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i ,I i j) ~ fi I r "'1\·1 "~ POLÍTIÇA CULTURAL, CpLTURA POLITICA E PATRIMONIO HISTÓRICO Marilena Chauí(*) Em 1989,numamadrugadasilenciosa,a Avenida Paulista foi sacudida por um ruído que quebrouvidraças,tremeua terrae assustouos cidadãos. Membros da família Matarazzo haviam tentado implodir a mansãopara poder negociaro terrenomais valioso da cidadede São Paulo. O ato foi realizadoporque, desde 1987,havia entradono Condephaatum pedidode tombamentoda casae da áreaverde.Temendoo tombamentoe os prejuízos que traria para a especulaçãoimobiliária, tentou-sederrubar a casa. A alegaçãoeraa de quese tratavade umapropriedadeprivadae, portanto,sob a soberaniainquestionáveldosproprietários.Houve, porém,umesquecimen- to: tratando-sede umaintervençãoqueenvolveascercaniase afetaa viqada região, implodir ou demolir exige autorizaçãopor partedo poder público municipal. A autorizaçãonão foi pedida- afinal, o Estadonão é o braço legal e o braço armadoda classedominante?Não estáaí para servi-Ia?A ausênciade autorizaçãolevouo poderpúblico municipala interditara área paraverificaçãodos danose puniçãodos responsáveis.Todavia, aindasoba interdição, alguns membrosda família tentaramnovamentea implosãoe entraramem conflito abertocom o novOgovernomunicipal.Este, represen- tanteda autoridadepública, decidiu iniciar dois processos:um de tomba- mentoda casa e outro de desapropriaçãodo imóvel. A reaçãopelosmeiosde comunicaçãode massanãose fez esperar.Para alguns, tratava-seda escaladacomunistacontraa propriedadeprivadae o primeiro degrauna subidado Paláciode Inverno. Para outros, tratava-seda arbitrariedadeda esquerdaradical, sempreprontaa desrespeitara proprie- dadeprivadae a tomaratitudesinfantise arbitrárias.Outros, enfim, alega- 'rama faltade "valor histórico" do imóvelquetornariainjustificadoo pedido d.etombamento.Estou relatandoesse episódio, do qual retirarei algumas conseqüênciasparaa políticacultural,paraobservar,porenquanto,umoutro aspecto:a celeumada mídia em torno da mansãoMatarazzo; a seguir, a celeuma da mídia em torno do tombamentoda mancha do Bexiga e, posteriormente,a celeumada mídiaem tornodo tombamentoda manchado Vale do Anhangabaúfariamsuporumgrandeinteressedosmeiosdecomuni- caçãoa--respeitodas questõesdo patrimôniohistóricoe faria suporque, ao ser realizado um congresso internacionalsobre o assunto,os meios de comunicaçãose fizessempresentes,colocassemasquestõesparaos cidadãos, e polemizassemcom os especialistasaqui reunidos.Em vez disso, os meios de comunicaçãoestãosilenciosos,discretíssimos,fazempequenasmenções às personalidadesestrangeirasaqui presentes,mas não participaramdo (*) FiILÍsol'a. Secretária Municipal de Cultura de São Paulo. 37 l!! tI;1 \1=;, ili 11': i"~ iI L j :~ debatepúblico quejuntos estamos realizando.O silêncio e a discrição não sãocasuais,masexprimemo confrontoentreduaspolíticasculturaise entre duasculturaspolíticas. Vejamosqual a diferençaemjogo. Trata-se,funda- mentalmente,da recusaem discutir as relaçõesentreo público e o privado nas questõesde memória e de patrimônio. Creio que a leitura do texto produzido pelo Departamentodo Patrimônio Histórico de São Paulo é esclarecedora: " ... O Brasil possui, em nível constitucional,legislaçãoesp..ecíficade proteçãoa bensculturaisdesde1937.Com o passardo tempo,à existência dos órgãos federaisde patrimôniohistórico foram-sesomandoinstituições estaduaisde preservação- sobretudonadécadade 70, e o aparecimentodos conselhosmunicipaisao longodosanos80 - comoé o casodo CONPRESP da cidadede São Paulo. Assim, legal e institucionalmentehá o reconheci- mentoda necessidadede prote~ãodos bensculturaisem diversasmodalida- des. Mas a aplicação desta legislaçãoe a ação dos órgãos públicos de preservação implicam resultadosdiversos e suscitam reações diferentes quandoaplicadasa bensmóveise imóveis.As razõesparaestadisparidade não sãodifíceis de compreender:aplicadasa bens móveiscomo objetosde arte, coleçõesde documentosprivados,fotografias,mobiliário, e