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3 
ENTRANDO NA “NAU DOS LOUCOS”: BREVE REVISÃO DA HISTÓRIA DA LOUCURA E 
SEUS DESDOBRAMENTOS 
Bruno Alvarenga Ribeiro; Viviane Aparecida Pinto 
Conexão ciência (Online) v. 6, n. 1 (2011) – reprodução parcial 
1 INTRODUÇÃO 
Em pleno século XXI, ainda é possível identificar no imaginário coletivo os sentidos que, outrora, foram atribuídos à 
loucura. O louco promovido à categoria de doente mental pela psiquiatria, ainda se vê às voltas com o 
enclausuramento. É fato que o doente mental não mais se encontra aprisionado entre os muros dos manicômios, 
todavia, existem muitas ideologias que, de uma forma ou de outra, ainda rondam a doença mental e enclausuram-
na nas teias de um discurso formado tanto por elementos da racionalidade científica quanto por elementos do senso 
comum. 
Nenhum profissional que trabalhe no contexto da saúde mental pode ignorar que existem muitos grilhões 
ideológicos que precisam ser quebrados para que se possa falar de desinstitucionalização do doente mental. A 
desinstitucionalização só acontecerá quando os dispositivos que aprisionam a doença mental forem ressignificados, 
de modo a permitir que o discurso do doente assuma o seu lugar de direito. 
Para que isso possa acontecer, é necessário desvendar os diversos sentidos atribuídos à loucura, ao longo da 
história da civilização moderna. De acordo com Foucault, é na modernidade que a loucura vai ser aprisionada no 
interior dos grandes asilos e do discurso filosófico racional. Foucault é o autor que mais se dedicou ao estudo das 
significações atribuídas à loucura ao longo da modernidade, e a modernidade foi eleita como uma perspectiva dos 
estudos sobre a loucura e seus sentidos, porque é neste período histórico que vão ser construídas aquelas práticas 
sociais que criaram a base para o nascimento da psiquiatria. 
Falar da loucura e de seus sentidos sem fazer referência à obra de Foucault é o mesmo que querer desvendar as 
propriedades nutricionais do ovo estudando apenas a clara. Um estudo que se limitasse à análise da clara se 
mostraria periférico e ineficaz. 
Com a loucura, não é diferente. Qualquer estudo que deseje tratar das significações históricas da loucura, a partir 
apenas da história da psiquiatria, se revelaria periférico e ineficaz, pois a prática psiquiátrica é herdeira de práticas 
sociais anteriores ao seu nascimento como campo do saber médico. Se a psiquiatria é herdeira de práticas sociais 
anteriores ao seu nascimento, ela acaba por herdar também os sentidos atribuídos a estas práticas. 
Condicionada por esses sentidos, a psiquiatria vai repetir na essência – não necessariamente na aparência – todos 
os rituais instituídos como formas de se relacionar com a realidade “estranha” revelada pela loucura. E o próprio 
termo loucura, propositadamente utilizado por Foucault, é prenhe de significações e sua elevação à categoria de 
doença mental não foi suficiente para romper com estas significações e desfazer o fardo que elas representam 
sobre os ombros daquele que, depois de reconhecido como doente, ganhou o direito a tratamento, mas perdeu o 
direito à liberdade. 
Então, este breve ensaio teórico tem como objetivo percorrer o caminho trilhado por Foucault, ao estudar a loucura 
ao longo da história da modernidade. Ao trilhar este caminho, ele pretende evidenciar os sentidos atribuídos à 
loucura até que esta fosse aprisionada pelo saber médico e transformada em doença mental. Mas, sobretudo, este 
ensaio pretende demonstrar como os sentidos atribuídos à loucura não desapareceram quando o louco foi 
“promovido” à categoria de doente mental. 
 
3 ENTRANDO NA “NAU DOS LOUCOS”: A LOUCURA NA IDADE MÉDIA E RENASCIMENTO 
O conceito de loucura sofreu inúmeras mudanças ao longo da história. No intuito de desvendar o percurso feito pela 
loucura durante os tempos, desde a Idade Média até os dias atuais, pode-se iniciar tal 
exposição com as palavras do autor do livro “O que é loucura”, FraysePereira: 
Ao final da Idade Média, o homem europeu estabelece relação com alguma coisa que confusamente designa Loucura, 
Demência, Desrazão. Mas essa relação é experienciada em estado livre, isto é, a loucura circula, faz parte da vida cotidiana 
e é uma experiência possível para cada um, antes exaltada do que dominada. (FRAYSEPEREIRA, 1984, p. 49). 
4 
Ao iniciar a Idade Média, até o final das Cruzadas, o que se abate sobre a Europa é a lepra. 
Banidos das cidades, os leprosos encontram-se envolvidos por um círculo sagrado. Personagens sacros e temidos, eles 
expressam a cólera e a bondade de Deus. A lepra, que é sofrimento, purifica e castiga o pecador. A segregação ritual do 
leproso abre-lhe as portas da salvação. Isto é, sua exclusão compreende outra forma de comunhão. (FRAYSE–PEREIRA, 
1984, p. 50). 
Chega o final das Cruzadas e também da lepra. Dois foram os fatores que determinaram a erradicação desta 
doença: o primeiro deles é a segregação. Com a segregação dos leprosos no interior dos grandes leprosários, 
evitou-se o contágio. O segundo fator foi a ruptura com o Oriente. Com o fim das cruzadas, o Ocidente rompe seu 
contato com os focos de contaminação no Oriente, desta forma, a disseminação da lepra caiu vertiginosamente. 
No entanto, as significações associadas aos leprosos permaneceram. O espaço deixado pelo leproso é ocupado 
pelos pobres, vagabundos e também pelos “loucos”. Simbolicamente, esta prática social significa exclusão e 
reintegração espiritual. Tanto a pobreza quanto a loucura são entendidos como desígnios de Deus e aqueles que 
aceitassem estes desígnios estariam, na verdade, assumindo o seu fardo e, em troca, receberiam a tão almejada 
purificação espiritual. Neste momento histórico, pobreza e loucura são entendidos como uma espécie de purgatório 
terreno. 
Embora num momento posterior ao fim das cruzadas, o louco, junto com outros excluídos, tenha ocupado o lugar 
dos leprosos, durante toda a Idade Média, foi a lepra que assombrou o imaginário coletivo. Com a erradicação da 
lepra surge possibilidade de nascimento de um novo mal, que, aos poucos, irá ocupar o seu lugar no interior das 
representações coletivas. 
Foucault explica que na Idade Média a lepra domina o imaginário coletivo quanto às representações da morte e da punição 
divina. Quando essa doença finalmente desaparece, em função do isolamento dos doentes e da ausência de contato com 
focos da doença no Oriente, após o fim das Cruzadas, sobram centenas de leprosários, lugares de exclusão e isolamento 
social. O imaginário coletivo elege, então, outra figura de punição e exclusão: a doença venérea. Esta, apesar de ocupar, 
por um curto espaço de tempo, o mesmo lugar social e institucional do leproso, não pôde assumir o seu lugar como 
representação da punição divina, porque desde o início era vista como doença médica, apesar das ressonâncias religiosas 
e moral que suscitava. Assim, do século XIV ao XVII o leprosário terá que esperar uma “nova representação do mal” capaz 
de ocupá-lo. É, portanto, essa representação de um poder maléfico, ou melhor, esse signo da Queda do Homem, 
permanentemente presente no horizonte da experiência humana, onde Foucault identifica essa estrutura que será ocupada 
por conteúdos imaginários diversos, sucessivamente. (GAMA, 2008, p. 21). 
Com o Renascimento, o hábito passa ser o de embarcar os loucos em navios. Surge a chamada “Nau dos Loucos”, 
barco estranho que flutua sobre vários rios. 
Mas de todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram, 
esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma existência facilmente 
errante. As cidades escorraçam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram 
confiados a grupos de mercadores e peregrinos. (FOUCAULT, 2005, p. 9). 
Sobre a “Nau do Loucos”, que, para Foucault, encerra um sentidosimbólico e, ao mesmo tempo, descreve uma 
prática social real, Passos e Barboza relatam que: 
as cidades querendo se ver livres de seus loucos, embarcavam-nos, fazendo-os percorrer principalmente os rios do norte e 
leste europeus, e, em cada localidade que aportavam, eram reembarcados. Focault lê nesse gesto, que impige ao louco 
uma condição de prisioneiro da passagem – isto é, de passageiro eterno, sem destino e de origem ignorada –, uma 
metáfora do modo ambíguo e prenhe de significações como a loucura é percebida na Renascença. (PASSOS; BARBOZA, 
2009, p. 48). 
Tentando sintetizar as significações atribuídas à loucura no Renascimento, mais adiante as autoras acrescentam: 
No Renascimento, o mundo está povoado pelo Diabo, por seres imaginários tenebrosos. Nessa barca louca, o louco parte 
para um destino incerto. Simbolicamente ele parte para o outro mundo (“todo embarque é potencialmente o último”), e é do 
outro mundo que chega o louco que desembarca na cidade. (PASSOS; BARBOZA, 2009, p. 48). 
No entanto, fazendo referência à obra de Foucault, Passos e Barboza advertem: 
Isto não significa que os loucos fossem corridos das cidades de modo sistemático. Existiram, durante toda a Idade Média e 
a Renascença, casas de detenção para os insanos, as quais não tinham qualquer objetivo de tratamento e só aceitavam os 
loucos da própria cidade. Eram principalmente os estrangeiros escorraçados. Foucault ressalta essa prática porque parece 
corresponder ou metaforizar certas significações sobre a loucura dominantes na época. Assim, predomina uma visão da 
loucura muito próxima da morte, do inumano, do sobrenatural. (PASSOS; BARBOZA, 2009, p. 48). 
5 
Então, por toda a Europa, circulavam os navios abarrotados de pessoas indesejadas, e, entre elas, estavam os 
loucos. Portanto, embarcados em navios, os loucos navegavam sem destino. 
Com efeito, embarcar os loucos é assegurar-se de que partirão para longe e serão prisioneiros de sua própria partida. É 
uma purificação e uma passagem para a incerteza da sorte. A água e a navegação asseguram essa posição altamente 
simbólica da loucura: encerrado no navio de onde não escapa, o louco é entregue à correnteza infinita do rio, à fluidez 
instável e misteriosa do mar. É o prisioneiro da mais livre das rotas. (FRAYSE–PEREIRA, 1984, p. 51). 
Se, por um lado, durante a Renascença, a loucura significou uma experiência sobrenatural, desígnio de Deus e, por 
vezes, chegou a significar algo inumano, símbolo do anúncio da morte, por outro lado, foi muitas vezes comparada à 
sabedoria. Por trás da genialidade de grandes pensadores, como Erasmo de Roterdã (14661536) e Montaigne 
(15331592), pesava a dúvida da loucura. Não se sabia se a genialidade destes e de outros autores era algo próximo 
à loucura ou se eles eram realmente sábios. FraysePereira se refere a este momento da seguinte maneira: 
até o final do século XVI não havia fundamento para a certeza de não estar sonhando, de não ser louco. Sabedoria e 
loucura estavam muito próximas. E a grande via de expressão dessa proximidade era a linguagem das artes: a pintura, a 
literatura, sobretudo o teatro que, no final do século, vai desenvolver a sua verdade, isto é, a de ser ilusão: “algo que a 
loucura é, em sentido estrito”. (FRAYSEPEREIRA, 1984, p. 59). 
Portanto, até que o racionalismo moderno lance seus tentáculos sobre a loucura, esta permanecerá muito próxima 
da sabedoria. 
 
4 ATRACANDO A “NAU DOS LOUCOS”: DA “GRANDE INTERNAÇÃO” AO NASCIMENTO DA PSIQUIATRIA 
Com o início do século XVII, não mais são utilizados os barcos. A loucura se depara com o hospital, ou seja, na 
Europa, surgem as chamadas casas de internamento, locais para onde são destinados os “alienados”. No mais, a 
loucura é aprisionada pelo discurso filosófico, saber que se estruturou no interior de uma nascente sociedade 
burguesa. 
Nessa época, todavia, a exclusão não se deu apenas ao nível de uma experiência filosófica. Cria-se um conjunto de 
instituições, através do qual a dominação e o silenciamento da loucura se efetivam. 
Adiante, será demonstrada a função social destas instituições. Por ora, é interessante debruçar sobre a relação da 
loucura com a filosofia moderna, relação que se dá pela via da exclusão, do não ser. Desta forma, será possível 
captar o sentido atribuído à loucura na Idade Clássica, momento que, segundo Foucault, acontece “A Grande 
Internação” A Grande Internação é o período que compreende o século XVII até o final do século XVIII, momento 
em que houve uma vertiginosa expansão das casas de internação. O período da “Grande Internação” se encerra 
com o nascimento da Psiquiatria (final do século XVIII e início do século XIX), o que não quer dizer que as 
internações deixaram de acontecer, mas apenas que elas passaram a adquirir um status científico conferido pela 
incipiente psiquiatria. Após o fim do período da Grande Internação, inicia-se o período da clínica psiquiátrica. 
Foucault trata desta clínica de uma forma mais detida em seu livro “O Nascimento da Clínica. Neste momento, 
a loucura se vê privada do direito a alguma relação com a verdade. Sendo o “sujeito que duvida” ponto de partida do 
conhecimento verdadeiro (como é rigorosamente demonstrado pelo filósofo), a loucura jamais poderá atingilo, pois o ato de 
duvidar implica o pensamento e aquele que pensa e, por princípio, anula essa possibilidade. (FRAYSEPEREIRA, 1984, p. 
61). 
Com o pensamento moderno, a loucura é equiparada a não Razão. Como a verdade só poderia ser conhecida, 
segundo o cartesianismo, mediante o exercício da razão, o louco se vê privado da possibilidade de apreendê-la. 
Na idade moderna, mais especificamente no século XVI, a loucura irá ser confiscada por uma razão dominadora. Baseada 
na máxima “Penso logo existo”, de Descartes, a humanidade passa a entender e ver a loucura “em relação” à sanidade e, 
ao louco, como alguém desprovido de razão e, portanto, distante da verdade. O racionalismo moderno irá separar a 
sabedoria da loucura. Se for sábio, não pode ser louco. Se for louco, não pode ser sábio. (HEIDRICH, 2007, p. 2526). 
Segundo Passos e Barboza (2007, p. 49), a separação da loucura e sabedoria serviu à visão crítico moral e ao 
projeto de saneamento das cidades. Essa visão fez desaparecer as significações da loucura que, no Renascimento, 
era pensada como uma experiência ao mesmo tempo mística e trágica. Como consequência a loucura é inscrita na 
lógica da desordem. Se é desordem deve ser contida ou reprimida. 
Em 1656, por meio de um decreto, é fundado, em Paris, o Hospital Geral. A fundação desta instituição é, segundo 
Foulcaut (1984), um marco para o século. O Hospital Geral reúne sob uma única administração vários 
6 
estabelecimentos que não têm como objetivo o tratamento do louco, mas sim o recolhimento dos pobres da cidade, 
pois estes representavam um grande incômodo para o planejamento urbano. Ou seja, o Hospital Geral não possui 
caráter médico, mas sim um caráter de albergamento. A designação “hospital” foi utilizada como sinônimo de 
hospedaria. 
O Hospital Geral era uma forma do Estado exercer controle sobre a população. Sendo uma medida assistencial, 
cuidava daqueles que a sociedade não queria ou, simplesmente, não podia. Como instância jurídica decidia, julgava 
e executava. Era administrado pelo rei, em conjunto com os poderes da polícia e da justiça. Como diz FraysePereira 
(1984, p. 63), “é uma estrutura da ordem monárquica e burguesa (acatada pela Igreja) junto ao mundo da miséria e 
que se alastra por toda a Europa”. A partir do ano de 1676, na França, todas as cidades possuíam, pelo menos, um 
departamento do que se convencionou chamar de Hospital Geral, instituição foi criada com o objetivo de suprimir a 
mendicância e a ociosidade, vistas como fontes das desordens. Na verdade, as casas de internamento também 
serviam como casas de trabalho forçado. O internamento, alémde ser uma prática de exclusão social, servia como 
medida de estímulo à economia. 
No século XVII, a economia européia atravessa períodos de crise que geram queda dos salários e desemprego. Nesse 
contexto, o sentido do internamento oscila. Nos períodos de crise, quando a mendicância aumenta vertiginosamente, 
prendem-se os ociosos e a vida social é protegida contra possíveis revoltas. Busca-se controlar a tensão social. Mas fora 
dos tempos de crise, quando há emprego e altos salários, as casas de internamento oferecem mão de obra barata. 
(FRAYSEPEREIRA, 1984, p. 65). 
Gama (2008, p. 24) diz que “as oscilações do capitalismo marcam uma maior ou menor quantidade de pessoas 
internadas”. “Constituíam-se, os internos, de indivíduos com problemas diversos, mas unidos pela exclusão social e 
econômica.” (GAMA, 2008, p. 25). “Portanto, os loucos passam a ser internados no século XVII, independente de 
qualquer concepção de tratamento ou cura. Eles fazem parte de uma parcela discernível da sociedade, aqueles que 
não trabalhavam ou perturbavam a ordem pública.” (GAMA, 2008, p. 25). 
Diante de tantos significados que orbitam em torno da prática do internamento ao longo da Idade Clássica, é bom 
questionar: o que é o internamento? Na concepção de Foucault, o internamento (2005, p.55) é um “amálgama 
abusivo de elementos heterogêneos”, ou seja, é uma prática social que dá origem a uma população misturada e 
confusa, definida pelos valores morais da razão que tentava negar a miséria e a ociosidade. 
Estranha superfície, a que comporta as medidas de internamento. Doentes venéreos, devassos, dissipadores, 
homossexuais, blasfemadores, alquimistas, libertinos: toda uma população matizada se vê repentinamente, na 
segunda metade do século XVII, rejeitada para além de uma linha de divisão, e reclusa em asilos que se tornarão, 
em um ou dois séculos, os campos fechados da loucura. (FOUCAULT, 2005, p. 102). 
Durante a era clássica, após surgir o internamento, os loucos tiveram a mesma sorte de todos os “imorais”. Na 
segunda metade do século XVIII, começam a surgir protestos contra essa situação, feitos pelos próprios internos 
(prisioneiros políticos que aumentaram de número devido à revolução burguesa) que não estavam satisfeitos com o 
fato de serem confundidos com os loucos. Assim, a loucura representava o papel de uma injustiça no interior das 
casas de força, uma injustiça contra os outros. 
Com o tempo, o internamento mostra-se como um erro econômico e um financiamento arriscado. 
Contudo, ao mesmo tempo em que o internamento sofre essa crítica política que questiona sua função de repressão, crises 
econômicas chegam a abalar a sua própria existência. Isto é, o internamento acaba revelando-se uma medida incapaz de 
agir sobre os preços e resolver o desemprego. Do ponto de vista econômico, sua eficácia é posta em questão. 
(FRAYSEPEREIRA, 1984, p. 77). 
Dessa forma, recoloca-se a população internada no circuito da produção, oferecem-se mais braços para a indústria 
que emergia, bem como se reformulam as medidas de assistência. 
Há aí toda uma reabilitação moral do Pobre, que designa, mais profundamente, uma reintegração econômica e social de 
sua personagem. Na economia mercantilista, não sendo nem produtor nem consumidor, o Pobre não tinha lugar: ocioso, 
vagabundo, desempregado, sua esfera era a do internamento, medida com a qual era exilado e como que abstraído da 
sociedade. (FOUCAULT, 2005, p. 405). 
Se, na Idade Média, a loucura foi “santificada”, no século XVII, ela foi apreendida no interior de um tecido moral. Já 
no século XVIII, a loucura tornou-se parte da economia, de modo que os loucos e os pobres tornaram-se 
importantes para a riqueza e retornaram à comunidade da qual haviam sido excluídos pelo internamento. No 
entanto, o retorno do louco à comunidade é marcado por um novo confinamento: o confinamento familiar. 
