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DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE Conselho Editorial EAD Dóris Cristina Gedrat (coordenadora) Mara Lúcia Machado José Édil de Lima Alves Astomiro Romais Andrea Eick Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº .610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. ISBN: 978-85-5639-179-7 APRESENTAÇÃO Este livro tem o objetivo de subsidiar a discussão contemporânea sobre o desenvolvimento e a sustentabilidade. Temas centrais que surgiram no século XX (o primeiro, em meados dos anos 1940 e 1950 e o segun‐ do, por volta de 1970), têm sido considerados dois grandes desafios para o século XXI. Estes ganham novas interpretações, sobretudo, quando conjugados na expressão desenvolvimento sustentável. No entan‐ to, o que vem a ser o desenvolvimento sustentável? Antes de colocar o qualificativo sustentável, talvez devêssemos indagar o que seja o desen‐ volvimento. Os dez capítulos aqui desenvolvidos procuram elucidar de forma objetiva como foi tratado o tema do desenvolvimento até o momento pelas ciências sociais e pela economia, além de demonstrar de que forma a ideia de sustentabilidade abalou a compreensão que tínhamos sobre o assunto. Isso significou repensar o desenvolvimento à luz dos limites que são impostos pelo meio ambiente, mas fundamentalmente também significou recolocar o debate sobre o desenvolvimento refle‐ tindo sobre a sociedade, a cultura, o território, a política e a ética. Embora o tema do desenvolvimento sempre gravite em torno dos processos econômicos, a abordagem perseguida neste livro sustenta que ele não pode ser tomado como uma esfera autônoma da sociedade. Até que uma visão integrada de desenvolvimento seja efetivamente consolidada, pouco conseguiremos avançar para uma postura mais democrática, ambientalmente sustentável e que valoriza a diversidade cultural. Considera‐se que, para uma boa compreensão acerca do estado atual do debate sobre o desenvolvimento, esta necessita de uma visão histó‐ rica que privilegie o curso dos acontecimentos no plano internacional, sem perder a especificidade da situação brasileira. Assim, o livro está organizado de um modo que o leitor possa transitar entre os diferentes contextos, observando que, no período mais recente da história, os 6 processos de globalização passaram a exercer efeitos mais expressivos no modo de condução das iniciativas de desenvolvimento. Mas é preciso estar atento para o fato de que o desenvolvimento é um tema em disputa. As diferentes apropriações do debate marcam as distinções disciplinares e as perspectivas teóricas, de um lado, e as visões de mundo e as percepções sobre quais tipos de mudanças soci‐ ais são relevantes e como estas devem ser realizadas, de outro. Dessa maneira, um dos objetivos primordiais desta obra é oferecer ao leitor uma gama de pontos de vista, experiências e teorias sociais para que o debate seja ampliado e enriquecido. Mais do que proporcionar uma apreensão restrita e limitada sobre um assunto tão complexo, a finali‐ dade do livro é situar o debate e mostrar que a riqueza encontra‐se justamente na amplitude de perspectivas que demarcam o tema. Boa leitura! SOBRE OS AUTORES Guilherme Francisco Waterloo Radomsky Adriana Paola Paredes Peñafiel Guilherme Francisco Waterloo Radomsky é graduado em Ciências Sociais (2003) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul − UFRGS − e mestre em Desenvolvimento Rural (2006) pela mesma uni‐ versidade, com a dissertação intitulada “Redes sociais de reciprocidade e de trabalho: as bases histórico‐sociais do desenvolvimento na Serra Gaúcha.” Em 2006, foi agraciado com o Prêmio SOBER de melhor dissertação de mestrado em Sociologia e Extensão Rural pela Socieda‐ de Brasileira de Economia e Sociologia Rural (SOBER). Atualmente, é doutorando no Programa de Pós‐graduação em Antropologia Social da UFRGS. Tem trabalhado como consultor e ministrante de cursos na área de desenvolvimento territorial e rural e desenvolvido pesquisas sobre diferentes temas, destacando‐se a antropologia da propriedade intelectual, certificação e acreditação na agroecologia e de produtos orgânicos, agricultura familiar e desenvolvimento. Suas principais publicações incluem produções “Reciprocidade, redes sociais e desen‐ volvimento rural” (texto incluído no livro “A diversidade da agricultu‐ ra familiar”, organizado por Sergio Schneider, pela editora da UFRGS), além dos artigos “Tramas da memória e da identidade: as relações de reciprocidade e as especificidades históricas de uma região de coloni‐ zação italiana no sul do Brasil” (na revista “Humanas”, IFCH/UFRGS, n. 