assimpor diante, a legislação de proteção ao patrimônio histórico contribui para valorizá-losao máximoperanteas leis de mercado,por significar na prática uma espéciede certificado de autenticidadee valor cultural - que, nas sociedadescapitalistas,significa igualmentevalor financeiro no restrito e sofisticadonegóciodas" antiguidades";masquandoaplicadaaos bensimó- veis de significação histórica e cultural, esta mesmalegislaçãotem sido ententidae duramentecombatidaentrenóscomo um verdadeiroatentadoaos direitos de propriedade,porque significaria na pnítica a desvalorizaçãode bens particulares,na maioria das vezes com alto valor monetéírio. Esta disparidadecaracteriza a permanentetentativade controle das classesdominantessobreos critériose as práticasdeipreservaçãonestepaís, que se materializapor um lado pelo cultivo do consumosofisticadoe, por outro, naapostaquantoà permanênciadojogo da especulaçãoimobiliáriae o lucro desenfreadocomo último critério no uso do solo urbano.Se em uma grandemetrópolecomo São Paulo a preservaçãodo patrimônioambiental urbanoimóvel encontratantosobstáculos,desencadeiatantadiscussãoe dá origem a tantosprot~stosde proprietáriose incorporadoresindignados,é justamentepor ser c/insideradaantagônicaaos conceitose políticasditadas pelos grandesespeculadorese empreiteiras,que transformama cidade de acordo com suas diretrizes privadas - e, pelo menos até aqui, com a anuênciaexplícitaou implícitados poderesconstituídos.Não é outraa razão pela qual, na prática,persistea recusaem incorporara preocupaçãocom o patrimôniohistóricoe suapreservaçãoà idéiade planejamentourbano.Este é o principalproblemaa serenfrentadosequeremostornara açãodosórgãos do patrimônio histórico em algo efetivo e capaz de contribuir para a transformaçãodo presente... f/ • Nossa mesa-redondaindagasobre as relaçõesentre política cultural e preservaçãodo patrimônio histórico, e pede aos responsáveispelo setor cultural nos poderespúblicos que explicitemsuas políticas. Assim sendo, 38 tomareiaqui duas dimensõesdo que nos é solicitado:expor brevementeas linhas gerais da política cultural para o município de São Paulo e expor brevementeas ações que o Departamentodo Patrimônio Histórico vem realizandopara concretizaressa política cultural. A Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo estabeleceucomo diretriz políticaa idéiae a práticada CidadaniaCultural quedefinea cultura como direito do cidadãoe determinaessedireito sob três aspectos:como direitode acessoà informaçãoe de fruiçãoda criaçãocultural; como direito de produçãodasobrasculturais;e como direitode participaçãonasdecisões de política cultural. A culturaé por nósentendidasob um duplo registro:no sentidoantropológicoamplo de invençãocoletiva e temporalde práticas, valores, símbolos e idéias que marcama rupturado humanoem face das coisasnaturaiscom a instituiçaoda linguagem,do trabalho,da consciência damortee do tempo,do desejocomodiversoda necessidade,do podercomo diversoda força e da violência, do pensamentocomo diferenciaçãoentreo necessárioe o possível, o contraditórioe o idêntico,o justo e o injusto, o verdadeiroe o falso, o beloe o feio, b bome o mau,a determinaçãoéticada existênciapela liberdadee pelaculpa, à determinaçãopolítica da existência pelotrabalhorealizadosobreasdiferençase conflitossociais.Nesteprimeiro sentidoa culturaé um dadoou um fatoe somostodosseresculturais. Num segundoregistroou numsegundosentido,tomamosa culturacomo trabalho _ entendendopor trabalhoo movimentopelo qual os seres humanossão capazesde uma relaçãocom o ausentee o possível,sãocapazesde negaras condiçõesimediatasde suaexperiênciae sãocapazesde criar o novo como plenamentehumano.Tomamoso trabalhocultural como criação das obras culturais, pela capacidadehumanade ultrapassaros dados imediatosda experiênciae dotá-Ia de um sentido novo trazido pela reflexão e pela escritalleitura- trata-sedasobrasde pensamento-ou trazidopelasensibi- lidade, pela imaginação, pela inteligênciae pela invenção de formas e