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1 HISTÓRIA DA LOUCURA E HISTÓRIA DO BRASIL MANICOMIAL 1 Sumário NOSSA HISTÓRIA .......................................................................................... 2 MICHEL FOUCAULT E A “HISTÓRIA DA LOUCURA”: 50 anos transformando a história da psiquiatria .............................................................................................. 3 “Não me diga para permanecer o mesmo”: há um devir-Foucault no pensamento contemporâneo .................................................................................. 4 “Há que se fazer a história desse outro giro de loucura”: o que há de novo e revolucionário em Michel Foucault e sua História da Loucura ................................ 8 História da Loucura na Idade Clássica: loucura e desrazão e nascimento da psiquiatria ............................................................................................................... 9 O grande retângulo botânico e o confinamento do louco .............................. 13 O antialienismo e a crise da Psiquiatria: do “Mestre da Loucura” à Charcot e a ‘produção da verdade’ .................................................................................... 15 Por determinadas rupturas na reforma psiquiátrica a partir de História da Loucura .................................................................................................................... 18 Entre loucos e manicômios: História da loucura e a reforma psiquiátrica no Brasil ........................................................................................................................ 22 A reforma psiquiátrica no Brasil e as novas concepções ............................... 28 Remediação com a patologia/transtorno já instalado ao invés de métodos preventivos primários. .............................................................................................. 34 REFERÊNCIAS ............................................................................................. 36 2 NOSSA HISTÓRIA A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de empresários, em atender à crescente demanda de alunos para cursos de Graduação e Pós- Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior. A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicação ou outras normas de comunicação. A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica, excelência no atendimento e valor do serviço oferecido. 3 MICHEL FOUCAULT E A “HISTÓRIA DA LOUCURA”: 50 anos transformando a história da psiquiatria Eis então que História da Loucura na Idade Clássica completa 50 anos e, como obra seminal de um pensador à frente de seu tempo, produziu reações contrárias violentas, quando foi publicada em 1961; mas podemos dizer que certamente acabou se tornando uma das referências mais decisivas para as ciências humanas e especialmente para o campo da saúde mental no século XX. Dialogando com diferentes áreas do conhecimento acadêmico e científico, tão diversas como a história, a filosofia, a política, a psicologia, a medicina, a psiquiatria, a psicanálise, a literatura, as ciências humanas em geral e outros campos de conhecimento, Michel Foucault foi um crítico feroz do próprio cientificismo e do academicismo dominantes no pensamento francês. Além de também ter sido militante político através do GIP (Grupo de Informação sobre as Prisões), e ainda, ao menos indiretamente, influenciar nos movimentos de defesa dos loucos, dos prisioneiros, dos homossexuais. Nesta obra, que se tornou um marco de renovação do pensamento do século XX e por meio da qual se inicia a trajetória de sua produção, Foucault traz, como estamos propondo neste trabalho, a reflexão sobre uma das chaves que fundamentam a constituição das sociedades moderna e contemporânea, o que nos permite afirmar que sua obra é essencial para a compreensão do presente. Esta chave de reflexão é a questão da loucura vista sob um novo prisma, sob uma nova forma de entendimento que abala as estruturas tradicionais do racionalismo moderno, e, portanto, de nossas raízes históricas, e do que faz com que compreendamos a nós próprios; e mais ainda, abala os fundamentos do pensamento filosófico ocidental, e, portanto, transforma nossas possibilidades de reinvenção contemporâneas de forma profunda e revolucionária. É preciso, a partir daí, problematizar como a questão da Razão é o fio condutor na constituição da subjetividade ocidental, para que possamos alcançar a envergadura da crítica que Foucault realiza não apenas debruçando-se sobre o campo da psiquiatria, mas, muito além, produzindo uma reviravolta em nossa posição diante de nossos costumes, nossas tradições, isto é, de nossos modos de existência, nossos modos de viver, sentir e estar no mundo. 4 Se Foucault disse que o século XX seria deleuziano, talvez agora possamos nos perguntar: Será que, como Nietzsche que ele tanto prezava Michel Foucault não é um “póstumo”? Um pensador visionário que intuiu e presentificou as rupturas revolucionárias necessárias em seu tempo? E porque não, poderíamos então dizer que o século XXI, talvez um dia seja foucaultiano? Se bem que, se ouvisse que o século XXI seria “foucaultiano”, provavelmente ele poderia citar Zaratustra, “se quiser me seguir, não me siga” – encontre seu próprio caminho – ou então dizer: “Não me pergunte quem sou... e não me diga para permanecer o mesmo”. “Não me diga para permanecer o mesmo”: há um devir- Foucault no pensamento contemporâneo Defendida em 20 de maio de 1961, como tese de doutorado, e publicada no mesmo ano, História da loucura na Idade Clássica realiza uma investigação das diferentes formas de percepção da loucura no período compreendido entre a época do Renascimento e a modernidade, analisando como se chega até à classificação da loucura como doença mental. Pesquisando várias fontes distintas, através de tratados de medicina e de filosofia, monografias, arquivos contábeis e até obras literárias e artísticas, como em Diderot, Bosch e Goya, Foucault também inaugura uma nova maneira de pensar a pesquisa histórica, por meio de uma visão crítica da constituição da psiquiatria como saber e poder institucionalizados (e como tal, peça-chave do Poder Disciplinar), escapando à história da psiquiatria tradicional, que, por sua vez, era contada do interior do discurso psicopatológico e seus personagens. A obra História da Loucura na Idade Clássica (FOUCAULT, 1978) demonstra que antes do século XVII, a loucura possuía outra percepção social. Através das artes, dos costumes, da literatura, Foucault vai mostrando uma compreensão própria à época clássica que não pode ser caracterizada como erro ou inferior a um saber psiquiátrico posterior, pois se constituiu como uma outra forma de relação com a loucura (FOUCAULT, 1975). Com o fim do 'Grande Enclausuramento' e o nascimento do alienismo pineliano, ocorre a inauguração de uma nova forma de relação com a loucura, agora intermediada pela emergência de um saber denominado alienismo ou medicina mental, candidato a um estatuto de cientificidade, que seria sempre questionado, mesmo quandomais reconhecido sob a forma posterior da psiquiatria e 5 da clínica psiquiátrica. Foucault reflete sobre a existência de uma produção de formas de relação com a loucura, mais especificamente a produção da loucura como “alienação mental” e posteriormente como “doença mental”, que transformam a experiência que se tinha da loucura na época clássica. Um dos principais pensamentos de que se utiliza Michel Foucault é a filosofia de Friedrich Nietzsche, do final do século XIX. A base para a compreensão da reflexão de Foucault sobre a loucura tem grande relação com o pensamento de Nietzsche (MARTON, 2001; NAFFAH NETO, 1988). Porque é em Nietzsche que Foucault encontra uma crítica da produção de conhecimento que permite escapar ao platonismo e à metafísica, isto é, à filosofia da representação. Para Nietzsche, o sujeito é uma construção do pensamento, produto de um processo de produção conceitual ao longo da história do pensamento (MOSÉ, 1995). Nietzsche também faz uma crítica da ideia de sujeito como unidade, questionando este que é um dos fundamentos cruciais para a filosofia da representação e o pensamento científico. Como Foucault explicita textualmente, no início da primeira conferência de “A Verdade e as formas jurídicas”, o método de Nietzsche seria o que melhor se aplica às suas análises históricas, porque realiza uma “análise histórica da própria formação do sujeito” (FOUCAULT, 2002, p. 13). Por isso, ele não pode ser considerado um “filósofo”, no sentido tradicional do termo, já que em Nietzsche ele encontra sua ‘contra filosofia’, e isto nos leva a um Foucault como historiador, ou pensador, mas não filósofo, o que implicaria incluí-lo na história da filosofia, e o mais adequado é sem dúvida dizer que tanto Nietzsche quanto Foucault são pensadores que se constituem como ‘rupturas’ da história da filosofia e dos sistemas de pensamento, são ‘marginais’ em relação ao sentido da filosofia socrático-platônica, que representa o pensamento filosófico dominante na história do pensamento ocidental. Na medida em que há uma base nietzschiana no pensamento de Michel Foucault, é possível considerar que, como Nietzsche, Foucault é um pensador que rompe com a razão filosófica que busca a verdade absoluta, isto é, rompe com a metafísica platônica e certamente, por conseguinte, tanto está em disrupção com o racionalismo cartesiano como com o modelo científico moderno (MACHADO, 1986; 1999). Por isso, há uma espécie de ‘devir-Foucault’ no pensamento contemporâneo. Este é o ponto decisivo para uma compreensão do alcance deste pensamento que está visceralmente colocado nas análises de História da Loucura na Idade Clássica. 