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Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição file:///C/Users/Rodrigo/Downloads/Passei Direto_ Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição_files/chapter13.html[19/10/2019 11:38:30] 13.1 a) “Não há poderes, quer legislativos, quer executivos, senão dentro das normas constitucionais, lei suprema que avassala todas as outras leis, atos administrativos, decisões judiciárias, desde que a violem…” Juiz Federal Henrique Vaz Pinto Coelho, em sentença proferida em 1895, que pode ser considerada como o marco inicial do controle de constitucionalidade no Brasil Objetivos do capítulo:demonstrar que os direitos fundamentais, por serem normas constitucionais, gozam de supremacia formal e material dentro do sistema normativo, a exigir que todo ato de poder busque neles o seu fundamento de validade. DIREITOS FUNDAMENTAIS E CONSTITUIÇÃO O ordenamento jurídico, como se sabe, é um sistema hierárquico de normas, na clássica formulação de Kelsen. Estaria, assim, escalonado com normas de diferentes valores, ocupando cada norma uma posição intersistemática, formando um todo harmônico,1 com interdependência de funções e diferentes níveis normativos de forma que “uma norma para ser válida é preciso que busque seu fundamento de validade em uma norma superior, e assim por diante, de tal forma que todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa”.2 É a famosa teoria da construção escalonada das normas jurídicas. Dentro desse sistema escalonado em forma de pirâmide, a Constituição ocupa o patamar mais alto. Ela está no topo do ordenamento jurídico, de modo que qualquer norma para ser válida deve ser compatível com a Constituição. O mesmo se pode dizer dos direitos fundamentais, já que também possuem a natureza de norma constitucional. Eles correspondem aos valores mais básicos e mais importantes, escolhidos pelo povo (poder constituinte), que seriam dignos de uma proteção normativa privilegiada. Eles são (perdoem a tautologia) fundamentais porque são tão necessários para a garantia da dignidade dos seres humanos que são inegociáveis no jogo político. Daí por que essa concepção pressupõe um constitucionalismo rígido, no qual a Constituição goza de uma supremacia formal sobre as demais normas jurídicas e, por isso, os mecanismos de mudança do texto constitucional impõem um processo legislativo mais complicado em relação às demais leis. A rigidez constitucional funciona, nesse sentido, como uma técnica capaz de impedir ou pelo menos dificultar a adoção de medidas legislativas que possam aniquilar a dignidade de grupos sociais que não possuam força política suficiente para vencer no jogo democrático. Assim, pode-se dizer que os direitos fundamentais, em razão da rigidez constitucional, estão protegidos do legislador ordinário. Se não fosse assim, então não seriam direitos diferentes dos outros. O que destaca esses direitos dos demais é justamente a sua supremacia formal e material. Eles estão acima das leis, constituindo o fundamento ético de todo ordenamento jurídico. O reconhecimento da supremacia formal e material dos direitos fundamentais gera três consequências práticas extremamente relevantes na aplicação do direito: em primeiro lugar, gera a inconstitucionalidade das normas infraconstitucionais incompatíveis com os direitos Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição file:///C/Users/Rodrigo/Downloads/Passei Direto_ Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição_files/chapter13.html[19/10/2019 11:38:30] b) c) 13.2 fundamentais; do mesmo modo, provoca a não recepção das normas infraconstitucionais anteriores à promulgação da Constituição que não sejam compatíveis com o espírito dos direitos fundamentais; por fim, impõe a necessidade de reinterpretar as leis anteriores à Constituição, de modo a adequá-las aos novos parâmetros axiológicos estabelecidos pelo constituinte. Essas consequências serão vistas nos tópicos seguintes, sendo essencial, antes de tudo, tecer alguns comentários sobre a chamada jurisdição constitucional. DIREITOS FUNDAMENTAIS E JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL Aceitar que a Constituição é a norma suprema do ordenamento significa reconhecer a necessidade do controle de constitucionalidade das leis. Dessa forma, um dos pressupostos para a eficiente proteção dos direitos fundamentais é a possibilidade de fiscalizar a validade constitucional dos atos estatais por um órgão imparcial e independente. Sem esse mecanismo, os direitos fundamentais ficariam, de fato, à mercê da vontade do Estado, o que é incompatível com a própria ideia de limitação do poder. A atividade de controlar a constitucionalidade dos atos públicos é conhecida como jurisdição constitucional, que nada mais é do que a forma pela qual um órgão imparcial e independente exerce a função de fiscalizar o cumprimento da Constituição. Se determinada lei contiver regras que, de algum modo, sejam incompatíveis com o que diz o texto constitucional, cabe ao órgão responsável pela jurisdição constitucional excluir essa lei do ordenamento jurídico. Sempre houve intensa discussão sobre quem deveria ser o órgão responsável pelo controle de constitucionalidade das leis. O próprio legislador? O governante? O Poder Judiciário? Ou outro órgão criado especificamente para exercer essa função? De cara, deve-se concluir que nem o legislador nem o governante deveriam ficar responsáveis por essa tarefa. Do contrário, seria o mesmo que indicar a raposa para vigiar o galinheiro. Nesse sentido, Kelsen recomendou: “uma vez que nos casos mais Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição file:///C/Users/Rodrigo/Downloads/Passei Direto_ Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição_files/chapter13.html[19/10/2019 11:38:30] importantes de transgressão da Constituição, o parlamento e o governo passam a ser partes litigantes, recomenda-se apelar para uma terceira instância para decidir o conflito”.3 Some-se a isso a constatação de que os parlamentares e os governantes, por estarem mais vulneráveis a pressões políticas dos mais variados tipos, inclusive financeiras, já que precisam de verbas para financiar suas dispendiosas campanhas eleitorais, não estariam em uma posição de imparcialidade para proteger os interesses de grupos com pouca representação eleitoral, ainda que os interesses desses grupos fossem garantidos pela Constituição. Logo, nem os membros do Executivo, nem os do Legislativo, possuiriam legitimidade para realizar o controle de constitucionalidade dos atos públicos, pois eles sempre tenderão a escolher a opção política que gere mais votos, o que nem sempre resultará em escolhas justas e compatíveis com a dignidade humana. E o Judiciário? Seria ele o órgão mais apto a realizar a função de controlar a constitucionalidade das leis? Nos momentos iniciais do Estado de direito, havia grande desconfiança em relação ao papel do Poder Judiciário. Durante muito tempo, os juízes foram um dos principais violadores dos direitos do homem, até porque eles agiam como agentes do soberano.4 Não é à toa que muitos direitos fundamentais foram estabelecidos justamente para diminuir os poderes dos juízes, como o devido processo legal, o direito ao contraditório e à ampla defesa, o dever de fundamentar as decisões judiciais, a publicidade do processo, a vedação de penas cruéis etc. Por isso, Montesquieu defendia que “os juízes não devem ser mais do que a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que não podem moderar nem a força nem o rigor das leis” e por isso “o poder de julgar é de algum modo nulo”.5 Do mesmo modo, Beccaria, um dos primeiros defensores do garantismo penal, afirmava que era perigoso deixar que os juízes interpretassem as leis, pois, do contrário, estaria aberta a possibilidade para a prática de arbitrariedades.6 Ou