conteúdos- trata-sedasobrasde arte.Nestesegundosentido,a culturanão é um dado, mas uma valor e uma avaliaçãoque os humanosfazem de seu próprio mundo. Ao definirmos a política cultural como CidadaniaCultural e a cultura como direito, estamosoperandocom os dois sentidosda cultura: como um fato ao qual temos direito como agentesou sujeitoshistóricos; como um valor ao qual todos têmdireito numasociedadede classesque exclui uma parte de seus cidadãos do direito à criação e à fruição das obras de pensamentoe das obras de arte. Nossa política cultural tem-sepropostoa enfrentaro desafiode admitirquea culturaé simultaneamenteum fato e um valor, a enfrentaro paradoxono quala culturaé o modode serdos humanos e, noentanto,precisaser tomadacomoumdireitodaqueleshumanosquenão podemexercerplenamenteo seuser cultural- no caso,a classetrabalhado- ra. A decisão de enfrentaresse paradoxo(que não existe para as classes dominantesporqueparaelas ser culturale ter direito às obrasculturaissão umasó e mesmacoisa), estáconsignadano cartaze no títulodesteCongres- so: a tomografiado cérebro mostraque a memóriaé um fato biológico, anatômico,fisiológico, quetodossomosmemoriosose memorialistas,maso título do congresso lembra que a memória, numa sociedadeque exclui, 39 dominn, oprime, oculta os conf1itos e as diferenças sob ideologias da identidade,é um valor, lIm direito a conquistar. Procuramos, assim, COma propostada Cidad,lIlia Cultural tornar inseparáveispolftica cultural e culturapolítica que buscam a democratizaç<1odos direitos, Se tomarmosos cinco temaspropostospara este Congresso, notaremos que cada um deles e todos exprimem esse laço entre política cultural e Culturapolítica c que todos eles e cada um deles procura as formas pelas quaisa memóriae o patrimônios<1otrabalhadose concebidosparagarantira cidadaniacultural - o direito li memória e a memória como trubalho de criaçãodas abrils histórbls no pensamentoe nilSartes, na vida urbanae nos textos,nosobjetose n<lsrelaçõessociais. No temaciosdiferentessuportesda memória,o DPH nlio temsimplesmenteprocurado" modernizar-se", isto é, t~lzercom que novos instrumentostecnológicos venham supoltar velhas idéiasde patrimônioe memória,masvemdiscutir tantoas noçÔesde antigoe moderno (e a ideologia neoliberal da modernidadeculturnl def1nidupela indústriacultural e, portanto, pelas tecnologiasde ponta como suportesdo antigo travestidode novo), qUantoas hierarquiasque estabeleciaminferiori- dadee superioridadede determinadosSUportes.que conferiam cl'edibilidade e desconfiançaa Outros,dignidadee irrelevllnciaa outros. Numn palavnl, o Pl'imeirotemaindica umapráticaCI'íticuem facedos objetose espaçospostos Comomemoráveisnumahierarquiatácitade exercício du dominaçliosocial e políticu. Truta-se, fundall1cntulmente,do questionamentoda aparênciade unidadee de idenridudeda memória. No temasobre memória, preservaçãoe tradiçõespopulares, o Departumenrodo Patrimônio Histórico vem questio- nandoa divisão competentedo trabalhoque coloca, de um ludo, os especia- listas,qualificadospuradecidir o queé e o que nãoé memorável,o queé e o que mioé preservlível,o restantedos cidadãossendotidosC0l110incompeten_ tes, Tem buscadou ll1ultiplicidade,a p/uralidadee a divel'sidadedas mem6- rias e tnldiçõese tembuscadodesenvolvernas CasasHistóricus e 11I1Svárias regiõesda cidade o trabnlhoda história oral dos movimentosSOCillis,dos movimentospopularese dos movimentosopenírios, para quebrar a imagem ideológicade lIm passadounívoco e de Um presenteidêntico, eSforç,llldo_se para não ser produtor e guardi,io oficial dos ucervosda tradição popular e trubalhadora,mas de oferecer serviços e técnicospara que os movimentossejam sujeitos e autores do trabalho memorialista.. No tema sobre o direito ao passado, a prática do Departamentodo Patrimônio Histórico tem-sepautadopela visão crítica do "antigo" enquanto chave ideológica de invenção da identidadee legitimação das exclusões. Aqui, a entregada Casa do Sertanistaà União das Nações Indígenas,para a criaçãoe