7 
O louco visto como um perigo foi confinado à família. Cada família mantinha em casa o seu louco, enquanto aquele 
que nada possuía restava vagar pelo campo ou cidade, sobrevivendo da caridade ou da realização de pequenos 
trabalhos. Então, como medida de proteção para maior segurança da sociedade, articulou-se a mesma ação 
utilizada contra os animais daninhos. Decretou-se uma sanção penal que incidia sobre aquelas famílias que 
deixassem seus loucos vagarem livremente pela cidade, perturbando a ordem. 
Obviamente que o confinamento do louco no interior da família não demorou a ser reconsiderado e, aos poucos, a 
idéia da criação de casas reservadas apenas para os insensatos foi se configurando. Isso aconteceu porque a 
sociedade burguesa sentiu-se obrigada a proteger do louco os interesses do homem privado. 
No fim do século XVIII, acreditava-se na loucura como um erro que se enraizava na imaginação e que, quanto mais 
o louco fosse corporalmente coagido, mais a sua imaginação seria afetada. Isto é, quanto menos ficasse livre, mais 
louco se tornaria o louco. Persistem, portanto, duas visões sobre o internamento. Numa primeira visão, ele era 
concebido como uma medida assistencial, um dever para com aqueles que não podiam prover a si mesmos, e como 
uma medida de segurança contra os perigos da loucura. 
Numa segunda visão, o internamento era entendido como um meio de organização da liberdade. 
Sendo um meio de organização da tão sonhada liberdade, que restituiria ao louco a sua sanidade, este ganha novo 
sentido e passa a ser visto como tratamento. Estão lançadas as bases para o surgimento do modelo de tratamento 
asilar, proposto pela Psiquiatria de Pinel no século XIX. E é graças aos espaços das casas de internamento que a 
medicina pôde se apropriar da loucura como objeto de conhecimento. Dito de outra forma, os asilos se 
transformaram no laboratório da incipiente psiquiatria e o louco numa cobaia de um saber que exerce sobre a 
loucura o seu poder. 
É neste momento (século XIX) que o internamento passa a ter valor terapêutico e a loucura é elevada à categoria de 
doença mental. Com a elevação da loucura à categoria de doença mental, forja-se uma relação entre asilo e 
doença. 
Ligados ao surgimento do asilo figuram os nomes de S. Tuke, na Inglaterra, e de Ph. Pinel, na França. Tuke não era 
médico, mas membro de uma associação protestante (Quacre). Pinel não era psiquiatra. Os asilos montados por ambos 
distinguem-se sob vários aspectos importantes, sobretudo no que diz respeito aos valores religiosos, presentes em um e 
ausentes no outro. No entanto, é possível aproximá-los esquematicamente, apenas para destacar o sentido e algumas 
implicações gerais do mundo asilar. Mas, antes de mais nada, é preciso saber que Pinel, Tuke e seus contemporâneos, ao 
contrário do que se costuma dizer quando se faz a história da Psiquiatria, não romperam com as práticas do internamento. 
(FRAYSEPEREIRA, 1984, p. 83). 
Passos e Barboza (2009), tomando como base a obra de Focault e de outros autores que sobre essa obra 
refletiram, resumem em três grandes eixos as características do modelo de tratamento asilar adotado pela incipiente 
psiquiatria do século XIX: 
Primeiro, a associação da noção de periculosidade social – que há mais de um século vinha fundamentando a prática da 
exclusão social e confinamento do louco junto com todo tipo de desviante social, nos grandes hospitais gerais europeus do 
século XVII – ao conceito de doença mental. Decorre desta associação a perpetuação da ligação entre loucura e 
periculosidade social, bem como a superposição de punição e tratamento. Um segundo eixo, decorrente do primeiro, é a 
instauração da relação de tutela com o louco, com restrição de direitos e deveres. E o terceiro é a disputa com a Justiça 
pelo poder de sequestro do louco como alguém mentalmente irresponsável, portanto juridicamente inimputável. Nessa 
disputa, a instituição psiquiátrica irá consolidar-se como aquela que regulará, em consonância com o poder administrativopúblico, mas com métodos repressivos próprios, a população constituída por esse tipo de indivíduo, doente e perigoso. 
(PASSOS; BARBOZA, 2009, p. 50.). 
Segundo Frayse Pereira (1984), a tarefa do asilo era homogenizar todas as diferenças, ou seja, reprimir os vícios, 
extinguir as irregularidades, denunciar aquilo que se opõe aos desejos impostos pela sociedade. Portanto, a única 
diferença possível no interior desta instituição é a distinção entre o normal e o patológico. 
Com a segregação social, o asilo reproduz em seu interior a racionalidade burguesa, transformando-se em um 
espaço de alienação, espaço onde o doente é julgado e condenado como num tribunal. 
isso acabou produzindo no louco o remorso, o sentimento de sua própria culpa. E se, com o tempo, até os castigos morais 
acabarão por ser dispensados, é porque os juízes da loucura estão certos de que aquele sentimento está definitivamente 
inscrito no espírito do alienado. (FRAYSEPEREIRA, 1984, p. 87). 
8 
Então, inicialmente, o médico é instituído como o juiz do louco, por isso, a relação entre paciente e profissional vai 
ser perpassada pelos dispositivos de dominação. Dessa forma, o médico é revestido de muitos poderes e passa a 
falar em nome do louco. Com isso a loucura é silenciada, pois o discurso científico assume o lugar do discurso do 
doente. É a razão se impondo sobre a desrazão, agora de outra forma. 
Só posteriormente, num momento pós reforma psiquiátrica (década de 1960), que o discurso médico vai recuar ao 
seu lugar de direito e o doente será visto como o portador de uma fala, de uma linguagem que fala de si e das 
relações que estabelece com o mundo e, sobretudo, das relações que o mundo estabelece com ele, geralmente, 
relações marcadas pela exclusão, exclusão edificada em nome da ciência, ou melhor dizendo, exclusão edificada 
em nome da razão. 
A partir de então, surge a figura do especialista, figura proeminente, dotada de muito poder, figura que se coloca 
entre o homem e a loucura, pois, sendo detentor de um discurso neutro e impessoal, de um discurso fundado na 
racionalidade dos fatos, o especialista está credenciado a ocupar este lugar. 
Seu discurso é instituído, ou seja, é um discurso que encontra legitimidade na vida social. É um discurso que 
pretende livrar o homem de seus medos e aflições, mas acaba encerrando-o entre os muros da exclusão. 
E o que o discurso competente (científico/racional) faz é dizer ao doente aquilo que ele é: um histérico, um 
depressivo, um esquizofrênico, cuja linguagem é o delírio, a visão alucinada, o comportamento obsceno e o mundo 
irreal e fantasmagórico dos devaneios. Dessa forma, o discurso da Psiquiatria do século XX – e porque não dizer de 
algumas modalidades de Psiquiatria do século XXI – repete na essência o discurso da Psiquiatria do século XIX, 
discurso que, em nome da ciência enclausurou o doente. Mas, na contemporaneidade, tal discurso encontra-se 
blindado pelos métodos e técnicas da ciência e pelo marketing da indústria farmacêutica. Por isso, pode se dizer 
que: 
o discurso psiquiátrico como discurso do especialista sobre a loucura não é uma prática meramente médica [...] ela é uma 
intervenção política, mediadora da sutil violência repressiva que caracteriza as sociedades contemporâneas. A razão pela 
qual a loucura sofre um processo de exclusão, processo este que já tem início na simples percepção do indivíduo como 
“doente” ou como “desviante” (lembrando: a noção de “desvio” pressupõe um “dever ser” contrariado pelo desvio), não é 
médica, mas política. (FRAYSEPEREIRA, 1984, p. 100). 
De tudo que foi dito é possível concluir que, diante de uma sociedade incapaz de aceitar o “diferente”, que reprime a 
diversidade humana, a loucura é uma ameaça constante, uma evasão à realidade, uma força poderosa, que precisa 
ser silenciada pelo poder opressor burguês. 
O que a história da loucura nos revela, pondo em questão toda a cultura ocidental moderna, é que o louco é excluído 
porque insiste no direito à singularidade e portanto, à interioridade. E, com efeito, se a loucura é nesse mundo patologia ou 
anormalidade é porque a coexistência de seres diferenciados se tornou uma impossibilidade. (FRAYSEPEREIRA, 1984, p. 
102). 
5 CONCLUSÃO 
Embora todo o texto tenha focado a discussão sobre os sentidos atribuídos à loucura, desde a Idade Média até a 
contemporaneidade, seria interessante fazer menção a um tema que mantém relação com as reflexões 
desenvolvidas ao longo deste ensaio, mas que não ganhou nada mais que umas poucas linhas na introdução. 
O tema em questão é a desinstitucionalização do doente mental. Se, atualmente, fala-se tanto de 
desinstitucionalização, é porque se reconhece que, apesar de todas as mudanças produzidas pelos diversos 
movimentos reformistas que surgiram no seio da psiquiatria, ainda há muito que ser feito em termos de libertar a 
doença mental de seus grilhões ideológicos. 
Talvez, seja pertinente indagar se a “Nau dos Loucos” atracou ou continua a flutuar pelos rios incertos das palavras, 
das ideologias. Palavras que amarram, prendem e limitam. Palavras que matam, que lançam na correnteza das 
incertezas o destino da luta pela desinstitucionalização do doente mental. 
Enquanto os profissionais da saúde não conhecerem a origem das práticas sociais e dos discursos que repetem, 
dificilmente, criarão condições propícias para que o doente assuma o leme da nau de sua vida. Não cabe ao 
Psiquiatra, ao Psicólogo, ao Enfermeiro, ao Assistente Social ou a qualquer outro profissional escolher o destino em 
que esta nave vai aportar. Podem, no máximo, garantir ao sofredor e à sua família que existe um porto seguro. 
9 
Atracar a nave não significa silenciar o sofrimento ou mesmo negá-lo. Atracar a nave é dar ao portador de 
sofrimento mental a oportunidade de construir, ao seu modo, o porto seguro em que deseja lançar sua âncora, seja 
ela a âncora do delírio, das perturbações do humor ou dos desajustamentos de conduta. Em última instância, 
atracar a nave é restituir ao portador de sofrimento mental a liberdade subtraída por séculos de uma história 
marcada pela exclusão. 
 
 
MICHEL FOUCAULT E A PERSISTÊNCIA DO PODER PSIQUIÁTRICO 
Ciênc. saúde coletiva vol.14 no.1 Rio de Janeiro Jan./Feb. 2009 
Sandra Caponi – Departamento de Saúde Pública 
Introdução 
Sob o título de Le pouvoir psyquiatrique1 , a Gallimard publicou em 2003 a transcrição do curso ditado por 
Foucault no Collège de France entre o dia 7 de novembro de 1973 e o dia 6 de fevereiro de 1974. Nele, Foucault 
retoma a problemática da loucura de uma perspectiva completamente diferente daquela que, dez anos antes, 
articulara A história da loucura na época clássica2(1961). Pretendo analisar de que modo esse texto se vincula 
por uma parte com as teses enunciadas em A história da loucura e O nascimento da clínica3, e por outra com as 
teses enunciadas em Vigiar e punir 4 (1979) e A história da sexualidade I5. 
Este texto pode ser lido como uma continuação dos estudos arqueológicos anteriores. Aparece no ponto de 
cruzamento e de articulação das problemáticas abordadas em A história da loucura2, O nascimento da clínica3 e 
As palavras e as coisas6. O texto transita pelos saberes referidos à loucura, mas também pela anatomopatologia 
clínica e as ciências humanas. Tentaremos analisar de que modo O poder psiquiátrico permite dar continuidade e 
articular as teses enunciadas nos textos arqueológicos anteriores, fundamentalmente em A história da loucura e O 
nascimento da clínica. Ao mesmo tempo, deveremos analisar as distâncias, as diferenças e a novidade que este 
texto representa em relação a esses estudos. Pois, como veremos, Foucault não fala só de saberes, mas também 
de poderes. É esta nova preocupação própria dos estudos genealógicos, a articulação entre saber, verdade e poder, 
a que marcará a distância entre esse texto e os estudos anteriormentededicados à loucura e ao saber médico. 
Deveremos então dar um passo a mais. Não poderemos nos limitar a observar as continuidades e diferenças com 
os trabalhos arqueológicos. Para poder compreender de que modo O poder psiquiátrico se inscreve no interior do 
espaço de preocupação foucaultiano que se inaugura com Vigiar e punir 4 e com A vontade de saber5, deveremos 
realizar uma leitura a posteriori. Tentaremos analisar a relação que existe entre o poder psiquiátrico e esses 
biopoderes próprios da modernidade que Foucault analisa no último capítulo de A história da sexualidade I5. 
Assim, será necessário interrogar a este curso de uma perspectiva dupla: uma primeira perspectiva que nos fala das 
continuidades e diferenças com os textos arqueológicos; uma segunda perspectiva, a posteriori ou recorrente, que 
nos permita repensar as teses enunciadas nesse curso a partir dos conceitos de biopoder, anátomo e biopolítica 
enunciados por Foucault em 19785. 
Da loucura como representação à saúde mental 
Tal parece que a maior diferença existente entre A história da loucura na época clássica2 e o curso de 1973-
19741 está em seus objetos de estudo. No primeiro caso, se tratava de estudar a representação da loucura como 
fenômeno histórico e social analisada do ponto de vista das representações sociais. Foucault dirá que, então, ele " 
tentou estudar fundamentalmente as imagens que foram feitas sobre a loucura no século XVII e XVIII" 1. No 
segundo caso, se trata de analisar já não a percepção da loucura, mas sim os discursos, as ciências, os jogos de 
poder e verdade que tomaram por objeto a loucura. Enquanto em 1961 Foucault insistia na problemática do 
fechamento e violência, em 1974 sua preocupação será outra, será a de analisar o modo como se estabelecem e o 
modo como se circulam as relações de poder dentro desse espaço médico que é a psiquiatria. Agora mais que 
analisar " as imagens construídas em torno da figura da loucura nos séculos XVII e XVIII, os temores que elas 
suscitaram, os saberes que se formaram a partir de modelos botânicos, naturalistas ou médicos" 1, estudará os 
modos como se articulam saber, verdade e poder, por referência a esse fenômeno ambíguo que chamamos " 
loucura" . 
10 
Em O poder psiquiátrico, Foucault se propõe responder a seguinte pergunta: " Em que medida um dispositivo de 
poder pode ser produtor de um certo número de enunciados, de discursos, e, em conseqüência de todas as formas 
de representação que podem surgir dali?" 1 Os dispositivos de poder passam a ser visualizados e analisados como 
instâncias de produção das práticas discursivas e a interrogação se deslocará das representações para os 
dispositivos de poder e os jogos de verdade que se teceram em torno da loucura e do saber psiquiátrico. 
No momento em que Foucault dita este curso, ele está também dedicado à investigação e ao desenvolvimento de 
um novo livro que aparecerá poucos anos depois: Vigiar e punir. Como sabemos, esse texto inaugura um novo 
modo de entender a história das idéias, novos temas e novos problemas começam a ser abordados: o poder 
disciplinar, a normalização, a articulação entre verdade e poder, as estratégias e táticas de controle do tempo e do 
espaço. Nesta etapa genealógica, o interesse pelas " epistemes" se desloca para o interesse pelos " diagramas de 
poder" . 
O curso de 1973-1974 põe em evidência as novas preocupações de Foucault: a relação entre espaço disciplinar e 
espaço asilar; o estudo das diferentes formas que adota o poder disciplinar na polícia, no hospital e na escola; a 
disciplina como instância de normalização; a constituição do indivíduo pela tecnologia disciplinar; a microfísica do 
poder asilar; a descrição do panóptico do Bentham. É possível reencontrar um a um todos os temas que articulam 
Vigiar e punir; é só que aqui não se trata de analisar a instituição penal, nem em sentido estrito a instituição 
psiquiátrica, mas sim se pretende re-problematizar e dar continuidade a duas antigas preocupações de Foucault: o 
hospital e a clínica por uma parte, o psiquiátrico e a psiquiatria por outra. 
Assim, O poder psiquiátrico permite dar continuidade ao A história da loucura e a O nascimento da clínica e, 
ao mesmo tempo, possibilita uma aproximação e uma articulação entre esses dois textos. Mostra a dificuldade em 
separar a história da psiquiatria e a história da medicina. Ainda quando existem práticas, modos de observar e de 
diagnosticar absolutamente diferentes, é por relação à medicina que a psiquiatria encontra sua legitimidade e seu 
prestígio: Tendemos a pensar que a psiquiatria aparece, pela primeira vez como uma especialidade no 
interior do domínio médico [...] Entretanto, entre os fundadores da psiquiatria, a operação médica que 
realizam quando tratam de um paciente não tem, em sua morfologia, nem em sua disposição geral, 
virtualmente nada a ver com aquilo que se está transformando na experiência, a atividade diagnóstica, o 
processo terapêutico da medicina. Seus procedimentos são absolutamente irredutíveis aos da medicina1. 
Porém, é por relação ao hospital, à anatomopatologia e ao nascimento da clínica que deve ser compreendido o 
discurso psiquiátrico: " É essa heterogeneidade a que vai marcar a história da psiquiatria" 1. 
Foucault analisa ambas as disciplinas (psiquiatria e medicina) observando aquilo que as aproxima e aquilo que as 
separa. Mostra que é necessário deter-se nas diferenças, entre a figura do médico e a figura do psiquiatra, entre a 
instituição hospitalar e o asilo, entre as práticas próprias da psiquiatria e aquelas realizadas por um anátomo-
patólogo ou um clínico, no mesmo momento histórico. Detém-se nas diferentes estratégias terapêuticas e nos 
diferentes modos de estabelecer um diagnóstico. 
Na aula do dia 7 de novembro, lemos que o curso: " se inscreve no ponto de chegada, ou em todo caso, de 
interrupção do trabalho que tinha sido realizado anteriormente em A história da loucura na época clássica1. 
Poderíamos dizer que esse curso se inscreve também no ponto de chegada, ou em todo caso, de interrupção, do 
trabalho realizado em O nascimento da clínica3. Exatamente nesse ponto em que o discurso médico deixa de 
interrogar-se por sintomas e lesões orgânicas e começa a preocupar-se com um sofrimento que não pode ser 
localizado em determinado órgão ou tecido, um sofrimento que toma ao homem em seu conjunto. Isto é, esse 
sofrimento que englobamos sob o nome confuso de doença mental ou de transtorno psiquiátrico. 
Não é possível falar de continuidade em relação ao A história da loucura2 sem analisar as importantes diferenças 
apontadas por Foucault como sendo os pontos de descontinuidade e de ruptura entre ambos textos. Como já o 
assinalamos, sua preocupação aqui não será a representação ou as percepções da loucura que reenviam 
necessariamente a uma história das mentalidades e do pensamento, mas será a tentativa de observar os 
dispositivos de poder. Foucault toma distância de uma preocupação excessiva pelo problema da violência, presente 
fundamentalmente no último capítulo de A história da loucura, em que analisava o recurso que Pinel, Esquirol e 
outros faziam da força física. Entende que essa insistência na violência que reenvia a força bruta, desequilibrada, 
passional, física e irregular pode obstruir uma compreensão das relações de poder calculadas, racionais e medidas 
que caracterizam a psiquiatria. O poder, assim como a violência, se refere ao corpo, toma ao corpo como objeto, 
mas ele não responde a forças irracionais e confusas. 
