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A MODERNIDADE E A REDEFINIÇÃO 
 
Vimos estudando, até o momento, a educação e a política tendo em vista a 
escola pública; dentro, portanto, de uma perspectiva que pretende privilegiar a 
educação comum. A questão do 
procederemos a um breve estudo sobre a questão.
O que é, e como se constitui o espaço público? Que sentidos a palavra «público» 
adquire, como estes sentidos se modificaram ao longo da história 
particularmente, na modernidade? Estas são talvez as questões fundamentais para o 
estudo e a prática da política. 
definitivamente aqui: e, isto, não pela falta de tempo ou de espaço 
alongando-nos mais, tais respostas poderiam ser fornecidas 
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A MODERNIDADE E A REDEFINIÇÃO 
DO ESPAÇO PÚBLICO
 
imos estudando, até o momento, a educação e a política tendo em vista a 
escola pública; dentro, portanto, de uma perspectiva que pretende privilegiar a 
educação comum. A questão do espaço público é, assim, essencial para nós e, por isto, 
procederemos a um breve estudo sobre a questão. 
O que é, e como se constitui o espaço público? Que sentidos a palavra «público» 
adquire, como estes sentidos se modificaram ao longo da história 
particularmente, na modernidade? Estas são talvez as questões fundamentais para o 
da política. Não podemos ter a pretensão de respondê
definitivamente aqui: e, isto, não pela falta de tempo ou de espaço –
nos mais, tais respostas poderiam ser fornecidas – mas porque, como se 
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1 
texto 3 
A MODERNIDADE E A REDEFINIÇÃO 
DO ESPAÇO PÚBLICO 
Heitor Coelho 
imos estudando, até o momento, a educação e a política tendo em vista a 
escola pública; dentro, portanto, de uma perspectiva que pretende privilegiar a 
é, assim, essencial para nós e, por isto, 
O que é, e como se constitui o espaço público? Que sentidos a palavra «público» 
adquire, como estes sentidos se modificaram ao longo da história – e, mais 
particularmente, na modernidade? Estas são talvez as questões fundamentais para o 
ão podemos ter a pretensão de respondê-las 
– de tal forma que, 
mas porque, como se 
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procurará demonstrar, estas respostas não podem ser formuladas de uma vez por todas, 
por meio de uma elocubração teórica, não podem ser «descobertas», mas resultam da 
própria prática política. Podemos, e temos, porém, a intenção de estudar alguns 
importantes recursos teóricos que, espera-se, ajudarão a refletir sobre o tema e, mais 
importante, a lidar com as questões pertinentes ao espaço público na prática 
educacional. 
 
A primazia da aparência 
Para tratar do espaço público e das relações entre as esferas pública e privada, a 
autora de uma das mais importantes obras de teoria política da modernidade, Hannah 
Arendt, parte de um princípio que poderia, à primeira vista, parecer: 
Para nós, a aparência – aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por 
nós mesmos – constitui a realidade.1 
A aparência constitui a realidade: eis aí uma inesperada mudança do sentido 
comumente atribuído às palavras a que nossa cultura nos acostumou. Desde cedo, 
aprendemos que «as aparências enganam» e que «não se deve julgar um livro pela 
capa»; e nossa própria linguagem nos leva a opor a «mera aparência» à «verdade» – 
como quando queremos, por exemplo, dizer que uma certa pessoa «apenas parece» 
 
1
 Hannah Arendt. A Condição Humana, Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 59. 
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alguma coisa, quando «na verdade» não o é. E, como a filosofia insere-se numa cultura e 
faz uso de sua linguagem, mesmo quando busca questioná-las, não é de espantar que 
algumas vezes ela possa assumir posição semelhante. 
Um dicionário de filosofia apresenta a seguinte definição para o vocábulo 
aparência: «É, de um modo geral, o aspecto que uma coisa oferece, diferente, e até em 
oposição, do seu ser verdadeiro. […] Na maioria dos casos, o vocábulo aparência alude 
ao aspecto ocultador do ser verdadeiro; […]2». Esta maioria de casos engloba quase 
sempre uma tradição 
…pelo menos tão antiga quanto Parmênides, de que tudo o que 
não seja dado aos sentidos – Deus ou o Ser ou os Primeiros 
Princípios e Causas ou as Ideias – é mais real, mais verdadeiro, 
mais significativo do que aquilo que aparece, que está não 
apenas além da percepção sensorial, mas acima do mundo dos 
sentidos.3 
Buscando justamente distanciar-se desta forma de pensar, Arendt defenderá que 
é «a presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos» que nos 
garante a realidade do mundo e de nós mesmos4. Assim, o termo «aparência» é 
empregado por Arendt em um sentido bastante amplo, designando aquilo que a nós 
aparece – aquilo que, para nós, se faz presente. 
Não se trata, é claro, de simplesmente inverter a ordem das coisas, chamando de 
 