autogestãodo Núcleo de Cultura Indígenae da primeira Embaixada dos Povos da Floresta no Brasil, exprimea orientaçãode umaculturapolítica contrária à identidadedo passado e à idéia do "antigo" como resíduo, folclore e morto. No tema sobre o público e o privado, propriedade e interessecultural, o Departamentodo PatrimônioHistórico temdesenvolvido uma reflexão sobre a cidade enquanto parte de um movimento histórico complexo e diferenciado, que não pode ser compreendidosem a política e sem a materialidadeespacial das lutas pela apropriação,da cidade nos conflitos entre a intervençãopredatória e o preservacionismoirrestrito e 1-\0 quaseirracional. Aqui, tantoa atuaçãodo CONPRESP quantoas propostas paraum.tnova legislaçãono campoda preservaçãotêmmarcadoumaprática pública que opera no fio da navalhacom os conflitos entre interessese direitos. Finalmente,no temasobrepolíticasculturaise patrimôniohistÓrico, o Depm'tamentodo Patrimônio Histórico vem discutindoe questionandoas propostase pníticas dos ót'gàos federais e estaduaisde preservaçãodo patrimôniohistórico, na medidaemqueoperumcom as noçõesde identidade nacionale regional, com a consagruçàodo consagradopelo Estadoe pelos símbolosdo poder constituído,semque os cidadãosse reconheçamnaquela identidmlee nestessímboloscelebrativos.Critica aindaa política tradicional dos órgãos federaise estaduaisquandobuscampreservarretiran~l,oas obras,os documentos,os monumentosdo contextohist9rico, social eJpolítico que lhesdií sentido, fazendo-osabsolutosabstmtos.E o caníteroficial e institu- cional celebrutivoda preservaçãoo que o DPH vem contestandoem suas práticas, contestandosobretudoque a questãoda preservaçãoseja apenas uma questàotécnica e operacional. Se considerarmosas pniticase as idéiasdo DPH, seconsiderarmostudo quantofoi dito e discutido nesteCongresso,se considerarmosa situaçãoda memóriae do patrimôniono plano fedeml, nào temosporquenos surpreen- der com o silêncio dos meios de comunicaçãode massa:os congressistas estilo questionandoo instituído e as instituições, as idéias e as pníticas estabelecidas,as legislações vigentes, a altermlnciaentre u valorizaç<1o indiscriminadado antigoe a açãopredatóriado moderno,o modode relação dos serviços públicos de preservaçãoe o espilço privado, isto é, estão tocilndoem tabusperigosos,estãopolitizandoantiguidadee 1110dernidlldee é melhor não divulgar o que estãodizendo e propondo. É dessaquebmdos tabusqueeu gostariade lhes falM, retirandominha comunicaçãodo âmbitomunicipale propondouma ret1exãosemt~lisfrontei- . nls. Não pudeucompanharos tmbalhosda quartae da quinta-feirase por isso o que eu vou Ihes dizer se refereao que ollvi nos dois primeirosdias deste congresso'.O que maisme impressionounas inter\(ençõesdosdois primeiros dias - tlllltonasmesas-redondascomo nosworkshopse nascomunicações- foi a comgemdos expositorespara lidar c'omos limitese us transformações de SlIaSáreasde trabalho:Rébériouxmostrouos limitesde umahistoriogra- fia baseadaupenas na memória militant6 e a necessidadede uma outra historiografiaque resgatea memóriaoperáriamaisamplae complexado que a militante;Lombardi e Mariani mostraramnãos6 os limitesda preservação e modernizaçãoditas científicas que tomam a arquiteturacomo prática auto-suficienteque intervémsobreascidadessemconsiderar-lhesas histórias e mostraram trabalhos nos quais a intervençãose faz a partir de uma concepçãomultidisciplinare política; Kerriou mostrouos limitesdasconcep- çõesdo museucomo consagraçodo consagrado,enquantoexterioridadeface às comunidadesonde o museué implantadoe apontoua necessidadede inventar um outro museu, vivo e definido pela participaçãoda pr6pria comunidadeque determinao que é e o que não é memorávele preservável; BilI Schwarz apontouos limitese os riscosda históriaoral praticadanosanos 60e 70e a necessidadederepensá-Iae refazê-Iaa partir de tensõesinternas (epistemoI6gicas)e externas(políticas), idéia que, em modosdiferentesfoi /) LI I I o que é modernidade? acrescentar-sea idéia de uma