11 
Por fim, estabelecerá certa distância crítica em relação ao conceito de " instituição" antes utilizado como articulador 
em A história da loucura: " Eu não acredito que a noção de instituição seja satisfatória [...] O essencial não é a 
instituição com sua regularidade, com suas regras, mas precisamente os desequilíbrios de poder" 1. Finalmente, 
criticará a referênciaà família como modelo para o asilo. Dirá que não é o modelo familiar o que se introduz no 
psiquiátrico, e que este não pode ser compreendido por referência a vínculos patriarcais, como se afirmava em A 
história da loucura2. 
Em resumo, O poder psiquiátrico1 só pode ser compreendido como continuação de A história da loucura se 
aceitarmos a substituição de certos conceitos que deixarão de ser usados como referência teórica nos trabalhos do 
Foucault: " Violência não é a palavra correta, a instituição tampouco indica o nível de análise no que devemos nos 
situar, e eu não acredito que seja necessário tomar como referência ao modelo familiar" 1. 
Mas, como já apontamos, um dos eixos privilegiados de discussão do texto será a comparação entre os estudos 
médicos, anatômicos e neurológicos, e os estudos psiquiátricos. Ou, dito de outro modo, a distinção entre o corpo 
anatomopatológico, o corpo neurológico e a ausência de corpo que caracteriza a psiquiatria. 
Nas últimas décadas do século XIX, o corpo deixará de ser pensado exclusivamente a partir de tecidos e órgãos, se 
começará a falar de um corpo com potencialidades, com funções precisas, com comportamentos desejáveis. Por 
volta dos anos 1850-1860, se começará a falar de um " corpo neurológico" . Por uma parte, é possível afirmar que " 
o corpo neurológico é ainda o corpo da localização da anátomo-clínica, que não existe oposição mas continuidade 
entre esses corpos" , pois o primeiro forma parte do segundo, " é sua deriva ou sua expansão, e porque ambos 
compartilham o mesmo espírito de localização" 1. Mas, por outra parte, será preciso observar as diferenças: " os 
procedimentos por ajustar a localização anatômica e a observação clínica não são os mesmos quando se trata de 
neurologia e quando se trata de medicina geral ordinária" 1. Falará de uma disposição diferente dos corpos, de outro 
modo de descrevê-los. Enquanto a anatomopatologia penetrava nos ínfimos detalhes do organismo profundo sem 
interrogar a superfície corporal, a neurologia do século XIX se limitará a delinear uma descrição de superfície. Esta 
última descreve condutas, ações e reações, respostas a movimentos concretos de sobre ou de subestimulação 
através da utilização de toda uma nova bateria de estímulos-resposta. Foucault analisa, a partir de documentos de 
Salpetrier, a descrição que um aluno de Charcot realiza de uma doença neurológica chamada ptosis. Descrevem-
se uma série de estímulos-resposta, se ordena ao paciente abrir os olhos e só abre um deles, coloca-se uma luz, 
aproxima-se a luz, afasta-se mais e mais. Paralelamente, a explicação do médico para cada situação concreta 
limita-se a uma descrição da superfície do rosto do paciente, uma minuciosa descrição das rugas, dos movimentos 
das pálpebras, etc. 
Encontramos ali uma descrição absolutamente diferente de aquela que será realizada pela anatomopatologia. Em 
certo sentido, com uma descrição como esta, retornamos a uma sorte de olhar de superfície, de olhar 
impressionista, tal como poderíamos encontrar na medicina do século XVIII, em uma época onde a pele, a 
coloração, o vermelho do rosto e os olhos injetados com sangue eram elementos importantes para o 
diagnóstico clínico1. A anatomia patológica de Bichat e Laenec reduziu estas descrições impressionistas a certos 
signos de superfície que remetiam a uma lesão que só poderia ser descrita após uma operação cirúrgica ou uma 
autópsia. 
Mas, o corpo neurológico e as estratégias descritivas, tal como tinham sido pensadas por Charcot, não permitem dar 
novas explicações às doenças mentais. A idéia de um conhecimento diferencial da loucura fundada sobre a 
anatomopatologia ou a fisiopatologia ou a neurologia, esta " tentativa de inscrição da loucura no interior de uma 
sintomatologia médico geral" , terminará por fracassar no século XIX. " O fracasso desta tentativa de Charcot, o fato 
de que o corpo neurológico fuja da psiquiatra como também foge o corpo anatomopatológico, limitará o saber 
psiquiátrico a três instrumentos de poder" 1. Com o desaparecimento da grande esperança neurológica, não 
encontraremos mais que três elementos: os interrogatórios, a hipnose e as drogas. Três elementos com os quais, 
seja no espaço asilar, seja no espaço extra asilar, o poder psiquiátrico funciona até hoje. 
Então, e diante desse fracasso, resta analisar as diferenças, a heterogeneidade, entre o diagnóstico e a terapêutica 
psiquiátrica e o diagnóstico e a terapêutica própria da anatomopatologia. Existem pelo menos duas diferenças 
fundamentais entre eles: por um lado, a oposição entre um conhecimento diferencial da sintomatologia da doença 
própria da anatomopatologia e a ausência de diagnóstico diferencial própria da psiquiatria; por outro, a oposição 
entre a inscrição de lesões no corpo, órgãos, tecidos e a ausência de corpo que caracteriza o poder psiquiátrico. 
12 
Tentemos explicar rapidamente estas características que não podem ser entendidas separadamente. 
Quando, no século XIX, se articulam a anatomopatologia e a clínica no interior do hospital, se abre a possibilidade 
de estabelecer correlações entre uma lesão localizada no interior de um organismo e os sintomas apresentados 
pelo doente. Então, a partir dessa correlação entre sintomas e lesões, se faz possível individualizar diversas 
doenças, classificar diversos sintomas e estabelecer vínculos entre as lesões e a caracterização de uma ou outra 
doença. É a atribuição orgânica da lesão o que possibilita a construção de diagnósticos diferenciais. Tais signos e 
sintomas correspondem a tal lesão orgânica, e esse quadro nos permite diagnosticar uma determinada doença e 
não outra: uma úlcera é sempre diferente de um câncer de pulmão. 
" No espaço da psiquiatria, a situação é completamente diferente por duas razões" 1. Primeira razão. No caso da 
psiquiatria, embora existam diagnósticos tais como a melancolia, a esquizofrenia ou o transtorno bipolar, não 
importa tanto a precisão nosológica quanto saber se esse paciente é ou não louco. Antes de qualquer 
caracterização, a verdadeira questão que se coloca é uma oposição binária. Está em questão uma decisão 
institucional: se deve ser aceito ou não o internamento do paciente. É dentro desse campo dual que se exerce o 
diagnóstico da loucura. Não se trata de perguntar, como na clínica, " do que ele está doente?" , mas sim de saber se 
" ele está ou não está doente?" Foucault falará de um diagnóstico absoluto da psiquiatria por oposição ao 
diagnóstico diferencial da medicina clínica. 
Segunda razão. A psiquiatria tal como ela surge no século XIX se opõe à medicina pelo papel que o corpo 
desempenha em um caso e em outro. " A psiquiatria é uma medicina em que o corpo está ausente" 1. Podemos 
questionar esta afirmação se observarmos que, a partir de seu início, a psiquiatria se preocupou em encontrar 
correlações entre doenças mentais e lesões. Em alguns casos, esta busca se mostrou infrutífera e, em outros 
casos, se mostrou promissora (Foucault se refere ao estudo do Bayle sobre a paralisia geral e as lesões que 
resultam de seqüelas da sífilis). Entretanto, não é esta preocupação por determinar a lesão, própria da neurologia, a 
que preocupa o psiquiatra. Sua preocupação não é inicialmente a de saber se tal comportamento, tal maneira 
de falar, tal categoria de alucinação se refere a esta ou a aquela lesão, o problema é saber se dizer 
determinada coisa, escutar vozes, conduzir-se de determinado modo caracteriza ou não a loucura1. 
Sobre o poder psiquiátrico 
Se aquilo que caracteriza a medicina, isto é, a possibilidade de estabelecer diagnósticos diferenciais localizando as 
lesões no corpo, está ausente da psiquiatria, se devemos nos limitar a diagnósticos absolutos nos quais a ausência 
de corpo substitui a localização de lesões, não poderemos deixar de nos perguntar pela especificidade da 
psiquiatria. 
Sem referências a lesões em órgãosou tecidos, como estabelecer um diagnóstico binário? Como saber se esta 
pessoa, que escuta vozes ou que se define como todo-poderoso, deve ou não ser remetida a uma instituição 
psiquiátrica? Como provar que essas atitudes indicam uma doença mental? 
Será necessário que a psiquiatria possa estabelecer mecanismos de prova capazes de substituir a constatação que 
a medicina clínica encontrava na observação das lesões. Será necessário poder tornar explicito aquilo que se 
esconde, aquilo que se oculta não no interior do corpo, nos tecidos ou órgãos, mas no interior das condutas, dos 
hábitos, das ações, dos antecedentes familiares, da história de vida. E isso poderá ser realizado através de três 
mecanismos: o interrogatório, o uso de drogas e a hipnose. Deixemos de lado as duas últimas técnicas para nos 
referir ao interrogatório. 
A primeira função do interrogatório é disciplinar. Possibilita uma atribuição de identidade, uma série de enunciados 
de reconhecimento do sujeito como alguém que tem determinado passado, como alguém a quem lhe ocorreram 
determinadas situações no transcurso de sua vida. Para atribuir essa identidade, para construir uma prova da 
existência ou não da loucura nesse indivíduo, o interrogatório pode realizar-se de maneiras diferentes. Já nas 
décadas de 1820-1840, quando ainda não existiam estudos sobre a herança de patologias, a preocupação com as 
diferentes doenças que afetavam ou tinham afetado os ascendentes familiares era um dos itens essenciais dos 
interrogatórios. 
A funcionalidade dessas atribuições não estava vinculada às doenças hereditárias, simplesmente possibilitavam o 
que Foucault chamou um " alongamento do corpo" , correlativo dessa " ausência de corpo" a que já nos referimos: 
Na medida em que não se pode ou não se sabe encontrar no corpo do doente um substrato orgânico para 
sua doença, se trata de encontrar no nível da família certo número de eventos patológicos tais que, embora 
13 
sejam de outra natureza (se seu pai era apoplético ou se mãe tinha reumatismo ou se tem ou não um primo 
idiota) referem-se à existência de um substrato material patológico1. Ou, como afirma Foucault, " a herança é 
um modo de doar um corpo à doença" . Ante a impossibilidade de situá-la em um corpo individual, se inventa um 
corpo, esse " grande corpo fantasmático que é o da família afetada de toda uma série de doenças" 1. 
O interrogatório envia por uma parte à família e por outro aos antecedentes individuais da doença. O lugar ocupado 
pela anamnese na medicina clínica, a preocupação por determinar episódios que poderiam falar de uma possível 
antecipação da doença permitem decidir se trata de uma doença crônica ou degenerativa e classificá-la dentro de 
um quadro nosológico que remeterá a lesões, órgãos, tecidos. No caso da psiquiatria, a operação de procurar os 
antecedentes individuais se refere a outra questão. Enquanto os médicos se preocupam por determinar se existiam 
certos hábitos ou costumes que poderiam ter contribuído ao desencadeamento da doença, por exemplo, se o 
paciente é ou não fumante, se faz ou não vida sedentária, etc., o psiquiatra pretende descobrir nas condutas 
passadas dados que falem de comportamentos ou reações anormais. Ele deve " mostrar que a loucura existia antes 
da aparição da doença, mostrar que esses signos são a condição de possibilidade da loucura" 1, que eles já 
estavam indicando que a doença mental, mais cedo ou mais tarde, seria desencadeada. Trata-se de procurar e 
encontrar signos anunciadores da doença na história de vida, de encontrar as marcas que falam de uma disposição 
à loucura. Desse modo, ele pretende inscrever a loucura em um quadro geral, o quadro das anomalias, pois, " a 
anomalia é a condição de possibilidade da loucura" 1. 
Por fim, o interrogatório, técnica privilegiada que o psiquiatra utiliza com o doente, tem duas últimas características. 
A primeira é estabelecer um cruzamento entre responsabilidade e subjetividade; a outra é a capacidade de fazer 
com que o doente reviva a doença no momento preciso do interrogatório, diante do saber psiquiátrico. No primeiro 
caso, o interrogatório procede de modo tal que as ações cometidas, as faltas que levaram a internamento passam a 
serem visualizadas como sintomas da loucura. 
Afirma-se " você pode ser libertado de toda responsabilidade jurídica ou moral desde que reconheça e desde que 
assuma que essas ações são sintomas incontroláveis de uma doença que o possui e o domina" 1. Mas o objetivo 
final do interrogatório, ali onde encontra sua razão de ser, onde cumpre sua função, é no momento preciso em " que 
o sujeito interrogado não só reconheça a existência de sua loucura delirante mas que ele possa atualizá-la, de modo 
efetivo, no momento do interrogatório" 1. 
Cabe ao psiquiatra a confirmação final. Ele deve presenciar a enunciação da loucura sob a forma do 
reconhecimento, provocando uma confissão: " Sim, eu escuto vozes" . Ou então, deve provocar o 
desencadeamento da doença suscitando as alucinações, provocando a crise histérica. Trata-se, resumidamente, de 
gerar o enunciado confirmatório: " Sim, eu sou louco" . 
Esta técnica não pode ser entendida a não ser dentro da lógica das estratégias e mecânicas de poder: atribuição de 
identidade, diferenciação normalidade- anormalidade, estabelecimento de faltas e responsabilidades e, finalmente, 
atribuição da loucura. E é no interior dessas estratégias de poder que a psiquiatria encontra sua razão de ser. O 
interrogatório possibilita o reconhecimento do doente como louco, mas possibilita também o reconhecimento do 
próprio saber psiquiátrico. Como afirma Pinel em uma entrevista estudada por Foucault: A terapêutica da loucura é 
a arte de subjugar e de dominar, por assim dizer, ao alienado, pondo-o em estreita dependência de um 
homem que, por suas qualidades físicas e morais, está apto para exercer sobre ele um domínio irresistível e 
é capaz de trocar a cadeia viciosa de suas idéias1. 
Como vemos, O poder psiquiátrico se inscreve dentro de outro marco de preocupação diferente de A história da 
loucura. O que interessa agora é traçar uma analítica do poder psiquiátrico: O hospital psiquiátrico do século XIX 
é um lugar de diagnóstico e de classificação, retângulo botânico onde as espécies de doenças são 
repartidas e dispostas […] mas também um campo institucional onde o que está em questão é a vitória e a 
submissão1. 
Nesse espaço, o que está em jogo é a produção e a terapeutização da doença mental a partir de um conjunto bem 
delimitado de estratégias de poder. Todas as técnicas ou procedimentos postos em ato nos asilos do século 
XIX: isolamento, interrogatório público ou privado, tratamentos punitivos como a ducha, as obrigações 
morais, a disciplina rigorosa, o trabalho obrigatório, as recompensas, as relações de preferência entre 
certos médicos e certos doentes, as relações de posse, de subordinação, de vassalagem, de domesticação, 
de servidão do doente ao médico, tudo isso tinha por função fazer do personagem médico o mestre da 
14 
loucura: aquele que a faz aparecer em sua verdade (que explicita o que estava escondido e silencioso), 
aquele que a domina, a apazigua e a absorve depois de havê-la sabiamente desencadeado1. 
Deixemos de lado, por enquanto, as semelhanças que possam existir entre este quadro do século XIX e as 
estratégias terapêuticas que se perpetuaram até nossos dias, ainda quando hoje possamos falar de 
desmanicomialização psiquiátrica, para retornar à história do encerramento psiquiátrico. 
Parece inevitável que nos formulemos uma pergunta: quais as razões que legitimaram e justificaram, por quase 
duzentos anos, a estratégia do encerramento psiquiátrico? É bem conhecida a imagem do Pinel libertando os loucos 
de suas correntes, e é nesse gesto simbólico do humanismo moderno que o encerramento psiquiátrico encontra sua 
legitimidade e razão de ser. O manicômiopermite que se articulem magistralmente dois problemas sociais: a 
garantia de harmonia da ordem social (que exige ser protegida contra a ameaça de desordem) com certas 
exigências de cura que falam da eficiência terapêutica do isolamento e do encerramento. 
Nesse contexto, Esquirol pode enunciar as cinco razões principais para o isolamento dos loucos: (1) assegurar 
a segurança pessoal e da família; (2) libertá-los das influências exteriores; (3) vencer suas resistências 
pessoais; (4) submetê-los a um regime médico; (5) lhes impor novos hábitos intelectuais e morais. Vê-se 
claramente que se trata de uma questão de poder, medir o poder do louco, neutralizar os poderes exteriores, 
estabelecer sobre ele um poder terapêutico e de moralização1. 
É importante destacar que quando a psiquiatria fala de loucura não se refere a julgamentos errados, não se refere à 
falta de correlação entre enunciados e coisas, como ocorria na época clássica. O encerramento psiquiátrico coincide 
com esse momento em que a loucura deixa de perceber-se como engano e passa a ser pensada como " 
anormalidade" . Não se trata de uma preocupação com os falsos julgamentos, como ocorria no caso do Quixote 
magistralmente analisado por Foucault em As palavras e as coisas, mas sim de um modo de atuar, de conduzir-
se, de querer, de desejar, que traduz paixões incontroladas, forças desatadas, moralidades indesejadas. A partir de 
Esquirol e Pinel, a loucura não se inscreve mais sob o eixo " verdade-engano-consciência" e sim sob o eixo " 
paixão-vontade-liberdade" . O psiquiátrico será esse lugar onde a vontade perturbada, as condutas indesejadas, as 
paixões pervertidas se defrontam com a retidão da moralidade socialmente esperada. Entre vontade e terapêutica 
se estabelece um processo de oposição, de luta, de dominação. Como afirma Esquirol: " é necessário aplicar um 
método perturbador, é necessário subjugar o caráter inteiro de certos doentes, vencer suas pretensões, dominar seu 
orgulho" 1. 
Biopoderes e poder psiquiátrico 
Se tentamos analisar estas estratégias a partir do conceito foucaultiano de biopoder, veremos que surgem certas 
questões que precisam ser discutidas. É necessário que nos interroguemos acerca da especificidade desse poder 
disciplinar que não se refere a corpos, pois se caracteriza pela ausência do corpo; que, mais que impor 
classificações nosológicas, distribui binariamente a loucura e a sanidade, a normalidade e a patologia; e que, ao 
mesmo tempo, é capaz de impor mecanismos de sobre-poder do médico sobre o paciente que, em certos casos, 
podem ser melhor identificados com o poder soberano de vida e de morte que com os biopoderes próprios da 
modernidade. 
Deveremos nos perguntar acerca da inscrição desse biopoder psiquiátrico próprio da modernidade no interior das 
estratégias anatomopolíticas referidas ao corpo (já que falamos de corpo ausente) e no interior das estratégias 
biopolíticas referidas às populações (já que falamos de corpo ampliado, de herança, de família). 
Recordemos que o conceito de biopoder foi pela primeira vez enunciado em uma conferência ministrada por 
Foucault, em 1974, na Universidade Estadual de Rio de Janeiro. Essa exposição foi publicada em 1977 com o nome 
de O nascimento da medicina social, publicado em A microfísica do poder7. Nesse texto, Foucault aponta um 
deslocamento significativo nas estratégias de poder, o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera 
simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no 
somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade 
biopolítica7. 
Entretanto, é no quinto capitulo de A vontade de saber que Foucault esclarece e aborda atentamente o conceito de 
biopoder por oposição ao direito de morte que caracterizaria o poder do soberano8. Por fim, essa temática será 
discutida no curso do Collège de France dos anos de 1975 e 1976, dedicado à problemática da guerra de raças e as 
15 
suas relações com o biopoder 9 no curso dos anos de 1977-1978, Segurança, território e população10, e no curso 
dos anos de 1978-1979, dedicado a O nascimento da biopolitica11. 