6 O ‘novo arquivista’ (DELEUZE, 1988), que faz um novo tipo de história, é exatamente esse que é o “andarilho” capaz de produzir um Pensamento Nômade, um pensamento com a potência de “embaralhar os códigos” (DELEUZE, 1985, p. 11), e questionar o status quo vigente na filosofia, isto é, romper com o naturalismo e objetivismo da razão filosófica e científica, que em seu reducionismo impõe à loucura o estatuto de erro. Isso se deu devido à constituição, no interior do racionalismo moderno, de uma noção de sujeito do conhecimento em que a razão como fundamento do sujeito, garantia sua existência e a revelação da verdade sobre a natureza e sobre o homem (FOUCAULT, 2002, p. 10). Esta potência na análise arqueológica e genealógica da loucura em Michel Foucault confere à sua abordagem um lugar que questiona profundamente os fundamentos conceituais que sustentam as sociedades modernas e que silenciaram a loucura por quase três séculos. A questão do sujeito é a questão crucial do pensamento contemporâneo, que é marcado pelo dilema de colocar a subjetividade sob suspeita, isto é, se com a fenomenologia e a psicanálise, por exemplo, o sujeito do conhecimento já não é mais garantido por uma unidade e uma interioridade capazes de produzir uma continuidade “do desejo ao conhecer”, “da consciência ao desvelamento da verdade”, então todo o edifício conceitual da filosofia e da ciência estão abalados (FOUCAULT, 2000, p. 18-19). Por esses motivos, Michel Foucault em sua História da Loucura na Idade Clássica pode ser considerado como profundamente inovador e ousado na abordagem realizada, em relação ao pensamento hegemônico sobre a loucura, que havia sido criado pela psiquiatria clássica. Há um devir-Foucault navegando no século XX, no que diz respeito ao problema da loucura, que percebemos como tema crucial para o “século que coloca a subjetividade sob suspeita”, e que produz uma crise justamente no seu ‘calcanhar de Aquiles’, que é a relação razão-desrazão como sinônimo de acerto-erro, ou normal-anormal, ou ainda, sanidade-patologia. O Poder Psiquiátrico, por sua vez, funcionou como controle dos comportamentos da sociedade fixando uma norma de comportamento “normal” e a noção de anormalidade para enquadrar os desviantes do modelo e adequá-los ao padrão ou excluí-los nas instituições de controle e correção. Assim, a questão da loucura e sua relação com a Razão, e a captura da loucura como problema médico, 7 na raiz da modernidade, foi ao mesmo tempo uma das bases para o nascimento das ciências humanas e uma das bases para a consolidação do próprio capitalismo. Tudo isso tem a ver com as análises de História da Loucura na Idade Clássica. A constituição da racionalidade cartesiana e da crença na ciência como base dos nossos modos de existência e formas de sentir e estar no mundo, produziu efeitos que nos atravessam ainda hoje. Quando o sujeito cartesiano é questionado por uma nova noção de loucura não mais compreendida como erro, incapacidade e periculosidade, escapando então à codificação psiquiátrica da doença mental, somos afetados para produzir uma enorme ampliação de nossos significados sobre nós mesmos. Em outras palavras, repensar o sujeito a partir de uma nova concepção de loucura, nos leva à possibilidade de uma ruptura em relação à herança da tradição filosófica e cartesiana, e desta forma, a discussão sobre a “crise do sujeito contemporâneo” encontra caminhos e desenvolvimentos antes ignorados para a invenção de novas formas de relação entre razão e desrazão. Didier Eribon (1990) escreveu uma biografia de Foucault que relata sua formação como jovem e a trajetória para que o “Foucault pensador da loucura” pudesse forjar a arqueologia e a genealogia em suas obras. Um dos professores importantes na juventude, com quem gostava de conversar fora das aulas, chamado Dom Pierrot, conversava sobre Platão, Descartes, Pascal, Bergson. Como disse o próprio professor, existem dois tipos de alunos, um para os quais a filosofia seria questão de curiosidade e orientação sobre os grandes sistemas e grandes obras; e outro para quem seria uma questão de inquietude pessoal, de inquietude vital. “Os primeiros são marcados por Descartes, os segundos por Pascal” (ERIBON, 1990, p. 25). Não é por acaso que História da Loucura começa com uma frase de Pascal, no famoso prefácio original, que foi retirado posteriormente pelo próprio autor devido a controvérsias múltiplas, inclusive o debate com Jacques Derrida (ROUDINESCO, 1994; FOUCAULT, 1999, p. 268-284). A frase é: “Pascal: ‘Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco seria ser louco de um outro giro de loucura’ (FOUCAULT, 1999, p. 140). E este outro texto, de Dostoievski, no Journal d’un écrivain: “‘Não é isolando seu vizinho que nos convencemos de nosso próprio bom senso.’ Há que se fazer a história desse outro giro de loucura [...]” (FOUCAULT, 1999, p. 152). 8 “Há que se fazer a história desse outro giro de loucura”: o que há de novo e revolucionário em Michel Foucault e sua História da Loucura O que leva esta obra, que inaugura a trajetória de Foucault, escrita aos 35 anos de idade, a ser um marco fundamentalpara o pensamento contemporâneo? Em primeiro lugar, a problematização das relações entre loucura e desrazão a partir de um novo entendimento sobre o estatuto da racionalidade, estatuto este colocado em questão, incluída a racionalidade psiquiátrica. Isto torna Foucault praticamente um “herege” do ponto de vista do poder científico clássico dominante na modernidade (FOUCAULT, 1999, pág. 320-323); se insere aí nesta problematização a que nos referimos, a questão da produção da verdade pelo médico e pela psiquiatria, que chega ao auge e à culminância antes da ‘crise’ da psiquiatria que se acirra a partir de então, no final do século XIX, com Charcot. Em segundo lugar, em sua História da Loucura, Foucault faz uma crítica ao Poder Psiquiátrico, que é analisado como parte das estratégias e táticas dos dispositivos de controle do Poder Disciplinar, nos séculos XVIII e XIX, quando da constituição do sistema capitalista; é claro que esta proposição tem sentido no conjunto da obra de Foucault, mas já esboçado inicialmente que a psiquiatria é uma das engrenagens do sistema quando Foucault coloca em questão o poder do médico e sua neutralidade; Em terceiro lugar, mas não menos importante, encontramos no pensamento de Michel Foucault, desde o início, a investigação sobre outras possibilidades de compreensão do que é o fenômeno da loucura, abrindo um vasto campo de problemas, indagações e perplexidades, para todos os campos com os quais dialoga a obra de Foucault, colocando em questão a noção de normalidade de uma forma própria. Em outras palavras, aí temos algo que escapa à codificação da loucura como doença e à verdade psicopatológica como única autorizada para discursar sobre o louco, considerado até então como incapaz de produzir sentido e de viver em convivência com os “normais” – daí também a loucura passa a ser vista como mal a ser perseguido e extirpado ou purificado – é a ideia de contaminação ou defeito associada ao indivíduo desviante considerado anormal; o que se concretiza na concepção em Pinel do louco como “alienado mental” e principalmente os desdobramentos da noção em Morel de “degeneração mental”. 9 Muitas outras possibilidades de ruptura, que esta obra de Michel Foucault realiza, poderiam ser discutidas, certamente, pois suas possibilidades são múltiplas. O que mais nos importa aqui é investigar quais são as contribuições de História da Loucura para o campo da saúde mental, e sua relevância atual para inspirar e orientar a construção de um novo lugar social para o louco e o diferente. A questão fundamental para um enfoque crítico em saúde mental passa a ser saber que formas de relação com a loucura estão em movimento sendo produzidas, na construção do processo de Reforma Psiquiátrica, conferindo coerência histórica, conceitual e prática às intervenções nos novos serviços de saúde mental e na implementação de políticas, bem como na formação de profissionais que atuam sobre a relação saúde-loucura. É importante neste ponto compreender mais profundamente como a história de “um outro giro de loucura”, uma história arqueológica e genealógica da loucura e sua constituição como doença mental, para desnaturalizar as concepções sobre a loucura que capturam sua experiência na forma da doença, sob o poder do médico. No momento atual, em que enfrentamos grandes desafios e dilemas complexos no campo da saúde mental no Brasil, no contexto de implantação de novos serviços, dispositivos e experiências na Reforma Psiquiátrica, a visão de Michel Foucault continua sendo uma orientação fundamental e decisiva para fazer frente aos movimentos de contra-reforma e contribuir para o avanço da desmanicomialização no Brasil, seus atores sociais e políticos e os profissionais e técnicos que estão nos embates cotidianos construindo a política de saúde mental em diferentes frentes de trabalho. História da Loucura na Idade Clássica: loucura e desrazão e nascimento da psiquiatria Até o século XV, não havia prática de internamento de indivíduos desviantes como na Idade Moderna ocorreu, na reclusão dos “anormais” em instituições fechadas de controle e vigilância. Talvez a primeira forma de exclusão social de indivíduos considerados problemáticos ou marginais, na aurora renascentista, é a prática de isolamento da lepra. Mas outros processos históricos ocorreram, deslocando a figura do leproso como personagem maldito, e a rejeição que causou no imaginário social, para outras figuras sociais que passam a significar este mesmo lugar depositário de mazelas e terrores. 