redençãouniversalque retiraráo homemda corrosão do tempo e lhe dará eternidade,isto é, com o cristianismo, a memórianão poderámaisser apenasa da cidade- e dasgrandesmutações que a atingem,isto é, as guerras- mas tambéma dos indivíduos,porque serãoelesjulgados no fim dos tempos.Ao ladoda históriadascidadese dos impérios, nasce a crônica como tradição dos indivíduos e dos grupos. A historiografiamodernaprocurou conciliar a históriaantigaexemplar - dos,estados- e a crônica medievaldos indivíduos, produzindouma históriacívica ondeos feitosdosgrandeshomense dascidadesseequiparas- sem.E quandoa figurado indivíduotornou-secentral,nãofoi por acasoque a históriahegelianaafirmasseque o movimentoda memóriaeracoletivoou do Espírito e que o indivíduoera apenaso suporteempíricodo trabalhodo Absoluto, e quecadaépocaprecisavater a memóriade todasas outraspara superá-Iae realizara tarefado presente.Quando,portanto,Marx disserque existeapenasumaciência,a ciênciada históriae queseuobjetoé o presente, o que ele afirma é que o presentesó é inteligível à luz do passadoque suprimiu, maso presentesó se transformaverdadeiramentese compreender o passadopara não repeti-Io. A memÓria,seja como história da sociedadeseja como crônica das classessociais e de seus homens ilustres, tem o papel de nos liberar elo passadocomo fantasma,como fardo, como assombraçãoe como repetição. Foi a lição do 18Brumário. Uma compreensãopolíticada memóriaé atenta à diferençatemporalentreo passadoe o presente,é atentaà diferençaelas memÓriassociaisquecons'tituemo presente,é atentail necessidadede liberar a memóriae de explicitá-Iaparaqueo presentese compreendaa si mesmoe possa construir/inventaro futuro. Uma política cultural que idolatre a memória enquantomemória ou que oculte as memóriassob uma única memóriaoficial está irremediavelmentecomprometidacom as formas pre- sentesdadominação,herdadasde umpassaeloignorado.Fadadaà repetiçãoe impedidaele inovaçãotal política cultural é cúmplice do stafu quo. o que é a memória? retomadapor Hall, Olgária Mattos, Paoli, Bosi; Bernardetnos mostrouos limitese problemasde umahistóriado cinemabrasileiroqueocultao caráter industrial, comercial e público do cinema e a necessidadede um novo discursohistoriográficoquedê contado presentereinventandoa memóriado passado;Garcia apontouos riscos de uma históriado movimentooperário feita à luz da experiênciade um partido político e, portanto,substituindoa classe pela vanguardamilitante. Seminários e comunicaçõesdiscutiram o papel das instituiçõespúblicas no tratamentodado à documentação,aos monumentos,ao espaço urbano, à qualidade ambientaI e à diversidade históricae social, à precariedadede recursosfinanceirose humanos,à falta de uma legislaçãoque auxilie na tarefade preservaçãocomo algo que seja umbemparatodaa sociedade,à faltadeclarezanasrelaçõesentreo passado e o desejo imoderadoda modernidadea qualquercusto. Essas reflexõese discussõesapontampara três ordensgerais de questõesque valem a pena explicitar: J, O que é a memória? 2, O que é a modernidade? 3, Qual o papel do Estado no que toca à memóriae à preservação? I f Na Arte Poética, Aristótelesafirma que a poesiaé superior à história porquese refereao universale ao possível,enquantoa históriase refereao particulare ao fato acontecido.Séculos depois, Cícero diria exatamenteo contrário e f~ll'iada história a Mestra da Vida, dando a ela a tarefa de produzirexemplos,modelose paradigmasde excelênciaparaseremimitados no presente,imitaçãoque Aristótelesatribuíraà poesia, isto é, à literatura. Emboraopostas,essasduasposiçõespossuemum pressupostocomum, qual ~eja,a naturezap~culiarda memória.Mnemosynee Memória é a deusaque ]mpede_q esqueCimento,está do lado da luz, da vidência inspirada, da ante~l~aode:futuropelacompreensãoprofundado sentidodo passado.Clio e HlstorIa estaodo lado de Mnemosynee da Memória como deusasque não esqueceme quepermitema vingançados crimesdo passadopor um presente que redime, . '" , . ES'S'll'de'I'aeiaexel11I, "d' d d "d" h" d Podena parecer,pelo que