia, com o resgate da tradição da cultural nacional. Ao falar a todo momento neste texto sobre “cultura”, é preciso especificar que o termo aparece aqui de formas diferentes, ora como um conceito antropológico, ora como um uma expressão corrente da linguagem cotidiana para se referir aos trabalhos artísticos, intelectuais, acadêmicos, ao meio de produção de notícias, etc. Mesmo aplicando-o de formas diferentes, me refiro sempre a uma ideia comum de cultura, no sentido de dizer sobre um sistema de comunicação, um código que é utilizado e interpretado de forma comum pelos indivíduos de uma sociedade. Este código é mais ou menos estável. Ele permite a comunicação, ao mesmo tempo em que os indivíduos agem sobre ele de forma única no processo de interpretação. Os artistas trabalham com estes códigos de forma a traduzi-los, reinventá-los, confirma-los, etc., dialogando uns com os outros (VELHO; VIVEIROS DE CASTRO, 1980). 5 A cultura, tal como a entendia Max Weber (1979), é um “segmento finito do decurso infinito e destituído de sentido próprio do mundo, a que o pensamento conferiu um sentido e uma significação”. Somos homens de cultura: adotamos uma posição frente ao mundo e lhe atribuímos sentido. Assim, o conhecimento de uma realidade cultural é uma forma de conhecimento subordinada a pontos de vista particulares, em que é preciso referir os elementos da realidade a valores culturais universais e destacar as conexões revestidas de significado. Falar em “cultura brasileira” pode ser duplamente problemático. Primeiro, porque esta expressão pode pressupor uma totalidade cultural cujas fronteiras da cultura e da política coincidem, prejudicando a identificação de códigos diferentes dentro de uma sociedade moderna e complexa. E, segundo, porque pode pressupor uma homogeneidade cultural. Porém, o termo “cultura” e a expressão “cultural” serão usados aqui no sentido de decodificar e identificar relações entre os códigos, que estão sendo construídos de forma constante pelos indivíduos que integram o tecido da cultura (enquanto uma esfera de valores na composição da vida social – e não como uma reificação), os artistas que revelam esta decodificação e os sociólogos e antropólogos que analisam e relevam as diferenças existentes neste âmbito. “Tropicália”, o documentário dirigido por Marcelo Machado (2012), é uma narrativa cronológica do intervalo entre os anos de 1967 a 1972, que mostra o contexto e o desenrolar do que ficou conhecido como movimento tropicalista. Assim como a maior parte da bibliografia sobre o tema, é considerado no filme que o movimento tenha durado dois anos, de 1967 a 1969, iniciado com a busca de Caetano Veloso e Gilberto Gil por uma transformação estética, aliada ao enfrentamento de uma concepção de nacionalismo e engajamento político presente na arte brasileira naquele momento. Seu fim teria ocorrido com o exílio político dos músicos, que vai de 1969 até 1972, e também de outros artistas que decidem/precisam deixar o país naquele momento de censura (FAVARETTO, 1979; BASUALDO, 2007; COELHO, 2010). O filme traça a relação do momento e da movimentação artística destes anos imbricada ao panorama político. A violência desencadeada pela censura do governo ditatorial, e agravada nestes dois anos destacados no filme, foi definidora do que podia ser expressado na arte brasileira, no como isto era feito e por quem. O filme mostra, principalmente através do encadeamento de imagens destes anos, que a condição política 6 brasileira moldou as trajetórias, as formas de ação, as pautas e os debates de composição do cenário cultural. Destaco aqui uma cena que me parece estruturante na montagem do filme de Machado. É a primeira cena, que abre o filme, uma imagem inédita recuperada de um arquivo: trata-se de uma apresentação de Caetano Veloso e Gilberto Gil em Lisboa, em agosto de 1969. Ali, os dois compositores são apresentados como “nomes da moderna música de vanguarda do Brasil” e responsáveis por um movimento musical que se inseria dentro de um movimento geral chamado “tropicalismo”. O