seja: o modelo ideal de juiz seria aquele que aplicasse a lei literalmente, sem criatividade, sem ponderação, sem preocupaçãocom a justiça do caso concreto. Portanto, dentro desse modelo de separação de poderes, o papel do Poder Judiciário se resumia a resolver as disputas entre particulares, seguindo fielmente as regras ditadas pelo legislador, não podendo deixar de cumprir a lei, ainda que houvesse uma possível inconstitucionalidade em seu conteúdo. Essa visão predominou durante muito tempo. Aliás, ainda hoje, as correntes mais formalistas do pensamento jurídico reservam ao Judiciário uma função de mero aplicador mecânico das leis. Deve-se aos norte-americanos a mudança de paradigma que permitiu que o Poder Judiciário fosse visto como o guardião da norma constitucional e, consequentemente, dos próprios direitos fundamentais. Enquanto na Europa, naqueles primeiros anos do Estado de Direito, o Judiciário era visto com extrema desconfiança, lá nos Estados Unidos, Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, no livro O Federalista, publicado por volta do ano de 1787, desenvolveram um sistema de freios e contrapesos (checks and balances) que reservava ao Judiciário um lugar de destaque. O princípio da supremacia da Constituição, nos EUA, teve contornos bem definidos, graças ao pensamento desses federalistas. Se o Parlamento aprovasse uma lei contrária à Constituição, essa lei não seria válida e, portanto, deveria ser anulada. E o Judiciário seria o órgão apto a exercer esse controle de constitucionalidade, na ótica daqueles pensadores. Esse modelo foi esboçado especialmente nos escritos de Hamilton. Nos textos desse pensador, encontra-se o germe do que viria a ser o judicial review, mecanismo que permite aos juízes a fiscalização da constitucionalidade das leis. Os principais argumentos utilizados por Hamilton, desenvolvidos no texto conhecido como “Federalista n. 78”, eram, em síntese, os seguintes: (a) a Constituição estatui limitações à atividade legislativa, não sendo adequado que o Legislativo seja “juiz” de suas próprias limitações; (b) a interpretação das leis é função específica dos juízes, razão pela qual é natural que lhes seja atribuída a função de interpretar a Constituição; (c) o Judiciário, pela própria natureza de suas funções, por não dispor nem da “espada” nem do “tesouro”, é o ramo menos perigoso (the least dangerous branch) do poder para proteger os direitos previstos na Constituição.7 Tendo como suporte doutrinário as ideias de Hamilton, a Suprema Corte norte-americana, sob o comando do Chief Justice John Marshall, adotou o controle judicial de constitucionalidade das leis no célebre caso Marbury vs. Madison, em 1803, mesmo sem qualquer apoio expresso do texto da Constituição, que nada falava sobre esse poder da Suprema Corte de invalidar atos do Legislativo. A lógica adotada por Marshall foi praticamente uma reprodução das ideias de Hamilton.8 Com isso, os EUA desenvolveram o modelo de controle judicial de constitucionalidade que até hoje é a marca do constitucionalismo ocidental. É esse modelo norte-americano, descrito há mais de duzentos anos, que mais se assemelha com os contornos atuais do princípio da separação de poderes adotado aqui no Brasil, desde a primeira Constituição republicana, de 1891. Paralelamente ao modelo norte-americano, os Europeus, ao longo do século XX, passaram a melhor assimilar o princípio da supremacia da Constituição e, inspirados em Kelsen,9 desenvolveram outro tipo de controle de constitucionalidade, que se Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição file:///C/Users/Rodrigo/Downloads/Passei Direto_ Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição_files/chapter13.html[19/10/2019 11:38:30] 13.2.1 caracteriza pela concentração das decisões constitucionais em uma Corte especificamente criada para esse fim. É o chamado modelo concentrado de controle constitucionalidade, no qual, toda vez que surge uma controvérsia constitucional, a matéria deve ser submetida ao órgão competente para resolver a questão. A jurisdição constitucional no Brasil No Brasil, a jurisdição constitucional surgiu com a criação da Justiça Federal, que, por sua vez, começou juntamente com a história da República. Tão logo ruiu o regime monárquico, houve uma intensa movimentação intelectual e política para definir os alicerces do novo modelo estatal que estava surgindo. Nesse ambiente, Governo Provisório convidou para redigir o arcabouço jurídico da nova ordem normativa ninguém menos do que Rui Barbosa, o jurista mais preparado para essa tarefa. E foi assim que Rui Barbosa, em sua casa na praia do Flamengo e em apenas quinze dias, escreveu praticamente sozinho todo o texto do documento que viria a ser a Constituição de 1891. Um dos grandes dilemas que Rui Barbosa teve de enfrentar ao desenhar o projeto do novo modelo político referia-se à definição de qual órgão estatal exerceria a importante missão de controlar a constitucionalidade das leis. No regime imperial, essa função era exercida pelo chamado Poder Moderador. O próprio Imperador era responsável pela fiscalização da constitucionalidade dos seus atos e dos atos do Legislativo, tendo absoluto controle sobre o Judiciário, cuja missão restringia-se a solucionar os conflitos entre particulares. Rui Barbosa sabia que essa fórmula não era compatível com o modelo republicano, pois nem o Executivo nem o Legislativo possuiriam a imparcialidade necessária para se autocontrolarem. Foi aí que Rui teve a ideia de buscar inspiração no direito norte-americano, descrito há mais de duzentos anos pelos federalistas e colocado em prática em 1803, no “Marbury vs. Madison”. Essa influência norte-americana fica ainda mais visível se for analisada a Exposição de Motivos do referido Decreto no 848/1890, apresentada pelo então Min. Campos Salles, que instituiu a Justiça Federal. Eis um trecho da Exposição que ressalta qual seria o papel da magistratura federal no novo regime (o vernáculo não foi atualizado, a fim de manter a originalidade do texto): “Cabendo ao ministerio que me foi confiado a importante tarefa de organizar um dos poderes da União, e consultando os grandes interesses confiados à suprema direcção do Governo Provisório, pareceu-me necessário submetter desde já à vossa approvação e assignatura o decreto que institue a Justiça Federal, de conformidade com o disposto na Constituição da Republica. A proximidade da installação do Congresso constituinte, que poderia parecer em outras circumstancias um plausivel motivo de adiamento, afim de que lhe fosse submettido o exame de uma questão de tal magnitude, torna-se, entretanto, nesta situação, que é profundamente anormal, uma poderosa razão de urgencia a aconselhar a adopção desta medida. O principal, sinão o unico intuito do Congresso na sua primeira reunião, consiste sem duvida em collocar o poder publico dentro da legalidade. Mas esta missão ficaria certamente incompleta si, adoptando a Constituição e elegendo os depositarios do poder executivo, não estivesse todavia previamente organizada a Justiça Federal, pois que só assim poderão ficar a um tempo e em definitiva constituidos os tres principaes orgãos da soberania nacional. Trata-se, portanto, com este acto, de adoptar o processo mais rapido para a execução do programma do Governo Provisorio no seu ponto culminante – a terminação do período dictatorial. Mas, o que principalmente deve caracterisar a necessidade da immediata organização da Justiça Federal é o papel de alta preponderância que ella se destina a representar, como orgão de um poder, no corpo social. Não se trata de tribuanes ordinarios de justiça, com uma jurisdicção pura e simplesmente restricta à applicação das leis nas multiplas relações do direito privado. A magistratura que agora se instala no paiz, graças ao regimen republicano, não é um instrumento cego