Foucault considera como feito determinante da construção das sociedades modernas o processo pelo qual a vida, 
isto é, a vida nua, a vida natural que compartilhamos com os animais, passa a ser investida por cálculos explícitos e 
por estratégias de poder. O momento em que a vida ingressa, como elemento privilegiado, no registro da política. É 
por oposição à concepção aristotélica de " homem" que Foucault pensa o exercício da biopolítica: Por milênios o 
homem permaneceu o que era para o Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência 
política; o homem moderno é um animal cuja em cuja política está em questão a sua vida de ser5. 
Como vimos, quando falamos de loucura, não é o corpo mas a moral, as paixões, a vontade, o que está em 
questão, o que deve ser normalizado ou melhor docilizado. No processo de cura, não se trata de dissipar enganos 
de compreensão, percepções enganosas, julgamentos falsos; trata-se, como afirma Esquirol, em 1816, de conseguir 
o retorno às afeições morais em seu justo limite, o desejo de rever a seus amigos, a seus filhos, as lágrimas 
de sensibilidade, a necessidade de abrir seu coração, de reencontrar-se em seu meio familiar, de retomar 
seus hábitos1. Nesse processo terapêutico, nada se refere ao corpo, não se fala de vigor, não se fala de 
capacidades físicas, nem de maximização das forças de trabalho, fala-se de moralidade, de sensibilidade, de 
lágrimas. 
Há algo que parece estar ausente nesse processo de cura. O papel que o corpo desempenha na sociedade 
capitalista. Não é no biológico, no somático, no corporal que se investe como o determinariam as exigências da 
sociedade capitalista. Aqui a realidade biopolítica do corpo parece ter sido substituída por uma realidade pré-
moderna, pré- capitalista, pré-corporal. Ao corpo ausente do louco não lhe corresponde um processo terapêutico de 
restituição do corpo que falta, mas um processo terapêutico moralizador que guarda enormes semelhanças com os 
ritos de purificação religiosos pré-modernos. Dos dois pólos que caracterizam a disciplina, força de trabalho 
aumentada e capacidade de resistência diminuída, ou maior vitalidade, maior docilidade, aqui só achamos o 
segundo pólo. A ausência de corpo da que fala Foucault nos impede de situar a psiquiatria dentro dos saberes 
disciplinares que formam parte da anatomopolítica do corpo humano a qual esse autor se referirá anos mas tarde. 
Mas não é só esta distância em relação ao biopoder próprio da modernidade o que parece ficar em evidência com 
uma releitura a posteriori de O poder psiquiátrico. A psiquiatria, centrada em estratégias de poder tais como o 
interrogatório e o encerramento, fala de um excesso de poder por parte do médico, algo semelhante ao sobre-poder 
real referido por Foucault em A história da sexualidade I5 (1978), que nos obriga a questionar sua afirmação de que 
a psiquiatria faz parte desse diagrama de poder próprio da modernidade ao que chamará " biopoder" . 
A ausência de corpo, o diagnóstico binário, a descrição impressionista (de superfície) dos sintomas, a classificação 
de doenças cujo modelo parece ser mais próximo da classificação botânica de Lineu que da nosologia patológica da 
medicina clínica, o processo de cura diretamente vinculado à restituição de condutas e valores morais, a 
desconsideração relativa à maximização do corpo como força de trabalho tão cara ao capitalismo e, por fim, o 
sobre- poder exercido pelo psiquiatra, parecem falar da persistência de um antigo modelo de poder, um modelo pré-
moderno e pré-capitalista, um resíduo do antigo poder soberano. 
Como afirma Didier Fassin12, as leituras contemporâneas do conceito de biopoder se limitaram a utilizar essa 
referênciaem diferentes contextos sem argumentar sobre seu alcance teórico, com exceção de dois autores 
provenientes da tradição filosófica, Agnes Heller13 e Giorgio Agamben14. Não deixa de ser significativo que as 
duas obras que mais contribuíram para repensar esse conceito se inspiraram no trabalho de Hannah Arendt, 
que fundou, paralelamente a Foucault, uma teoria do governo referido à vida12. Tentamos analisar o curso do 
Foucault de 1973-1974 a partir da articulação entre o conceito foucaultiano de biopoder e a releitura feita por 
Agamben. 
A biopolítica, modalidade de exercício do poder própria dos Estados modernos, no momento que garante a 
sobreposição entre vida e política, possibilita que com um mesmo gesto sejam definidas as populações que 
pertencem ao espaço da vida nua e aquelas que formam parte da vida ativa, isto é, da condição humana que deve 
ser cuidada, estimulada, multiplicada. Mas, para multiplicar a vida e o cuidado com os cidadãos, para garantir seus 
direitos, seu vigor e sua saúde, pode resultar legítimo admitir como precondição a existência de dois mundos, o 
mundo dos direitos e o das " exceções" , o mundo dos corpos que devem ser cuidados e o mundo habitado por 
16 
aqueles que têm o estatuto de vida nua, de vidas que foram postas " fora da jurisdição humana" de modo tal que " a 
violência cometida contra eles não constitui nenhum sacrilégio" 14. 
Basta analisar os documentos que descrevem o tratamento recebido pelos doentes nos hospitais psiquiátricos, 
tantas vezes denunciado e evidenciado por Franco Basaglia e muitos outros15-17; basta pensar em estratégias de 
poder brutais, como o eletrochoque, ou aparentemente banais, como o isolamento punitivo, ainda aplicadas em 
várias instituições psiquiátricas, para verificar a existência e a permanência dessa " vida nua" analisada por 
Agamben como a contraface do biopoder. 
Mas essas estratégias de poder utilizadas classicamente pela psiquiatria não se limitam às instituições fechadas, ao 
encerramento psiquiátrico, elas persistem ainda nos centros de atenção psicossocial toda vez que a intervenção 
terapêutica se limita à reiteração dessas duas velhas estratégias próprias do saber psiquiátrico do século XIX: o 
interrogatório e o uso de drogas. 
Lamentavelmente, ainda hoje muitas vezes a reforma psiquiátrica e a desmanicomialização se limitam a 
descentralizar essas velhas tecnologias de poder. Muitas vezes, por falta de estrutura, de medicação adequada ou 
de programas de inserção comunitária, essas velhas tecnologias de poder próprias da psiquiatria clássica se 
reproduzem nos centros psiquiátricos de referência que no Brasil conhecemos com o nome de CAPS. É verdade 
que a ordem da psiquiatria deixou que ser o internamento e o encerramento; porém, hoje se trata de medicalizar e 
dominar as paixões, os delírios e os maus hábitos pelo uso de psicofármacos que só algumas vezes se mostram 
eficazes. 
Em lugar de docilizar pelo encerramento físico manicomial, dociliza-se pelo encerramento químico, pelo isolamento 
que impõe o uso de psicofármacos que modelam os hábitos e as condutas, que dominam os pensamentos e os 
delírios, que minimizam o risco de violência, mas que, ao mesmo tempo, exigem um custo muito elevado. O custo 
de perpetuar a idéia da psiquiatria clássica de " ausência de corpo do louco" . Só quando imaginamos essa 
ausência de corpo podemos compreender que sejam legitimados e minimizados os graves efeitos secundários e 
indesejados dessas drogas, tais como a impotência, o sono e fadiga permanente, a dor física, a insensibilidade 
corporal. 
Quiçá deveríamos discutir o papel da psiquiatria em esses novos espaços de atendimento. Observar se ainda se 
perpetuam os velhos instrumentos de poder hoje reduzidos a dois: interrogatório e uso de drogas. Verificar se ainda 
persistem as dificuldades de classificação das doenças subordinadas à atribuição de um diagnóstico binário louco-
não louco. Analisar o papel que o corpo, a moralidade, as paixões ocupam no atual discurso psiquiátrico. Então, 
quiçá, possamos descobrir estratégicas alianças entre as os biopoderes próprios da modernidade e a persistência 
de estruturas de saber-poder, pré-modernas e pré-disciplinares. 
 
 
ANTECEDENTES DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL: AS CONTRADIÇÕES DOS ANOS 1970 
PAULIN, Luiz Fernando; TURATO, Egberto Ribeiro. Antecedentes da reforma psiquiátrica no Brasil: as 
contradições dos anos 1970 História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. 11(2): 241-58, maio-ago. 2004. 
Introdução 
Pode-se afirmar que um ciclo histórico da saúde pública no Brasil se concluiu com a aprovação pelo Congresso 
Nacional e sanção do presidente da República, em 6 de abril de 2001, da lei 10.216, para promover a reestruturação 
da assistência psiquiátrica no país. Tal ciclo teve início com a aprovação do projeto de lei do deputado Paulo 
Delgado (PT-MG) pela Câmara Federal, em 1989, posteriormente encaminhado para apreciação do Senado, 
recebendo então várias emendas e substitutivos. A aprovação representou apenas a legalização institucional de um 
movimento que avançou de forma vigorosa desde o final dos anos 1970 e durante toda a década de 1980, naquilo 
que se denominou ‘reforma psiquiátrica’. 
Tomamos como base para o surgimento da reforma psiquiátrica no Brasil a proposta de Paulo Amarante (1995), que 
define a crise da Divisão Nacional de Saúde Mental — Dinsam —, ocorrida em 1978, na cidade do Rio de Janeiro, 
como desencadeadora de intenso processo de discussão sobre a assistência nos hospitais psiquiátricos públicos. 
Esse processo levou à criação do Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental — MTSM. 
17 
Este trabalho se propõe a discutir uma fase imediatamente anterior ao Movimento de Reforma Psiquiátrica, quando 
surgiram de forma mais incisiva os primeiros núcleos de contestação à prática psiquiátrica predominantemente 
hospitalar. É certo que esse recorte histórico não tem o valor de uma periodização rígida. 
No entanto, ele é fruto da intenção de compreender um processo dialético de trajetórias que possuem uma dinâmica 
própria e, em muitos momentos, se sobrepõem, avançam e refluem, coexistindo em cenários distintos. 
O período aqui estudado está compreendido entre 1967 e 1978. O ano de 1967 foi o da criação do Instituto Nacional 
de Previdência Social — INPS —, por meio da unificação dos institutos de aposentadorias e pensões, tornando-se 
um novo paradigma na conformação do modelo médico-assistencial privatista que então se iniciava. E 1978 foi o 
ano de surgimento do Movimento da Reforma Psiquiátrica, nascido no contexto da crise da Dinsam, desencadeando 
a formação do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, embrião de todo um processo de reflexões teóricas 
e práticas inicialmente alternativas no campo da assistência psiquiátrica. 
Por fim, busca-se também revelar com maior ênfase a influência das propostas preventivistas que emergiram no 
Brasil nos anos 1970, inclusive por meio de normas e portarias oficiais. Embora atualmente essas propostas sejam 
consideradas por alguns como algo que não modificou o cerne da estrutura assistencial psiquiátrica, elas não 
podem e nem devem em absoluto ser qualificadas como um movimento secundário, sobretudo ao analisarmos o 
período político institucional e a pequena participação dos órgãos públicos de saúde na definição das estratégias de 
ação. Naquele momento, em que se privilegiava uma prática previdenciária voltada para a compra de serviços de 
instituições privadas, criar alternativas assistenciais públicas a partir de sistemas hierarquizados, regionalizados e 
descentralizados era um significativo avanço no ‘pensar’ outros modelos que não o imposto pelo capitalismo 
monopolista. 
Antecedentes da psiquiatria preventivista. 
Para compreender a política de assistência psiquiátrica da década de 1970, faz-se necessário retornar à de 1940, 
mais exatamente a 1941, quandoAdauto Botelho assumiu o então recém-criado Serviço Nacional de Doenças 
Mentais — SNDM —, na estrutura do Ministério da Educação e Saúde pelo decreto-lei 3.171 de 24 de abril de 1941 
(Beça, 1981). Botelho foi discípulo de Juliano Moreira, a figura mais proeminente da psiquiatria brasileira no primeiro 
quarto de século, que buscava conferir um caráter científico à psiquiatria. 
Naquela época predominavam os hospitais públicos, responsáveis por 80,7% dos leitos psiquiátricos do país. Os 
famosos asilos — como o Juqueri em São Paulo, o Hospital Nacional dos Alienados no Rio de Janeiro e o São 
Pedro em Porto Alegre — exerciam um papel orientador da assistência psiquiátrica, consolidando a política macro-
hospitalar pública como o principal instrumento de intervenção sobre a doença mental. 
Havia sem dúvida alguns hospitais privados, como a Casa de Saúde Dr. Eiras no Rio de Janeiro e o Sanatório 
Recife, criado por Ulisses Pernambucano em 1936, e ambulatórios, que em 1941 resumiam-se a apenas quatro em 
todo o país, portanto bastante incipientes diante da pujança dos hospitais públicos (Medeiros, 1977; Sampaio, 
1988). 
A administração de Adauto Botelho à frente do SNDM perdurou de 1941 a 1954 e se caracterizou pela expansão 
dos hospitais públicos. Certamente o decreto-lei 8.550, de 3 de janeiro de 1946, propiciou esse crescimento, pois 
autorizava o serviço a realizar convênios com os governos estaduais para a construção de hospitais psiquiátricos. 
Os poderes estaduais se comprometiam a doar o terreno, arcar com as despesas de manutenção e pagar a folha 
salarial, enquanto o poder federal se responsabilizava pelo investimento em projeto, construção, instalação e 
equipamentos(Sampaio, ibidem). 
A nova legislação permitiu um surto de construção de hospitais em vários estados, com características de hospitais-
colônias. Muitos deles eram extremamente precários ou distantes dos centros urbanos. Tal política refletia a postura 
hegemônica iniciada por Juliano Moreira. Sob a influência de Oswaldo Cruz, ele entendia que o asilo teria uma 
função preventiva e só deveria acabar quando a doença mental fosse erradicada (Medeiros, op. cit.). 
Aquele foi um período em que a psiquiatria procurava se estabelecer na condição de especialidade médica e seu 
espaço de atuação passou a ser reconhecido como tal. O próprio Código Brasileiro de Saúde, publicado em 1945, 
condenava as denominações ‘hospício’, ‘asilo’, ‘retiro’ ou ‘recolhimento’, reconhecendo a categoria ‘hospital’. 
Buscavam-se novas técnicas terapêuticas que substituíssem o papel meramente custodial predominante. Os 
instrumentos mais avançados da psiquiatria biológica eram introduzidos em nosso país, como o choque 
18 
cardiazólico, a psicocirurgia, a insulinoterapia e a eletroconvulsoterapia, e tentavam afirmar para o psiquiatra sua 
função médica verdadeira (Sampaio, op. cit.). 
Ao mesmo tempo que a psiquiatria lutava pelo seu reconhecimento como especialidade médica, o hospital 
psiquiátrico se afirmava cada vez mais como espaço de atuação. Em 1954, havia sido promovido um aumento de 
mais 16 mil leitos psiquiátricos no Brasil. Porém a criação de novos hospitais não amenizava a situação caótica 
vigente; ao contrário, na década de 1950 os hospitais públicos viviam em total abandono, apresentando excesso de 
pacientes internados. 
A função social do hospital psiquiátrico era basicamente de exclusão. A sociedade, entretanto, se modernizava. 
Juscelino Kubitschek assumira o poder, implantando uma política de industrialização, urbanização e 
desenvolvimento. A democracia liberal atingia o apogeu e surgia uma nova classe social urbana, coorporativa, 
crítica e reivindicadora, que exigia melhor qualidade de atendimento na área de saúde, inclusive na de saúde 
mental. Um novo ator institucional começava a despontar: o hospital psiquiátrico privado. O hospital psiquiátrico 
privado e a ideologia privatista. 
Segundo Medeiros (op. cit.), a instituição psiquiátrica particular mais antiga do país é a Casa de Saúde Dr. Eiras, 
criada pelo médico otorrinolaringologista Francisco Eiras, na cidade do Rio de Janeiro, em 1860. Além do setor de 
especialidade de seu fundador, o hospital dispunha de uma área de cirurgia e outra destinada a doentes mentais. A 
área de psiquiatria iniciou com 40 leitos, com diárias diferenciadas, incluindo, para os mais abonados, entre outras 
benesses, direito a um copo de vinho às refeições. 
Com o passar dos anos outras casas de saúde psiquiátricas particulares foram surgindo. Embora dotadas de 
conforto e com baixo índice de mortalidade, tinham a mesma função social que os asilos, ou seja, isolar o paciente 
da comunidade, resguardandoa do perigo que ele supostamente representava. 
À época, o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários — IAPC — concedeu empréstimo à Casa de 
Saúde Dr. Eiras, a fim de que fosse ali construído um pavilhão para os previdenciários. Apenas os comerciários e, 
mais tarde, os bancários tinham direito a internações em sanatórios particulares no Rio de Janeiro. Este convênio 
pode ser considerado o marco inicial das internações em hospitais particulares, por meio da hospitalização de 
previdenciários (idem, ibidem). 1 
Segundo levantamento feito por Sampaio (op. cit.), o período de 1941 a 1961 caracterizou-se pelo crescimento 
vegetativo tanto dos hospitais psiquiátricos públicos quanto dos privados. Em 1941 o Brasil possuía 62 hospitais 
psiquiátricos, sendo 23 públicos (37,1%) e 39 privados (62,9%). Estes últimos, embora em maior número, 
representavam apenas 19,3% dos leitos psiquiátricos, enquanto que os públicos detinham 80,7%. Em 1961 o Brasil 
já possuía 135 hospitais psiquiátricos, sendo 54 públicos (40%) e 81 privados (60%). Notava-se, no entanto, um 
crescimento de 24,9% dos leitos psiquiátricos privados e uma diminuição de 75,1% dos leitos públicos. 
Analisando-se tais dados, observa-se que, apesar do crescimento de leitos privados no período de 20 anos, eles 
significavam apenas um quarto do total dos leitos psiquiátricos do país. Mas quando se observam os números dos 
20 anos seguintes (1961 a 1981), percebe-se que o quadro se modificou completamente: em 1981 os hospitais 
privados eram responsáveis por 70,6% dos leitos, enquanto os hospitais públicos possuíam apenas 29,4% (idem, 
ibidem; Nascimento,1991). 
No estudo sobre a mudança do perfil assistencial psiquiátrico no país — assim como o da saúde pública —, o 
movimento militar de 1964 constitui um ponto de inflexão, por romper com o modelo de poder desenvolvimentista-
populista e introduzir uma nova concepção capitalista-monopolista, com repercussões significativas na área 
previdenciária e de saúde mental. 
O novo modelo econômico em vigor a partir do golpe de 1964 se caracterizou pela crescente intervenção do Estado 
na regulação e execução dos mecanismos de acumulação capitalista. O regime político instaurado também imprimiu 
mudanças no padrão de relação entre o Estado e o conjunto das classes sociais. Foram excluídas as classes 
 
1 Rezende (1987) relata a resolução da Organização Mundial de Saúde em 1950, recomendando aos países em desenvolvimento que 
investissem em ações de saúde mental. Este documento referia-se a uma pesquisa feita pelo Medical Research Council, da Grã-Bretanha, 
segundo a qual os transtornos psiconeuróticos produziriam uma perda de tempo de produção na indústria superior àquela provocada por 
um resfriado comum. 
19 
trabalhadoras como elemento de sustentação política e firmou-se uma aliança com setores dominantes do 
capitalismo nacional e internacional (Braga et al., 1981; Oliveira et al., 1986). 
A princípio o governo militar, além dessa aliança, buscou sua legitimação como poder político junto aos grupos 
sociais excluídos. Investiu-se na estratégia de ampliar a cobertura previdenciária para setores da populaçãoque não 
a possuíam. A contratação dos serviços de saúde da rede privada e a garantia da cobertura previdenciária às 
classes trabalhadoras refletiram diretamente na área da saúde mental: 
No ano de 1962, por exemplo, a Previdência Social lançou a resolução de serviço CD/DNPS 942/62 — Normas 
Gerais para a Prestação de Assistência Médica aos Doentes Mentais. Disciplinava a assistência psiquiátrica e 
enfocava o aspecto preventivo, bem como determinava que o seu desenvolvimento ocorresse em ambulatórios, 
locais de trabalho, domicílio do segurado e hospitais gerais. No entanto, isso nunca foi operacionalizado. 