28, v. 1 – no prelo) e “Atores sociais, mercados e reciprocidade: con‐ vergências entre a nova sociologia econômica e o ‘paradigma da dádi‐ va’”, em coautoria com Paulo Niederle (na revista “Teoria & Socieda‐ de”, UFMG, n. 15.1, 2007). Nascida no Peru, Adriana Paola Paredes Peñafiel é graduada em Ad‐ ministração de Empresas (2001) pela Universidad del Pacífico, Lima – Peru. É mestre em Desenvolvimento Rural (2006) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS – com a dissertação intitulada “Modos de vida e heterogeneidade das estratégias de produtores fami‐ 8 liares de pêssego da região de Pelotas”. Desde 2006, trabalha como assessora de projetos da Cooperativa de Habitação dos Agricultores Familiares – COOPERHAF –, cuja matriz localizada em Chapecó, SC, atende a 13 estados do Brasil. Entre as funções desenvolvidas pela cooperativa, pode‐se citar as seguintes: a) identificar as demandas dos agricultores familiares, assentados da reforma agrária e de outros grupos sociais da área de abrangência da COOPERHAF; b) planejar e elaborar projetos de acordo com as demandas identificadas e os requi‐ sitos das entidades financiadoras; c) acompanhar as negociações entre os órgãos financiadores e os coordenadores responsáveis pelas negoci‐ ações dos projetos elaborados; d) prestar assessoria aos profissionais vinculados à execução do projeto de modo a orientá‐los da melhor forma possível na execução do mesmo; e) a sistematizar as ações de‐ senvolvidas pelos projetos. SUMÁRIO 1 O QUE É O DESENVOLVIMENTO? ..................................................................... 13 1.1 Definição do conceito de desenvolvimento ................................................... 13 1.2 Desenvolvimento como um processo, não como um estado ........................... 16 1.3 O desenvolvimento e suas raízes sociais, culturais, políticas, econômicas e ambientais ....................................................................................................... 17 1.4 Desenvolvimento e ação .............................................................................. 18 1.5 Desenvolvimento e participação .................................................................. 19 1.6 Desenvolvimento e ética ............................................................................. 20 Atividades ........................................................................................................ 22 2 O PÓS-GUERRA E AS TEORIAS DO DESENVOLVIMENTO .................................... 23 2.1 O contexto do pós-guerra ............................................................................ 23 2.2 O desenvolvimentismo, o paradigma produtivista e a “Revolução Verde” ....... 25 2.3 Teorias do desenvolvimento no pós-guerra ...................................................27 Atividades ........................................................................................................ 35 3 O DEBATE BRASILEIRO SOBRE O DESENVOLVIMENTO NOS ANOS DE 1950 A 1970 ............................................................................................................... 36 3.1 O processo de substituição de importações e a dualidade estrutural do Brasil ....................................................................................................................... 36 3.2 O pensamento de Celso Furtado .................................................................. 38 3.3 Dilemas da modernização: projeto nacional de desenvolvimento versus modelo dependente-associado ..................................................................................... 40 10 3.4 Resultados do modelo de desenvolvimento adotado no Brasil de 1950 a 1970: crescimento econômico sem distribuição de riqueza .......................................... 42 Atividades ........................................................................................................ 45 4 LIMITES DO DESENVOLVIMENTO ..................................................................... 46 4.1 Crises econômicas do capitalismo nos anos 1970 e 1980 ............................ 46 4.2 A modernização conservadora da agricultura ............................................... 48 4.3 A década “perdida” .................................................................................... 51 4.4 Persistência da pobreza e agravamento da concentração de renda .............. 52 Atividades ........................................................................................................ 55 5 A GLOBALIZAÇÃO E OS ESPAÇOS DO DESENVOLVIMENTO ................................ 56 5.1 Globalização e neoliberalismo: o contexto dos anos 1990 e 2000 ................. 