ou mero interprete na execução dos actos do poder legislativo. Antes de applicar a lei cabe- lhe o direito de exame, podendo dar-lhe ou recusar-lhe sancção, si ella lhe parecer conforme ou contraria à leiorganica.”10 Como se observa, a Justiça Federal foi criada com a finalidade específica e expressa de controlar a constitucionalidade das leis. Assim, pelo menos no papel, havia uma crença de que a Justiça Federal seria capaz de fiscalizar os demais poderes, servindo como guardiã da Constituição dentro do sistema de freios e contrapesos que se pretendia implementar. Restava saber se na prática o controle seria eficaz, já que a fiscalização judicial da constitucionalidade das leis ainda não fazia parte de nossa Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição file:///C/Users/Rodrigo/Downloads/Passei Direto_ Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição_files/chapter13.html[19/10/2019 11:38:30] tradição jurídica. O primeiro caso de grande relevância surgiu, como não poderia ser diferente, graças ao trabalho de Rui Barbosa. Em 1893, Rui Barbosa publicou um texto denominado “Os actos inconstitucionaes do Congresso e do Executivo ante a Justiça Federal”, onde traçou as primeiras linhas do que viria a ser o controle judicial de constitucionalidade no Brasil. O texto não é propriamente uma obra acadêmica, mas a consolidação de trabalhos forenses envolvendo um mesmo tema: as ações civis dos militares reformados pelos Decretos de abril de 1892 assinados pelo governo ditatorial do Marechal Floriano Peixoto. Rui, na qualidade de advogado, ingressou com diversas ações civis perante a recém-criada Justiça Federal, visando anular judicialmente os atos de reforma dos militares que se opuseram ao golpe de Floriano, o Marechal de Ferro.11 A Justiça Federal estava dando seus primeiros passos e, portanto, ainda não havia um sentimento constitucional no país. Soava, no mínimo, estranho dizer que um juiz federal – de primeiro grau, diga-se de passagem – teria tamanho poder, a ponto de decretar a nulidade de um ato da mais alta autoridade do Executivo, especialmente em um regime autoritário. Ninguém imaginaria que um magistrado de primeira instância agiria com a coragem suficiente para enfrentar o Executivo. Afinal, aquele era um período em que, por muito pouco, prendiam-se parlamentares e jornalistas, demitiam-se professores e servidores públicos, reformavam-se militares, aposentavam-se juízes compulsoriamente e fuzilavam-se os que fossem contra o regime. Além disso, os juízes federais, embora vitalícios, ainda não tinham a garantia de inamovibilidade, de tal modo que um juiz no Rio de Janeiro poderia ser removido para os mais longínquos rincões do país com uma simples penada – e se desse por satisfeito por ainda estar vivo! Para se ter uma noção de como ainda era frágil a aceitação da tese de que os magistrados detinham o poder de controlar a validade dos atos do Executivo e do Legislativo, basta dizer que alguns juízes que, naquele período, se negaram a aplicar leis, sob o fundamento de inconstitucionalidade, chegaram a ser acusados por crime de responsabilidade ou de prevaricação, o que levou Rui Barbosa a escrever uma obra memorável sobre o tema, em defesa da liberdade de consciência do juiz, intitulada “Defesa do Dr. Alcides de Mendonça Lima no Recurso de Revisão contra a Sentença do Superior Tribunal do Rio Grande do Sul”, que serviu de fundamento à defesa de um magistrado que havia sido condenado à pena de nove meses de suspensão do emprego por haver declarado a inconstitucionalidade da Lei de Organização Judiciária do Rio Grande do Sul!12 O certo é que, para surpresa geral, o Juiz Federal Henrique Vaz Pinto Coelho, em 1895, julgou a favor dos militares reformados, garantindo aos autores das ações o direito de receberem os vencimentos dos cargos/patentes como se não tivessem sido reformados. As referidas sentenças foram uma surpresa até para Rui Barbosa, conforme se pode observar no seguinte trecho de uma carta escrita por ele à época, durante exílio que estava vivendo em Londres: “Ontem recebi do Rio um telegrama anônimo nesses termos – ‘Vitória. Juiz seccional reformas militares. Hurra maior campeão liberdades civis militares tempo legalidade’. Quer isso dizer que o juiz federal sentenciou a favor dos meus clientes na famosa questão? É um triunfo, que eu não esperava, descrente que estou das qualidades morais da nossa magistratura. […] Vejo que venci a questão dos generais e lentes demitidos, perante a justiça federal. É um triunfo, que me surpreendeu, ante a desmoralização geral do país. Noutra terra esse arresto seria recebido como a primeira conquista para a liberdade constitucional. No Brasil não sei se ele terá merecido as honras dos comentários.”13 A decisão foi confirmada pelo STF, que adotou o entendimento de que “é nulo o ato do Poder Executivo que reforma forçadamente um oficial militar, fora dos casos previstos em lei”. Logo após a decisão do STF, o Governo, em respeito ao julgado, anulou os decretos de abril de 1892, tendo os militares favorecidos pela decisão sido anistiados e reintegrados aos cargos que ocupavam. O caso é exemplar. Foi a primeira vez no Brasil que se sustentou, perante a Justiça Federal, a inconstitucionalidade de um ato do executivo. Tratava-se, como disse o próprio Rui Barbosa, de “novidade de um regime inteiramente sem passado entre nós”. Aliás, novidade essa que fora recebida “muito desfavoravelmente pelos amigos do ex-Presidente Marechal Peixoto”, conforme noticiaram os jornais The Standard e The Finantial News.14 A sentença, escrita com objetividade, mas com profunda noção do seu papel simbólico, contém alguns aspectos dignos de nota, que ressaltam a função que seria desempenhada pelo Poder Judiciário dentro do Estado Republicano e Federativo que acabara de surgir: “É manifesta a competência do Poder Judiciário para dizer em espécie de ofensas ao poder político contra os direitos Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição file:///C/Users/Rodrigo/Downloads/Passei Direto_ Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição_files/chapter13.html[19/10/2019 11:38:30] 13.2.2 individuais com preterição das leis e da Constituição […]. Pelas opiniões da corrente geral dos constitucionalistas, firmando de modo claro e positivo que ao Poder Judiciário, no regímen americano (que é o da nossa Constituição) cabe a suprema missão de garantir a verdade constitucional e legal e proteger os direitos individuais contra as exorbitâncias do Executivo e Legislativo. […] O Poder Judiciário se acha que a lei do congresso viola a Constituição, pronuncia-se por esta. Mister, porém, é que haja controvérsia entre as partes acêrca de algum caso sujeito. Dá-se aos cidadãos o meio de tornar efetivos os direitos individuais quando violados por lei contrária a êles; mas ainda que o Tribunal Supremo declare que a aplicação dela no caso debatido é inconstitucional, de nenhum valor nem efeito, não deixa por isso a lei de continuar em vigor. Continua a ser obrigatória para todos, mas cada qual quando lhe chega a vez em caso submetido à justiça, tem o mesmo recurso acima indicado para evitar-lhe a aplicação. (Florentino Gonzales – Lição de Dir. Const.). É manifesto, pois, lei ou ato administrativo que ataque um direito subjetivo, o lesado pode recorrer ao departamento judiciário e êste tem competência. […] Não há poderes, quer legislativos, quer executivos, com exercício legal, senão dentro das normas constitucionais, lei suprema que domina e avassala tôdas as outras leis, atos administrativos, decisões judiciárias, desde que a violem. […] Não há onipotência no Congresso, como não há no Executivo – têm atribuições constitucionais e legais e fora delas são exorbitantes e seus atos nulos.”15 Eis aí, nessa formidável decisão, o marco inicial da jurisdição constitucional no Brasil. E