fOI dito ha pouco, que terIamosde nos livrar , , e p ali a e o passao e o que Interessaao Istona or I , .. ' ,. ',', '" " , ' , , '~ , I antl'ao' p'll'aHel'o'dotona' 'li' a a ' t' , f' I Iapldamenteda memo]Ia paia Cdll na modernldade,EqUlvOLOque o atud, b' " ,Ire buenaenleosgregoseospersas, se az , '" ' " '." '" " ,,- '/,' 'd' seoullej()o p'lr'ldl'0111'1d'l I'odad'l Fo 't " d I gO\elno da lepubllcd, centlos de pesqUIsae docunll~ntaçao,UI1l\elsldd es e• b' ," b " ,I unaque nos enSInaque o vence or ee ' . ' __ " " , , hOJepoderaser o vencidode amanhãe por isso 'lmbosdeve ' t' t'd os meios de comuI1lcaçaonao ceSSdmde allmental, J •• , • m ser ra a os 'd 'd ' , com jystiç,~;para Tucídides, narrar a guerra do Peloponesodesde seus Se pudéssemosresumirem p~)~lcaspalavrasa mo ernlda·e~-,IStOe, um prIme'!'osSinaiS(IStOé, desdea formaçãodo império ateniensee desdea pensamentoe u.mcon~untode,praticasquese ~esenvolvem.naEUIopacom o I JrI:upç,;od,l pesteem Aten_as)é oferecerao presenteum remédiopara seus adv,ento.docap't~!~sI.no~ .dJrl~II~lOS,semre~p~l~arcronologias,quea moder- I' I~ldlesa luz da compreensaode suascausasou de sua ongem. Para Xeno- nldadese constlol a paItlr das seguIntesIdetas,i fontecomoparaos romanos,a questãoda origemé decisiva:os homenssão - desdivinizaçãoda realidadeou desencantamentodo mundo, isto é, a I'..1.:,· m?rtais, masse imortaljz~mpelos seusfeitos e os feitosdos antepassados, realidadeé regida por princípios racionais que podem ser intei:amente. ' cnar:,doa ongem da SOCiedadedão a ela a imortalidade. conhecidospor nós, nela estandoausentesas forças que caractenzamas 1, ' E, pois, a consciênciaagudada diferença dos tempos, do papel da explicaçõesreligiosase mágicas, a superstição; li fortuna(contingê~ciae .adv~rsidade),da morte individuale da preservação - instrumentalizaçãodo real, isto é, a realidade, porque pode ser f. ~:"~,.q"c g"" o h,,,,,,,,doc""~:o.Q"aodoa e", co",,;éoc;,v;,,· I ;0";""'''''''coohec;darola,"z'opo:: ,"mhém,e, ;o[o;"m"",dom;","ac controladapela razão e, mais do que isto, pode ser refeita, reinventadae inteiramentetransformadapelos instrumentosracionais, istoé, pela tecnolo- gia; - valorizaçãoda consciênciaou da razãocomo forma de definição da humanidadedos homense com tal valorização,elaboraçãoda idéia liberaldo indivíduo livre e igual peranteas leis; subjetividade; - percepçãode que não hé\comunidade,massociedadee, posteriormen- te, compreensãode que a sociedadeéconstituídapeladivisão origímíria das classes sociais e seus antagonismos; - separaçàoentre naturezae cultura; separaçãoentre o público e o privado; separaçãoentre sujeito e objeto; ênfasenos aspectosjurídicos da política; idéia de desenvolvimentoe de progresso; - surgilllentodo Estadocomo instânciada dominaçãoimpessoale legal, operadopelos representantesdos cidadãose pela burocraciados servidores públicos:o Estadocomo dotadodo monopóliodo usoda forçae da violência institucional, portanto, comandantedo apé\ratopolicial e militar; - surgimento, em política, das idéias de direitos dos cidadãos, de representação,de república democnítica; - manutençãodo princípio da igualdadeformal que abriga as desiguul- dadesmateriais(mulheres,crianças, velhos, trabalhadores,etnias,sexualida- de). Esses traços, evidentemente,não esgotam a Illodel'llidade, mas são relevantesna medida em que o que chmm1l110shoje de pós-modernismo indicaria a desapariçãode todos esses traços, pmticularmentea distinção entreo públicoe o privado, a separaçãoentrenatureZ,le cultura,a igualdade formal, e a crença numa razão capaz de alcançar o verdadeiro. Como resultado, uma diferença fundamentalse estabeleceentre modernidadee pós-modernidade,qual seja:a modernidadejamais abandonoua consciência de seuspróprios limitese nãocessoude refazerseuspressupostos(movimen- tos sociais, movimentospopulares,feminismo, revoluções,murxismo,psica- míliseetc. foramelaboraçõesmodel'l1as)tendocomo fundamentoa noçãode razão (sempredevendo ser alargada) e de consciência,c alcançandouma elaboraçãoteóricae