Em 1966 Luiz Cerqueira denunciava, em seu trabalho ‘Pela reabilitação em psiquiatria’, a situação de cronicidade 
dos doentes mentais. Representando o setor dos prestadores privados de saúde em geral e da psiquiatria em 
particular, naquele mesmo ano foi fundada a Federação Brasileira de Associações de Hospitais, que na década de 
1970 passaria a ser denominada Federação Brasileira de Hospitais. Os empresários do setor privado viam na 
psiquiatria uma área de serviço de fácil montagem, sem necessidade de tecnologia sofisticada ou pessoal 
qualificado (Amarante,1995). 
A grande modificação no sistema de prestação de serviços previdenciários ocorreu com a criação do INPS, em 
novembro de 1966, que trouxe em seu contexto duas correntes opostas: a favorável à compra de serviços de 
terceiros pelo instituto e a que defendia a opção pelo aumento dos hospitais da rede própria e contratação de 
profissionais para o quadro. Sem dúvida a primeira corrente foi majoritária2. 
Com o processo de unificação dos institutos previdenciários, a extensão da assistência médica atingiu setores mais 
amplos da população. Os hospitais psiquiátricos particulares ampliaram-se para estabelecer convênios com a 
Previdência Social, tornando assim os hospitais públicos cada vez menos significativos em termos de atendimento. 
Algum tempo depois, praticamente todos os hospitais psiquiátricos, públicos ou privados, estavam conveniados. 
A situação deteriorada dos hospitais públicos levou ao ‘discurso da competência’, exposto pelos empresários 
privados. Valeria a pena investir em grandes hospitais públicos superlotados, inadequados, pouco terapêuticos e 
ineficazes para a cura dos doentes. Ou o caminho mais correto seria o pequeno hospital, com internação de curta 
duração, atendimento personalizado e possibilidade de reinserção social? Certamente, a opção pelo hospital 
privado era inerente à população previdenciária (Paulin,1998). 
Foi nesse processo que tanto o campo da saúde geral como o da assistência psiquiátrica caminharam para o amplo 
movimento de privatização, refletindo a estratégia de hegemonia das classes dominantes que ditou as normas 
sociais após 1964. 
Cerqueira, em vários estudos compilados no livro Psiquiatria social - problemas brasileiros de saúde mental (1984), 
demonstrou de forma enfática como o processo de privatização da assistência psiquiátrica, chamado por ele de 
‘indústria da loucura’, estava em marcha acelerada. No triênio 1965/68, segundo o autor, houve um aumento de 
20% no total da população hospitalar (60% na rede particular); 51% de primeiras admissões (84% na particular); 
48% no total de readmissões (98% na rede particular); e um crescimento de 45% no total de leitos-chão (1.040% na 
particular)3.3 
O período foi marcado pelo crescimento, não apenas numérico como também político, dos setores privados. Tal 
força política emergente se concretizou com a indicação, em 1968, de Leonel Miranda, grande proprietário de leitos 
psiquiátricos no Rio de Janeiro, para a pasta da Saúde no governo Costa e Silva. A filosofia que se tentou impor na 
administração Miranda, por meio do Plano Nacional de Saúde, refletia uma proposta radical de privatização da 
assistência médica, eliminando-se o setor próprio de serviços médicos previdenciários, cujas instituições seriam 
repassadas aos produtores privados. Ao Estado caberia somente o papel de financiador. 
 
2 A política de contratação de serviços privados ocorreu não apenas na assistência psiquiátrica, mas também na assistência médica geral. 
Tal período foi denominado por Oliveira et al. (op. cit.) de ‘privilegiamento do produtor privado’. 
3 Cerqueira denomina ‘leitos-chão’ o excedente de pacientes internados nos hospitais psiquiátricos. 
20 
O plano não foi viabilizado graças às resistências por parte da população e dos setores próprios do INPS. Estes se 
opunham à entrega total de recursos estatais para as mãos da iniciativa privada. Apesar disso, o Plano Nacional de 
Saúde tornou-se o embrião de propostas futuras, demonstrando até onde a iniciativa privada pretendia chegar. 
A psiquiatria preventivista 
O início da década de 1970 se caracterizou, no Brasil, pela crescente influência de propostas que se apresentavam 
efetivas na Europa e principalmente nos Estados Unidos, por meio da psiquiatria comunitária. O decreto do 
presidente John F. Kennedy, em fevereiro de 1963, denominado Community Mental Health Center Act, baseava-se 
nos conceitos preventivistas lançados pelo professor Gerald Caplan e redirecionava os objetivos da psiquiatria. A 
partir de então, seria incluída como meta a redução da doença mental na comunidade, enfatizando-se a promoção 
de um novo objeto de ação: a saúde mental. 
Tanto no âmbito institucional, pela recém-criada Divisão Nacional de Saúde Mental, como no acadêmico e 
associativo, a influência das propostas preventivistas tornaram-se a referência maior de setores organizados da 
psiquiatria brasileira, em contraposição ao modelo hospitalar privado que se tornava hegemônico. 
Em 1970, na cidade de São Paulo, ocorreu o I Congresso Brasileiro de Psiquiatria, promovido pela Associação 
Brasileira de Psiquiatria. Durante o evento, foi lançada a Declaração de princípios de saúde mental, em que se pôde 
observar o predomínio dessa corrente de pensamento. 
A declaração apresentava dez itens, a saber: 
“01 - Direito e Responsabilidade: A saúde mental é um direito do povo. A assistência ao doente mental é responsabilidade 
da sociedade. 02 - Integração: A doença mental, fazendo parte do ciclo vital da saúde e doença (...) se insiram e se 
integrem na rede de recursos de saúde da comunidade. 03 - Reorganização: A integração dos fatores físicos, psicológicos e 
sociais na gênese e na eclosão das doenças mentais, na terapêutica e na recuperação dos doentes mentais, é elemento 
importante na caracterização das necessidades regionais, na mobilização de recursos e na implantação de serviços. 04 - 
Recursos de todos para todos: Os recursos técnicos, administrativos e financeiros da saúde mental da comunidade devem 
ser integrados e estruturados de modo a oferecer o uso racional e global a todos os indivíduos e grupos. 05 - Prevenção: Os 
serviços de saúde mental devem promover a proteção e a assistência ao homem (...). 06 - Conscientização: A educação do 
público (...) deve ser efetivada no sentido de seu esclarecimento a respeito das doenças mentais e de sua assistência. 07 - 
Formação de Pessoal: Programas de recrutamento, formação e treinamento de pessoal técnico devem ser mantidos para a 
formação de equipes terapêuticas multiprofissionais. 08 - Hospital Comunitário: Os hospitais devem ser reestruturados no 
sentido de promover a pronta reintegração social do indivíduo (...) como medida eficaz contra a institucionalização. 09 - 
Serviços extra hospitalares: As técnicas e recursos terapêuticos de orientação comunitária devem ser enfatizadas para que 
se evite o uso abusivo do leito hospitalar. 10 - Pesquisa: As pesquisas básicas e, sobretudo as aplicadas fundamentalmente 
para o continuo aperfeiçoamento da técnica, devem ser estimuladas por todos os meios (Giordano Jr., 1989, pp. 141-2). 
A postura preventivista era cada vez mais nítida também na esferainternacional, por meio das recomendações da 
Organização Mundial de Saúde e da Organização Pan-americana de Saúde. O próprio Ministério da Saúde, por 
intermédio de seu titular, o dr. Mário Machado Lemos, em outubro de 1972, foi um dos signatários do documento 
que se propunha nortear os rumos da assistência psiquiátrica para o continente. O documento, denominado ‘Plano 
decenal de saúde para as Américas’, foi elaborado com os demais ministros da Saúde de países latino-americanos 
em Santiago do Chile. 
No entanto, a situação da assistência psiquiátrica no país, na época, apresentava níveis alarmantes: mais de sete 
mil doentes internados sem cama (leito-chão) e hospitais psiquiátricos sem especialistas. Chegava a sete meses o 
tempo médio de permanência de casos agudos em hospitais. O índice de mortalidade nas colônias de doentes 
crônicos era seis vezes e meia maior que nos hospitais para doenças crônicas de outras especialidades. 
Era necessária uma atitude por parte dos órgãos competentes, pois a política previdenciária, ao priorizar a compra 
de serviços dos hospitais privados, levou a um déficit financeiro, obrigando a Previdência Social a buscar soluções 
saneadoras para melhor utilização da rede pública e modernização de suas unidades. Em 1968 foi criado, no então 
estado da Guanabara, a Comissão Permanente para Assuntos Psiquiátricos, cujo objetivo maior era estudar as 
dificuldades da assistência psiquiátrica no estado. A comissão formada por profissionais, entre eles Luiz Cerqueira, 
fez uma minuciosa análise sobre as condições da assistência psiquiátrica, visando a racionalização e a melhoria da 
qualidade dos serviços. 
O relatório do grupo de trabalho, aprovado em 1970 e publicado no ano seguinte. Apresentou um retrato fiel da 
situação em que se encontrava a assistência psiquiátrica local, com o setor ambulatorial totalmente deturpado, 
funcionando principalmente como encaminhador de laudos para internação, e o hospital se consagrando como o 
21 
grande e único agente terapêutico eficaz. Além do levantamento, a comissão indicou propostas de melhoria da 
assistência, lançando mão de pressupostos básicos da psiquiatria comunitária norte-americana. 
O trabalho desenvolvido pela CPAP-GB repercutiu intensamente, de tal forma que, em 1971, praticamente a mesma 
comissão foi convidada pela Secretaria de Assistência Médica do INPS para estudar, em âmbito nacional, as bases 
de uma reformulação da assistência psiquiátrica. Estavam lançadas as raízes do que viria, dois anos depois, 
consagrar os princípios da psiquiatria comunitária no Brasil: o Manual de serviço para a assistência psiquiátrica 
(Vaissman, 1983; Cerqueira, op. cit.). 
Aprovado em 19 de julho de 1973 pela Secretaria de Assistência Médica do INPS, o manual privilegiava a 
assistência psiquiátrica oferecida sempre que possível na comunidade, com uso de recursos extra-hospitalares. Seu 
intuito era recuperar rapidamente o paciente para que ele voltasse às suas atividades normais. Nos casos em que 
fosse necessária a internação, esta deveria ser feita próxima à residência do indivíduo, com uma ampla e 
diversificada rede de serviços, evitando-se a internação em hospitais com mais de 500 leitos. Na alta, o paciente 
seria imediatamente encaminhado para atendimento ambulatorial. Os princípios técnico-administrativos baseavam-
se nos conceitos de integração, regionalização, coordenação, descentralização e aperfeiçoamento de pessoal. 
Quanto aos níveis assistenciais, propunha-se a estruturação básica do preventivismo por meio das atenções 
primária, secundária e terciária, contemplando programas assistenciais específicos tais como o materno-infantil e os 
destinados a adolescentes, epilépticos, crônicos etc. Incentivava-se também a formação de equipes 
multiprofissionais e serviços extrahospitalares como ambulatórios, emergências, pensões ou lares protegidos. A 
internação integral seria feita, quando necessária, nos hospitais gerais ou psiquiátricos. O prazo máximo seria de 
180 dias, após o qual se deveria proceder à reavaliação do paciente por uma junta médica. 
O manual foi saudado como um fato histórico para a assistência psiquiátrica. Algumas dúvidas, contudo, foram 
levantadas quanto à sua viabilidade, tanto na questão de recursos humanos como na financeira, além das 
resistências quanto à inadaptalidade do paciente à vida em comunidade. A oposição maior surgiu dos empresários 
do setor psiquiátrico, que afirmavam “ser o verdadeiro hospital psiquiátrico o órgão principal da assistência 
psiquiátrica” (Vaissman, op. cit.). Mais que ideológica, a questão econômica pautava esse tipo de argumentação, 
pois a viabilização de serviços extra-hospitalares poderia funcionar como ‘filtros administrativos’ para as internações 
asilares, gerando diminuição do faturamento. 
O manual nunca saiu das intenções, conforme denunciou Cerqueira (op. cit., p. 224): 
elaborado oficialmente e aprovado formalmente em 19/7/73, foi sabotado desde o seu primeiro dia e continua letra morta, só para 
não diminuir os lucros da empresa de saúde nem demonstrar a fragilidade do modelo médico tradicional exclusivo, defendido por 
outros tantos psiquiatras reacionários encarapitados nas cátedras, nas cúpulas administrativas e nos ricos consultórios privados. 
O modelo preventivista que inspirou ideologicamente o manual surgiu como alternativa ao modelo psiquiátrico 
clássico organomecanicista. Almejava não apenas a prevenção da doença mental, mas, fundamentalmente, a 
promoção da saúde mental. Costa (1989), no entanto, avalia que programas semelhantes de prevenção, como o 
desenvolvido nos Estados Unidos, acarretaram um aumento da população com atendimento ambulatorial e extra 
hospitalar. 
Tal fato ocorreu não pelo esvaziamento da população internada nos hospitais psiquiátricos, mas devido ao projeto 
de medicalização da ordem social. Para o autor, a psiquiatria preventiva não atingiu necessariamente as instituições 
asilares. Houve até um movimento de retroalimentação dessas instituições, pelo ingresso de novos contingentes de 
clientes para tratamento mental, fenômeno denominado de aggionarmento por Castel. 
Algumas experiências inovadoras 
Embora isoladas, novas experiências vinham ocorrendo no país. É certo que tais práticas eram pontuais, porém 
contribuíram para reflexões e discussões que posteriormente provocariam uma mudança de paradigma na 
assistência psiquiátrica brasileira. 
O Rio Grande do Sul foi o estado em que o modelo preventivo-comunitário foi mais marcante. A experiência em 
1974 na Unidade Sanitária de Murialdo, na periferia de Porto Alegrecriou-se um programa alternativo de prestação 
de serviços, sob a forma de sistema comunitário de saúde, desenvolvido para prover serviços gerais de saúde sem 
dissociar as tarefas curativas e de reabilitação das de prevenção e fomento. 
22 
Estabeleceram-se algumas prioridades quanto à forma de funcionalidade, pautadas nos pressupostos da saúde 
pública e da psiquiatria comunitária. Priorizou-se o atendimento às famílias e a capacitação de pessoal técnico, com 
treinamento de membros da comunidade para exercer o papel de agentes de saúde. 
No início dos anos 1960, a Clínica Pinel, sob a coordenação do psicanalista Marcelo Blaya, considerada o primeiro 
modelo assistencial no país influenciado pelos princípios da comunidade terapêutica. Procuravam alterar a lógica do 
funcionamento manicomial, tornando-se um espaço de recuperação que integrava os pacientes aos familiares e 
desprovido da hierarquia repressiva das instituições. (Duarte et alii, 2000). 
No Rio de Janeiro, experiências fecundas trouxeram à tona um novo olhar para a assistência psiquiátrica. O Centro 
Psiquiátrico Pedro II, estrutura exemplar da prática manicomial asilar, tornara-se palco privilegiado para viabilizar os 
avanços no modelo de atenção ao doente mental. 
Nise da Silveira, influenciada pelos conceitosdo psicanalista Carl Jung, realizou experiências inovadoras. A partir da 
década de 1940 desenvolveu, na Seção de Terapêutica Ocupacional, um vigoroso trabalho de práticas terapêuticas 
lançando mão de atividades expressivas com pacientes daquela instituição. Na década seguinte fundou a Casa das 
Palmeiras, clínica de reabilitação de doentes mentais em regime de externato. Nos anos 1960 formou o Grupo de 
Estudos do Museu de Imagem do Inconsciente, que se tornou centro de referência no desenvolvimento de práticas 
artísticas para pacientes psicóticos. 
Por volta de 1973, com o encerramento do convênio entre o Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio 
de Janeiro — Ipub — e o Hospital Pinel, o projeto se desfez, o mesmo ocorrendo dois anos depois no CPPII. 
No estado de São Paulo o ano de 1972 foi celebrado um inédito convênio entre a Secretaria de Estado de Saúde e 
as 15 faculdades de medicina existentes no estado. O objetivo era a promoção e o desenvolvimento de modelos 
assistenciais, pesquisas epidemiológicas, capacitação de recursos humanos e implantação de centros comunitários 
de saúde mental. 
O convênio atingiu o apogeu no ano seguinte, quando Luiz Cerqueira assumiu a Coordenadoria de Saúde Mental. 
No entanto sua passagem pelo cargo foi curta. A expansão de ambulatórios, a criação de um serviço de emergência 
psiquiátrica e a suspensão das internações no Hospital do Juqueri foi gradativamente se interrompendo, denotando 
o retorno à prática predominante da assistência hospitalar (Giordano Jr.,op.cit.). 
Conclusão 
A década de 1970, no período estudado, poderia ser caracterizada pelos inúmeros planos, manuais e ordens de 
serviço propostos no intuito de viabilizar uma prática psiquiátrica comunitária, preventivista, extra-hospitalar e 
terapêutica. Todavia, o que predominou foi a política de privilegiamento do setor privado, por meio da contratação, 
pela Previdência Social, de serviços de terceiros, expandindo significativamente o modelo hospitalar no Brasil. 
Mais de uma vez essa situação foi denunciada pelos assessores da área de saúde mental. Nos encontros anuais de 
psiquiatria do Inamps, entre 1976 e 1978, eles demonstraram em seus relatórios que nada do que fora proposto 
tecnicamente se aplicara. As recomendações apresentadas eram a repetição integral dos programas elaborados 
pela própria Previdência, mas nunca viabilizados. Propunha-se ênfase na assistência extra-hospitalar, por meio de 
dotação orçamentária para a implantação desses serviços e reestudo para a funcionalidade de modelos 
assistenciais, como pronto-socorros e hospitais-dia. 
No último encontro, realizado em 1978, os assessores novamente lamentavam a falta de verbas para executar os 
serviços extra-hospitalares, já que elas se destinavam às hospitalizações. 
O resultado dessa política orçamentária era claro, ao se constatar que, em 1977, os recursos destinados à 
hospitalização psiquiátrica somavam 96% do orçamento total da Previdência Social, contra 4% para os demais 
recursos extra-hospitalares, dos quais o mais significativo era o ambulatório (Amarante, 1995). 
Vaissman (op. cit.) entende que, apesar de todas as dificuldades para a implantação de programas de perfil 
preventivista no período, o projeto de uma psiquiatria comunitária, tendo em vista a organização social dos serviços 
psiquiátricos na Previdência Social, foi correto. Significou a incorporação e o reconhecimento, por parte da 
instituição, da necessidade de uma psiquiatria que atendesse aos interesses da classe trabalhadora, considerando-
se fundamental a participação comunitária. 
23 
Amarante (1992), por outro lado, apresenta uma posição crítica, pois tais programas não romperiam com o modelo 
clássico médico-psicológico de análise e tratamento. O autor destaca que o preventivismo se orienta regularmente 
por indicadores burocráticos de desempenho, como diminuição do tempo médio de internação, taxas de ocupação, 
índices de reinternações, oferta de consultas ambulatoriais, recursos extra-hospitalares ou atos normativos — 
manuais, cartilhas etc. No entanto, este modelo não conseguiu questionar os conceitos de saúde enfermidade 
mental, não obtendo êxito nem mesmo no consenso aos seus próprios propósitos. 