que bela lição foi-nos deixada pelo julgado: não há poderes, quer legislativos, quer executivos, senão dentro das normas constitucionais, lei suprema que avassala todas as outras leis, atos administrativos, decisões judiciárias, desde que a violem. A partir daí, o modelo difuso de controle de constitucionalidade, noqual todo juiz tem a missão de realizar a análise da compatibilidade dos atos infraconstitucionais com a Constituição, invalidando os que forem incompatíveis, passou a fazer parte da tradição jurídica brasileira. Nos últimos trinta anos, as Constituições brasileiras (de 1967/1969 e de 1988) passaram a contemplar técnicas do controle concentrado, através da via direta (Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade e Arguição de Descumprimento a Preceito Fundamental), em processo objetivo decidido pelo STF. Ou seja, aqui no Brasil, há tanto o modelo difuso de controle de constitucionalidade, no qual todo juiz tem a missão de realizar a análise da compatibilidade dos atos infraconstitucionais com a Constituição, invalidando os que forem incompatíveis, como também o modelo concentrado, através da via direta, em processo objetivo decidido pelo Supremo Tribunal Federal. A inconstitucionalidade das normas contrárias aos direitos fundamentais Conforme já visto, os direitos fundamentais estão positivados na Constituição. Logo, qualquer norma que seja incompatível com os valores por eles consagrados será inconstitucional. Desse modo, é natural que, através da jurisdição constitucional, seja possível fiscalizar o respeito a esses direitos. Serão esses direitos que fornecerão o substrato ético e a legitimidade material do controle de constitucionalidade. Para ilustrar essa faceta dos direitos fundamentais, que os coloca no topo do ordenamento jurídico, vale citar um exemplo em que um direito fundamental foi invocado para anular uma norma com ele incompatível. O caso foi julgado pelo STF, em sede de controle concentrado de constitucionalidade (ADIn-MC 1969-4/DF), e envolvia um conflito de normas (antinomia). Ou seja, havia duas normas jurídicas prevendo consequências opostas para um mesmo fato. De um lado, havia um Decreto, expedido pelo Governo do Distrito Federal, que proibia a realização de manifestações públicas na Praça dos Três Poderes, na Esplanada dos Ministérios e na Praça do Buriti, em Brasília. O objetivo da norma era impedir a realização de protestos no centro político da capital brasileira. Esse Decreto se chocava frontalmente com o direito fundamental à liberdade de reunião e de manifestação pública, previsto no art. 5o inc. XVI, da Constituição de 88: “Art. 5o […] XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.” Em razão disso, o STF, naturalmente, declarou a inconstitucionalidade do referido Decreto, autorizando, como consequência, a realização de manifestações públicas nos mencionados locais.16 Nesse caso, a supremacia dos direitos fundamentais foi aplicada para invalidar um ato normativo que transgredia a estrutura axiológica dos direitos fundamentais, demonstrando que o poder público, ao editar normas gerais, deve respeito ao conteúdo material da Constituição. Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição file:///C/Users/Rodrigo/Downloads/Passei Direto_ Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição_files/chapter13.html[19/10/2019 11:38:30] 13.2.3 No mesmo sentido, pode-se mencionar a decisão tomada pelo STF na ADIn 869/DF, em que se discutiu a constitucionalidade do artigo 247, § 2o, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no 8.069/90). De acordo com a referida norma, qualquer meio de comunicação que divulgasse o nome ou o retrato identificável de criança ou adolescente acusados de prática infracional poderia ser punido administrativamente com a suspensão de suas atividades pelo período estabelecido na lei.17 Para o STF, ainda que fosse razoável punir a empresa de comunicação que praticasse tais condutas reprováveis, a sanção administrativa prevista na lei seria incompatível com a liberdade de imprensa protegida enfaticamente pela Constituição de 88, até porque “o efeito que dela resulta vem justamente de encontro ao direito que tem o público à informação sobre fatos e ideias, privados que dela pode ficar por até dois dias. Não se trata, pois, de providência que se possa ter por tolerada pela Constituição, ainda que implicitamente, como limitação plausível ao direito à manifestação do pensamento, mais precisamente ao direito à informação jornalística”.18 As demais sanções previstas na lei para aquele ilícito, contudo, não foram consideradas inconstitucionais, pois tinham como objetivo inibir a mídia de divulgar informações que pudessem prejudicar os interesses de menores infratores, sem afetar arbitrariamente a liberdade de imprensa. Qualquer ato de poder que seja incompatível com a ordem de valores imposta pelos direitos fundamentais poderá ser anulado, por inconstitucionalidade material, pelo órgão responsável pela jurisdição constitucional. A não recepção das leis incompatíveis com os direitos fundamentais A supremacia formal e material dos direitos fundamentais acarreta a não recepção da legislação promulgada em data anterior à Constituição que seja incompatível com os direitos fundamentais. Se um juiz deparar com uma norma anterior à Constituição que seja incompatível com esses direitos, deverá entendê-la como revogada. Diz-se, numa linguagem mais técnica, que essa norma não foi recepcionada, ou seja, não foi recebida pelo novo ordenamento constitucional. Essa não recepção tem o mesmo efeito prático da revogação, de modo que o juiz não pode aplicar a norma não recepcionada. Assim, no âmbito do controle difuso, uma vez detectada a existência de uma lei anterior à Constituição que não tenha sido recepcionada, o juiz tem o poder-dever de não a aplicar. No controle concentrado de constitucionalidade, a lei anterior à Constituição não pode ser atacada via Ação Direta de Inconstitucionalidade, conforme jurisprudência pacífica do STF: “a Ação Direta de Inconstitucionalidade não se revela instrumento juridicamente idôneo ao exame da legitimidade constitucional de atos normativos do poder público que tenham sido editados em momento anterior ao da vigência da constituição sob cuja égide foi instaurado o controle normativo abstrato”.19 Isso não impede, contudo, o controle concentrado de constitucionalidade da lei pré-constitucional em sede de Arguição de Descumprimento a Preceito Fundamental, com base no artigo 1o, parágrafo único, inc. I, da Lei no 9.882/98, que diz que caberá arguição de descumprimento a preceito fundamental “quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”. Nesse sentido, o STF já decidiu: “Assim, toda vez que configurar controvérsia relevante sobre a legitimidade do direito federal, estadual ou municipal, anteriores à Constituição, em face de preceito fundamental da Constituição, poderá qualquer dos legitimados para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade propor arguição de descumprimento. Também essa solução vem colmatar uma lacuna importante no sistema constitucional brasileiro, permitindo que controvérsias relevantes afetas ao direito pré-constitucional sejam solvidas pelo STF com eficácia geral e efeito vinculante.”20 Há vários exemplos de leis existentes antes da promulgação da Constituição de 1988 que não foram recepcionadas pelo novo regime centrado nos direitos fundamentais. Podem ser citados, por exemplo, os arts. 51 e 52 da Lei de Imprensa (Lei no 5.250/67), que estabelecem o chamado dano moral tarifado, ou seja, criam limites rígidos à fixação da indenização por dano moral no caso de responsabilidade civil de jornalistas e empresas jornalísticas.21 O dano moral tarifado era plenamente aceitável antes da Constituição de 1988, já que não havia norma constitucional prevendo o direito à