56 5.2 A globalização e a implicação de novas funções aos territórios ..................... 60 5.3 Brasil: do desenvolvimento regional ao desenvolvimento territorial ............... 63 Atividades ........................................................................................................ 66 6 O PARADIGMA DAS CAPACITAÇÕES: AMARTYA SEM E O DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE ............................................................................................ 68 6.1 Amartya Sen e a crítica ao paradigma do desenvolvimento medido pela renda ....................................................................................................................... 68 6.2 O desenvolvimento humano no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) .................................................................................. 73 Atividades ........................................................................................................ 80 7 A ATUALIDADE DO DEBATE CONTEMPORÂNEO SOBRE O DESENVOLVIMENTO NO BRASIL ............................................................................................................ 81 7.1 Liberalismo e desenvolvimentismo no Brasil atual ........................................ 81 7.2 Qualificativos do desenvolvimento ............................................................... 89 Atividades ........................................................................................................ 93 8 SUSTENTABILIDADE: ANTECEDENTES HISTÓRICOS .......................................... 95 11 8.1 Ambientalismo e ecologia ........................................................................... 95 8.2 Os alertas globais sobre a sustentabilidade ambiental ................................. 97 8.3 O Relatório Brundtland e a ECO-92 .............................................................. 98 Atividades ...................................................................................................... 104 9 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ............................................................... 105 9.1 O que é desenvolvimento sustentável? ....................................................... 106 9.2 Limites e alcances da sustentabilidade ..................................................... 108 9.3 Indicadores de desenvolvimento sustentável e de sustentabilidade ambiental ..................................................................................................................... 109 Atividades ...................................................................................................... 115 10 DIRETRIZES PARA PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ............ 116 10.1 O que é um projeto social? ...................................................................... 117 10.2 Orientações práticas para elaborar projetos sociais de desenvolvimento sustentável .................................................................................................... 119 Atividades ...................................................................................................... 131 REFERÊNCIAS POR CAPÍTULO ......................................................................... 132 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 135 GABARITO ...................................................................................................... 139 1 O QUE É O DESENVOLVIMENTO? Guilherme Francisco Waterloo Radomsky Este capítulo apresenta a definição do conceito de desenvolvimento tal qual ele tem sido elaborado no pensamento contemporâneo. Portanto, antes de realizar um percurso relativo ao modo como o tema do de‐ senvolvimento foi introduzido nas ciências sociais e como ele foi trans‐ formado em política pelos Estados, optou‐se aqui por introduzir o leitor nas questões mais atuais que dizem respeito ao debate sobre esse tema. Para tal, serão abordadas no capítulo as diversas dimensões do desenvolvimento, tais como a sua natureza processual, as suas raízes sociais, culturais, econômicas, políticas e ambientais, o desenvolvimen‐ to e as conexões com a ação social e a participação (temas essenciais no pensamento sociológico e político) e sua recente discussão em relação à ética. 