apresentador pergunta a Caetano e Gil se o que eles estavam fazendo naquele momento ainda podia ser chamado de “tropicalismo”. Caetano Veloso assume a posição e responde que ele e Gilberto Gil, bem como as músicas que produzissem a partir daquele momento, eram “irresponsáveis” ao movimento tropicalista, pois o tropicalismo já não existia mais enquanto movimento. Em seguida, o apresentador do programa de televisão pede que Caetano Veloso explique o que é o tropicalismo. E então a cena é cortada e voltará a ser repetida quando a linha cronológica iniciada em 1967 chega novamente a agosto de 1969. Pude interpretar que fica posto no filme dois posicionamentos a partir daí: 1) que houve um movimento geral denominado “tropicalismo”, que abarcava também um movimento musical; 2) que há uma delimitação de marcos históricos muito claros com a eleição dos anos de 1967 para seu início e o de 1969 para seu fim, legitimando a voz e o discurso de Caetano Veloso na cena citada, quando ele diz que o tropicalismo já não existe mais enquanto movimento. Esta cena dá o tom da narrativa, pois é a única que quebra o enredo cronológico, sendo mostrada duas vezes como um plano sequência interrompido. A concepção sobre o movimento tropicalista contida no filme tende a alargar a concepção da visão tropicália enquanto tomada pelo tropicalismo musical5 ao relacionar 5 Há um debate, desde o “batismo” do movimento com o nome “tropicalismo” pela imprensa, ainda em 1968, sobre a diferença entre “Tropicália” e “tropicalismo”. “Tropicália” era o nome de uma obra de Hélio Oiticica, a qual Caetano Veloso toma emprestado para intitular uma de suas principais canções deste ano. O ano de 1967 dá as bases para que o tropicalismo ecloda e é no ano de 1968 em que ele se consolida, no momento em que também surge a denominação de “tropicalismo” no artigo que Nelson Motta escreve para a sua coluna no jornal Última hora, “A cruzada tropicalista”. É a partir destemomento que há a difusão do termo “tropicalismo” para caracterizar as produções deste grupo de artistas com propostas mais ou menos em comum. Sobre a denominação do movimento e as diferentes fontes, ver o texto “Introdução” de Santuza Naves e Frederico Coelho (NAVES, COELHO, 2007). O termo “tropicália” passa a ser considerado pelos artistas, ainda naquele momento, como o nome que contém a essência do movimento. Enquanto que “tropicalismo” significada a moda explorada pela mídia, uma coisa de momento (CAMPOS, 2008). Há também o estudo de Frederico Coelho, “Eu, brasileiro, confesso 7 imagens ao movimento que vão além das obras que, em geral, são classificadas como tropicalistas. Estas obras são: a instalação “Tropicália”, de Hélio Oiticica, o filme “Terra em transe”, de Glauber Rocha, a peça “O rei da Vela”, do teatro Oficina, o livro “Pan América”, de José Agrippino de Paula e, especialmente, as apresentações das canções “Alegria, alegria” e “Domingo no parque”, de Caetano Veloso junto aos Beat Boys e de Gilberto Gil junto aos Mutantes, respectivamente, no III Festival da Música Popular Brasileira na TV Record. Estas últimas, consideradas deflagradoras do movimento. Estas obras são aquelas que receberam uma espécie de chancela tropicalista. Um todo mais ou menos fechado e estável. Não se questiona na bibliografia6 o porquê de estas obras, e justamente estas, terem tal classificação, mas busca-se compreender o que as liga enquanto já pertencentes a um grupo comum. A classificação destas obras como tropicalistas é algo que deve ser discutido e problematizado, mas não aqui, em que busco compreender a centralidade da música no seio do movimento tropicalista e como isto faz com que ele seja uma influência e seja utilizado como referência para as mais diversas produções artísticas e culturais atuais. No filme de Machado, todas estas obras são mostradas junto a alguma declaração de seus autores. Há imagens com declarações destes artistas sobre o que estavam fazendo, como por exemplo a de Glauber Rocha, que diz em uma declaração que Terra em transe, Tropicália [a