indenização por dano moral como direito fundamental. A Constituição de 88, contudo,estabeleceu que “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem” (art. 5o, inc. V). Como se vê, a CF/88 não estabeleceu qualquer limite à indenização por dano moral. Logo, não recepcionou o dano moral Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição file:///C/Users/Rodrigo/Downloads/Passei Direto_ Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição_files/chapter13.html[19/10/2019 11:38:30] 13.2.4 tarifado estipulado pela Lei de Imprensa (que foi promulgada em 1967). Nesse sentido, o STF entendeu que “toda limitação, prévia e abstrata, ao valor da indenização por dano moral, objeto de juízo de equidade, é incompatível com o alcance da indenizabilidade irrestrita assegurada pela atual Constituição da República. Por isso, já não vige o disposto no art. 52 da Lei de Imprensa, o qual não foi recebido pelo ordenamento jurídico vigente”.22 O STJ também já sumulou o mesmo entendimento: “a indenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na Lei de Imprensa” (Súmula 281). Aliás, já que se falou na lei de imprensa, vale mencionar a decisão liminar proferida pelo STF, na ADPF 130/DF, que reconheceu a não recepção de diversos artigos da referida lei, suspendendo sua aplicação até o julgamento do mérito. Na citada decisão, o relator, Min. Carlos Brito, após defender que a democracia é “o princípio dos princípios da Constituição de 1988”, afirmou que ela se apoia em dois pilares: (a) o da informação em plenitude e de máxima qualidade e (b) o da transparência ou visibilidade do poder. Levando em conta a íntima ligação entre liberdade de imprensa e democracia, concluiu o seguinte: “a atual Lei de Imprensa – Lei no 5.250/67 –, diploma normativo que se põe na alça de mira desta ADPF, não parece mesmo serviente do padrão de democracia e de imprensa que ressaiu das pranchetas da nossa Assembleia Constituinte de 1987/1988. Bem ao contrário, cuida-se de modelo prescritivo que o próprio Supremo Tribunal Federal tem visto como tracejado por uma ordem constitucional (a de 1967/1969) que praticamente nada tem a ver com a atual”.23 Com isso, foi concedida medida liminar para afastar diversos dispositivos da referida lei que continham ranços autoritários incompatíveis com o espírito democrático prestigiado pela Constituição de 88. Seguindo essa mesma linha, há várias leis, promulgadas antes de 1988, que estabelecem repressões penais ao pensamento que não se mostram afinadas com a liberdade de expressão. O art. 234 do Código Penal, por exemplo, criminaliza o fato de “realizar, em lugar público ou acessível ao público, representação teatral, ou exibição cinematográfica de caráter obsceno, ou qualquer outro espetáculo, que tenha o mesmo caráter”. Em igual sentido, o art. 219 do Código Penal Militar considera como crime a divulgação de fatos capazes de ofender a dignidade ou abalar o crédito das forças armadas ou a confiança que estas merecem do público. O art. 22 da Lei de Segurança Nacional tipifica como crime o fato de fazer propaganda defendendo a alteração da ordem política ou social. Essas normas penais, nitidamente, mostram-se descompassadas com o direito de manifestação do pensamento e, portanto, não foram recepcionadas pela Constituição de 1988. Outro exemplo ainda mais patente de não recepção refere-se às hipóteses de prisão que, por força de leis anteriores ao novo regime constitucional, podiam ser decretadas por autoridades não judiciárias. A título ilustrativo, o Código de Processo Penal, em seu artigo 319,24 autorizava a prisão administrativa sem ordem judicial. Do mesmo modo, os arts. 69, 80 e 81 do Estatuto do Estrangeiro (Lei no 6.815/80) conferiam ao Ministro da Justiça a possibilidade de determinar a prisão do estrangeiro submetido a processo de expulsão ou de extradição. Essas normas destoam claramente da nova sistemática adotada pelo artigo 5o, inc. LXI, da Constituição de 88, que submeteu o regime das prisões à chamada reserva de jurisdição, de modo que somente as autoridades judiciárias possuem competência para decretar prisões, ressalvadas as exceções constitucionais: “Art. 5o – […] LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.” Desse modo, a prisão administrativa prevista no art. 319 do CPP, bem como a prevista nos arts. 69, 80 e 81 do Estatuto do Estrangeiro, assim como qualquer hipótese de prisão que não seja em flagrante delito ou decorrente de transgressão militar ou crime propriamente militar, somente serão válidas se determinadas por autoridade judiciária competente, através de ordem judicial devidamente fundamentada, devendo ser consideradas como não recepcionadas as leis anteriores à CF/88 que autorizavam a decretação de prisões por autoridades não judiciárias.25 A reinterpretação das leis anteriores à Constituição em face dos direitos fundamentais Outra consequência da supremacia dos direitos fundamentais é o entendimento de que a legislação anterior à Constituição deve ser reinterpretada para que se adapte ao novo espírito axiológico que os direitos fundamentais impõem. Como explica Luís Roberto Barroso: Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição file:///C/Users/Rodrigo/Downloads/Passei Direto_ Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição_files/chapter13.html[19/10/2019 11:38:30] 13.3 “As normas legais e regulamentares vigentes à data da entrada em vigor da nova Constituição têm de ser reinterpretadas em face desta e apenas subsistem se conformes com as suas normas e os seus princípios, não se lhes aplicando, automática e acriticamente, a jurisprudência forjada no regime anterior. Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo.”26 Um caso bastante interessante e elucidativo ilustra esse aspecto. Trata-se do caso Diogo Mainardi vs. Presidente Lula.27 Eis a síntese do processo: Diogo Mainardi é um polêmico jornalista, cujos escritos são impregnados de conteúdo político, com uma clara oposição ideológica ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao Partido dos Trabalhadores de modo geral. Na edição de 3/8/2005, em sua coluna semanal publicada na revista Veja, Mainardi escreveu uma crônica intitulada “Quero derrubar Lula”, onde defendeu o impeachment do Presidente da República, pois, de acordo com ele, “pior do que está não pode ficar”. Em razão dessa coluna, alguns partidários do Presidente Lula ingressaram com petição no STF (PET 3486/DF) requerendo a abertura de procedimento penal para apurar suposto “crime de subversão contra a segurança nacional, que está colocando em perigo o regime representativo e democrático brasileiro, a Federação e o Estado de Direito e crime contra a pessoa dos Chefes dos Poderes da União”. O Min. Celso de Mello, do STF, relator do caso, proferiu memorável decisão em favor da liberdade de imprensa, determinando o arquivamento do processo, pois a situação fática narrada estaria protegida pela liberdade de manifestação do pensamento e, portanto, não poderia ser punida.28 Como se observa, foi afastada a prática de suposto delito contra a segurança nacional por estar a conduta protegida pelo direito fundamental à manifestação do pensamento. A liberdade de expressão teve a força de modificar a interpretação e a aplicação da Lei de Segurança Nacional no caso concreto, adequando-a ao novo espírito democrático, num interessante exemplo que fortaleceu enormemente a democracia brasileira. De modo semelhante, o STF, ao julgar o Habeas Corpus 83.125/DF, em 16/9/2003, teve a oportunidade de trancar inquérito policial militar de um historiador que havia publicado, já sob a égideda CF/88, um livro intitulado Feridas da ditadura militar, no qual criticava ferrenhamente as Forças Armadas no período do regime militar. No livro, o autor afirmou que existiam “militares criminosos e picaretas”, “farsantes que se acham acima da lei”, bem