2
 José Ferrater Mora. Dicionário de Filosofia, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982, p. 32. O verbete, há que se dizer, 
não se limita a esta acepção, oferecendo outras (inclusive a adotada por Arendt). 
3
 Hannah Arendt. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 10. 
4
 H. Arendt, A Condição Humana, op. cit. p. 60. 
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4 
 
verdadeiro ao que há de mais superficial e, ao que há de mais profundo, de falso; trata-
se, sim, de assinalar que, para nós, uma coisa só existe quando chega à evidência dos 
sentidos, quando, enfim, aparece. 
H. Arendt chama a atenção para o fato de que, longe de ser enganosa, a 
«primazia da aparência é um fato da vida cotidiana do qual nem o cientista nem o 
filósofo podem escapar»5. Entendamos o que esta frase significa: o cientista, tanto 
quanto o filósofo, aprenderam a desconfiar das aparências, a questionar o que se 
apresenta como evidência, como verdade. Mas eles não podem negar a experiência dos 
sentidos, mas devem poder explicá-la. Nós dizemos: «é ver para crer». O cientista e o 
filósofo desconfiam desta afirmação, colocam em dúvida suas primeiras impressões. 
Mas, ainda assim, a ciência, tanto quanto a filosofia, não podem simplesmente ignorar a 
experiência dos sentidos, que é colocada à prova, reconstruída, reformulada, 
redimensionada – mas jamais abandonada. 
A reflexão nasce, assim, da decisão mesma de não se contentar com a realidade 
aparente, mas questionar-se sempre acerca do que ela oculta e que deve ser desvelado, 
daquilos que se constitui em seu fundamento. 
Esse fundamento supostamente responde à mais antiga questão, 
tanto da filosofia quanto da ciência: como pode alguma coisa ou 
 
5
 H. Arendt, A Vida do Espírito, op. cit., p. 21. 
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5 
 
alguém, inclusive eu mesmo, simplesmente aparecer, e o que faz 
com que apareça desta e não de outra forma?6 
Na tradição ocidental, foram muitos os pensadores que acreditaram dever 
recusar o aparente, buscando situar este fundamento, em um princípio extra-humano: 
neste caso, a razão de ser de tudo deveria ser buscada em nosso sentimentoíntimo, ou 
mesmo em nosso próprio pensamento. Porém, observa Arendt, somente a «presença 
de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do 
mundo e de nós mesmos». O que chamamos normalmente de «consciência» – o fato de 
que «estou cônscio de mim mesmo» – significa justamente que, de alguma forma, 
também preciso «aparecer para mim mesmo»7. Por isto, a intimidade que caracteriza 
nossa experiência de nós mesmos, esta subjetividade que afirmamos nos constituir, tudo 
isto de fato se apóia em uma dimensão da realidade que apenas o mundo objetivo das 
coisas e dos outros nos pode fornecer: 
…embora a intimidade de uma vida privada plenamente 
desenvolvida, tal como jamais se conheceu antes do surgimento 
da era moderna e do concomitante declínio da esfera pública, 
sempre intensifique e enriqueça grandemente toda a escala de 
emoções subjetivas e sentimentos privados, esta intensificação 
sempre ocorre às custas da garantia da realidade do mundo e 
dos homens8. 
 