10 Ao final da Idade Média, a lepra desaparece do mundo ocidental [...] Durante séculos, essas extensões pertencerão ao desumano. [...] A partir da Alta Idade Média, e até o final das Cruzadas, os leprosários tinham multiplicado por toda a superfície da Europa suas cidades malditas (FOUCAULT, 1978, p. 3). Assim começa História da Loucura, se referindo a uma prática de exclusão que já existia desde antes do século XV, isto é, a exclusão do leproso. Os leprosários se multiplicaram por toda a Europa chegando aos milhares, e só foram regulamentados na França no século XVII. Do século XV ao século XVII, no entanto, uma estranha regressão da lepra estabelece um vazio por toda parte, nessas cidades malditas “às margens da comunidade, às portas das cidades”, isto é, a infecção regride e a doença some do horizonte social deixando desabitados esses espaços de exclusão. Estranho desaparecimento, que sem dúvida não foi o efeito, longamente procurado, de obscuras práticas médicas, mas sim o resultado espontâneo dessa segregação e a consequência, também após o fim das Cruzadas, da ruptura com os focos orientais de infecção. A lepra se retira, deixando sem utilidade esses lugares obscuros e esses ritos que não estavam destinados a suprimi-la, mas sim a mantê-la a uma distância sacramentada, a fixá-la numa exaltação inversa. Aquilo que sem dúvida vai permanecer por muito mais tempo que a lepra, e que se manterá ainda numa época em que, há anos, os leprosários estavam vazios, são os valores e as imagens que tinham aderido à personagem do leproso (FOUCAULT, 1978, p. 6). Tais espaços de exclusão serão retomados de diferentes formas nos períodos históricos seguintes, inicialmente a lepra foi substituída pelas doenças venéreas, mas as práticas de exclusão se renovam e se transformam. O poder real no século XVII já se utilizava destes locais de recolhimento e depósito de indivíduos por motivos ainda ambíguos e variados. Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Frequentemente nos mesmos locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e ‘cabeças alienadas’ assumirão o papel 11 abandonado pelo lazarento [...] Com um sentido inteiramente novo, e numa cultura bem diferente, as formas subsistirão” (FOUCAULT, 1978, p. 6-7). Porém, as doenças venéreas foram um mal que, diversamente da lepra, “logo se tornou cousa médica, inteiramente do âmbito do médico” (FOUCAULT, 1978, p. 8), surgindo muitos tipos de tratamento, e sob a influência do modo do internamento do século XVII, a doença venérea se integrou ao lado da loucura num espaço moral de exclusão: De fato, a verdadeira herança da lepra não é aí que deve ser buscada, mas sim num fenômeno bastante complexo, do qual a medicina demorará para se apropriar. Esse fenômeno é a loucura. Mas será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que esse novo espantalho, que sucede à lepra nos medos seculares, suscite como ela reações de divisão, de exclusão, de purificação que no entanto lhe são aparentadas de uma maneira bem evidente. Antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seufavor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença (FOUCAULT, 1978, p. 8). Antes do século XVII, a loucura era polimorfa e múltipla (FOUCAULT, 1975, p. 76), no horizonte da vida medieval, e sua presença tinha como figuras os bufões e espetáculos bizarros errantes, personagens literários e imaginários, indivíduos estranhos ou excêntricos, e as naves romanescas ou satíricas literárias, das quais uma teve existência real, a Nau dos Loucos (Narrenschiff). A loucura circulava, a experiência da insensatez tinha algo de errante e provocava medo e fascínio, mas ainda não aparentada a culpas morais. Uma nova forma de exclusão se deu por meio de uma nova necessidade de ordenação do espaço público. O “Grande Enclausuramento” abrigava prostitutas, libertinos, sifilíticos, doentes venéreos, desafetos do Rei, doentes moribundos, mendigos, andarilhos, desordeiros, loucos e todo tipo de marginal. No entanto, este internamento do louco na época clássica não colocava em questão as relações da loucura com a doença, mas sim “as relações da sociedade consigo própria, com o que ela reconhece ou não na conduta dos indivíduos” (FOUCAULT, 1975, p. 79), no sentido de eliminar a desordem e impor a ordem pública, coerente com o nascimento 12 das cidades e suas consequências. Este mesmo problema se impõe em relação ao nascimento da medicina social e o ordenamento urbano, que diante da insalubridade produz o “medo da cidade” (FOUCAULT, 1979, p. 87), das doenças e do excesso de população. A instituição de reclusão e isolamento do indivíduo louco, chamado “asilo de alienados mentais”, surge com o ‘ato libertador’ de Pinel ao determinar o fim do “Grande Enclausuramento”, instituição dos anciens regimes monárquicos que servia ao recolhimento de todo tipo de indivíduo marginal até a Revolução Francesa. A prática do internamento, no começo do século XIX, coincide com o momento no qual a loucura é percebida menos em relação ao erro do que em relação à conduta regular e normal; no qual ela aparece não mais como julgamento perturbado, mas como perturbação na maneira de agir, de querer, de ter paixões, de tomar decisões e de ser livre (FOUCAULT, 1997, p. 48). O novo e revolucionário no novo tipo de história deste “outro giro de loucura”, passa pela compreensão de que a loucura não foi revelada em sua verdade essencial pelo olhar científico do alienista, “mestre da loucura”, que nada mais fez do que acreditar que, através do asilo e do isolamento terapêutico aliado ao tratamento moral, seria possível “descobrir a verdade da doença mental”, quando, ao contrário, estava produzindo esta mesma verdade, como sujeito do conhecimento forjando um novo objeto da medicina e uma nova área de atuação no processo de medicalização da sociedade moderna. E qual o papel do hospício nesta busca por descobrir a verdade da doença mental? Permitir o processo de cura do louco através da intervenção médica: Qual é, com efeito, o processo da cura? O movimento pelo qual o erro se dissipa e a verdade aparece de novo? Não; mas ‘o retorno das afecções morais nos seus justos limites; [...]’. Qual poderá ser, então, o papel do hospício nesse movimento de retorno às condutas regulares? Evidentemente, ele terá, de saída, a função que se prestava aos hospitais no final do século XVIII; permitir descobrir a verdade da doença mental, afastar tudo aquilo que, no meio do doente, pode mascará-la, misturá-la, dar-lhe formas aberrantes, mantê-la também e relançá-la (FOUCAULT, 1997, p. 48). 13 O grande retângulo botânico e o confinamento do louco Sabemos que Pinel foi influenciado por Linnaeu, pai da Botânica, e que o alienismo nasce da ideia de que é preciso “nomear para conhecer” – princípio básico que sustenta a taxonomia botânica – o que se torna um princípio da própria ciência moderna, em seu ideal de cientificidade e neutralidade. A classificação é fundamental para a constituição do alienismo como ciência, também chamado de medicina mental e que nasce junto ao asilo de alienados mentais, instituição destinada à cura do alienado mental que perdeu o juízo de si e o juízo da realidade. O indivíduo louco, que perdeu a razão, deve ser isolado no asilo para recuperar a sua razão e livrar-se de sua loucura. Com o desenvolvimento da medicina no século XIX, por meio da anatomopatologia, da bacteriologia e da neurologia de base biológica, surgem as condições de possibilidade para a transformação do saber médico-filosófico do alienismo em uma clínica psiquiátrica com base neurobiofisiológica, e o asilo de alienados se transformou em hospital psiquiátrico. Porém, mais ainda que um lugar de desmascaramento, o hospital, cujo modelo foi dado por Esquirol, é um lugar de afrontamento; a loucura, vontade perturbada, paixão pervertida, deve encontrar aí uma vontade reta e paixões ortodoxas. O seu face a face, seu choque inevitável, que é de fato desejável, produzirão dois efeitos; por um lado, a vontade doente, que podia muito bem permanecer incompreensível, já que não se exprimia em nenhum delírio, produzirá à luz do dia seu mal pela resistência que oporá à vontade reta do médico; e por outro lado, a luta que se estabelece, a partir daí, se for bem conduzida, deverá levar à vitória da vontade reta, à submissão, à renúncia da vontade perturbada. Um processo, portanto, de oposição, de luta e de dominação (FOUCAULT, 1997, p. 48-49). O hospital psiquiátrico é a grande “Estufa” para o estudo classificatório da alienação mental e a construção de uma clínica da loucura, isto é, sua codificação em linguagem médica, e o isolamento terapêutico combinado com o Tratamento Moral levam à produção do saber psiquiátrico sobre a loucura e influenciam profundamente o campo da psicopatologia, em sua linguagem sobre a doença mental. No entanto, 14 Foucault mostra que um outro giro de loucura atravessa a história desta codificação da loucura na forma da doença mental. Assim se estabelece a função muito curiosa do hospital psiquiátrico do século XIX: lugar de diagnóstico e classificação, retângulo botânico onde as espécies de doenças são divididas em compartimentos cuja disposição lembra uma vasta horta. Mas também espaço fechado para um confronto, lugar de uma disputa, campo institucional onde se trata de vitória e submissão (FOUCAULT, 1979, p. 122, grifo nosso). Esta Genealogia da loucura em Michel Foucault permite investigar como o alienista efetivamente produz a