instalação de Hélio Oiticica], Rei da Vela, relações existem, mas são relações... eu não sei se tem relação nenhuma, não. Esse papo, aliás, eu já enchi o saco. De forma que tropicalismo pra mim é Caetano e Gil. O teatro de José Celso Martinez é a explosão do teatro revolucionário no Brasil, que lidera a luta do teatro no terceiro mundo. E Terra em transe é Terra em transe, que é filme meu e eu não vou falar Junto a esta declaração de Glauber Rocha, imagens do filme “Terra em transe” são mostradas, enquanto se ouve a introdução da música “Tropicália”, de Caetano Veloso, acompanhando a imagem. Assim, reforça-se a ideia trazida pelo discurso de Caetano Veloso, já narrada em seu livro “Verdade Tropical”, de que o filme de Glauber Rocha, assim como as demais obras citadas, influenciou a concepção do tropicalismo como um movimento que parte das ações dele e de Gilberto Gil em suas apresentações musicais (VELOSO, 1997). minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970”, que aprofunda a discussão sobre a semântica e a semiologia dos termos Tropicália x tropicalismo musical (COELHO, 2010). 6 Como em Süssekind, 2007. 8 No filme de Machado, o tempo todo a música é utilizada como a expressão artística que dá tom à narrativa. E mostra-se ali que muitas das produções posteriores às obras tropicalistas, citadas acima, que são feitas ao longo da duração do movimento, tem uma relação intrínseca com as canções que são compostas – ou seja, a música do movimento tropicalista se comunicava através de outros suportes, além do formato “canção” e de sua apresentação pelos compositores e intérpretes. A música construiu neste período uma linguagem visual muito própria a ela, fruto de seu diálogo com as artes plásticas e visuais, com o cinema e o teatro, que se expressava nos figurinos, nas performances dentro e fora do palco e nas capas de discos. O filme mostra imagens sucessivas dos músicos – Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes, Gal Costa - com os cineastas, com os artistas plásticos, suas apresentações nos festivais, a inserção deles nos programas de TV, nos debates estudantis e nas passeatas contra a ditadura (meio em que Glauber Rocha, Hélio Oiticica e José Celso Martinez, por exemplo, não apareciam e/ou não são mostrados). Imageticamente, o filme de Machado funde as produções artísticas diversas e heterogêneas do período de 1967 a 1969 em sua narrativa. Estas imagens – os Parangolés e Tropicália de Hélio Oiticica, as capas de disco feitas pelo designer Rogério Duarte, as passeatas e manifestações políticas, os filmes de Glauber Rocha, José Agrippino de Paula, Leon Hirzman e André Oliveira - são coladas ali, sobrepostas, fundidas. Mas é a música que, como trilha sonora, está dando sentido a este boom de imagens no filme. Os debates, conflitos e mudanças ocorridos no meio musical na década de 1960 foram propulsores de uma transformação estética radical da arte brasileira que não ficou restrita à música, por isso é frisado sobre seu diálogo com as demais linguagens artísticas para formação do “movimento”. Há a centralidade da música popular neste cenário por causa de uma série de razões. Uma delas é a de que a música era a forma de arte com maior penetração e absorção entre as camadas sociais. Era a expressão artística que veiculava nos meios de comunicação de massa como o rádio e a TV (em expansão no Brasil na década abordada). Na TV, em horário nobre, aconteciam os Festivais de Música Popular Brasileira e os Festivais Internacionais da Canção, iniciados em 1965 e 1966, respectivamente, e que a partir de 1967 gestaram uma disputa ideológica entre a MPB e o tropicalismo. A música tinha, portanto, grande inserção no âmbito da vida social, em seus debates e no cotidiano de uma determinada camada da população das cidades. 