A esfera pública 
 
6 
Id. 
7 
Id., p. 17. 
8 
Id., A Condição Humana, p. 60. 
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6 
 
Para Arendt, o conceito de «público» identifica dois fenômenos intimamente 
correlatos, mas não perfeitamente idênticos. Por um lado, o público refere-se a tudo o 
que 
…pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação 
possível.9 
Dizer que algo é público significa, nesta acepção, afirmar que é caracterizado por 
sua visibilidade, que a ninguém escapa sua existência; que, no contexto da sociedade em 
que se insere, ele desfruta da «maior divulgação possível». 
Não nos enganemos: não é a divulgação que determina o caráter público de algo, 
mas, ao contrário, é este seu caráter que determina sua visibilidade: uma prova 
contundente do caráter público da escola é o fato de que a pouquíssimos em nossa 
sociedade passa despercebida sua existência e sua função. Outra é, sem dúvida, a 
situação de um bem de consumo, que alcança grande evidência por meio de bem-
sucedidas campanhas publicitárias: sua «visibilidade» é artificialmente construída, e 
geralmente direcionada a um «público-alvo»10. 
Mas, pondera Arendt, o termo público designa, muito mais do que coisas, 
objetos e instituições de que se compõem o mundo humano, este próprio mundo 
 
9 
Id., p. 59. 
10
 Nesse sentido, a notoriedade que o marketing comercial produz é o extremo oposto da visibilidade como a estamos 
definindo: o público implica na apropriação de todos, e assim a visibilidade é decorrência de uma acessibilidade real. 
Os meios de propaganda buscam, ao contrário, dar a conhecer bens e produtos que só podem ser objeto de 
apropriação privada. 
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7 
 
…que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe 
dentro dele. Este mundo […] tem a ver com o artefato humano, 
com o produto de mãos humanas, com os negócios realizados 
entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo homem. 
Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de 
coisas interposto entre os que nele habitam em comum, […] pois, 
como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e 
estabelece uma relação entre os homens.11 
É neste espaço, que podemos chamar de «comum», que vivemos todos. O 
mundo humano não existe fora da natureza, nem sem ela, mas distingue-se nitidamente 
do mundo natural, por ser criado pela ação humana. Contrariamente à noção de uma 
sociabilidade natural que sustentaria toda vida social – defendida por muitos autores, 
como John Locke, por exemplo – H. Arendt coloca em relevo o caráter artificial e 
construído da sociedade: 
Nas condições de um mundo comum, a realidade não é 
garantida pela «natureza comum» de todos os homens que o 
constituem, mas sobretudo pelo fato de que, a despeito de 
diferenças de posição e da resultante variedade de perspectivas, 
todos estão sempre interessados no mesmo objeto.12 
Mas isto não significa que o mundo humano seja apenas, ou principalmente, um 
mundo de «coisas» – de objetos materiais produzidos pelo fazer humano, tanto quanto 
de instituições e de bens culturais, de linguagem, de costumes. O «interesse» de que 
nos fala a autora é o comprometimento com a criação e a manutenção de uma realidade 
em torno da qual todos estão juntos, ainda que, cada um segundo seu modo de ser 
 
11 
 Id., p. 62. 
12 
 Id., p. 67. 
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próprio. 
Disto extraem-se duas conclusões importantes. A primeira delas é a de que o 
mundo comum é objeto de investimento por parte de todos e de cada um: e sem este 
comprometimento não há, realmente, uma esfera pública. 
A segunda conclusão é de que, unindo os indivíduos, o mundo comum não não 
pressupõe a homogeneidade mas, ao contrário, o fato de que cada humano é singular. O 
espaço público, afirma Arendt, é o único em que pode emergir a auitêntica pluralidade 
humana: ele é criado e mantido pela diversidade de pontos de vista e ações. Ele não é, 
pois, comum apenas porque, no interior da cultura, «somos todos iguais», e sim porque, 
mesmo compartilhando valores, interesses, hábitos e aspirações comuns, somos todos 
sempre singularmente diferentes – porque «homens, e não o Homem, vivem na terra e 
habitam o mundo»13. E é na esfera ppública que esta diversidade pode emergir e se 
manifestar. 
Neste sentido, pode-se dizer que é apenas na democracia que se constrói, de fato, 
o espaço verdadeiramente público: ali, a unificação imposta pela cultura já não extingue 
as diferenças individuais, e o princípio político (democrático) da igualdade dos cidadãos 
permite, pelo contrário, o aparecimento das singularidades. 
 