como narrou a prática de diversos crimes ecológicos, torturas, experiências médicas ilegais com prisioneiros, assassinatos, estupros, sequestros, entre outros delitos, supostamente praticados por militares. Em razão desse livro, o historiador foi denunciado, perante a Justiça Militar, por haver cometido o crime previsto no art. 219 do Código Penal Militar (Decreto-lei no 1.001, de 21 de outubro de 1969), que prevê o crime de “ofensa às forças armadas”: “Propalar fatos, que sabe inverídicos, capazes de ofender a dignidade ou abalar crédito das Forças Armadas ou a confiança que estas merecem do público. Pena – detenção, de seis meses a um ano.” No julgamento, o STF, além de entender que não estava presente o elemento subjetivo do tipo (“que sabe inverídicos”), decidiu que a publicação do livro estaria protegida pela liberdade de expressão. Na ementa do julgado, ficou assentado que “a liberdade de expressão constitui-se em direito fundamental do cidadão, envolvendo o pensamento, a exposição de fatos atuais ou históricos e a crítica”.29 Logo, a norma penal não poderia punir um historiador que estava tão somente exercendo seu direito de crítica, ainda que de modo exagerado. O que se deve extrair desses exemplos é que a Constituição de 88 acarretou o surgimento de uma nova ordem jurídica. Ela é o “marco zero” do sistema normativo. Toda a legislação produzida antes da sua promulgação deverá assimilar o novo espírito ético-constitucional, sob pena de não ser recepcionada. Da mesma forma, os juristas deverão constantemente exercer um juízo crítico em relação a essas leis, de modo a adequá-las à atual realidade democrática. CONTROLE CONCENTRADO VERSUS CONTROLE DIFUSO A interpretação dos direitos fundamentais, geralmente, é voltada para o caso concreto. Ou seja, o juiz analisará os argumentos apresentados pelas partes, diante de um fato ocorrido, e irá dizer quem tem razão naquela situação. É o que se chama de interpretação tópica.30 A tópica é plenamente compatível com o controle difuso de constitucionalidade, no qual todo juiz tem a missão de realizar a análise da compatibilidade dos atos infraconstitucionais com a Constituição, invalidando os que forem incompatíveis, com efeitos apenas para aquele caso específico. Por isso se diz que o controle difuso é concreto ou incidental ou indireto, Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição file:///C/Users/Rodrigo/Downloads/Passei Direto_ Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição_files/chapter13.html[19/10/2019 11:38:30] demonstrando que a análise da constitucionalidade é apenas uma questão acessória dentro de uma discussão fática principal. Ocorre que o Brasil, conforme visto, adota um controle misto de constitucionalidade. Além do modelo difuso, há ainda o controle concentrado, através da via direta, em processo objetivo decidido pelo STF. No modelo concentrado, o STF analisa a constitucionalidade dos atos normativos em abstrato, ou seja, sem qualquer ligação com um caso concreto. Aliás, atualmente, existe até mesmo uma tendência de se valorizar o controle concentrado de constitucionalidade, já que ele prestigia a segurança jurídica, garantindo maior isonomia, pois seus efeitos valem para todos (erga omnes), muitas vezes com efeito vinculante. Apesar disso, ainda subsiste a importância do controle difuso para podar eventuais injustiças que a aplicação da norma, no caso concreto, pode gerar. Dito de outra forma: uma lei pode ser abstratamente constitucional/proporcional/válida, mas, na casuística, pode gerar efeitos indesejados, cabendo ao juiz, através do controle difuso, corrigir essas situações de injustiças pontuais na aplicação da norma. Quem captou com precisão esse fenômeno foi a Min. Cármen Lúcia, do STF: “a constitucionalidade da norma legal, assim, não significa a inconstitucionalidade dos comportamentos judiciais que, para atender, nos casos concretos, à Constituição, garantidora do princípio da dignidade humana e do direito à saúde, e à obrigação estatal de prestar a assistência social ‘a quem dela necessitar, independentemente da contribuição à seguridade social’, tenham de definir aquele pagamento diante da constatação da necessidade da pessoa portadora de deficiência ou do idoso que não possa prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”.31 No caso específico, estava sendo discutida a validade de uma sentença de um juiz federal que desrespeitou a autoridade da decisão proferida pelo STF, na ADIn 1.232/DF. Na referida ADIn, o STF declarou, com efeito vinculante e erga omnes, a constitucionalidade do art. 20, § 3o, da Lei no 8.742/93, cuja redação é a seguinte: “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”. A citada lei regulamenta o disposto no artigo 203, inc. V, da Constituição Federal, que garante benefício mensal de um salário mínimo aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Vários juízes, apesar da decisão do STF que reconheceu a constitucionalidade da Lei no 8.742/93, estão julgando que a impossibilidade da própria manutenção, por parte dos portadores de deficiência e dos idosos, que autoriza e determina o benefício assistencial de prestação continuada, não se restringe à hipótese da renda familiar per capita mensal inferior a 1/4 do salário mínimo, podendo caracterizar-se por concretas circunstâncias outras, que devem ser demonstradas ao longo do processo.32 Curiosamente, o próprio STF tem aplaudido a postura dos juízes que assim agem e está indeferindo, sistematicamente, as reclamações do INSS contra as sentenças que desrespeitam a autoridade da decisão proferida na ADIn 1.232/DF. Essa desobediência generalizada é um caso interessante em que o controle difuso de constitucionalidade está ocasionando uma mutação constitucional de posicionamento já firmado em controle concentrado. O Min. Gilmar Mendes, de certo modo, captou esse fenômeno: “O Tribunal [STF] parece caminhar no sentido de se admitir que o critério de 1/4 do salário mínimo pode ser conjugado com outros fatores indicativos do estado de miserabilidade do indivíduo e de sua família para concessão do benefício assistencial de que trata o art. 203, inciso V, da Constituição. Entendimento contrário, ou seja, no sentido da manutenção da decisão proferida na Rcl 2.303/RS, ressaltaria ao menos a inconstitucionalidade por omissão do § 3o do art. 20 da Lei no 8.742/93, diante da insuficiência de critérios para se aferir se o deficiente ou o idoso não possuem meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, como exige o art. 203, inciso V, da Constituição. A meu ver, toda essa reinterpretação do art. 203 da Constituição, que vem sendo realizada tanto pelo legislador como por esta Corte, pode ser reveladora de um processo de inconstitucionalização do § 3o do art. 20 da Lei no 8.742/93.”33 Outro exemplo semelhante ocorreu com a Ação Declaratória de Constitucionalidade no 4, que suspendeu liminarmente, com eficácia ex nunc e com efeito vinculante, até final julgamento da ação, a prolação de qualquer decisão sobre pedido de tutela antecipada, contra a Fazenda Pública, que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do art. 1o da Lei no 9.494, de 10/9/97. Em outras palavras, proibiu-se aos juízes, entre outras coisas, a concessão de antecipação de tutela contra a Fazenda Pública que resultasse em aumento de vantagens para os servidores públicos. Apesar dessa decisão, o STF tem admitido a concessão de antecipação detutela, mesmo em face da vedação legal, nas Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição file:///C/Users/Rodrigo/Downloads/Passei Direto_ Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição_files/chapter13.html[19/10/2019 11:38:30] situações em que a denegação da medida antecipada possa comprometer, injustificadamente, a efetividade do processo.34 Desse modo, mesmo que o STF tenha declarado, em sede de