verdade que ele busca descobrir, através de seu saber e da instituição de reclusão; e, neste confinamento da loucura, que é ao mesmo tempo conceitual e físico, o médico torna-se o “mestre da loucura”, aquele capaz de debruçar-se sobre a irracionalidade e as paixões desenfreadas do indivíduo desarrazoado para trazer-lhe à realidade. O alienista é o médico de vontade reta e obstinada que dissipa as ilusões do alienado, curando-o de sua perda do juízo, devolvendo-lhe a razão perdida e a capacidade de julgamento, de discernimento entre loucura e realidade. O grande médico do asilo – seja ele Leuret, Charcot ou Kraepelin – é ao mesmo tempo aquele que pode dizer a verdade da doença pelo saber que dela tem, e aquele que pode produzir a doença em sua verdade e submetê-la, na realidade, pelo poder que sua vontade exerce sobre o próprio doente. Todas as técnicas ou procedimentos efetuados no asilo do século XIX [...] tudo isto tinha por função fazer do personagem do médico o “mestre da loucura”; aquele que a faz se manifestar em sua verdade quando ela se esconde, quando permanece soterrada e silenciosa, e aquele que a domina, a acalma e a absorve depois de a ter sabiamente desencadeado (FOUCAULT, 1979, p. 122, grifo nosso). Curiosamente, temos que o mestre da loucura se torna o personagem que, ao dominar a loucura, é capaz de produzir a verdade da doença; numa épocaem que a competência do médico encontra suas garantias nos privilégios do conhecimento, sua intervenção provém de que ele detém um saber científico “do mesmo tipo que o do químico ou do biólogo [...] produzindo fenômenos integráveis à ciência médica” (1979, 15 p. 123). Isto significa que no interior da prática médica sobre a loucura, inicia-se a crise em seu estatuto de neutralidade que colocou a medicina mental em dissonância com o naturalismo da ciência médica em desenvolvimento até então: Compreende-se porque durante tanto tempo (pelo menos de 1860-1890), a técnica da hipnose e da sugestão, o problema da simulação, o diagnóstico diferencial entre doença orgânica e doença psicológica, forma o centro da prática e da teoria psiquiátricas. O ponto de perfeição, miraculosa em demasia, foi atingido quando as doentes do serviço de Charcot, a pedido do poder-saber médico, se puseram a reproduzir uma sintomatologia calcada na epilepsia, isto é, suscetível de decifração, conhecida e reconhecida nos termos de uma doença orgânica (FOUCAULT, 1979, p. 123). Ora, estamos aqui literalmente diante da produção da doença mental pelo poder médico, e a constatação de que a psiquiatria efetivamente esteve em crise desde seu nascimento, pelo menos no que se refere ao seu estatuto de cientificidade e sua neutralidade face ao conhecimento objetivo da doença, na sua forma da clínica anatomopatológica e a pretensão de transcrever a verdade sobre a doença, nos moldes das ciências exatas, e baseado no método experimental. O médico e o asilo fazem ‘ver’ e fazem ‘falar’ o louco como doente mental, explicável pelo saber-poder médico, esta é a produção da verdade sobre a doença mental. Digamos então de uma forma esquemática: no hospital de Pasteur, a função “produzir a verdade da doença” não parou de se atenuar. O médico produtor da verdade desaparece numa estrutura de conhecimento. De forma inversa, no hospital de Esquirol ou de Charcot, a função “produção da verdade” se hipertrofia, se exalta em torno do personagem médico. E isto num jogo onde o que está em questão é o sobre- poder do médico. Charcot, taumaturgo da histeria, é certamente o personagem mais altamente simbólico deste tipo de funcionamento (FOUCAULT, 1979, p. 122). O antialienismo e a crise da Psiquiatria: do “Mestre da Loucura” à Charcot e a ‘produção da verdade’ Percebemos finalmente que, se Charcot produz efetivamente a doença que quer curar, então há uma ambiguidade no papel do psiquiatra que não será 16 solucionada e será um dos pontos chave das críticas da antipsiquiatria inglesa dos anos 60. Mas tal crítica radical da ciência psiquiátrica é muito anterior, e remonta senão à sua própria fundação, mas certamente a esse episódio singular na história da psiquiatria que é o caso de Charcot e a histeria – inclusive não é por acaso que precisamente daí nasce a psicanálise, desta mesma interrogação que se coloca quando a psiquiatria se vê diante de suas próprias contradições. Hipótese: a crise foi inaugurada, e a idade da antipsiquiatria, que ainda se esboçava, começa com a suspeita, logo tida como certeza, de que Charcot produzia efetivamente a crise da histeria que descrevia. Tem-se aí um pouco o equivalente da descoberta, feita por Pasteur, de que o médico transmitia as doenças que ele devia combater (FOUCAULT, 1997, p. 51). Se Pinel, como grande “reformador”, já estabelece as bases do saber alienista como realização de uma reforma social – do velho regime monárquico violento para a nova sociedade livre burguesa – e o estatuto de ciência sempre foi colocado em questão na medicina mental, então a psiquiatria sempre esteve às voltas com sua crise paradigmática, instalada no seu interior não por acaso, na medida em que se converteu no lugar da medicina objetiva na qual se investigou a subjetividade. Parece, em todo caso, que todos os grandes abalos que sacudiram a psiquiatria desde o final do século XIX colocaram essencialmente em questão o poder do médico. Seu poder e o efeito por ele produzido sobre o doente, mais ainda que o seu saber e a verdade daquilo que dizia sobre a doença. Digamos, mais exatamente, que de Bernheim a Laing ou Basaglia, o que foi posto em questão era a maneira como o poder do médico estava implicado na verdade do que ele dizia e, inversamente, a maneira como esta podia ser fabricada e comprometida por seu poder (FOUCAULT, 1997, p. 51). Isto quer dizer que a ciência experimental sempre buscou capturar as ciências humanas impondo-se como modelo de cientificidade, mas as ciências humanas nunca se adaptaram perfeitamente a essa movimento de adequação ao método científico das ciências exatas, o que pode ser perfeitamente comprovado quando a discussão sobre o ‘problema do método’ nas ciências humanas se inaugura em 17 campos como o da antropologia e da etnografia, ou na sociologia pós-Durkheim, e mesmo na fenomenologia e no existencialismo face ao positivismo dominante no final do século XIX. Na medicina biológica e organicista, não foi diferente e esta mesma crise do método se instala através da medicina mental, em suas formas do alienismo e da clínica psiquiátrica. Todas as grandes reformas, não somente da prática psiquiátrica, mas do pensamento psiquiátrico, se situam em torno desta relação de poder: são tentativas de deslocá-lo, mascará-lo, eliminá-lo, anulá-lo. O conjunto da psiquiatria moderna encontra-se atravessado, no fundo, pela antipsiquiatria, caso se entenda por antipsiquiatria tudo o que coloca em questão o papel do psiquiatra encarregado, antes, de produzir a verdade da doença no espaço hospitalar. É possível, portanto, falar das antipsiquiatrias que atravessaram a história da psiquiatria moderna (FOUCAULT, 1997, p. 51-52). E na medida em que um confronto trágico com a loucura se torna possível, aí sim, “nunca a psicologia poderá dizer a verdade sobre a loucura, já que é esta que detém a verdade sobre a psicologia” (FOUCAULT, 1975, p. 85), e talvez um dia estejamos em condições deste confronto que se insinua no pensamento contemporâneo. Nem despsiquiatrização, nem sobremedicalização, talvez Michel Foucault seja um dos que, ao fazer “a história deste outro giro de loucura”, nos dê condições para empreender tal jornada, no momento em que a Reforma Psiquiátrica se torna cada vez mais potente em suas experiências inovadoras com arte e cultura, e que estamos produzindo novos cenários e lugares a partir dos efeitos históricos da antipsiquiatria no campo da saúde mental. Ora, o que estava implicado, antes de tudo, nessas relações de poder, era o direito absoluto da não-loucura sobre a loucura. [...] É esse ciclo que a antipsiquiatria se propõe a desfazer: dando ao indivíduo a tarefa e o direito de levar a cabo a sua loucura, de levá-la a seu termo, numa experiência que pode ter a contribuição dos outros, mas nunca em nome de um poder que lhe seria conferido por sua razão ou por sua normalidade [...] invalidando, enfim, a grande retranscrição da loucura na doença mental, que havia sido empreendida desde o século XVII e concluída no 18 século XIX. A desmedicalização da loucura é correlativa desse questionamento primordial do poder na prática antipsiquiátrica (FOUCAULT, 1997, p. 56). Deste modo, temos colocado o problema da liberação da loucura em relação a essa forma singular de poder-saber que é o conhecimento, na qual a produção da sua verdade se efetue em formas que não sejam as da relação de conhecimento, e assim o grande afrontamento trágico da loucura, e ainda que uma psicologia da loucura não deixe de ir ao essencial, e encaminha-se para estas “regiões onde o homem relaciona-se consigo próprio e inaugura a forma de alienação que o faz tornar- se homus psychologicus” (FOUCAULT, 1975, p. 85): Levada até sua raiz, a psicologia da loucura, seria não o domínio da doença mental e consequentementea possibilidade de seu desaparecimento, mas a destruição da própria psicologia e o reaparecimento desta relação essencial, não psicológica porque não moralizável, que é a relação da razão com a desrazão. É esta relação que, apesar de todas as misérias da psicologia, está presente e visível nas obras de Holderlin, Nerval, Roussel e Artaud, e que promete ao homem que um dia, talvez, ele poderá encontrar-se livre de toda psicologia para o grande