A esfera privada 
 
13
 Id., p. 15. 
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No espaço que podemos designar, segundo Arendt, de público, cada um ocupa 
um lugar que lhe é próprio, que não se confunde, nem com a totalidade deste espaço, 
nem com o lugar que ocupa o outro. Mas não há espaço público sem um mundo privado 
– ou, para empregar um termo ao qual já recorremos em capítulos anteriores, a 
identificação do que, em uma sociedade, deve ser objeto de participação de todos – o 
participável – não vem sem a designação daquilo que pode ser atribuído de forma 
exclusiva a um indivíduo ou grupo – o partilhável. 
Nas sociedades ocidentais, a propriedade da terra e a riqueza se apresentam 
como exemplos máximos da apropriação privada, mas o espaço privado não é apenas 
composto de valores materiais. Ele é também o lugar em que se realiza o cuidado com a 
vida e com a sobrevivência, onde se cultivam os laços afetivos e a identidade baseada 
em uma história comum e em valores próprios. É neste sentido que Arendt insiste que o 
espaço privado tem por função proteger os indivíduos, resguardando, para cada um, seu 
lugar próprio no mundo, oferecendo proteção contra a exposição que a esfera pública 
não deixa também de representar: 
…há muitas coisas que não podem suportar a luz implacável e 
crua da constante presença de outros no mundo público; […] É 
claro que isto não significaque as questões privadas sejam 
geralmente irrelevantes; pelo contrário, veremos que existem 
assuntos muito relevantes que só podem sobreviver na esfera 
privada. O amor, por exemplo, em contraposição à amizade, 
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morre ou, antes, extingue-se assim que é trazido a público14. 
Todo indivíduo e, especialmente, as crianças precisam deste âmbito de 
intimidade, à sombra do que pode ser exposto e vir imediatamente ao julgamento e à 
deliberação públicos. E, para seu próprio bem , a sociedade deve traçar a distinção entre 
o que deve ser posto em comum e o que não pode sê-lo, e deve permanecer oculto. 
Esta distinção varia, é claro, de sociedade para sociedade, mas uma vida irrestrita e 
constantemente exposta aos olhares dos outros seria intolerável. Mas, da mesma forma, 
uma vida inteiramente passada em um ambiente privado aparece como inumana: 
Para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, 
acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida 
verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém 
do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação 
«objetiva» com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se 
deles mediante um mundo comum de coisas, e privado da 
possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria 
vida.15 
Não há, assim, e apesar do que se pôde imaginar, mundo constituído apenas de 
espaço público, tanto quanto um mundo inteiramente privado perde suas características 
humanas mais essenciais. Para explicitar melhor esta relação entre público e privado, 
Arendt recorre ao estudo da antiguidade clássica grega e romana: 
O pleno desenvolvimento da vida no lar e na família como 
espaço interior e privado deve-se ao extraordinário senso 
político do povo romano que[…] compreendeu que estas duas 
 
14
 Id., p. 61. 
15 
 Id., p. 68. 
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esferas [pública e privada] somente podiam subsistir sob a forma 
de coexistência.16 
A autora demonstra, portanto, não apenas a interdependência entre esfera 
pública e privada, mas a importância crucial da existência de ambas as esferas para a 
vida humana. 
 
Ascensão do social 
Este tênue equilíbrio entre as esferas pública e privada, que existiu na 
Antiguidade clássica, começou a desaparecer com seu declínio, e foi definitivamente 
abalado com o advento da modernidade, e pelo que Arendt denomina de «ascensão do 
social». Como veremos a seguir, para a autora, longe de servir como designação genérica 
para as comunidades humanas, o termo «social» aplica-se somente àquelas sociedades 
em que a preocupação com as funções de reprodução e sobrevivência, antes reservadas 
ao espaço privado, se expandiu a tal ponto que engoliu todo o campo de atividade 
humana. A emergência da esfera social implica na dissolução da antiga distinção entre as 
esferas pública e privada e, assim sendo, em sua extinção17 das esferas, e transformando 
toda ação em mero comportamento. Esta emergência 
…coincidiu historicamente com a transformação da preocupação 
individual com a propriedade privada em preocupação pública. 
Logo que passou à esfera pública, a sociedade assumiu o disfarce 
de uma organização de proprietários que, ao invés de se 
 