9 O que quero chamar atenção é que é dito imageticamente e discursivamente no filme de Machado que o movimento tropicalista não é apenas um movimento musical. Que ele só se configurou enquanto movimento porque houve o diálogo entre artistas e linguagens artísticas diversas. Mas é a música que, claramente, se sobressai ali e dá o tom e o direcionamento do filme. Tanto que o filme segue o percurso feito por Caetano Veloso e Gilberto Gil, do momento de lançamento das bases do tropicalismo no Festival de 1967, da concepção do disco-manifesto “Tropicalia ou Panis et circencis” em 1968, da prisão e do exílio dos dois em 1968/1969, da passagem dos dois por Portugal e Londres de 1969 a 1972, até o momento em que, novamente os dois, Caetano e Gil, retornam ao Brasil, chegando à Bahia, sua terra natal. Enxergo que o filme de Machado mostra diretamente, assim como os outros exemplos que citei na introdução, que a proporção da influência do movimento tropicalista no seio da cultura brasileira atual gira em torno da música. Porém a forma como o filme se refere e se utiliza do tropicalismo em sua concepção é diferente da utilização do tropicalismo como referência para realização de festas de música popular brasileira, como referência para a crítica musical ou para idealização de coleções de moda. O filme documentário de Machado explora a concepção do tropicalismo e a construção de sua história quando elabora uma narrativa que ressalta os episódios relacionados ao evento de forma cronológica. O que é o “tropicalismo” no filme não está dado, sua proposta foi apresenta-lo, mostrando a relação dos músicos com os demais artistas e pontuando, ao mesmo tempo, os eventospolíticos e as ações artísticas ano a ano. E para compreender esta questão da centralidade da música no movimento tropicalista e na incidência que o movimento tem hoje na produção artística e cultural, recorro ao que Santuza Cambraia Naves categorizou como “canção crítica”. Pois, para pensar esta “cultura brasileira” que designo no título deste trabalho, o conceito de canção crítica me permite enxergar a penetração das transformações suscitadas e atribuídas à música para além do campo musical ou mesmo do campo artístico. A “canção crítica” quer dizer sobre o momento em que a música popular no Brasil se tornou o locus por excelência do debate intelectual. O compositor, que passa a ser visto como um artista moderno, se coloca e é percebido como “crítico da cultura” – assumindo um papel e adquirindo um status diferente do que tivera o músico popular até a década de 1940 (NAVES, 2010; 2013). E ele atua desta forma tanto no processo de composição, como externamente a ele, quando se dirige às questões culturais e políticas do país. Assim, 10 segundo Santuza Naves, os compositores populares articularam arte e vida ao estender a atitude crítica para além dos aspectos formais da canção se tornando, assim, um pensador da cultura. E isto, no tropicalismo, não foi apenas o caso dos compositores: vide as posições e produções de Oiticica, Glauber Rocha e Rogério Duarte. O ponto é que a produção da música popular se torna legítima enquanto posicionamento intelectual e envolve todas as demais produções que estavam a sua volta (NAVES, 2007) Diferentemente dos exemplos da introdução, que utilizam o tropicalismo como uma referência que significa alguma coisa já concebida, por exemplo, como a crítica musical que utiliza o termo como sinônimo de vanguarda ou de música que busca mesclar diferentes ritmos, instrumentos e tradições7, o filme de Machado quer cunhar uma concepção própria sobre o que é o movimento e explicá-la ao público. Assim, o filme incorre no risco de cair numa reificação ao qual ele, supostamente, se contrapõe. Pois entendo que o filme também parte da oposição a alguma história da tropicália que supõe que já seja conhecida: por isso o pré-lançamento do filme anunciava que seria trazido uma “visão contemporânea” sobre o movimento e que o cartaz do filme estampa a frase do famoso discurso de Caetano Veloso no Festival de 1968: “Vocês não estão entendendo nada!”