1.1 Definição do conceito de desenvolvimento O que é o desenvolvimento? Como defini‐lo? Durante muitas décadas, o desenvolvimento foi entendido como sinônimo de crescimento econô‐ mico. Para observar se um país ou uma região eram desenvolvidos, bastava apenas observar se a renda per capita da população ou o Produ‐ to Interno Bruto (PIB) da nação era considerado satisfatório. Sob esse ponto de vista, desenvolvimento era realmente um estado que podia ser medido por meio do progresso material de uma sociedade. José Eli da Veiga, economista e professor da Universidade de São Pau‐ lo, mostra que, até meados do século passado, não se sentia a necessi‐ dade de diferenciar desenvolvimento de crescimento econômico. Em seu livro intitulado Desenvolvimento sustentável, Veiga1 afirma que, de um lado, havia os países chamados de desenvolvidos, que tinham atin‐ gido um grau elevado de industrialização; de outro lado, existiam as nações em que a industrialização era muito incipiente até 1960 e que, portanto, apresentavam um Produto Interno Bruto muito baixo. 14 Entretanto, Veiga mostra que as diversas políticas de industrialização ocorridas desde os anos 1950 nos países semi‐industrializados – tais como o Brasil e diversos outros países da América Latina – acabaram, ao longo do tempo, por não se traduzir em acesso a bens materiais e culturais por parte de suas populações. Essas nações apresentaram crescimento econômico durante anos, porém grande parte da socieda‐ de não tinha acesso a serviços básicos como educação e saúde. Começou a seperceber os limites de se compreender o desenvolvimen‐ to unicamente observando o progresso material e o crescimento eco‐ nômico dos países. Entretanto, para o cientista social Ignacy Sachs, não se pode menosprezar o papel do crescimento econômico, que continua sendo importante. Sachs, que fundou, na França, um Centro de Estudos sobre o Brasil, afirma em seu livro, Desenvolvimento: includente, sustentável, sustentado, que os aspectos econômicos do desenvolvimento são muito relevantes, tais como a possibilidade das pessoas terem um trabalho digno, de possuírem renda para viver com dignidade, bem como de obterem acesso a bens materiais de consumo e habitação. Contudo, Sachs2 mos‐ tra que analisar apenas a dimensão econômica é insuficiente para per‐ cebermos o desenvolvimento. Para ele, é absolutamente necessário que o desenvolvimento inclua as dimensões social e ambiental. Esse autor nos adverte que o crescimento, mesmo que seja acelerado, não é sinô‐ nimo de desenvolvimento se ele não amplia o número de vagas de trabalho, se não reduz a pobreza ou ainda diminui as desigualdades. Na realidade, Sachs3 afirma que o crescimento econômico pode até mesmo alimentar um “mau desenvolvimento”. Isso pode acontecer quando um país possui um nível de crescimento da economia em que só uma parte da população obtém acesso às benesses materiais e cultu‐ rais. Isso seria um “mau desenvolvimento”, pois as desigualdades sociais aumentariam nesse processo, o que poderia gerar outras formas de exclusão social, tais como o desemprego e a pobreza. Por essas razões, Sachs4 nos apresenta uma diretriz muito lúcida sobre como compreender o desenvolvimento. Para ele, o desenvolvimento: (... )” é um processo em que duas vertentes devem ser compatibilizadas: em nível ECONÔMICO, trata‐se de diversificar e complexificar as estruturas produtivas, logrando, ao mesmo tempo, incrementos significativos e contínuos de produtividade de trabalho, base do aumento do bem‐estar; em nível SOCIAL, deve‐ se, ao contrário, promover a homogeneização da sociedade, reduzindo as distâncias abismais que separam as diferentes camadas da população.” 15 Cabe fazermos alguns esclarecimentos quanto à frase de Sachs exposta anteriormente. Primeiro, ela chama a atenção para a dimensão produ‐ tiva, que deve ser expandida com acréscimos contínuos. Aqui é preciso que nos lembremos de uma ideia interessante do autor: não basta que a economia cresça em um período e volte a se retrair no ano seguinte; é necessário que o desenvolvimento seja economicamente sustentado ao longo do tempo. Um segundo aspecto a se sublinhar é que promover a homogeneização da sociedade não significa dissolver as diferenças culturais, mas tão somente diminuir as disparidades sociais, isto é, as diferenças econô‐ micas que separam grupos ou classes sociais. Para além de uma perspectiva economicista e substantiva, o desenvol‐ vimento nos incita a um ponto de vista fundado no humano e na ética, na conjugação necessária (e difícil, muitas vezes) entre as dimensões social, econômica, cultural, política e ambiental. Em um artigo, Veiga5 afirma que o desenvolvimento é “um processo sistêmico mediante o qual uma economia consegue simultaneamente crescer, reduzir desi‐ gualdades sociais e preservar o meio ambiente”. Entretanto, essa afirmação de Veiga ainda nos coloca no campo da economia, ou seja, a preocupação com a economia e seus efeitos