prática muito agudadas diferençassociais e históricas. O pós-modernismoabandonatudo isso e operacom as noçõesde desconstru- ção e construl;ão, valorizando o relativismo e a perda do racional e do verdadeiro'como fundamentoe como finalidade. Para a questãoda memóriae do patrimônio, tantoa modernidadequanto a pós-modernidadeem sua versão brasileira são interessantes.No caso da ll10dernidade,o discurso oficial da classedominantesemprea instalounum lugar determinadode onde era proferido o discurso sobre a sociedade,a política e a história, isto é, o Estado - assim, modernídadee memóriae preservaçãodo patrimônio como determinaçãoestatalsobre,o social decor- rem da maneiramesmacomo, no país, a modernidadefoi interpretada,isto é, tendo como sujeito e agentepreferencial ou único o Estado e como instrumentoa tecnologia.Como se vê, não s6 a modernidadeno Brasil não guardaos traçosdo conceitooriginal, como aindaganhaum cunho autoritá- rio predominante.Não por acaso,os governantessemprese afirmammoder- nos e correndo atrásda modernidade,uma vez que o modernoé produzido !:;l't- iI atravésdo Estadoquedecreta,por exemplo,queé modernoo Estadonãoter empresas,nãoter serviçosculturais, queé modernodeixar tudopor contado mercado_ isto é, enquantonos paísesmodernosa dinâmicado mercadose ',impôs,no Brasil ser modernoé o Estadodecretarquea culturapodeser feita pelaRede Globo e pela iniciativa privada (observa-sea diferençaentrea lei de incentivos fiscais à cultura proposta em São Paulo e a proposta por Rouanet). No casoda memÓria,a l110dernidadedefinida a partirdo Estadoproduz 'as políticas de patrimôniohisttSricoque foram objeto de discussãoe crítica nesteCongressoe particularmentea i1usàode que moclemoéo instrumento técnico usado para pre*rvar. Quanto il pós-modernidade,é no Brasil um fenômenoda mídia, de uma certa imprensa "yuppie" e de um tipo de pesquisaque se atola no trivial do cotidiano para fazê-toraiz de desconstl'U- ções e construçõessem nenhumcompromissocom o ideal da verdade.No caso da memÓria,tudo se iguala e tudo perdeo relevo, tomando-seexata- menteo que Merlcau-Pontychamoude esquecimento:a desdiferenciaçàodo p<lssadoe a desdiferenci<lçãodo presente. Qual o papeldo Estadono que tocaà memóriae à preservação? oEstadonãopodecolocar-secomo centrode ondesede\1nee se irradia a mem6riapois, aOfazê-1o,destrÓia dinâmicae a diferenciaçãointernada memóriasociale política: não podeser produtorda memórianemo definidor do que pode e deve ser preservado. O Estado devecompOltar-secomo serviço público aos cidadãos e, paradeixar mais claro o que julgamos ser uma política realizada pelo Estado nesta é\rea,peço licença para citar o programade trabalhodo nosso Departamentodo Patrimônio Histórico que constado Boletim n,o 5: _ Imp~antaçãodo SistemaMunicipal de Arquivos, que pretendereunir todasas unidadesarquivísticasda administraçãomunicipale demaisinstitui- ções similares da cidade para que, sob basescomuns, seja preservadoe organizadoo seu acervo documental- e que constitui um dos projetos prioritúriosdestagestão;reorganizaçãoe réarmnjodos acervosdocumentais nos suportestextual,gnífico e fotográfico, promovendoatividadesde res- tauro oU recuperaçãofísica, produzindo inventáriose outros instrumentos capazesde garantir o acesso público aos seus registros; implantaçãode projetosde históriaoral visandoampliar o universode registrosrelativosà memória e à história da cidade; subsidiar tecnicamenteos movimentos sociais para a organizaçãode sua própria memóriae preservaçãode suas tradiçõese referênciasculturais,em condiçõesde autonomia;organizaçãode acervosmuseol6gicos;retomaras atividadesde registrofotográficosistemá- tico da cidade, alimentandoo acervo neste suporte; dinamizar as casas históricassob guardada SecretariaMunicipal de Cultura, possibilitandoseu uso múltiplo pelapopulação,paraque se tornempólos culturaisefetivos,e nãomerosobjetosde reverênciade umamemóriamítica;ampliaras ativida- des do serviço educativo,voltadasprioritariamenteparaa rede pública de ensino;implementarun:,progr~made publicaçõesqueponhaà disposiçãodo .