. O que posso afirmar quanto à tentativa do filme de responder sua própria questão, o que é o tropicalismo, é que ele deixa expresso algumas relações. Uma delas, é que os eventos e criações artísticas daquele momento são indissociáveis dos acontecimentos políticos daqueles anos de 1967 a 1969 e depois até 1972. Outra, é que há um diálogo entre diversas linguagens artísticas e alguns artistas-chave – que não são apenas aqueles das obras escolhidas como tropicalistas, mas também outros nomes foram e são de fundamental importância para compreensão do movimento: além de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Glauber Rocha, Hélio Oiticica, Agrippino de Paula e José Celso Martinez; também Rogério Duarte, Os Mutantes, Rogério Duprat, Jorge Ben, Gal Costa, Tom Zé, José Carlos Capinan e Torquato Neto. 7 Ver, por exemplo, a crítica musical “O tropicalismo renovado do Maglore” no jornal O Globo. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/o-tropicalismo-renovado-do-maglore-8976406>. Último acesso em: 30 de mai 2014. 11 Conclusão O que entendo com o lançamento de um filme como o de Marcelo Machado é que o tema do tropicalismo não está esgotado, pois por mais que já se tenha pesquisado e falado sobre o assunto nos últimos 40 anos, a pesquisa do filme nos traz como resultado de pesquisa arquivos e imagens inéditos do período. Quanto à incidência do movimento como influência para a produção cultural e artística brasileira atual, posso intentar dizer que o movimento tropicalista adquiriu esta visibilidade, mais do que os outros fenômenos musicais também influentes na cultura brasileira da década de 1960, como a Jovem Guarda e a MPB, por algumas razões: 1) A Tropicália foi um movimento amplo, de diálogo entre linguagens artísticas que convergiram tanto no debate estético formal, quanto no debate sobre a condição político- social do Brasil (ainda que esta convergência não signifique uma homogeneidade dentro do movimento); 2) Porque a música teve este papel central e promoveu a quebra de paradigmas comportamentais com suas ações performáticas, ideias políticas arrojadas e impacto visual – resultado conseguido por mérito, sim, de seus compositores, mas também por causa deste diálogo citado com as demais linguagens artísticas e uma atuação em grupo; 3) A centralidade do papel da música nesta movimentação toma projeções no âmbito da cultura e da vida social por este status da categoria “canção crítica” que se consolida na década de 1960, em que o compositor se legitima enquanto persona intelectual. Assim, a Tropicália é hoje apreendida como um signo do Brasil moderno, o marco da arte brasileira de vanguarda que é exportada, junto com seus artistas, talentos, obras, ideias e, sobretudo, inovação – numa espécie de reversão de um movimento antropofágico ocorrido na produção artística tropicalista naquele momento. O tropicalismo se tornou este fenômeno vitorioso de um momento da arte brasileira, que compõe uma história cultural também vitoriosa e que suplanta a esfera da arte e da cultura, se inserindo diretamente na vida social com a legitimação de seu posicionamento intelectual. Falar da tropicália hoje ou usá-la como referência “em” e “para” novas produções é auto-legitimar uma produção através de um discurso cuja legitimação já está garantida. As demais conclusões as quais eu me propus a chegar no resumo que enviei para o GT, que adentram e propõem novas pesquisas e considerações sobre as teorias e os métodos para se pensar as apropriações culturais contemporâneas da música (tais como 12 na criação e nas formas de circulação da arte hoje – sampleamento, creative commons, distribuição on-line, digitalização, etc.), relacionando-as ao aspectos inovadores trazidos pelo movimento tropicalista neste sentido, serão demasiado longas para esta apresentação e tornarão o debate muito difuso para a ocasião. Referências Bibliográficas ARENDT, H. Walter Benjamin. In: ______. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia de Bolso; 2008. BASUALDO, Carlos. Tropicália: Uma evolução na Cultura Brasileira. Cosac Naify, 2007. BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de História. In: ______. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. 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