16 
 Id., p. 68 e 69. 
17
 Id., p. 50-51. 
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arrogarem acesso à esfera pública em virtude de sua riqueza, 
exigiram dela proteção para o acúmulo de mais riqueza18. 
Diferentemente do que propõe a autora, nossa época não só não vê qualquer 
problema em se almejar sempre mais riqueza, como considera esta pretensão bastante 
justa, identificando sua realização como uma virtude. Em nossos dias, não se mostrar 
capaz de «empreendedorismo», não ambicionar riquezas materiais passou a ser 
considerado um equívoco e, mesmo, uma falha. Mais uma vez, Hannah Arendt recorre à 
Antigüidade para nos mostrar que nem sempre foi assim: para os antigos, a participação 
na política, isto é, o ingresso na esfera pública, era o mais importante – muito mais que o 
acúmulo de riquezas – pois «ser político significava atingir a mais alta possibilidade da 
existência humana»19. Mas a riqueza era importante, na medida em que fornecia as 
condições para o exercício da vida política: ela garantia ao indivíduo a possibilidade de 
prover seu próprio sustento, sem ter de se submeter a outrem, tanto quanto o tempo 
livre necessário para ocupar-se das questões públicas. A riqueza existia em função da 
política, e não o contrário: 
Caso o dono de uma propriedade preferisse ampliá-la ao invés 
de utilizá-la para viver uma vida política, era como se ele 
espontaneamente sacrificasse a sua liberdade e voluntariamente 
se tornasse aquilo que o escravo era contra a vontade, ou seja, 
um servo da necessidade.20 
 
18
 Id., p. 78. 
19
 Id., p. 74. 
20
 Id., p. 74-75. 
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Mas por que a política era tão importante para os antigos, a ponto de ofuscar a 
riqueza? A partir do que acabamos de ver, poderíamos facilmente responder que 
nenhuma riqueza seria capaz de oferecer o que a esfera pública oferece, isto é, a 
companhia de outros, a garantia da realidade; mas, além disto, a política era, segundo 
Arendt, a possibilidade de se ir além dos frágeis limites da existência humana, a única 
forma de permanência oferecida ao humano, em uma existência marcada pela 
provisoriedade. Por isto mesmo, a atividade de construção do mundo comum, a política, 
não pode ser realizada tendo em vista apenas uma geração, ser planejada para aqueles 
que estão vivos, mas «deve transcender a duração da vida de homens mortais»21. 
Adentrar o mundo por meio da participação na esfera pública significava, pois, 
transcender sua existência individual, tornar-se parte de algo maior que si mesmo e 
deixar um legado para as gerações futuras. A acumulação de riquezas jamais poderia 
alcançar esta dignidade, ser «comum» no sentido que atribuímos ao mundo. O mundo 
humano perdeu sua durabilidade, quando a riqueza se tornou a única preocupação de 
todos na sociedade. 
Sem a perspectiva da durabilidade do mundo, toda ação que pretende deixar 
atrás de si um legado passa a parecer fútil e mesquinha, e a própria participação no 
mundo comum perde o sentido: se o que fazemos aqui e agora não terá nenhum 
resultado minimamente permanente, então para quê fazê-lo? A partir daí são possíveis 
 
21
 Id., 64. 
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atitudes bastante diversas – que vão desde a abstinência cristã ao consumismo 
desenfreado das sociedades de mercado; mas todas estas opções têm em comum a 
rejeição à esfera pública e ao mundo comum. Mas, como acabamos de ver, as esferas 
pública e privada dependem uma da outra para existir; sem um mundo comum, 
tampouco pode a política, em sua acepção original e mais autêntica. Ambas as esferas, 
«a esfera pública porque se tornou funçãoda esfera privada, e a esfera privada porque 
se tornou a única preocupação comum que sobreviveu», se dissolvem numa nova esfera, 
a «esfera social» 22 – invenção da modernidade que engloba todos seus membros sem 
realmente oferecer nada que os una, e que os trata como «indivíduos» sem contudo 
respeitar sua individualidade. 
Mas estamos, desde a Modernidade, acostumados a viver numa sociedade 
erguida em torno da esfera social, que tem por valor e preocupação máximos a 
produtividade e o lucro. Sob esta influência, a educação passa a estar inteiramente 
voltada para a formação de mão-de-obra, e toda arte é transformada em uma espécie 
de mercadoria. 
As conseqüências deste estado de coisas são a solidão coletiva em que nos 
mergulha a sociedade de massas e a rejeição da política, que parece perder todo o 
sentido. E, de fato, nada nos une, senão o amor pelo consumo e pelo gozo; mas a fruição 
e o gozo são sempre passageiros e não substituem o sentido mais amplo que somente a 
 
22
 Id., p. 79. 
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construção comum pode oferecer para a existência humana.

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