A proposta preventivista que começava a surgir na política de saúde mental em nosso país trouxe em si 
contradições, avanços e retrocessos, os quais se tornariam mais aguçados no final dos anos 1970, quando a 
reorganização da sociedade civil, o enfraque-cimento do governo militar e as novas reflexões e experiências da 
saúde pública — bem como da saúde mental — viriam gestar os primórdios da reforma psiquiátrica no Brasil. 
 
DIREITO SANITÁRIO, MINISTÉRIO PÚBLICO E REFORMA PSIQUIÁTRICA 
Renoir da Silva Cunha – reprodução parcial de monografia do Curso de Especialização em Direito 
Sanitário para Membros do Ministério Público Faculdade de Direito da UnB. 
1. INTRODUÇÃO 
O escopo destas singelas reflexões de Direito Sanitário, sobre a Reforma Psiquiátrica e o Ministério Público, consiste 
na visão crítica da “Reorientação do Modelo Assistencial” de Saúde Mental na perspectiva do Ministério Público, 
enquanto órgão fiscalizador dos serviços de relevância pública e defensor dos interesses da sociedade. Destarte, a 
pretensão é a de enfrentar a atual polêmica sobre Reforma Psiquiátrica e, notadamente, do movimento denominado 
luta antimanicomial, buscando demonstrar que o resgate da cidadania das pessoas portadoras de sofrimento mental 
não se esgota com o fechamento, puro e simples, dos manicômios. Não desconhecendo que tal instituição, 
manicomial, é lugar de exclusão e desrespeito aos direitos humanos, afirmamos não ser ela o paradigma a ser 
superado para que se veja o doente mental como sujeito de direitos e, portanto, cidadão. 
Sendo assim, há que se transpor o paradigma da exclusão e da segregação, o qual, culturalmente, está solidificado 
na família, na sociedade e no Estado, espelhando-se na legislação dos últimos dois séculos e, buscando uma 
sociedade pluralista, justa e solidária, laborar para o desenvolvimento de uma rede de atenção que privilegie as 
potencialidades do doente, aceite suas limitações e lhe assegure o direito a uma existência digna. 
Neste diapasão, pretendemos enfrentar, ainda que de modo a suscitar o debate crítico do tema, mais do que 
apresentar posicionamento pronto e acabado, a própria exeqüibilidade, aplicabilidade e especialmente efetividade da 
Lei de Reforma Psiquiátrica, afim de que o avanço da linha antimanicomial não implique no retrocesso da qualidade, 
humanização, acesso e controle social, indicativo de sua organicidade para com a construção de um Sistema Único 
de Saúde, público, de amplo acesso, eficaz, cidadão e com controle social. 
Almejamos, dessarte, nestas singelas reflexões, esboçar visão crítica da “Reorientação do Modelo Assistencial” de 
Saúde Mental na perspectiva do Ministério Público, enquanto órgão fiscalizador dos serviços de relevância pública e 
defensor dos interesses da sociedade, sem a pretensão de esgotar o tema em três dezenas de páginas, senão 
evidenciar visão crítica e ampla sobre os posicionamentos que se alinharam nas últimas décadas na busca por uma 
mudança de postura no enfrentamento da questão, ruptura com o paradigma anterior e fomento do debate de 
opções que possam, ainda que não solucionem o problema, indicar alternativas de melhoria da qualidade de vida de 
quem sofre. 
Para tanto, faz-se mister a identificação do verdadeiro paradigma a ser transposto, o que se fará na primeira parte 
deste ensaio, reconstituindo a trajetória do manicômio como lugar de exclusão, desde o seu nascimento até os dias 
de hoje, e apontando a mercantilização do sofrimento psíquico com a identificação de quem são os verdadeiros 
clientes do manicômio. 
Na segunda parte, discorreremos sobre as tentativas de transposição da exclusão, alinhando idéiase conceitos que 
permitam remover os rótulos impostos ao portador de sofrimento mental, apontando as possibilidades de inserção 
social de quem sofre e as dificuldades de implementação dos textos legislativos Estadual e Federal que se 
propuseram a equacionar o problema. 
24 
Na segunda parte, discorreremos sobre as tentativas de transposição da exclusão, alinhando idéias e conceitos que 
permitam remover os rótulos impostos ao portador de sofrimento mental, apontando as possibilidades de inserção 
social de quem sofre e as dificuldades de implementação dos textos legislativos Estadual e Federal que se 
propuseram a equacionar o problema. 
Nas considerações finais, menos concluindo e mais suscitando maior debate e enfrentamento das complexas 
questões que envolvem a exeqüibilidade, aplicabilidade, e efetividade da Lei de Reforma Psiquiátrica, por reafirmar 
precisamente qual o paradigma a ser transposto, o que, esperamos, propiciará que o avanço da linha antimanicomial 
não implique no retrocesso da qualidade, humanização, acesso e controle social, indicativo de sua organicidade para 
com a construção de um Sistema Único de Saúde, público, de amplo acesso, eficaz, cidadão e com controle social. 
2. O PARADIGMA DA EXCLUSÃO 
O Decreto-Lei nº 24.559, de três de julho de 1934, já dispensava tratamento ao doente mental como caso de polícia 
e de ordem pública, conquanto permitia a internação por mera requisição da autoridade policial. No mesmo sentido 
os Códigos Penal e de Processo Penal de 1940, ao estabelecerem medida de segurança ao doente mental 
considerado perigoso, inobstante absolvido da imputação que se lhe atribuía, quando praticasse os chamados 
quase-crimes4 (crime impossível por absoluta ineficácia do meio empregado, por exemplo), coisa que para o 
considerado “normal” redundaria em absolvição pura e simples. 
Tal modelo é o resultado do conceito de doente mental e de tratamento até então estabelecidos. Francisco Paes 
Barreto5, ao abordar o tema, traduz bem o problema: 
Doente mental é aquele que infringiu pautas de comportamento ou as pautas existenciais socialmente 
definidas... Nesta perspectiva o transgressor deve ser punido, como reparação e corrigenda. 
O modelo assistencial psiquiátrico do final da década de 1940 caracteriza-se pelo desrespeito aos Direitos 
Humanos, tornando-se, ao longo dos últimos duzentos anos, ícone, emblema da exclusão e seqüestro da cidadania, 
os hospitais psiquiátricos. 
Um modelo de atenção inadequada, como o que se observou nos últimos séculos com relação ao doente mental, 
não pode ser superado tão-somente com a eleição de um ícone e contra ele única e exclusivamente direcionar 
todas as nossas inconformidades. 
Não significa negar que o manicômio é o ícone materializador do paradigma a ser substituído, porém, necessário 
conhecer como e porque ele se transformou em um ambiente de exclusão. É sobre o quê discorreremos nas duas 
seções seguintes. 
O MANICÔMIO E A EXCLUSÃO 
Nos primórdios da civilização, as sociedades primitivas consideravam os indivíduos com transtornos mentais como 
emissários da divindade, demonstrando tolerância para com a diferença. 
A intolerância tem seu marco referencial na Idade Média. O descontentamento político e religioso da época levou à 
Reforma Protestante e à Renascença, e ao Concílio de Trento, com a manutenção dos dogmas católicos, e à 
elaboração do Index (lista de livros proibidos aos católicos), à restauração dos Tribunais do Santo Ofício e à 
fundação da Companhia de Jesus, os Jesuítas. 
Tal cenário constitui-se no substrato para os três grandes eixos de preconceito, exclusão e intolerância da “loucura” 
até os nossos dias: (1) a suposta incapacidade do louco, (2) a suposta irresponsabilidade do louco, e (3) a suposta 
violência do louco. 
Com a Renascença, houve reação e enfrentamento com a magia, através da reabilitação dos valores gregos. No 
período seguinte, na “Era da Razão e da Observação”, durante o século XVII, a polarização deu-se entre o 
raciocínio dedutivo, analítico e matemático, e o método empírico e indutivo. 
 
4 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 19ª Ed, São Paulo: Saraiva, 1981, p.334. 
5 BARRETO, Francisco Paes. Reforma Psiquiátrica & Movimento Lacaniano. Belo Horizonte: Editora Italiana, 
1999, p. 49. 
25 
Nesta esteira, o médico Philippe Pinel, na França do final do século XVIII, desacorrentando e alimentando os 
internos, passou a discriminar os casos sociais das anomalias, estabelecendo a seguinte classificação: (1) 
melancolias, (2) manias sem delírio, (3) manias com delírio, e (4) demências sendo o marco inaugural da Psiquiatria, 
que transformou a diferença humana em patologia. 
No final do século XIX, a exclusão e os maus tratos do hospital pineliano geraram pesadas críticas, começando a 
ser criados espaços fora dos limites das cidades, onde os “anomistas sociais”, em que pese continuassem ocultos e 
excluídos, pudessem circular com mais “liberdade” e ser “tratados e recuperados” através do artesanato e do 
trabalho agro-pastoril. 
Sigmund Freud, médico austríaco, trouxe nova proposição, sobre outra dimensão – inconsciente – na condição 
humana, iniciando a formulação da Psicanálise, estabelecendo a polaridade com as ciências biológicas que perdura 
até os dias de hoje. 
No Brasil, o início da assistência psiquiátrica pública data da Segunda metade do século XIX, ainda durante o 
período do Império, antes do que a assistência era leiga e asilar, prestada por instituições da Igreja. 
Em 05 de dezembro de 1852 foi inaugurado o Hospício Pedro II, pelo próprio Imperador D. Pedro II, consolidando e 
reproduzindo no solo brasileiro o modelo do hospital psiquiátrico europeu com uma política de tutela e segregação 
do doente mental6 tendo-se a primeira lei sobre doente mental. 
A partir de 1890 a tutela se desenvolve com a criação do Serviço de Assistência Médica dos Alienados e da 
legislação obtida a partir do Código Civil de 1916 e da Lei de 1919. Por essa legislação é fácil perceber uma série 
de tentativas de controlar esse grupo de pessoas, considerado prejudicial ao convívio da população. O Estado, 
nesse período, nada faz para assegurar direitos sociais, mas intervém quanto ao doente mental7. 
Em 1923, foi criada a Liga Brasileira de Higiene Mental, propondo ações de higiene mental (humanização), apoiada 
no racismo. Até a primeira metade do século XX, o crescimento da Psiquiatria ocorre no âmbito das instituições 
públicas e é orientada para as pessoas pobres. 
Em 1940, com o Código Penal e o Código de Processo Penal, estabelece-se o conceito de periculosidade e 
recomenda-se o recolhimento do doente mental ao manicômio, e dos indivíduos considerados perigosos às casas 
de custódia ou colônias agrícolas. 
Na década de 50, a Organização Mundial da Saúde (OMS), recomendou o “investimento em ações de saúde 
mental” e a adoção do termo “saúde mental” ao invés de “doença mental”, baseada em estudos que revelaram o 
custo excessivo da “doença mental”, incorporando assim a assistência psiquiátrica à Saúde Pública e constituindo a 
Psiquiatria Comunitária. 
Afirma Barreto8que ao servir de abrigo para a rejeição, o hospital transforma-se em depósito de pessoas. Sua 
função passa a encobrir partes frágeis da comunidade. A comunidade sente-se aliviada ao trancar nos hospitais 
psiquiátricos aquelas características condenadas por sua censura. Assim procedendo, vive-se a ilusão de que nada 
daquilo tem a ver consigo e a existência de pessoas segregadas embala essa tranqüilidade9. 
O ano de 1960 foi consagrado como “Ano Internacional da Saúde Mental”, sendo os anos 60 de importância 
especial na compreensão da assistência psiquiátrica brasileira no final do século XX. 
O quantitativo de hospitais psiquiátricos no Brasil era nenhum em 1852, chegandoa 54 públicos e 81 privados em 
1961, totalizando 135, contra acanhados 17 ambulatórios de psiquiatria em todo o território nacional, conforme 
dados do Ministério da Saúde. Em 1971, somavam 72 públicos e 269 privados com 80.000 leitos. Em 1981, eram 73 
públicos e 357 privados, chegando a 100.000 leitos. 
 
6 MARSIGLIA, Regina G. “Os Cidadãos e os Loucos no Brasil. A Cidadania como Processo” in Saúde Mental e 
Cidadania, 2ª ed., São Paulo: Mandacaru, [1987], p. 18. 
7 Idem. 
8 Op. cit. p. 48. 
9 Idem p.43. 
26 
Somente a partir da redemocratização do país e início da Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica começou a 
diminuir o ritmo da escalada de hospitais e leitos psiquiátricos contratados, refluindo em 1991 para 54 públicos e 
259 privados e 88.000 leitos, e em 1999 a 50 públicos e 210 privados e 68.000 leitos, e em julho de 2001 a 66.000 
leitos. 
Durante os anos 60-70, fomentou-se o surgimento das “Clínicas de Repouso”, eufemismo dado aos hospitais 
psiquiátricos, e adotaram-se métodos de busca e internamento de pessoas que chegaram, por exemplo, ao ponto 
de ambulâncias percorrerem as cidades, especialmente após clássicos de futebol, identificando indivíduos que 
portassem a carteira do INPS e que estivessem dormindo embriagados na via pública, os quais eram levados e 
internados com o diagnóstico de “psicose alcoólica”! 
Note-se que eram pessoas produtivas e socialmente inseridas, porquanto portadoras de carteira profissional, 
internadas sob o discurso preventista da recém criada e rendosa indústria da loucura, que acrescentou às 
representações de irresponsabilidade, incapacidade e periculosidade, a de lucratividade do louco. 
Esse descaso com o portador de sofrimento psíquico é diretamente proporcional à debilidade do conceito de 
cidadania vigente em nosso corpo social geral, que os mecanismos de controle, opressão e exclusão do doente 
mental não necessitam de muitas justificativas tecnojurídicas10. 
Nessa linha de raciocínio, sustenta Barreto11 ter sido, e ainda ser, o diagnóstico psiquiátrico baseado em critérios 
políticos, culturais e morais, exemplificando com o fato de o homossexualismo, por si só, ter deixado de ser 
considerado doença mental apenas em 1974 pela Associação Americana de Psiquiatria, e o tabagismo só foi 
considerado toxicomania pela CID 10 (a última, e ainda em vigor, editada em 1993). A inclusão ou exclusão revela 
Percebe-se, dessa forma, que tanto o diagnóstico, quanto a internação no hospital psiquiátrico se presta, não raro, a 
objetivos outros que não a recuperação ou melhoria das condições de vida do paciente. O desrespeito ao ser 
humano é levado a tal extremo que já se pode observar, em visita a clínica psiquiátrica, a presença de uma 
adolescente em ala fechada com grades, porque, segundo ela, a mãe queria lhe demonstrar que, em casa, recebia 
um tratamento do qual não deveria reclamar. Obviamente o caso foi encaminhado à Promotoria de Defesa da 
Infância e da Juventude e a alta providenciada imediatamente, mas o exemplo bem demonstra no que se 
transformou o hospital psiquiátrico. Ora, um mero desajuste de conduta é capaz de desencadear o diagnóstico e a 
internação. Tudo isso não só pela instituição manicomial em si, mas por obra de sua real clientela que será 
abordada na seção seguinte.critérios que nada têm de científicos. 
2.2. MANICÔMIO E MERCANTILIZAÇÃO DO SOFRIMENTO 
Como já referido na anterior seção, apesar da redução de cerca de 37.000 leitos de internação psiquiátrica e criação 
de aproximadamente 266 Serviços Substitutivos, o modelo tradicional ainda prevalece. Este grupo de morbidade 
constitui o 4º maior nos gastos do SUS, tendo consumido, no ano de 2001, aproximadamente R$ 470 milhões, 
sendo que apenas 10% deste valor são dispendidos com os serviços substitutivos, sendo os restantes 90% ainda 
destinados ao financiamento das internações. 
Além da própria internação, há que se focar criticamente a duração do confinamento, conforme ressaltado por 
Barreto12, segundo o qual um psicótico pode constituir problema mais social do que psiquiátrico; explicitado pelo 
autor com a situação de um paciente que passa longo período longe da família, esta se reestrutura e acostuma a 
viver sem o elemento excluído, tornando difícil a reinserção. 
 
10 KINOSHITA, Roberto Tirakoski. “Uma Experiência pioneira: A Reforma Psiquiátrica Italiana” in Saúde Mental e 
Cidadania, 2ª ed., São Paulo, Mandacaru, [1987], p. 82. 
11 Op. cit. p. 196/7 e213. 
12 Idem p.190. 
27 
Na visão do mesmo autor13, este é um dos fatores que explica por que, atualmente, o número de internações nada 
tem a ver com o critério psiquiátrico de atendimento. As internações se determinam, por exemplo, por pressão de 
órgãos policiais e de assistência social, que chegam a abandonar o paciente na porta do hospital; pressão dos 
familiares que vêem na internação a possibilidade de livrar-se temporária, ou definitivamente, de paciente 
indesejável. 
A mercantilização do tratamento da saúde, e a ampliação dos benefícios ofertados pelos planos de saúde sociais e 
públicos, sendo que estes passaram a comprar serviços da rede privada para atenção aos seus associados, fez 
com que, nas décadas de 60 e 70 do século passado, o doente mental, que nas décadas anteriores foi tutelado e 
considerado improdutivo, se tornasse importante instrumento de lucro para o setor privado de prestação de serviços 
de saúde14. 
O doente se transformou em mercadoria e a sua doença se transformou em fonte de lucro, perpetuando com essa 
condição a manutenção de um sistema assistencial que, na realidade, foi criado para esta finalidade lucrativa, e não 
para recuperar sua saúde15. 
De outra banda, Erving Goffmann, cientista social do departamento de sociologia da Universidade da Califórnia em 
Berkcley, após trabalho de pesquisa em estabelecimentos psiquiátricos de Washington nos anos de 1954 a 1957, 
onde descreve o mundo social do internado, anota que na sociedade não há hospitais psiquiátricos só porque 
supervisores, psiquiatras e auxiliares desejem empregos; há hospitais psiquiátricos porque existe um mercado para 
eles. Se em determinada região forem eliminados todos os hospitais psiquiátricos, os parentes, a polícia e os juizes 
pedirão a criação de outros hospitais; os verdadeiros clientes do hospital psiquiátrico exigirão uma instituição para 
atendimento de suas necessidades16. 
Sem prejuízo do alertado por Erving Goffmann, conforme acima referido, o fato de a comunidade recorrer ao 
hospital psiquiátrico com o propósito de ajudar o paciente ocorre numa freqüência muito menor do que se supõe. É 
comum o psiquiatra colher as informações trazidas pelos parentes, ou acompanhantes do paciente, e tomá-las 
como efetivas, numa atitude crédula que leva à visão distorcida do paciente. Embora na maioria das vezes surja da 
família a iniciativa da internação, raramente seus propósitos são questionados. Felizmente, nos últimos anos, isso 
tem mudado, fazendo com que os profissionais de saúde mental, por meio de entrevistas e de observação das 
atitudes dos familiares, identifiquem as reais intenções, e quando o desejo de ajudar o paciente é o principal, as 
atitudes tanto do psiquiatra, quanto da família e do próprio paciente, tendem a fazer do atendimento extramural 
(ambulatório, consultório) a alternativa preferida17. 
Então o problema é o posicionamento da sociedade, da família e do Estado em relação ao doente mental. Nossa 
tendência de excluir, segregar e punir o diferente, pelo simples fato de ser diferente do estabelecido nas pautas 
sociais, e não pelos efetivos danos que possa causar ao corpo social. Nossa falta de solidariedade em aceitar e 
incluiraqueles que, posto apresentem necessidades especiais, têm outras potencialidades que bem direcionadas 
podem lhe assegurar existência digna. Percebe-se, pois, que o verdadeiro paradigma a ser transposto não é o 
manicômio, mas a exclusão, porque acabar, pura e simplesmente, com os hospitais psiquiátricos não resgata a 
cidadania e a dignidade do portador de sofrimento psíquico. Talvez o fato de não se ter identificado precisamente o 
paradigma a ser superado, e de se buscarem novas alternativas ainda com a visão do velho paradigma, explique as 
dificuldades de superação da exclusão que serão tratadas na segunda parte deste ensaio. 