afrontamento trágico com a loucura (FOUCAULT, 1975, p. 85-86). Por determinadas rupturas na reforma psiquiátrica a partir de História da Loucura Vimos, fundamentalmente a partir de História da Loucura, que a medicalização transformou o lugar social do louco e da loucura, pois ela não se restringe à captura do louco pela medicina, mas inclui a construção de um contexto ao mesmo tempo jurídico, social e cultural de lidar com o louco, a loucura, a diferença e a diversidade. A reflexão possibilitada por Foucault nos permite escapar à definição da loucura como doença mental, percebendo o processo de constituição desta através de uma análise histórica sobre a medicalização e psiquiatrização da sociedade. Escapar à noção de doença mental torna-se um dos passos fundamentais para a retomada da complexidade do processo saúde-loucura, que se dá através da desconstrução das simplificações e conceituações psiquiátricas – processo denominado superação do manicômio ou desconstrução do dispositivo psiquiátrico. Enfim, em sua abordagem Foucault permite recomplexificar o conceito de loucura no sentido de possibilitar 19 repensar novas formas de relação com a mesma para além da psiquiatria, concebendo tais relações em uma dimensão ética e política; o que significa estabelecer novas formas de relação com o louco e a loucura, com as experiências subjetivas dos sujeitos (TORRE & AMARANTE, 2001). Muitas das ideias de Michel Foucault são fundamentais e altamente transformadoras para a reforma psiquiátrica. Ideias tais como: a de escapar à noção de doença e doença mental para falar sobre a loucura; de tomar a instituição psiquiátrica como produtora de certa relação com a loucura – de captura da loucura e transformação de sua experiência; do poder em sua dimensão microfísica e uma análise micropolítica das relações de poder exercidas cotidianamente nas instituições e relações estratégicas nos espaços sociais e seus discursos legitimados, o que coloca um novo lugar para o profissional e o técnico, lugar ético e político de mudança; e de romper com a medicalização e psiquiatrização da sociedade como processos de dominação do corpo, substituindo a fórmula doença-cura e o ideal de “reparação do dano” pela noção de produção de subjetividade e reprodução social dos sujeitos e da cidadania; e finalmente, a da possibilidade de superar um dos principais problemas que toda Reforma Psiquiátrica precisa enfrentar: o da reedição de velhos modelos como aparência de novos modelos, isto é, a humanização e reformação de velhas práticas psiquiátricas tidas como novas e transformadoras. Este é o risco do aggiornamento (CASTEL, 1978); em outras palavras, da redução da Reforma Psiquiátrica a um mero processo técnico e administrativo, ao invés de fazer com que seja um processo político-social e cultural de mudança. Para o campo da saúde mental, é de fundamental importância a distinção entre uma Reforma Psiquiátrica de caráter meramente técnico-assistencial e uma Reforma Psiquiátrica enquanto um processo social complexo, na qual os atores são sujeitos políticos voltados para a construção de cidadania e transformação cultural das formas de relação com a loucura e com a saúde (AMARANTE, 2011). Esta questão reafirma a relevância da obra de Foucault, muito particularmente de História da Loucura, que se torna uma ferramenta fundamental para que a Reforma Psiquiátrica seja um processo social complexo, isto é, orientado por determinadas rupturas que, somente após História da Loucura, tornou-se possível vislumbrar: ruptura com o modelo epistêmico da psiquiatria e, fundamentalmente, com seus principais conceitos, tais como os de doença mental, periculosidade e alienação, ainda presentes no saber e 20 na prática efetiva da psiquiatria; com o princípio do isolamento, seja enquanto ato de conhecimento seja enquanto ato terapêutico; com o asilo como instrumento de cura, como lugar de tratamento moral, pedagogia da ordem e da sociabilidade; ruptura com o modelo terapêutico médico-psicológico do tratamento como normalização. No Brasil, em relação ao campo da Saúde Coletiva e particularmente da Reforma Psiquiátrica, a influência de Michel Foucault é bastante vigorosa. Seu pensamento teve grande repercussão política nos meios acadêmicos, pois fazia críticas profundas aos modelos sociais usando argumentos fundamentados na filosofia e na história, com uma nova visão num discurso válido academicamente. A disseminação de suas ideias no ambiente agitado dos meios institucionais e acadêmicos dos anos 60 e principalmente 70 e 80, no caso do Brasil, produziu novas gerações críticas na formação superior e profissional do país, notadamente na área de saúde pública, e em ciências sociais e humanas de forma geral. No caso da Reforma Psiquiátrica, isso se radicaliza, ao ponto de podermos afirmar que Foucault e Basaglia (2005) são as principais referências, mas não únicas, para o surgimento de um movimento antimanicomial no Brasil, pelo menos quanto à formação intelectual. Se é possível encontrar alguma novidade no campo da psiquiatria no Brasil, nos últimos 30 anos, isto está diretamente associado a Foucault e Basaglia, lembrando, inclusive, que ambos estiveram no Brasil mais de uma vez, e que suas presenças tiveram grande importância no fortalecimento e na criação de novos grupos e ideias, produzindo mudanças na realidade manicomial brasileira. Alguns dos principais nomes ligados à produção intelectual da Reforma Psiquiátrica no Brasil tiveram influência do pensamento de Foucault, bem como ele foi largamente utilizado em instituições de pós-graduação em ciências sociais e humanas, em Saúde Coletiva e Saúde Pública, e em instituições de luta e transformação na saúde pública brasileira, como o CEBES e a ABRASCO, focos de resistência do movimento de Reforma Sanitária desde os anos 70, que, por sua vez, foi fundamental para que se tornasse possível formular e iniciar a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), e ainda em curso. Os movimentos transformadores em Saúde puderam vislumbrar alternativas ao modelo médico hegemônico (modelo hospitalocêntrico, assistencialista, curativista, especialístico, individualista) para além das políticas preventivistas, higienistas e comunitárias, únicas saídas disponíveis até então. Foucault levava à revisão do hospital como instituição de saúde (pois são 21 instituições de doença) e também dos programas comunitários e preventivos (como estratégias de normalização e expansão do controle médico oficial). A própria expressão “Reforma Psiquiátrica” torna-se inadequada, a partir de Foucault e Basaglia, pois não representa as propostas mais radicais de transformação, assim como torna-se necessário superar a própria noção de “saúde mental”, como processo de normalização e construção de “sujeitos ideais”, de produção de certa normalidade psicológica e social construída pelo mesmo referencial psiquiátrico-psicológico fermentado nos muros do manicômio. Foucault nos leva a um questionamento radical: da clínica, psicopatologia e das terapias como forma de relação privilegiada com os sujeitos; e do poder psiquiátrico e das instituições de confinamento dos desviantes, não apenas como instrumentos de repressão e exclusão, mas também como produtores de uma forma de relação que inclui toda a sociedade, moldando seus pensamentos e valores no lidar com a loucura. Não basta lutar contrao internamento do louco; para “abater a espessura dos muros” do manicômio, como diz Basaglia, é preciso efetivamente superar os conceitos fundantes da psiquiatria, caso contrário veremos prevalecer em práticas não-manicomiais e fora do hospital psiquiátrico o saber originalmente manicomial da psiquiatria. Após História da Loucura, não é mais possível falar em humanização ou modernização do hospital psiquiátrico. É possível falar em negação da instituição manicomial, e não menos que isso. Isto significa que podemos afirmar que o pensamento crítico em Saúde Mental no Brasil, formado nos últimos 30 anos e fundamental para o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira, hoje com conquistas importantes, teve influência decisiva e irrefutável dessa obra fundante que é História da Loucura na Idade Clássica e do pensador e militante Michel Foucault. Considerando a relevância da experiência brasileira de Reforma Psiquiátrica como um processo fundamental de transformação na América Latina, tanto em envergadura quanto em resultados e importância política, valorizada em todo o mundo no campo da Saúde Mental, temos Foucault como elemento chave da constituição deste pensamento crítico em Saúde Mental no Brasil. Pensamento que tem críticas centrais, como diferenciar “desospitalização” de “desinstitucionalização”, sendo que esta vem a ser mais do que a simples retirada do hospital, constituindo-se como processo de produção de políticas, participação social e mudança cultural na superação da doença mental e sua tecnologia. Outras críticas 22 são a de recolocar o papel do profissional e do sujeito louco, como atores políticos para além da relação de poder que define os papéis do psiquiatra “mestre da loucura” e do louco objeto, buscando construir cidadania; e de trabalhar com o sujeito no território, nos bairros, na comunidade, saindo do lugar técnico e objetivo e dos moldes de consultório, consultas médicas e psiquiátricas e diagnóstico psicopatológico fechado. Ideias que só são possíveis quando se faz um novo tipo de história, uma nova História da Loucura, de que foi precisamente Foucault um dos artífices de maior importância. Nossa história brasileira também muda muito com essa contribuição marcante e ainda inspiradora para