~ I ~ o/; público especializadoinstrumentosde pesquisae de trabalhodidático, mas que tambémempreendao debate intelectualsobre o passadoda cidade; finalmente,garantiratravésda extroversãodos acervosda municipalidade,o acessoà cultura e à informaçãoa um público pouco familiarizadocom os seus circuitos habituais.. Numaperspectivademocrática,Mnemosynesediz em muitossentidose, particularmente,naqueleque teve nas origens: desvendaro passadopara reconhecera diferençado presentee liberá-Io para inventaro futuro. Numa perspectivasocialista,História se diz em muitos sentidose particúlarmente• naqueleque teve nasorigens: compreendero passadocomo pressupostodo presentequeo presenterepõee repeteenquantoo ignorarcomo seu passado e queultrapassaráquandodessacompreensãonascera práticade emancipa- ção, emqueo futuroé o novo como realizaçãodaspromessasnão realizadas no passadonem no presente.Mnemosynee Clio, interpretadascomo prag- máticas,isto é, como ligadasaos feitos do fazer humanoe à esperançade reparação.Remédio e cura. Texto apresenlado na mesa-redonda" Política cultural c preservação do patrimÔnio no Brasil: um halanço do prcscntc'r. 46 ~ LUGARES DA MEMÓRIA 'OPERÁRIA MadeleineRébérioux(*) Antesde tudo,gostariade expressarminhaalegriapor estaraqui, nãosó porque não conheçoo Brasil mas tambémpelo fato de vocês terem me "'convidado para falar sobre um tema que me émúito caro. Pensei em denominarestacomunicação"A memóriado patrimôniorevolucionário"em vez de "A memóriaoperária". Trata-sede umadeusaantiga,Mnemosyne, velhadeusaque produz memórias.Ela foi associadaà vingançabemantes que, na trilha abertapor Heródoto, Clio viesseao mundo. Ela foi parte integrantede todatransmissãocultural.Seureaparecimyotocomplenaforça, hojeemdia, semdúvidaregistrao fim de umaépoca.E chegadoo tempoda beleza do morto, um morto a quem desejamosdevolver a vida. Mas os problemasdo patrimônioassumiram,na França,umestatutoparticulardesde a Revolução Francesa. Abrindo estacomunicação,gostariade sublinharaquiloque, nestecam- po, constituia excepcionalidadefrancesa:a emergênciaprecocee poderosa da vontadede conservaçãosistemáticados vestígiosdo passado.Inseparável da RevoluçãoFrancesa,ela se traduz,desdeseusprimeirosmeses,por uma rupturaradicalcomo queconstituíaatéentãoo passadonacional,ou melhor, pelapromoçãode novosmodosde existênciadeumapartedessepassado.As razõeseramclaras:tratava-sedaqueledesejode regeneração- só maistarde se falaráde revolução- quearrebatavaos homensde 1789. Não erao caso de destruirtodosos monumentos,isto é, todosos testemunhos,em especial os testemunhosplásticosdo passadofeudalodiado.Pelo contrário,a Repú- blica conclamouno sentidode conservá-Ios e criou paraeles os primeiros museus.Mas era necessárioconfrontá-Iasparacriar o presentee o futuro. Condorcet falava, naquelaépoca, de prepararo momentoem que o homem se libertaria da história. Os próprios artistastinhamde cancelar séculosde baixezase de adulação,consagrando-se,daí em diante,a fazer odiar a tirania. Entretanto,de fato, nãoconvinhafazer tábularasade todoo passado.Impunha-seuma triagem. Com Camélia, a mãe dos Gracos, a antiguidadeclássica fora salva e o pintor David, autor de Brutus e dos Horácio1',era louvadopor ter"graças a seu gênio, precedidoa Revolução,anunciaúoos novos tempos. E esse ato premeditadode eliminaçãoe de promoçãoque, contraa tradição,visou criar um futuro parao patrimônio, recolhendoo quepodiaservir ao mesmotempode ornamento,de troféue de apoioà liberdadee à legalidade. Assim, eis-nosclaramenteperanteumapolíticavoluntaristada lembran- ça. Por quc, desde cntão, .a Revolução não encorajoua destruiçãodos testemunhosda tirania: túmulodo rei naabadiade SaintDenis, tesouroreal, pinturasde gênero consideradaslicenciosaspor legisladoresausteros,até mcsmoaquelasigrejas da província cujos campanáriosforam muitasvezes (",) His(oriadora. UnivCI"sidade de Paris VIII. 47 1
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