 
13 Ibidem p. 191. 
14 MARSIGLIA, Regina G. Op. cit. p. 26. 
15 MOURA NETO, Francisco Drumond Marcondes de. Op. Cit. p. 59. 
16 GOFFMANN, Erving. Manicômios Prisões e Conventos. 5ª ed. Traduzido por Dante Moreira Leite. São Paulo: 
Perspectiva, 1996, p. 311. 
17 BARRETO, Francisco Paes. Op. cit. p. 47. 
28 
A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA, DA DÉCADA DE 1980 AOS DIAS ATUAIS: 
HISTÓRIA E CONCEITOS. 
TENÓRIO, F.: 'A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e conceito'. História, 
Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 9(1):25-59, jan.-abr. 2002. 
O presente artigo é uma breve revisão da chamada 'reforma psiquiátrica brasileira', das décadas de 1980 e 1990, 
até a promulgação da Lei de Saúde Mental, em abril de 2001. Embora ele faça necessariamente um recorte no 
período, dados a amplitude do processo aqui estudado e o alcance limitado de um pequeno escrito, pretendo 
apresentar ao leitor os elementos básicos do que é a reforma psiquiátrica brasileira e de seus acontecimentos 
capitais nas duas últimas décadas. 
Discuto, em linhas gerais, alguns antecedentes do processo atual; os conceitos e valores que caracterizam a 
reforma brasileira; as experiências inaugurais de São Paulo e Santos; a iniciativa de revisão legislativa, com uma 
análise da lei finalmente aprovada; a lógica das políticas públicas de saúde mental no período aqui abarcado; a 
situação atual do processo de substituição asilar no país e o processo de reestruturação da assistência no município 
do Rio de Janeiro. 
Pretendo, assim, contribuir para a difícil historiografia de um processo ainda em curso, com os riscos metodológicos 
aí implicados, mas com a certeza de que se trata de uma tarefa necessária. Como conclusão, faço uma breve 
análise crítica do processo abordado, apontando o sucesso da reformulação do modelo de tratamento em saúde 
mental no país, no sentido de substituir uma psiquiatria centrada no hospital por uma psiquiatria sustentada em 
serviços diversificados e comunitários, e seu alcance em termos do laço social. 
O que é reforma psiquiátrica 
Costuma-se pensar que as expressões 'reforma' e 'psiquiatria' só se tornaram parceiras recentemente. No entanto, 
elas andam juntas desde o próprio nascimento da psiquiatria. Sabemos que foram os 'reformadores' da revolução 
francesa que delegaram a Pinel a tarefa de humanizar e dar um sentido terapêutico aos hospitais gerais, onde os 
loucos encontravam-se recolhidos junto com outros marginalizados da sociedade. 
A história é conhecida e não cabe repeti-la aqui. Retomo apenas um episódio, contado pelo filho e biógrafo de Pinel, 
Scipion Pinel, e comentado, entre outros, por Foucault (1993, p. 460) e Serpa Jr. (1996, pp. 17-8). Reza a lenda 
que, em 1793, Couthon (uma das três maiores autoridades da revolução francesa, ao lado de Robespierre e Saint-
Just) teria inspecionado pessoalmente o hospital de Bicêtre, recém-assumido por Pinel. Após os primeiros contatos 
com os loucos, Couthon teria dado por encerrada a inspeção, dizendo ao responsável: "Ah!, cidadão, você também 
é louco de querer desacorrentar tais animais? ... Faça o que quiser. Eu os abandono a você. Mas temo que você 
seja vítima de sua própria presunção." Ao que Pinel teria respondido: "Tenho a convicção de que estes alienados só 
são tão intratáveis porque os privamos de ar e liberdade, e eu ouso esperar muito de meios completamente 
diferentes." O gesto pineliano de desacorrentar os loucos para implementar "meios completamente diferentes", mito 
de origem da psiquiatria, é o signo de que, desde a sua fundação, a ciência psiquiátrica nasceu como reforma. 
Pedro Gabriel Delgado (1992, Apresentação) observa que as iniciativas reformadoras prosseguiram ao longo do 
século XIX, visando agora dar orientação científica aos estabelecimentos especializados. Na virada do século XX, a 
reforma passou a se orientar pela crítica à insuficiência do asilo, produzindo, por exemplo, o modelo das colônias 
agrícolas. Também a consolidação da estrutura manicomial do Estado na era Vargas deu-se como um 'desafio 
reformista', e o "'fugaz movimento da psiquiatria comunitária, entre os anos 60 e os 70" é outra iniciativa do 
"reformismo no campo da saúde mental" no Brasil. 
Qual é, então, a novidade deste processo datado que chamamos hoje de reforma psiquiátrica? Ainda segundo 
Delgado, a marca distintiva está no fato de que, nas últimas décadas, a noção de reforma ganha uma inflexão 
diferente: a crítica ao asilo deixa de visar seu aperfeiçoamento ou humanização, vindo a incidir sobre os próprios 
pressupostos da psiquiatria, a condenação de seus efeitos de normatização e controle. A expressão reforma 
psiquiátrica passa então a exigir uma 'adjetivação precisa', denotando um movimento cujo início o autor situa na 
segunda metade da década de 1970 e que tem uma característica essencial: "no Brasil da restauração democrática, 
sua característica dominante é o repto da cidadania de sujeitos obrigatoriamente tutelados. O desafio paradoxal da 
cidadania interditada." 
29 
Eis aí o ponto a isolar: o processo que denominamos reforma psiquiátrica brasileira data de pouco mais de vinte 
anos e tem como marca distintiva e fundamental o reclame da cidadania do louco: "Embora trazendo exigências 
políticas, administrativas, técnicas – também teóricas – bastante novas, a reforma insiste num argumento originário: 
os 'direitos' do doente mental, sua 'cidadania'" (idem, ibidem, p. 29). 
Se esta nova inflexão representa um ponto de partida, ela permite também demarcar em uma definição mínima o 
que é a reforma psiquiátrica brasileira. A definição proposta por pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública 
(ENSP) contempla os pontos essenciais e está em consonância com o conjunto da produção teórica do campo: 
Está sendo considerada reforma psiquiátrica o processo histórico de formulação crítica e prática que tem como 
objetivos e estratégias o questionamento e a elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do 
paradigma da psiquiatria. No Brasil, a reforma psiquiátrica é um processo que surge mais concreta e principalmente 
a partir da conjuntura da redemocratização, em fins da década de 1970, fundado não apenas na crítica conjuntural 
ao subsistema nacional de saúde mental, mas também, e principalmente, na crítica estrutural ao saber e às 
instituições psiquiátricas clássicas, no bojo de toda a movimentação político-social que caracteriza esta mesma 
conjuntura de redemocratização (Amarante, 1995, p. 91). 
Nascido do reclame da cidadania do louco, o movimento atual da reforma psiquiátrica brasileira desdobrou-se em 
um amplo e diversificado escopo de práticas e saberes. A importância analítica de se localizar a cidadania como 
valor fundante e organizador deste processo está em que a reforma é sobretudo um campo heterogêneo, que 
abarca a clínica, a política, o social, o cultural e as relações com o jurídico, e é obra de atores muito diferentes entre 
si. 
Embora tenha em sua origem um questionamento da clínica, a reforma psiquiátrica não pôde se furtar a enfrentar o 
problema das práticas de cuidado dirigidas aos loucos. Para alguns autores(Leal, 1994; Bezerra Jr., 1996), isso é o 
mesmo que dizer que a reforma psiquiátrica não pôde se furtar de enfrentar o problema da clínica e de operar em 
seu interior, uma vez que a clínica é o principal dispositivo historicamente construído pela sociedade para se 
relacionar com o fato da loucura. 
Outra vertente da reforma (Lancetti, 1990; Amarante, op. cit.), porém, considera que uma prática efetivamente 
transformadora junto aos loucos deve visar justamente à superação do paradigma da clínica. Seu raciocínio é de 
que, ao operar com a idéia de doença mental como negativo da razão e como desvio em relação a um padrão 
normal de subjetividade, a clínica impõe necessariamente ao louco um lugar de negatividade. Bezerra Jr. (1994) 
observa que, se em algum momento esta polaridade assumiu ares de confronto e rivalidade, o amadurecimento do 
processo concreto de transformação da psiquiatria levou a que as duas vertentes viessem a operar de forma 
complementar e solidária. 
Deixando de lado a discussão conceitual de fundo, apresento a seguir uma breve historiografia desse movimento 
que combina clínica e política. Começo, porém, com duas referências anteriores ao período aqui recortado, 
iniciativas que, embora criticadas e reelaboradas pelo movimento futuro de reforma, germinaram conceitos e valores 
cuja influência na reforma psiquiátrica brasileira é visível. Esses antecedentes são a psiquiatria comunitária e o 
movimento das comunidades terapêuticas, ambos referenciados às décadas de 1960 e 1970. 
Da redemocratização e do sanitarismo à luta antimanicomial: a década de 1980 
Na segunda metade da década de 1970, no contexto do combate ao Estado autoritário, emergem as críticas à 
ineficiência da assistência pública em saúde e ao caráter privatista da política de saúde do governo central. Além 
disso, surgem as denúncias de fraude no sistema de financiamento dos serviços e, o que é mais importante para o 
posterior movimento da reforma, as denúncias do abandono, da violência e dos maus-tratos a que eram submetidos 
os pacientes internados nos muitos e grandes hospícios do país. Não se criticavam os pressupostos do asilo e da 
psiquiatria, mas seus excessos ou desvios. Em 1978, é criado o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental 
(MTSM). Combinando reivindicações trabalhistas e um discurso humanitário, o MTSM alcançou grande repercussão 
e, nos anos seguintes, liderou os acontecimentos que fizeram avançar a luta até seu caráter definidamente 
antimanicomial. 
A crítica teórica às políticas de saúde do Estado autoritário e a elaboração de propostas alternativas constituíram o 
que veio a se chamar de movimento da reforma sanitária: um movimento pela reformulação do sistema nacional de 
30 
saúde. A importância é colocada na administração e no planejamento dos serviços e na ampliação do acesso da 
população à assistência em saúde. Apostava-se que o aperfeiçoamento técnico e o gerenciamento honesto e 
competente dos recursos da ciência médica pela gestão pública resolveriam o problema da má assistência em 
saúde, inclusive (mas não apenas) no setor psiquiátrico. 
A década de 1980 marca a chegada dos protagonistas e do programa do movimento sanitário à gestão efetiva dos 
serviços e das políticas públicas. Isso deu-se por meio da vitória oposicionista nas eleições para governador, em 
1982, em vários estados, da chamada 'co-gestão' dos hospitais psiquiátricos do país, e da eleição, alguns anos 
depois, de Tancredo Neves e José Sarney para a presidência da República. "Nesse período, o movimento sanitário 
se confunde com o próprio Estado" (Amarante, op. cit., p. 96). Naturalmente, as ações ganhavam um cunho 
institucionalizante, no sentido de apostarem no aperfeiçoamento tanto da instituição psiquiátrica quanto da gestão 
pública. 
Se, no plano das formulações oficiais, diagnosticou-se com acuidade a prevalência nociva do modelo asilar e 
custodial, bem como seus determinantes econômicos e políticos, as ações concretas não resultaram em mudança 
significativa (Leal, op. cit., p. 11). As iniciativas foram basicamente duas: racionalização, humanização e moralização 
do asilo; criação de ambulatórios como alternativa ao hospital de internação. No entanto, reforma do asilo e 
ambulatorização "não tiveram impacto significativo sobre a qualidade do atendimento, e êxito escasso na mudança 
da hegemonia asilar" (Delgado, 1992, p. 50). 
Neste período, a discussão sobre os direitos dos pacientes permaneceu limitada à questão do aperfeiçoamento e da 
universalização dos dispositivos tradicionais – a ampliação do direito à saúde como questão político-social. Ainda 
assim, com as intenções reformadoras dominando as diretrizes e iniciativas oficiais, produziram-se as condições 
para o amadurecimento de uma outra perspectiva. 
No plano da crítica, produziram-se importantes diagnósticos quanto ao seguinte funcionamento do modelo de 
prestação de serviços vigente no país, caracterizado pela solidária articulação entre a prevalência da internação 
asilar e a privatização da assistência: as internações psiquiátricas públicas no Brasil não são feitas exclusivamente 
nos hospitais públicos propriamente ditos (isto é, da União, estados ou municípios). A maioria delas é realizada em 
instituições privadas, que são para isso remuneradas pelo setor público. É o chamado setor conveniado ou 
contratado: hospitais privados que provêem a internação da clientela pública, mediante remuneração do estado – 
antes via INPS, depois Inamps, hoje pelo Sistema Único de Saúde (SUS). 
Na maioria das vezes, as clínicas contratadas funcionam totalmente a expensas do SUS, existindo como empresas 
privadas com fins lucrativos apenas para receber essa clientela. Sua única fonte de receita é a internação 
psiquiátrica, remunerada na forma de uma diária paga para cada dia de internação de cada paciente. A receita será 
maior de acordo com três variáveis: quanto maior o número de pacientes internados, quanto maior o tempo de 
internação e, por último, quanto menor o gasto da clínica com a manutenção do paciente internado (por exemplo, 
uma internação acompanhada apenas por uma consulta psiquiátrica espaçada, mais refeição e remédios, deixa 
como lucro uma parte menor da diária do que uma internação acompanhada por psicólogo, atividades corporais, 
lazer assistido etc.). 
Como na psiquiatria, ao contrário de outras especialidades da medicina, a indicação de internar ou não internar nem 
sempre é clara ou 'cientificamente' indiscutível – deixando a critério do médico e dos familiares do paciente uma 
margem grande de escolha; como o pressuposto disseminado no meio especializado e na sociedade é o de que 
lugar de louco é no hospício; e diante da rigorosa inexistência (hoje apenas minorada) de dispositivos de assistência 
intensiva alternativos à internação –, o sistema constitui um verdadeiro empuxo à internação, mesmo onde há boa-
fé. 
Foram sobretudo os governos militares que consolidaram a articulação entre internação asilar e privatização da 
assistência, com a crescente contratação de leitos nas clínicas e hospitais conveniados. O direcionamento do 
financiamento público para a esfera privada durante o regime militar deixa-se ver, por exemplo, no fato de que entre 
1965 e 1970 a população internada em hospitais diretamente públicos permaneceu a mesma, enquanto a clientela 
das instituições conveniadas remuneradas pelo poder público saltou de 14 mil, em 1965, para trinta mil, em 1970 
(Resende, 1987, p. 61). Anos depois, esses números se multiplicariam, mantendo, porém uma proporção de 80% de 
leitos contratados junto ao setor privado e 20% diretamente públicos (Alves, 1999). 
31 
Documentos oficiais produzidos pelas autoridades sanitárias na década de 1980 observavam com propriedade o 
caráter perverso da relação entre poder público, rede privada e modelo asilar: o Plano Conasp de Psiquiatria, 
divulgado peloInamps em 1983, apontava o "sinergismo que ocorre entre o modelo assistencial prevalente (asilar), 
a modalidade da contratação dos serviços no setor privado e a baixa eficiência do sistema de controle de qualidade 
exercido pelo Inamps" (Leal, op. cit., pp. 12, 13). A Proposta de Política de Saúde Mental da Nova República, de 
1985, mostrava que a crítica germinada nos dez ou 15 anos anteriores não mudara a política de financiamento de 
internações: dos recursos gastos pelo Inamps em serviços psiquiátricos contratados junto às clínicas privadas, 
81,96% destinavam-se à área hospitalar, e 4%, à assistência ambulatorial. 
Além do amadurecimento da crítica ao modelo privatista/asilar-segregador, a década de 1980 assistiu ainda a três 
processos também importantes para a consolidação das características atuais do movimento da reforma: a 
ampliação dos atores sociais envolvidos no processo, a iniciativa de reformulação legislativa e o surgimento de 
experiências institucionais bem-sucedidas na arquitetura de um novo tipo de cuidados em saúde mental. 
Quanto à incorporação de novos protagonistas, o então já denominado Movimento pela Reforma Psiquiátrica 
Brasileira teve como ponto de virada dois eventos do ano de 1987, a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o 
posterior II Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental. A realização desse encontro foi decidida 
durante a I Conferência, pela constatação de que a perspectiva sanitarista de incorporar as propostas reformistas 
nas políticas oficiais vinha sendo anulada pela resistência passiva ou ativa da iniciativa privada, da estrutura 
manicomial, da burocracia estatal e do conservadorismo psiquiátrico (Bezerra Jr., op. cit., p. 180). 
Na conferência propriamente dita, a estratégia deixou-se ver na tentativa conduzida pela Divisão Nacional de Saúde 
Mental do Ministério da Saúde (Dinsam), em articulação com a Associação Brasileira de Psiquiatria, no sentido de 
dar ao evento um caráter mais congressual ou científico, esvaziando seu caráter comunitário ou de participação 
social (Amarante, op. cit., p. 117). 
A I Conferência representa, portanto, o fim da trajetória sanitarista, de transformar apenas o sistema de saúde, e o 
início da trajetória de desconstruir no cotidiano das instituições e da sociedade as formas arraigadas de lidar com a 
loucura. É a chamada desinstitucionalização. O encontro que a ela se segue institui um novo lema: "Por uma 
Sociedade sem Manicômios". Estabelece um novo horizonte de ação: não apenas as macrorreformas, mas a 
preocupação com o 'ato de saúde', que envolve profissional e cliente; não apenas as instituições psiquiátricas, mas 
a cultura, o cotidiano, as mentalidades. E incorpora novos aliados: entre eles, os usuários e seus familiares, que, 
seja na relação direta com os cuidadores, seja através de suas organizações, passam a ser verdadeiros agentes 
críticos e impulsionadores do processo. 
A crítica passa a enfatizar que a própria natureza do saber, das práticas e das instituições psiquiátricas deve ser 
questionada na perspectiva da cidadania do louco, e a escolha da expressão 'manicômio', tradicionalmente 
reservada ao manicômio judiciário, aponta, segundo Amarante (op. cit., p. 100), para o fato de que "não existe 
diferença entre ele ou um hospital psiquiátrico qualquer". A ação na cultura passa a ocupar um lugar estratégico no 
agora denominado Movimento da Luta Antimanicomial: trata-se de chamar a sociedade para discutir e reconstruir 
sua relação com o louco e com a loucura. A participação dos agora chamados 'usuários' dos serviços de saúde 
mental (em lugar de 'pacientes') e de seus familiares nas discussões, encontros e conferências passa a ser uma 
característica marcante do processo. 
Ainda na perspectiva da ampliação do escopo do movimento, é instituído o dia 18 de maio como Dia Nacional da 
Luta Antimanicomial, visando a potencializar o poder de aglutinação de maiores parcelas da sociedade em torno da 
causa. Finalmente, a própria questão das estruturas de cuidado ganha outra abordagem: não se trata de aperfeiçoar 
as estruturas tradicionais (ambulatório e hospital de internação), mas de inventar novos dispositivos e novas 
tecnologias de cuidado, o que exigirá rediscutir a clínica psiquiátrica em suas bases. Substituir uma psiquiatria 
centrada no hospital por uma psiquiatria sustentada em dispositivos diversificados, abertos e de natureza 
comunitária ou 'territorial', esta é a tarefa da reforma psiquiátrica. 
Foi esse também o norte do processo de revisão legislativa. Em 1989, o deputado Paulo Delgado (PT-MG) 
apresentou o projeto de lei nº 3.657/89, que viria a ser conhecido como a Lei da Reforma Psiquiátrica (Vasconcelos, 
1992). O projeto era simples, com apenas três artigos de conteúdo: o primeiro impedia a construção ou contratação 
de novos hospitais psiquiátricos pelo poder público; o segundo previa o direcionamento dos recursos públicos para a 
32 
criação de "recursos não-manicomiais de atendimento"; e o terceiro obrigava a comunicação das internações 
compulsórias à autoridade judiciária, que deveria então emitir parecer sobre a legalidade da internação. 