continuar transformando a história da psiquiatria contemporânea, o lugar do louco e do diferente e o nosso próprio lugar de “normais”. Entre loucos e manicômios: História da loucura e a reforma psiquiátrica no Brasil Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2001), cerca de 450 milhões de pessoas, no mundo, padecem de enfermidades neuropsiquiátricas, como transtornos mentais ou neurobiológicos, ou então problemas psicossociais como os relacionados com o abuso do álcool e das drogas, atingindo prevalência pontual ao redor de 10%. Além disso, aproximadamente 24% de todos os pacientes atendidos por profissionais de atenção primária têm um ou mais transtornos mentais. O sofrimento psíquico para a sociedade exibe uma ideia de incapacidade e improdutividade, causando vergonha em familiares e pessoas próximas com relação à condição do sujeito que sofre (VECCHIA; MARTINS, 2006). O preconceito a partir desse sofrimento ocorre não só na sociedade de forma geral, mas até dentro das próprias instituições que o recebem – manicômios/hospitais psiquiátricos –, e de hospitais gerais, principalmente. São produzidas representações sociais que “[...] impregnam a maioria de nossas relações estabelecidas, os objetos que nós produzimos ou consumimos e as comunicações que estabelecemos” (MOSCOVICI, 1961/1976 apud MOSCOVICI, 2003, p. 10). Estigmatiza-se o paciente, considerando- o um perturbado ou que perdeu o juízo – uma substância simbólica que o adjetiva negativamente. 23 As obras de Michel Foucault apresentam uma tese geral de que, “[...] ‘a loucura não é um fato da natureza’, mas da civilização [...]” (SANDER, 2010, p. 382). A sociedade carrega esse preconceito até a atualidade, onde mesmo com os acontecimentos históricos recentes da psiquiatria, como a Reforma Psiquiátrica, as concepções remotas de loucura ainda estão impregnadas na civilização atual. A partir dessa leitura, é perceptível, também, que a loucura é uma produção social histórica, mediada em grande medida por discursos, práticas e produções de representações sobre o estado de saúde mental dos pacientes. A Reforma Psiquiátrica, partindo dessa concepção, tem como foco as intervenções e trabalhos específicos, equipes multi e interdisciplinares; e a mudança do conceito/visão de loucura e de hospitais psiquiátricos como manicômios, apontando uma melhoria na qualidade de vida e conquista ao que se refere em termos de cidadania aos pacientes psiquiátricos (RAMMINGER, 2002). Tal movimento trata- se, também, de uma produção social marcada pelas demandas atuais da saúde e sociedade em nosso tempo presente. A partir desse cenário, este artigo traz como proposta: a discussão da história da loucura – juntamente com o surgimento dos manicômios/hospitais psiquiátricos –, relacionando os discursos instituídos em práticas clínicas, e compreendendo a influência de um dos principais movimentos contra a estruturação e atuação dos profissionais envolvidos – a Reforma Psiquiátrica – nas concepções acerca da loucura na atualidade. HISTÓRIA DA LOUCURA A história da loucura, segundo Michel Foucault e sua obra História da Loucura(2012), apresenta o domínio da razão sobre a desrazão, situando a razão como norma, e levando a loucura ao exílio. Foucault traz que tudo o que foi feito contra a loucura – exclusão etc. –, é onde podemos encontrar o caminho para a razão; ou seja, a razão se fortalece a custa da desrazão. Segundo Sander (2010, p. 383), Contrariamente a uma história tradicional da psiquiatria, que nos reenvia às (supostas) origens de uma loucura imemorial (grega, quiçá egípcia...), Foucault nos mostra uma loucura cozinhada lentamente no caldeirão da história ocidental posterior ao Renascimento. Vemos, pois, como o horror, o temor e a admiração provocados pelos loucos à época da Stultifera Navis (Naus dos Insensatos) irão lentamente se 24 transformando na perscrutação da verdade do sujeito através da doença mental no século XIX. Pois o estabelecimento do homem de razão, que foi levado a cabo, sobretudo, a partir do final da Renascença, não se fez segundo um suposto progresso natural da raça humana, nem por meios do esclarecimento e da aceitação. Não foi sem violência e exclusão que a Razão se estabeleceu no cenário ocidental. Essa representação histórica, do conceito de loucura, está intimamente relacionada ao surgimento dos manicômios – posteriormente chamados hospitais psiquiátricos –, ambos estão ligados aos períodos de diferentes épocas históricas, sendo dividida por Pessotti (1994 apud RAMMINGER, 2002) em períodos: antiguidade clássica (pensadores gregos); séculos XV e XVI (exorcistas); séculos XVII e XVIII (enfoque médico); e o século XIX (manicômios). Com a antiguidade clássica, até a era cristã, a loucura era vista sob alguns enfoques: o de Homero com um enfoque mitológico-religioso; o de Eurípedes com a concepção passional ou psicológica; e o de Hipócrates e Galeno com o as disfunções somáticas (RAMMINGER, 2002). Na idade média iniciou-se a predominância da loucura como possessão diabólica feita por iniciativa própria ou a pedido de alguma bruxa. Havia duas possibilidades de possessão, sendo a primeira o alojamento do diabo no corpo da pessoa, e a segunda a obsessão, na qual o demônio altera percepções e emoções da pessoa. Com o passar do tempo o enfoque diabólico foi descartado, prevalecendo a influência de Hipócrates e sua teoria patológica, na qual o delírio era marca da insanidade, sendo as perturbações intelectuais a condição principal para o diagnóstico da loucura. Assim, em 1801, inaugurou-se a psiquiatriacomo especialidade médica a partir do Tratado Médico-Filosófico sobre Alienação Mental elaborado por Pinel (RAMMINGER, 2002). De acordo com Roudinesco (1998), logo após a saída do universo da religião e da magia, o fenômeno da loucura começou a ser abordada a partir de três maneiras: [...] a primeira consiste em introduzi-la no quadro nosológico construído pelo saber psiquiátrico e considerá-la uma psicose (paranoia, esquizofrenia, psicose maníaco- depressiva); a segunda vida elaborar uma antropologia de suas diferentes manifestações de acordo com as culturas [...] a terceira, finalmente, propõe abordar a questão pelo ângulo de uma escuta transferencial da fala, do desejo, ou da vivência 25 do louco (psiquiatria dinâmica, análise existencial, fenomenologia, psicanálise, antipsiquiatria). (ROUDINESCO, 1998, p. 478). A loucura seria definida como o outro da razão, ou seja, popularmente aquele que é extravagante, perturbado ou que perdeu o juízo. Ou mesmo foi definida como “desarranjo das funções mentais, notadamente as intelectuais, rejeitando, inclusive, as explicações organicistas” (PINEL apud RAMMINGER, 2002, p. 113). Porém, como já foi dito anteriormente, a concepção de loucura sofreu diversas mudanças com o passar dos séculos. Assim, Michel Foucault (1978, p. 214 apud ENGEL, 2001) aponta as diferenças de concepções entre os séculos XVII/XVIII e o XIX sobre loucura e doença: "Pode ser que, de um século para outro, não se fale 'das mesmas doenças' com os mesmos nomes, mas isso é porque, fundamentalmente, não se trata 'da mesma' doença”. A passagem da loucura à doença mental reflete as mudanças nas concepções de loucura, embora as heranças de outros tempos – começo/início – não são totalmente abandonadas, implicando também em diferenças (O’BRIEN, 1992, p. 49 apud ENGEL, 2001). O enfoque a partir do século XIX passa a ser o tratamento/diagnóstico da loucura, dando espaço, principalmente, a clínica. De acordo com Castro (2009, p. 80), “[...] não é uma ciência [...] é o resultado de observações empíricas, ensaios, prescrições terapêuticas, regulamentos institucionais”. Trata-se de uma concepção discursiva, a partir das obras de Michel Foucault, que trazem a ideia de que a clínica responde a uma reestruturação das formas do ver e do falar. Pinel trouxe o diagnóstico implicado na observação prolongada, rigorosa e sistemática das transformações biológicas, mentais e sociais do paciente, que eram realizadas dentro no manicômio – que passou da condição de asilo onde se abriga, para a condição de cura/tratamento. Mas, apesar da rápida repercussão na Europa, a doutrina de Pinel foi logo ofuscada pelo emprego inadequado do tratamento, porém, aumentou-se o interesse pela explicação e tratamento da loucura a partir de modelos organicistas. Com a volta da visão organicista na prática psiquiátrica, o manicômio deixa de ser recurso terapêutico, e volta a ser um instrumento de segregação social 26 (RAMMINGER, 2002). A visão organicista teve como consequência o surgimento de diversos tratados médicos sobre a loucura, tracejando modalidades de medicalização, e na situação de internamento. “A loucura passa a ser objeto de uma percepção mais médica e as práticas a respeito dos insanos começam a diferenciar-se das que se destinam aos outros reclusos” (CASTEL, 1978 apud ENGEL, 2001, p. 89). Ou seja, inicia-se uma nova experiência da loucura a partir da virada do século XVIII para o XIX, atribuindo- lhe uma especificidade. A loucura seria concebida como uma doença, como um objeto de conhecimento e de intervenção exclusivos do médico (ENGEL, 2001). O momento histórico de medicalização e exclusividade do poder médico nos traz uma reflexão sobre os novos significados para a sociedade e para a psiquiatria. A medicalização não significaria apenas “a simples confiscação da loucura por um olhar médico”, mas, principalmente, a “definição, através da instituição médica, de um novo status jurídico, social e civil do louco”, transformando-o em alienado e fazendo da loucura uma “problemática indissociavelmente médica e