controle concentrado, com efeito vinculante e contra todos, que determinada norma é constitucional, é possível que o juiz, no caso concreto, diante de peculiaridades de uma situação a ser julgada, afaste a aplicação dessa lei, se, na casuística, resultar em flagrante injustiça incompatível com os valores constitucionais. O importante é que o juiz apresente argumentos novos para não aplicar a lei, não podendo simplesmente reproduzir as alegações de inconstitucionalidade que já foram rejeitadas pelo STF no controle concentrado. O descumprimento da decisão proferida pelo STF só por capricho pessoal do juiz não é aceitável, já que o Supremo é, no final das contas, o “guardião da Constituição”. O mesmo raciocínio vale para as chamadas súmulas vinculantes. Nada impede que a súmula vinculante deixe de ser aplicada em um caso concreto se a sua aplicação gerar uma situação de inconstitucionalidade ainda pior. Nesse caso, o ideal é que o juiz justifique detalhadamente por que não está aplicando a súmula vinculante. Nunca se deve perder de visa que o juiz constitucional, comprometido com os direitos fundamentais, tem a obrigação de sempre buscar a justiça do caso concreto, mas sempre com base nos valores constitucionais. Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição file:///C/Users/Rodrigo/Downloads/Passei Direto_ Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição_files/chapter13.html[19/10/2019 11:38:30] 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 ____________ VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 12. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 248. KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 150. Sobre o assunto, vale a leitura de DALLARI, Dalmo. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. MONTESQUIEU, Barão de La Brède e de. Do espírito das leis. São Paulo: Nova Cultural, v. 1, 1997, p. 203. (Coleção Os Pensadores.) BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. Trad. Torrieri Guimarães. 11. ed. São Paulo: Hemus, 1995. Cf. MORO, Sérgio Fernando. Jurisdição como democracia. Tese de Doutorado, Curitiba, 2004. Eis as palavras utilizadas no voto de Marshall para justificar o judicial review: “É enfaticamente a província e o dever do ramo judiciário dizer o que é o Direito. Aqueles que aplicam as regras aos casos particulares devem, por necessidade, expor e interpretar a regra. Se duas leis estão em conflito, as cortes devem decidir sobre a aplicação de cada uma. Então, se uma lei estiver em oposição à constituição; se ambas, a lei e a constituição, forem aplicáveis ao caso particular, então a corte deve decidir o caso conforme a lei, desconsiderando a constituição; ou conforme a constituição, desconsiderando a lei; a corte deve determinar qual dessas regras em conflito governa o caso. Essa é a essência do dever judicial. Se, então, as cortes devem observar a constituição, e a constituição é superior a qualquer ato ordinário da legislatura, a constituição, e não o ato ordinário, deve governar o caso ao qual ambas são aplicáveis” (Cf. MORO, Sérgio Fernando. Jurisdição como democracia. Tese de Doutorado, Curitiba, 2004). As ideias desenvolvidas por Kelsen estão em: KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CJF – Conselho da Justiça Federal. Justiça Federal – Legislação. Brasília: CJF, 1993. A famosa carta-manifesto dos treze generais dirigida a Floriano Peixoto, exigindo nova eleição presidencial pode ser lida em: AMARAL, Roberto; BONAVIDES, Paulo. Textos políticos da história do Brasil. 3. ed. Brasília: Senado Federal, 2002, v. 2, p. 333. Cf. RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Tomo I/1891-1898. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 84. O Supremo Tribunal Federal acabou firmando o entendimento de que faz parte da função jurisdicional o controle de constitucionalidade das leis, razão pela qual os juízes não poderiam ser responsabilizados por negarem aplicação a leis que reputem inconstitucionais. BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa. v. XX, 1893, Tomo V, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958, p. XXXVI (introdução). Cf. RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Tomo I/1891-1898. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 63. Extraído do livro: BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa. v. 20, 1893, Tomo V, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958, p. 219-223. STF, ADIn-MC 1969-4, rel. Min. Celso de Mello, j. 24/3/1999. Confira a ementa: “EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO 20.098/99, DO DISTRITO FEDERAL. LIBERDADE DE REUNIÃO E DE MANIFESTAÇÃO PÚBLICA. LIMITAÇÕES. OFENSA AO ART. 5o, XVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. I. A liberdade de reunião e de associação para fins lícitos constitui uma das mais importantes conquistas da civilização, enquanto fundamento das modernas democracias políticas. II. A restrição ao direito de reunião estabelecida pelo Decreto distrital 20.098/99, a toda evidência, mostra-se inadequada, desnecessária e desproporcional quando confrontada com a vontade da Constituição (Wille zur Verfassung). III. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do Decreto distrital 20.098/99.” Eis a redação do artigo: “Art. 247. Divulgar, total ou parcialmente, sem autorização devida, por qualquer meio de comunicação, nome, ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial relativo a criança ou adolescente a que se atribua ato infracional: Pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência. § 1o Incorre na mesma pena quem exibe, total ou parcialmente, fotografia de criança ou adolescente envolvido em ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito ou se refira a atos que lhe sejam atribuídos, de forma a permitir sua identificação, direta ou indiretamente. § 2o Se o fato for praticado por órgão de imprensa ou emissora de rádio ou televisão, além da pena prevista neste artigo, a autoridade judiciária poderá determinar a apreensão da publicação ou a suspensão da programação da emissora até por dois dias, bem como da publicação do periódico até por dois números.” STF, ADI 869/DF, rel. Min. Ilmar Galvão, j. 4/8/1999. STF, ADI 7/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 4/9/1992. STF, ADPF 33/PA, rel. Min. Gilmar Mendes, 7/12/2005. “Art. 51. A responsabilidade civil do jornalista profissional que concorre para o dano por negligência, imperícia ou imprudência, é limitada, em cada escrito, transmissão ou notícia: I – a 2 salários mínimos da região, no caso de publicação ou transmissão de notícia falsa, ou divulgação de fato verdadeiro truncado ou deturpado (art. 16, ns. II e IV); II – a cinco salários mínimos da região, nos casos de publicação ou transmissão que ofenda a dignidade ou decoro de alguém; III – a 10 salários mínimos da região, nos casos de imputação de fato ofensivo à reputação de alguém; IV – a 20 salários mínimos da região, nos casos de falsa imputação de crime a alguém, ou de imputação de crime verdadeiro, nos casos em que a lei não admite a exceção da verdade (art. 49, § 1o). […] Art. 52. A responsabilidade civil da empresa que explora o meio de informação ou divulgação é limitada a dez vezes as importâncias referidas no artigo anterior, se resulta de ato culposo de algumas das pessoas referidas no art. 50.” STF, RE 447.584/RJ, rel.Min. Cezar Peluso, j. 26/11/2006. STF, ADPF 130/DF (decisão liminar), rel. Min. Carlos Ayres Britto, j. 21/2/2008. “Art. 319. A prisão administrativa terá cabimento: I – contra remissos ou omissos em entrar para os cofres públicos com os dinheiros a seu cargo, a fim de compeli-los a que o façam; II – contra estrangeiro desertor de navio de guerra ou mercante, surto em porto nacional; III – nos demais casos previstos em lei. § 1o A prisão administrativa será requisitada à autoridade policial