Depois de aprovado na Câmara dos Deputados, o projeto enfrentou muitas dificuldades no Senado que, em seu 
lugar, aprovou, mais de dez anos depois (em janeiro de 2000), um substitutivo muito mais tímido quanto à 
substituição asilar. De autoria do senador Sebastião Rocha, o substitutivo era ambíguo quanto ao papel e à 
regulamentação da internação e chegava a autorizar explicitamente a construção de novos hospitais e a contratação 
de novos leitos em hospitais psiquiátricos "nas regiões onde não exista estrutura assistencial" (um contra-senso, à 
medida que obrigaria que as novas estruturas fossem construídas justamente segundo o modelo que, à custa de 
muito trabalho, está sendo substituído onde ele existe). 
Na volta do texto à Câmara dos Deputados, conseguiu-se suprimir o artigo referente à construção ou contratação de 
novos leitos, e a lei finalmente aprovada – Lei 10.216, de 6 de abril de 2001 – foi considerada pelo movimento da 
reforma uma lei progressista, um passo à frente. O texto aprovado em definitivo (a lei propriamente dita) será 
mencionado adiante, na referência à reestruturação sistemática do arcabouço normativo que regulamenta a 
assistência psiquiátrica no país, levada a cabo pelo Ministério da Saúde, a partir da década de 1990. 
Para o período de que estamos tratando no momento – a década de 1980 –, o que importa destacar é o fato de que 
a apresentação do projeto de lei original, em 1989, teve o efeito de produzir "uma intensificação sem precedentes da 
discussão sobre o tema em todo o país", que não ficou restrita aos meios especializados e fez avançar o movimento 
da reforma (Bezerra Jr., op. cit., p. 183). Além disso, a discussão sobre o projeto suscitou a elaboração e aprovação, 
em oito unidades da federação, de leis estaduais que, no limite da competência dos estados, regulamentavam a 
assistência na perspectiva da substituição asilar. A intensificação do debate e a popularização da causa da reforma 
desencadeadas pela iniciativa de revisão legislativa certamente impulsionaram os avanços que a luta alcançou nos 
anos seguintes. Pode-se dizer que a lei de reforma psiquiátrica proposta pelo deputado Paulo Delgado protagonizou 
a situação curiosa de ser uma 'lei' que produziu seus efeitos antes de ser aprovada. 
Para retomar a história recente e os avanços da trajetória da reforma psiquiátrica brasileira, deve-se notar que a 
transformação da assistência e mesmo do estigma social da loucura no Brasil deu-se de forma segura e constante, 
ainda que lenta, ao longo dos dez anos em que o projeto de lei tramitou sem ser aprovado. 
O balanço positivo da década de 1990 
A década de 1990 viu amadurecem e consolidarem-se os processos que compõem hoje o cenário da reforma 
psiquiátrica brasileira.Não se pode dizer que a prevalência do manicômio como principal recurso ainda destinado à 
massa da clientela tenha sido superada. Mas pode-se dizer, sem exagero, que se construiu uma nova hegemonia. 
Entre os muitos pontos a destacar, estão a penetração crescente de uma nova mentalidade no campo psiquiátrico 
(não obstante o triunfalismo da psiquiatria biológica); a permanência continuada de diretrizes reformistas no campo 
das políticas públicas, com os postos de coordenação e gerência ocupados por partidários da reforma (no caso do 
Rio de Janeiro, nos três níveis gestores: federal, estadual e municipal); a existência de experiências renovadoras 
com resultados iniciais positivos em todas as regiões do país; a capacidade das experiências mais antigas de 
manter sua vitalidade; os reiterados indícios de um novo olhar sobre a loucura vicejando no espaço social, um olhar 
não mais tão fortemente marcado pelos estigmas do preconceito e do medo (veja-se, por exemplo, a coincidência 
significativa de duas escolas de samba cariocas terem abordado o tema no carnaval de 1998). 
Partindo do nível central de gestão (a Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde), vejamos em 
dados simples e rápidos os índices de dez anos de políticas reformistas. 
Desde 1991, quando Domingos Sávio Nascimento Alves e equipe assumiram a coordenação, o financiamento 
público das ações em saúde mental foi redirecionado para a criação de uma rede extra-hospitalar, priorizando a 
remuneração do atendimento alternativo à internação (especialmente os serviços-dia) e apoiando a substituição da 
internação em hospital psiquiátrico pela internação em hospital geral. Paralelamente, foram instituídas e 
efetivamente observadas regras mais rígidas para o funcionamento dos hospitais psiquiátricos públicos e 
contratados. 
Em novembro de 1991, a portaria 189 do Ministério da Saúde instituía no plano nacional, no rol dos 'procedimentos' 
e dispositivos de atenção em saúde mental custeados por verba pública, a figura dos Núcleos e Centros de Atenção 
Psicossocial. A importância desse ato está em que, até então, não havia, no arcabouço normativo, a possibilidade 
de remuneração e incentivo públicos a outras modalidades de assistência que não as tradicionais (internação e 
33 
ambulatório de consultas). Em janeiro de 1992, a portaria 224 do Ministério da Saúde aperfeiçoou a regulamentação 
dos Caps e Naps e tipificou as unidades fundamentais da rede como um todo. 
A portaria 224 divide o atendimento em saúde mental em dois grandes grupos de atendimento, o hospitalar e o 
ambulatorial. O atendimento hospitalar compreende a internação e a semi-internação, esta última na forma dos 
hospitais-dia ("recurso intermediário entre a internação e o ambulatório ... visando substituir a internação integral ... 
pelo máximo de 45 dias corridos"). O atendimento ambulatorial compreende o ambulatório propriamente dito (na 
acepção tradicional) e os Caps e Naps, considerados ambulatoriais em sentido amplo, à medida que não-
hospitalares, mas distintos do ambulatório como estrutura específica. 
Os Naps e Caps são definidos como "unidades de saúde locais/regionais que contam com população adscrita pelo 
nível local e que oferecem atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação 
hospitalar em um ou dois turnos de quatro horas, por equipe multiprofissional". Pela regulamentação legal, devem 
oferecer os seguintes atendimentos: individual; grupos (psicoterapia, grupo operativo, oficina terapêutica, atividades 
socioterápicas, entre outras); visitas domiciliares; atendimento à família e "atividades comunitárias enfocando a 
integração do doente mental na comunidade e sua inserção social" (Ministério da Saúde/Brasil, 1994). 
Da regulamentação ministerial, importa chamar a atenção para o seguinte: embora pertençam ao grupo do 
atendimento ambulatorial, os Caps e Naps são estruturas específicas, diferentes do ambulatório stricto sensu; 
embora os hospitais-dia tenham sido os precursores históricos dos Caps, a expressão hospital-dia passa a designar 
uma estrutura propriamente hospitalar, de semi-internação, com duração máxima de 45 dias, podendo-se deduzir 
que ela visa a oferecer atendimento intensivo em períodos mais agudos, para evitar internação, ou em saídas de 
internação, como estrutura de passagem. 
Em discussões sobre o tema nos fóruns especializados, o coordenador de Saúde Mental à época da 
regulamentação, dr. Domingos Sávio, mais de uma vez esclareceu que a distinção dos Caps e Naps com relação 
aos hospitais-dia obedeceu sobretudo a razões de financiamento, visando a viabilizar o direcionamento dos 
recursos públicos para as novas estruturas não pertencentes ao universo hospitalar, reaproveitando-se uma antiga 
nomenclatura para designar um recurso intermediário, de semi-internação, ainda pouco freqüente na rede. 
É preciso, portanto, ler a regulamentação segundo uma análise que vá além da nomenclatura e procure entender o 
que efetivamente está querendo se implementar ou garantir. Nos dois aspectos anteriormente mencionados, a 
portaria tenta regulamentar e incentivar uma tendência já existente: os Caps e Naps são estruturas cuja 
fundamentação técnica e teórica se fez em torno de estabelecer sua especificidade tanto com relação ao 
ambulatório (pelas razões que já vimos) quanto com referência ao hospital-dia (pelo caráter não-hospitalar que se 
quer dar à assistência, na recusa do modelo biomédico, sintomatológico etc.). No entanto, é importante assinalar 
que, na história recente da reforma, muitos serviços que já trabalhavam em regime de atendimento diário e 
denominavam-se hospitais-dia vão se consolidando como serviços de cuidado ampliado, na perspectiva dos Caps. 
Assim, na situação atual da assistência psiquiátrica brasileira, sob a designação hospital-dia podemos encontrar 
tanto estruturas asilo-vicinais quanto as estruturas de semi-internação descritas na portaria e, ainda, estruturas que 
atendem plenamente aos requisitos de substituição asilar. Tanto que, nas estatísticas da substituição do manicômio 
no Brasil, Caps e Naps são contabilizados junto com hospitais-dia, centros de atenção diária (CAD), centros de 
convivência etc. 
Um terceiro aspecto da portaria deve ser observado: na regulamentação legal, Caps e Naps não se distinguem um 
do outro. Não é essa, porém, a realidade concreta da reforma, que já constitui uma pequena tradição. Como vimos, 
os Naps surgiram no Programa de Saúde Mental de Santos, encarregados de responder de forma plena pela 
demanda de saúde mental da região de referência. Por isso, de sua estrutura e funcionamento foi exigida uma alta 
capacidade de resolução em termos de atendimentos externos, articulação com outros dispositivos e atendimento à 
emergência. Assim, os Naps têm inclusive funcionamento de emergência durante 24 horas e uma estrutura mínima 
de leitos. Além disso, não se trabalha com uma limitação numérica de clientela, já que devem-se atender, ou ao 
menos dar algum encaminhamento, virtualmente a todas as demandas em saúde mental do território de referência. 
Já os Caps tendem a ser regionalizados em termos da adscrição da clientela, embora eles sejam desobrigados a 
apresentar a mesma capacidade de resolução para as emergências e a dar conta da totalidade da demanda de 
saúde mental – em geral limitando o atendimento à clientela inscrita no serviço e às triagens, com funcionamento 
diurno e restrito aos dias úteis e sem leitos de internação ou acolhimento-noite. Assim, o funcionamento ordinário 
34 
dos Caps pode ser semelhante ao dos Naps, mas a inexistência de leitos, de atendimento de 24 horas e de uma 
definição mais firme quanto à sua função perante o território implica diferenças significativas. 
Como resultado da política de incentivo às unidades abertas e de imposição de regras e limites à internação 
hospitalar,em cinco anos, 57 hospitais psiquiátricos foram fechados (nove públicos e 48 contratados), com o total 
de hospitais psiquiátricos diminuindo de 313 (54 públicos e 259 contratados) para 256 (45 públicos e 211 
contratados). O número de leitos em hospitais psiquiátricos caiu de 85 mil para 62 mil, em números aproximados, 
dos quais cerca de 20% públicos e 80% contratados (Alves, op. cit.). 
À diferença de outras áreas de saúde, na psiquiatria, a diminuição do número de leitos e hospitais é um índice 
positivo – desde que acompanhado pela criação de alternativas de assistência. As análises existentes convergem 
ao apontar que o processo em curso no país não consiste em um desmantelamento da rede hospitalar, mas na sua 
transformação para alternativas não hospitalares (Alves, op. cit.). Na primeira metade da década de 1990, foram 
inaugurados quase cem serviços de atenção diária: em abril de 1996, os dados disponíveis registravam 106 
serviços de atenção diária, sendo que este tipo de serviço praticamente inexistia seis anos antes. Na ocasião, 
considerava- se que a substituição asilar vinha acontecendo "de maneira inequívoca e regular no Brasil nos últimos 
dez anos", e que se podia esperar uma aceleração do processo (Delgado, 1997a, p. 9). De fato, o ritmo foi mantido 
na segunda metade da década até os dias atuais: em setembro de 2001, na Conferência Municipal de Saúde do Rio 
de Janeiro, o coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Pedro Gabriel Delgado, divulgava a existência 
de 275 serviços dessa natureza no país. 
É preciso, porém, analisar os números à luz da necessidade do sistema público de saúde. Como não se trata da 
mera expansão de um modelo de assistência, mas da criação de um novo modelo, com mudança de paradigmas e 
profunda ampliação do escopo e do rol de procedimentos mobilizados no cuidado, a estimação das necessidades 
tem sido reajustada ao longo do processo. Em 1997, Delgado observava que a redução de leitos – altamente 
positiva – vinha sendo acompanhada de uma taxa de criação de Caps e Naps insuficiente quando comparada com 
as necessidades projetadas. 
1. Conclusão 
Uma avaliação do processo aqui historiado, mesmo que interessada em questionar seus aspectos eventualmente 
problemáticos, deve partir do reconhecimento de que a reforma psiquiátrica brasileira é um processo positivo e até 
aqui bem-sucedido. Os fatos e as análises apresentadas ao longo do artigo demonstram que ela tem alcançado 
seus objetivos, ainda que haja muito por fazer. À guisa de conclusão, portanto, parece-me mais interessante 
acrescentar a esse julgamento uma breve discussão sobre esses objetivos em si mesmos e sobre suas implicações 
na prática psiquiátrica e no laço social. 
Foi citada anteriormente a afirmação de que mudar o tratamento dado ao doente mental consiste em duas grandes 
ações: oferecer uma rede de cuidados que ajude o paciente a viver na comunidade e construir uma atitude nova da 
sociedade em relação ao doente mental (Capistrano Filho, op. cit.). Aparentemente, há aí dois planos: um mais 
estritamente técnico, da rede e das práticas de cuidados, e outro mais amplo, dito cultural. A discriminação desses 
planos é em alguma medida necessária para que não se perca a especificidade do que deve ser feito em cada 
frente de ação. Mas entendo que eles são no fundo um mesmo plano, dizem respeito a um mesmo fato: o 
agenciamento social da loucura. Vale dizer, mesmo a ação técnica mais específica está animada pela questão de 
como agenciar o pertencimento social do louco (no caso da reforma, de como agenciá-lo positivamente). Dessa 
dimensão ela extrai sua legitimidade e nela encontra seu sentido. 
A formulação que proponho não deve ser confundida com a 'denúncia' de que a psiquiatria retira sua legitimidade 
não da ciência, mas do mandato social de controlar sem arbítrio a desordem, nem implica a adesão à tese de que o 
essencial da reforma não é a clínica, mas a 'ação social'. Penso que o essencial da reforma são as práticas de 
cuidado destinadas aos loucos, visando à manutenção do louco na vida social e visando a que ele possa, nos 
constrangimentos impostos por sua condição psíquica, exercer-se como sujeito. A isso chamo de clínica. E a clínica 
é uma ação social. 
O campo hoje multiprofissional da psiquiatria, fundado pelo gesto inaugural de Pinel de se interessar pela lógica da 
loucura e propor para ela uma terapêutica, representa a relação sistemática, não de técnicos, mas da sociedade 
com a loucura (relação que a reforma pretende tornar mais inclusiva). A clínica, portanto, situa-se no rol das 
respostas sociais à loucura e tem aí um lugar privilegiado, de possibilidade singular de trabalho. 
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Concluo, assim, propondo que os processos apresentados e discutidos neste artigo, que abrangem diferentes 
níveis, sejam colocados na seguinte perspectiva: sempre esteve na base da psiquiatria a questão problemática do 
agenciamento social da loucura. Quando se fala em substituição asilar, deve-se ter em mente que, há duzentos 
anos, a psiquiatria foi inventada e instituída como aparato social encarregado de responder ao problema da loucura. 
Desde então, este problema, que antes batia à porta de outras instituições sociais, passou a bater à porta da 
psiquiatria. Na maior parte desses duzentos anos (a bem dizer, até hoje), a psiquiatria respondeu a isso com a 
internação, manteve como resposta a mesma prática social anterior à sua fundação e que lhe deu origem. 
A reforma psiquiátrica é a tentativa de dar ao problema da loucura uma outra resposta social, não asilar: evitar a 
internação como destino e reduzi-la a um recurso eventualmente necessário, agenciar o problema social da loucura 
de modo a permitir ao louco manter-se, como se diz, na sociedade. As razões pelas quais a psiquiatria não foi capaz 
de oferecer essa outra resposta começam no mandato social que a legitima (o mandato de reclusão dos loucos), 
passam pelos valores culturais e sociais mais amplos de segregação da diferença, incluem o caráter refratário ao 
laço social característico da própria psicose e culminam na dificuldade técnica e gerencial de promover com eficácia 
e abrangência essa outra resposta. De modo geral, a reforma enfrenta com mais eficácia cada uma dessas 
dimensões. 
A expressão 'problema social da loucura' e a atribuição à psicose de um caráter refratário ao laço social não contêm 
juízo de valor nem engendram algum tipo de cinismo. A chamada loucura é, para o corpo social, um problema. Em 
certa medida, a loucura é justamente aquilo que aparece no corpo social como não redutível a outras categorias que 
tentam dar conta da diferença, dar conta do que aparece como incomodamente dissonante. Pode-se mesmo dizer 
que aquilo que aparece na cultura como diferença irredutível é chamado de loucura – formulação que já nos faz 
perceber que a pretensão de harmonizar loucura e sociedade é problemática em si mesma. 
A adesão aos valores da reforma, contra a segregação social da loucura, não implica qualquer romantização da 
loucura e não deve nos impedir de reconhecer a tensão contida no binômio sociedade-loucura. Reconhecer aí a 
base de nosso trabalho é um passo importante para que possamos fazê-lo com eficiência e para que possamos 
orientar eticamente nossas ações. É nessa tensão mesma que trabalhamos – somos, à nossa revelia ou não, 
agenciadores dessa tensão. 
Quanto à dificuldade técnica e gerencial de viabilizar com eficácia uma resposta inclusiva: a quantidade de 
procedimentos sociais acionados em relação à psicose permite ver que a resposta social que ela exige está além do 
que o modelo assistencial centrado no hospital pode oferecer. Organizada em torno do hospital, e mais 
recentemente do binômio hospital-ambulatório, a psiquiatria não incide efetivamente nas condições cotidianas de 
vida que empurram o paciente psiquiátrico grave para o asilamento progressivo. O grau de comprometimentoda 
capacidade concreta de vida social acarretado pela psicose grave exige que seu tratamento, para além de ser um 
manejo dos sintomas da doença, seja um suporte existencial eficaz. 
O sucesso da reforma – sua eficácia terapêutica e seu apelo ideológico – reside em larga medida na percepção 
desse fato e na construção de um amplo arcabouço de cuidados para sustentar a existência de pacientes que, sem 
isso, estavam condenados à errância ou à hospitalização quase permanente. São criados serviços capazes de ser 
uma referência institucional permanente de cuidados e de cuidados integrais. São incorporados ao campo dos 
cuidados procedimentos e instituições tais como trabalho protegido, residências terapêuticas, lazer assistido e 
outras formas de intervenção ampliada. É constituída uma rede de atenção psicossocial e a própria idéia de 
'atenção psicossocial' passa a designar um novo paradigma de cuidados em saúde mental que afirma: tratar a 
psicose é uma tarefa que diz respeito à própria existência do sujeito assistido. 
Finalmente, para além de promover um aperfeiçoamento técnico e institucional do tratamento em saúde mental, a 
reforma psiquiátrica tem efeitos positivos também do ponto de vista da cidadania brasileira. Movimentando-se no 
sentido contrário ao da redução das políticas sociais do Estado, ela aponta para a construção de uma sociedade 
mais inclusiva e para a recuperação do sentido público de nossas ações. Trata-se, enfim, de uma transformação 
generosa e radical de algumas das mais importantes instituições sociais de nosso tempo.

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