social”. (CASTEL apud ENGEL, 2001, p. 90). Desse modo, podemos perceber, a partir do histórico da loucura, as diferentes funções do manicômio. A função mais antiga é a de recolher os loucos, juntamente com outras minorias, isolando-os em edifícios antigos mantidos pelo poder público ou por grupos religiosos (RAMMINGER, 2002). Em seguida, surgiram as instituições hospitalares com objetivo de realizar tratamento médico, porém os funcionários responsáveis não tinham formação médica, muitas vezes eram religiosos. E a partir do século XIX surgiram as instituições que acolhiam apenas doentes mentais, oferecendo tratamento médico especializado e sistemático em instituições chamadas de manicômios. As condições dessas instituições manicomiais eram precárias e a maioria dos pacientes não tinha diagnóstico de doença mental (loucura). Os pacientes eram, “[...] epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder” (ARBEX, 2013, p. 14). Além disso, comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, eram espancados, morriam de frio, de fome, de doença (ARBEX, 2013). Paradoxalmente, essas instituições justificavam suas 27 práticas com o argumento da necessária limpeza social, livrando a sociedade de sujeitos considerados como parte de uma categoria social de desprezíveis e desajustados cujos comportamentos eram indesejáveis. As instituições manicomiais, portanto, exerciam a função social de disciplinar corpos e comportamentos. Era uma tecnóloga de poder que visava a atender aos padrões de civilidade produzidos na modernidade. A partir da propagação dessas instituições manicomiais, percebe-se também a influência do pensamento de Descartes, que identificou o pensamento como condição para a existência. Ou seja, a razão e o juízo são condições para o homem cuidar de si. Com a Revolução Francesa, evidencia-se a valorização de uma sociedade gerida por homens e pela razão, e assim iniciam-se, segundo Pitta (1996 apud VASCONCE-LOS, 2008, p. 50), “[...] a proteção da sociedade, calcada na ideia de periculosidade do louco, e a proteção do doente, asserção que os extremos da curva de normalidade necessitariam de assistência”. Desse modo, torna-se perceptível a desvalorização da desrazão, e a propagação de assistências, como os manicômios/hospitais psiquiátricos, aos ditos “loucos”. Segundo Ramminger (2002), a partir do século XIX a defesa da existência de instituições manicomiais domina toda a Europa, e foi considerado como a modalidade terapêutica mais eficaz, apesar do reconhecimento dos pontos negativos como violência, isolamento e as práticas coercitivas que eram justificados como um mal necessário. Michel Foucault traz uma discussão em sua obra História da Loucura relacionando a violência existente nessas instituições com a influência dessa visão para a psiquiatria. Entende que essa insistência na violência que reenvia a força bruta, desequilibrada, passional, física e irregular pode obstruir uma compreensão das relações de poder calculadas, racionais e medidas que caracterizam a psiquiatria. O poder, assim como a violência, se refere ao corpo, toma ao corpo como objeto, mas ele não responde a forças irracionais e confusas. (CAPONI, 2009, p. 97). No Brasil, o primeiro manicômio/hospital psiquiátrico foi criado em 1852, nesse caso, o Hospício D. Pedro II na cidade do Rio de Janeiro. Em 1912 foi promulgada a primeira Lei Federal de Assistência aos Alienados, seguindo do ganho de status de 28 especialidade médica autônoma aos psiquiatras, aumentando o número de instituições destinadas aos doentes mentais. Podemos perceber com a criação dessa estrutura manicomial, a preocupação com a criação de espaços de poder disciplinarespor meio de hospitais ou clínicas especializados (CAPONI 2009, p. 96). A disciplina instituída nessas instituições também produzia socialmente a normalização de comportamentos, sendo estes passíveis de intervenção do saber psiquiátrico, atuando na higienização social. Nessa direção, outros dispositivos disciplinadores foram criados, a exemplo de nossas instituições de saber, leis e decretos, orientando práticas médicas no tratamento da loucura. Em 1926, é criada a Liga Brasileira de Higiene Mental – importante testemunho do pensamento psiquiátrico brasileiro. Finalmente, em 1934, o Decreto 24.559 promulgava a segunda Lei Federal de Assistências aos Doentes Mentais [...] determinando o hospital psiquiátrico como única alternativa de tratamento. (RAMMINGER, 2002, p. 114). A partir de então houve um aumento de 213% da população internada em manicômio/hospital psiquiátrico do Brasil (CERQUEIRA apud RAMMINGER, 2002). Essa concepção de saúde mental a partir de instituições manicomiais que instituíam um regime de disciplina de comportamentos indesejáveis à sociedade prevaleceu até os anos 1980 no Brasil. A reforma psiquiátrica no Brasil e as novas concepções Após a 2ª Guerra Mundial, surgiram na Europa e Estados Unidos, movimentos contrários a então tradicional forma de tratamento da loucura. Citamos como exemplo, o Movimento Institucional na França e as Comunidades Terapêuticas na Inglaterra, que culminaram em movimento mais amplo de antipsiquiatria. Defendiam perspectivas humanistas sobre a saúde mental (GOULART, 2006). A emergência dessa reforma no Brasil iniciou-se no final da década de 1970, com a constituição do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), a partir de denúncias contra as violências em asilos e as péssimas condições de trabalho dentro dos manicômios/instituições psiquiátricas. (ZAMBENEDETTI; SILVA, 2008). Apesar de não haver uma influência direta de Michel Foucault nesse processo 29 de reforma na psiquiatria, é inegável a importância das ideias e obras desse pensador, já citadas anteriormente (SANDER, 2010). No Brasil as redes assistenciais eram ofertadas de forma massiva, nos anos 1960 até a década de 1980, sustentada por recursos advindos da unificação da Previdência Social (GOULART, 1992, apud GOULART, 2006). Essa rede trabalhava com modelos terapêuticos precários, com uso abusivo de psicofármacos e com o isolamento dos doentes mentais em manicômios. As consequências foram inúmeras, como a superlotação, erros médicos, índices de mortalidade e segregação dos usuários (GOULART, 2006). Esta situação se baseava na legislação de 1934, composta pelos artigos 9º, 10º e 11º, que ficou em vigor no Brasil até o ano de 2000, e nos termos de Figueiredo (1988 apud GOULART, 2006, p. 5): Art. 9° Sempre que, por qualquer motivo, for inconveniente a conservação do psicopata [doente mental] em domicílio, será mesmo removido para estabelecimento psiquiátrico. Art. 10°O psicopata ou indivíduo suspeito que atentar contra a própria vida ou de outrem, perturbar ou ofender a moral pública, deverá ser recolhido a estabelecimento psiquiátrico para observação ou tratamento. Art. 11° A internação de psicopatas, toxicômanos e intoxicados habituais em estabelecimentos psiquiátricos, públicos ou particulares, será feita: a) por ordem judicial ou requisição de autoridade policial; b) a pedido do próprio paciente ou por solicitação do cônjuge, pai ou filho ou parente até quarto grau, inclusive, e, na sua falta, pelo curador, tutor, diretor de hospital civil ou militar, diretor ou presidente de qualquer sociedade de assistência social, leiga ou religiosa, chefe de dispensário psiquiátrico ou ainda por alguns interessados, declarando a natureza de suas relações com o doente e as razões que determinantes da sua solicitação. As internações ocorriam de forma automática e arbitrária, ou seja, uma verdadeira autorização de sequestro, privando o paciente de liberdade, mantendo-o em cativeiro. Com o decorrer das reivindicações, ainda nesse período, ocorreu um incentivo a multiprofissionalidade dentro dos hospitais psiquiátricos, sendo um ponto central a entrada do profissional de psicologia na saúde pública. Ocorreu, então, a implementação de ambulatórios juntamente a um modelo preventivista. Porém, na prática, o modelo começou a demonstrar fragilidade e incapacidade ao processo de 30 desospitalização, como a intensificação de sintomas e o atendimento a grupos de pais (ZAMBENEDETTI; SILVA, 2008). Tal período provocou reivindicações trabalhistas, gerando discussões acerca do tratamento psiquiátrico no Brasil, que teve como consequência a demissão de estagiários e profissionais grevistas (AMARANTE, 1995, apud VASCONCELLOS, 2008). A partir de então, iniciaram grandes eventos para discussão do tema, tais como o V Congresso de Psiquiatria, o I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições, o III Congresso Mineiro de Psiquiatria. No entanto o Movimento da Luta Antimanicomial no Brasil surgiu de forma mais clara a partir do I Encontro Nacional de Trabalhadores da Saúde Mental em 1987, cujo lema era “por uma sociedade sem manicômios”. Segundo Rotelli (apud RAMMINGER, 2002, p. 115), foi defendido neste evento: Eliminar os meios de contenção presentes no tratamento, reestabelecer a relação do indivíduo com seu próprio corpo, reconstruir o direito e a capacidade de uso da palavra e dos objetos pessoais, produzir relações, espaços de interlocução, restituir os direitos civis, eliminando a coação, as tutelas judiciais e o estatuto da periculosidade, reativando uma base de inserção para poder ter acesso aos intercâmbios sociais. A exclusividade do saber-poder do médico já havia sido contestada por Michel Foucault em sua obra Microfísica do Poder (2012). Nela o autor critica o enclausuramento da loucura sustentado pelo poder médico, nos chamando a atenção de que papel do médico passa a ter uma relação de poder muito específica, pois em sua aplicação/atuação