nos casos dos ns. I e III, pela autoridade que a tiver decretado Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição file:///C/Users/Rodrigo/Downloads/Passei Direto_ Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição_files/chapter13.html[19/10/2019 11:38:30] 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 e, no caso do no II, pelo cônsul do país a que pertença o navio. § 2o A prisão dos desertores não poderá durar mais de três meses e será comunicada aos cônsules. § 3o Os que forem presos à requisição de autoridade administrativa ficarão à sua disposição.” Eis o entendimento do STF sobre o assunto: “EMENTA: EXTRADIÇÃO. QUESTÃO DE ORDEM SOBRE A COMPETÊNCIA PARA A DECRETAÇÃO DA PRISÃO DO EXTRADITANDO. – Em face da atual Constituição, tornou-se o Ministro da Justiça incompetente para decretar a prisão do extraditando, estando, assim, derrogada a Lei 6815/80. – Essa competência passa a ser do relator sorteado para, se for o caso, decretá-la, o qual ficara prevento para a direção do processo de extradição, após ser a prisão em causa efetivada. Questão de ordem decidida nos termos do voto do relator” (Ext-QO478/ SI – SUÍÇA, rel. Min. Moreira Alves, j. 30/11/1988). Com relação à prisão administrativa prevista no CPP, o Superior Tribunal de Justiça sumulou o entendimento de que “o artigo 35 do Decreto-Lei n. 7.661, de 1945, que estabelece a prisão administrativa, foi revogado pelos incisos LXI e LXVII do artigo 5o da Constituição Federal de 1988.” BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. STF, PET 3.486/DF, rel. Min. Celso de Mello. Eis um trecho do voto: “O teor da petição em referência, longe de evidenciar supostas práticas delituosas contra a segurança nacional, alegadamente cometidas pelos jornalistas mencionados, traduz, na realidade, o exercício concreto, por esses profissionais da imprensa, da liberdade de expressão e de crítica, cujo fundamento reside no próprio texto da Constituição da República, que assegura, ao jornalista, o direito de expender crítica, ainda que desfavorável e exposta em tom contundente e sarcástico, contra quaisquer pessoas ou autoridades. Ninguém ignora que, no contexto de uma sociedade fundada em bases democráticas, mostra-se intolerável a repressão penal ao pensamento, ainda mais quando a crítica – por mais dura que seja – revele-se inspirada pelo interesse público e decorra da prática legítima, como sucede na espécie, de uma liberdade pública de extração eminentemente constitucional (CF, art. 5o, IV, c/c o art. 220).” Na Alemanha, houve um caso parecido (caso “Soldados são assassinos” – “Soldaten Sind Mörder”), em que estava em jogo a liberdade de expressão do pensamento e a proteção da honra de militares. Nesse caso, que ficou bastante conhecido na literatura especializada sobre direitos fundamentais, vários cidadãos foram processados e condenados criminalmente por injúria por haverem participado, de várias maneiras diferentes, de protestos contra militares, defendendo, em síntese, através de manifestos escritos (faixas, panfletos, adesivos, cartas etc.), que soldados são assassinos ou são assassinos potenciais. Inconformados com as sanções aplicadas, os cidadãos condenados ingressaram com Reclamações Constitucionais, perante o Tribunal Constitucional Federal, alegando que aqueles manifestos estariam protegidos pela liberdade de expressão e do pensamento. O TCF acolheu as Reclamações Constitucionais, decidindo que os tribunais ordinários não haviam procedido a uma análise objetiva e consistente dos fatos, à luz da liberdade de expressão: “As declarações pelas quais os reclamantes foram condenados por injúria gozam da proteção do Art. 5 I 1 GG. Essa norma constitucional dá a todos o direito de livremente expressar e divulgar seu pensamento por palavra, escrito ou imagem. Pensamentos são, diferentemente de afirmações de fatos, caracterizados pelo posicionamento ideológico subjetivo daquele que se expressa sobre o objeto da expressão (cf. por último BVerfGE 90, 241 [247 et seq.]). Eles contêm seu julgamento sobre fatos, ideias ou pessoas; a proteção do direito fundamental se refere a esse posicionamento pessoal. Por isso ele existe, independentemente de ser a expressão racional ou emocional, fundamentada ou sem base alguma e se é considerada por outros como útil ou prejudicial, valiosa ou sem valor (BVerfGE 30, 336 [347]; 33, 1 [14]; 61, 1 [7]). A proteção não se refere apenas ao conteúdo da expressão, mas também à sua forma. Pelo fato de ser formulada de modo polêmico ou ofensivo, ela não deixa de fazer parte da área de proteção do direito fundamental (BVerfGE 54, 129 [138 s.]; 61, 1 [7 s.]). Além disso, protegida é também a escolha do local e hora da expressão. Aquele que se expressa não tem apenas o direito de manifestar seu pensamento. Ele também pode escolher aquelas circunstâncias a partir das quais espera conseguir a maior divulgação ou o maior efeito possível da divulgação de seu pensamento. No caso das expressões que fundamentaram as decisões condenatórias em face dos reclamantes por injúria, trata-se de pensamentos nesse sentido, que sempre estão sob a proteção do direito fundamental. Com suas expressões, segundo as quais soldados seriam assassinos ou assassinos potenciais, os reclamantes não fizeram afirmações sobre soldados certos e determinados que teriam cometido assassinato no passado. Muito mais expressaram um juízo de valor sobre soldados e sobre a profissão de soldado, que em certas circunstâncias força ao homicídio. Os tribunais (instanciais) penais consideraram a expressão como sendo um juízo de valor, não uma afirmação de fatos. Existe, na condenação por causa dessas expressões, uma intervenção na área de proteção do direito fundamental da liberdade de expressão do pensamento” (SCHWAB, Jürgen. Cinquenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão.Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006). A tópica, explica BOVANIDES, é um método que parte do “problema à sua solução”, que já era utilizado por ARISTÓTELES, mas foi, modernamente, revitalizada por THEODOR VIEHWEG, em 1953. Em suas palavras: a tópica seria “uma técnica de investigação de premissas, uma teoria da natureza de tais premissas bem como de seu emprego na fundamentação do Direito e, enfim, uma teoria de argumentação jurídica volvida primariamente para o problema, para o caso concreto, para o conceito de ‘compreensão prévia’ (Vorverständnis), único apto a fundamentar um sistema material do direito, em contraste com o sistema formal do dedutivismo lógico, carente de semelhante fundamentação” (BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 454). STF, Rcl no 3.805/SP, rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 18/10/2006. Aliás, até o próprio STJ tem decisões nesse sentido, nunca clara afronta à decisão do STF. Entre outros: STJ, AGA 521.467, rel. Min. Paulo Medina, j. 18/11/2003. STF, Rcl. 4.374/PE, rel. Min. Gilmar Mendes, 1o/2/2007. Por exemplo: STF, Rcl-Agr 1132/RS, rel. Min. Celso de Mello, j. 23/3/2000. Eis a ementa: “não se justifica a concessão de medida liminar, em sede de reclamação, se a decisão de que se reclama – embora não observando a eficácia vinculante que resultou do julgamento de ação declaratória de constitucionalidade (CF, art. 102, § 2o) – ajustar-se, com integral fidelidade, à jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal no exame da questão de fundo (autoaplicabilidade do art. 40, § 5o, da Constituição,na redação anterior à promulgação da EC no 20/98, no caso). – A eventual outorga da medida liminar comprometeria a efetividade do processo, por frustrar, injustamente, o exercício, por pessoa quase nonagenária, do direito por ela vindicado, e cuja relevância encontra suporte legitimador na própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.” Disco local Curso de Direitos Fundamentais, 7ª edição