encontra-se a verdade sobre a doença. A institucionalização da loucura – composta por um território e por um poder para melhor conhecer/tratar – traz a ideia de que a doença mental era propriedade do manicômio/hospital psiquiátrico, e que seu guardião seria o médico (SANDER, 2010). Michel Foucault, apesar de ter escrito suas obras há mais de 50 anos, trouxe uma problemática que permanece na atualidade; a exclusividade do saber-poder do médico, que em certa medida ainda impregna nossa cultura no tocante ao tratamento daqueles considerados “loucos” por esse saber. Internamento, isolamento, normatização, 31 diagnóstico, e a exclusividade do saber-poder do médico tornavam-se os principais alvos de críticas à psiquiatria moderna. No Brasil, aos poucos as propostas da Reforma chegavam aos âmbitos governamentais, gerando o documento Diretrizes para a área de Saúde Mental, redigido pelo Ministério da Saúde, na década de 1980, defendendo o tratamento extra-hospitalar, a limitação do período de internação, a reintegração familiar e a promoção de pesquisas epidemiológicas no campo da Saúde Mental (VASCONCELLOS, 2008). O momento histórico referia-se a um processo de redemocratização do País; uma transição da fase sanitarista – reformas com o princípio de inverter a política nacional de privatizante para estatizante e a implementação de serviços extra- hospitalares – para a fase de desinstitucionalização – desospitalização. (AMARANTE; TOR-RE, 2001). Dá-se, assim, espaço a realização de conferências e novas propostas para a elaboração de novos serviços/opções assistenciais. Foram realizadas duas Conferências Nacionais de Saúde Mental em 1987 e 1992, junto à inscrição da proposta do Sistema Único de Saúde (SUS) na Carta Constitucional de 1988, promovendo discussões e novas experiências no que diz respeito à loucura e ao sofrimento psíquico(AMARANTE; TORRE, 2001). Um dos pontos, também, defendidos pela Reforma é o trabalho interdisciplinar, e não apenas a simples presença de psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais, mas sim a valorização desses profissionais. A impossibilidade de solucionar tais problemas propiciou o surgimento de diversos modelos assistenciais, novas teorias e práticas (VASCONCELLOS, 2008). A partir de então, no final da década de 1980, surgiram as opções assistenciais, ou seja, novos serviços, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), representando a Reforma Psiquiátrica Brasileira, proporcionando consultas médicas, atendimento psicológico, serviço social, terapia ocupacional, entre outros (VASCONCELLOS, 2008). O CAPS foi implantado em 1987, e em seu projeto, de autoria da Coordenadoria de Saúde Mental (1987, p. 1, apud AMARANTE; TORRE, 2001, p. 29), sua clientela prioritária é descrita: 32 [...] como aquela “sociedade invalidada”, com “formas diferentes e especiais de ser”, com “patologias de maior complexidade”, de “pessoas que tenham enveredado por um circuito de cronificação”, de “pessoas com graus variáveis de limitações sociais” e com “graves dificuldades de relacionamento e inserção social”. Portanto, o CAPS enquadra-se numa rede assistencial externa intermediária entre o hospital e a comunidade, ou seja, funcionará como um filtro de atendimento entre hospital e comunidade a partir da prestação de serviços preferencialmente comunitária; buscando entender a comunidade e instrumentalizá-las para o exercício da vida civil (AMARANTE; TORRE, 2001). A assistência é definida como de atenção integral, e o serviço propõe atividades psicoterápicas, socioterápicas de arte e de terapia ocupacional – enfoque multidisciplinar. O sofrimento psíquico deve ser pensado no campo da saúde coletiva, tendo em consideração os diversos contextos em que o indivíduo está inserido como a família, o trabalho, cultura, contexto histórico, entre outros. O serviço busca um cuidado/atendimento personalizado e um tratamento de intensidade máxima, gerando reflexões dos serviços e sistematização de informações e experiências (AMARANTE; TORRE, 2001). O NAPS nasceu em 1989, tendo como eixo a desconstrução do manicômio, produzindo uma instituição que não segregue e não exclua. O NAPS possui algumas estratégias que são fundamentais para a realização de seus objetivos. Há a estratégia de regionalização, visando a ação de transformação cultural – conhecer as necessidades; o percurso da demanda psiquiátrica –; a estratégia da abertura do debate aos cidadãos, dialogando com a comunidade por meio das associações, sindicatos e igrejas – discutindo as diferentes formas de compreender a loucura, e a exclusão social –; a estratégia de projeto terapêutico, envolvendo o cuidar do outro – evitar o abandono, atender à crise (AMARANTE; TORRE, 2001). Em 1989, com a Luta Antimanicomial, o Projeto de Lei nº 3657, proposta pelo Deputado Federal Paulo Delgado, previa a extinção progressiva dos manicômios, sendo substituídos por outros recursos assistenciais. Tal projeto reproduziu a Lei Italiana de 1978, que objetivou, de acordo com Goulart (2006, p. 12), “[...] o fim dos manicômios, entendidos aqui como metáfora a todas as práticas de discriminação 33 e segregação daqueles que venham a ser identificados como doentes mentais [...]”. Seguido de um marco histórico em 1990, a Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica, realizada em Caracas; nela, os países da América Latina, inclusive o Brasil, comprometeram-se a promover reestruturação da assistência psiquiátrica (HIRDES, 2009). A partir dessas problemáticas e das diversas críticas à psiquiatria, em 2001 foi aprovada a Lei nº 10.216, conhecida como Lei Nacional da Reforma Psiquiátrica, proporcionando mudanças aos pacientes psiquiátricos, tanto no que diz respeito ao tratamento quanto às concepções/visão de loucura para a sociedade. A loucura saiu das instituições manicomiais e foi para as ruas, trazendo novos questionamentos, discussões e novas percepções sobre os sujeitos ditos “loucos” que passam a ser reconhecidos como sujeitos de direito. Com a reforma psiquiátrica, esta Lei previa a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, e critica o modelo hospitalocêntrico. E com o estabelecimento de diretrizes e normas acerca da assistência em saúde mental, em 1992, surgiu a portaria ministerial nº 224, objetivando leito ou unidade psiquiátrica em hospital geral, e estabelecendo quantidade de profissionais de áreas específicas para a formulação da equipe. No entanto, apesar dos avanços baseados em leis, não houve a solução imediata da problemática dos manicômios e da Reforma Psiquiátrica – dificuldades que permeiam até a atualidade. A problemática da Reforma Psiquiátrica encontra-se além das legislações, está nas concepções e representações sociais – trata-se de ressignificações, de novas subjetividades e transformações sociais no que se diz respeito à loucura. O ano de 2001 foi indicado como o ano de luta por saúde mental e pelos doentes mentais no Brasil, proporcionando novas iniciativas e reorientações, principalmente discursivas, que, de acordo com Goulart (2006, p. 3), “a opção por referir-se aos doentes mentais como pessoas com problemas mentais ou como portadores de transtornos mentais expressa já uma atitude crítica diante da terminologia médico--psiquiatra”. 34 Remediação com a patologia/transtorno já instalado ao invés de métodos preventivos primários. A partir destes marcos, os serviços substitutivos aos manicômios/hospitais psiquiátricos passaram a ter privilégio, como os CAPS e NAPS, os leitos psiquiátricos em hospitais gerais e oficinas terapêuticas (HIRDES, 2009). Os serviços substitutivos foram os principais avanços da Reforma Psiquiátrica, trazendo alternativas de tratamento com objetivo de, principalmente, não reproduzir as bases teórico-práticas do modelo psiquiátrico clássico que “[...] fundou a noção de doença mental como sinônimo de des-razão e patologia, que fundou o manicômio como lugar de cura e que fundou a cura como [...] normalização” (AMARANTE; TORRE, 2001, p. 33). É notável, que a presença dos CAPS/NAPS refletiu uma mudança na concepção de tratamento dos pacientes psiquiátricos; onde antes a única instituição que receberia esses pacientes – com a função de recolher/excluir – eram os manicômios/hospitais psiquiátricos. Apesar da mudança de concepção de saúde mental e redução do número de instituições manicomiais no nosso país, os CAPS/NAPS tiveram um surgimento tardio e sem investimento financeiro que atendesse às suas reais necessidades conforme previsto em lei, diretrizes e normas. Desse modo, o atendimento posto em prática a partir da Reforma Psiquiátrica ainda apresenta limites, não solucionando o tratamento concreto para os ditos loucos pela sociedade. Surge, então, a necessidade de preservar o sujeito do preconceito relacionado ao enlouquecimento. Apesar do histórico da luta pela Reforma Psiquiátrica, e das conquistas de implementações de leis e propostas dos âmbitos governamentais, a reforma ainda é uma problemática atual. Anteriormente, os doentes mentais eram vistos como usuários dos serviços de saúde mental, ou seja, pacientes que eram objetos para técnicas terapêuticas e enquadrados como loucos. Porém, o que se busca, ainda hoje, é que esses sujeitos existam na condição de cidadãos, usufruindo dos serviços oferecidos por agências públicas (GOULART, 2006) que atendam aos princípios previstos a partir da Reforma Psiquiátrica. 35 Baseado no histórico apresentado do conceito de loucura e da Reforma Psiquiátrica percebe-se que é de suma importância o debate do significado de loucura para a sociedade contemporânea.
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