na sociedade e no meio ambiente. Apesar de serem extremamente valio‐ sas as definições de desenvolvimento propostas por Sachs e Veiga, o desenvolvimento também pode ser entendido como a expansão das liberdades pessoais e das capacidades humanas (é importante frisar essa afirmação, pois nenhum autor possui um conceito definitivo), como prefere o economista indiano e ganhador do prêmio Nobel, Amartya Sen. As contribuições de Sen para uma compreensão renova‐ da do desenvolvimento serão apresentadas especialmente no capítulo 6. Por enquanto, apenas recuperaremos essa definição geral de desen‐ volvimento que o autor propõe. Mais recentemente, Veiga6 tem sido influenciado de forma significativa por Sen, pois propõe uma perspectiva sobre o desenvolvimento bas‐ tante rica: “o desenvolvimento tem a ver, primeiro e acima de tudo, com a possibilidade de as pessoas viverem o tipo de vida que escolhe‐ ram, e com a provisão dos instrumentos e das oportunidades para fazerem as suas escolhas”. E a sustentabilidade? Voltaremos ao desenvolvimento sustentável mais adiante. Por ora, vale ressaltar uma palavra que pode ter passado despercebida na afirmação de Sachs: desenvolvimento como um PRO‐ CESSO. 16 1.2 Desenvolvimento como um processo, não como um estado É muito comum encontrarmos discursos a respeito de que o desenvol‐ vimento é um estado a que todos (pessoas, grupos, regiões e países) devem chegar. Essa concepção errônea de desenvolvimento compre‐ ende que existem etapas pelas quais todos devem passar, além de um momento conclusivo em que se poderia considerar definitivamente algo como desenvolvido. Porém, diversos pesquisadores nas áreas das ciências sociais e das ciências econômicas têm advertido que o desenvolvimento é muito antes um processo do que um estado. Sobre esse aspecto, Veiga nos apresenta o pensamento de um dos maiores intelectuais brasileiros: Celso Furtado. Para Furtado, citado por Veiga7, o desenvolvimento deve ser compreendido como um processo de transformação da socie‐ dade, não só em relação aos meios, mas em relação aos fins, o que implica uma visão qualitativa e valorativa do desenvolvimento, em detrimento de uma visão material e econômica do tema. E Veiga insis‐ te nesse ponto, pois, na sua concepção, o desenvolvimento deve ser visto como uma mudança qualitativa significativa. O desenvolvimento não é uma “coleção de coisas” – fábricas, barragens, escolas, tratores, rodovias e outras –; por isso, ele não é um estado. É preciso salientar, entretanto, que essa coleção de coisas pode auxiliar no desenvolvimen‐ to, mas não significa que todos os lugares devam ter as mesmas coisas. O significado que o termo desenvolvimento pode ter para as populações da Amazônia difere do que vem a ser desenvolvimento para regiões do Nordeste brasileiro ou para o Rio de Janeiro. Veiga8 é bastante claro ao afirmar que o crescimento pode implicar mudanças quantitativas, mas o desenvolvimento implica mudanças qualitativas. Por isso, Veiga afirma que criar a expectativa de que certos espaços se tornarão desenvolvidos por simplesmente “importarem” ou implanta‐ rem esse conjunto de bens e infraestruturas é falso. Elas podem vir, porém o que importa realmente é o processo. E o “processo exige”, como afirma Veiga9, “[...] pessoas criativas; e pessoas com criatividade e vontade de construir mudanças existem até mesmo nos lugares mais inesperados”. Outros estudiosos e pesquisadores também apresentam raciocínio semelhante. Zander Navarro10, cujos estudos incluem tanto o tema do desenvolvimento rural como da participação política, afirma que o desenvolvimento é uma ação que induz mudanças. Sergio Schneider11, sociólogo que se dedica também ao tema do desenvolvimento rural, 17 explicita que o desenvolvimento tem expressiva relação com processos que visam gerar mudanças. Assim, embora possa existir um núcleo comum e compartilhado entre diferentes pesquisadores de que o de‐ senvolvimento geralmente implica melhorias nas rendas, na qualidade de vida e do ambiente, no modo de participação política e no acesso à cultura, está no caráter processual uma de suas características‐chave.1.3 O desenvolvimento e suas raízes sociais, culturais, políticas, econômicas e ambientais As características sociais, culturais, políticas, econômicas e ambientais de um país ou de uma região são essenciais para a compreensão do seu desenvolvimento. Desse modo, fica mais evidente o motivo pelo qual o desenvolvimento é considerado um processo que visa mudanças. Efe‐ tivamente, nenhum país ou região pode imitar o desenvolvimento de outro, uma vez que as características internas de cada país são diferen‐ tes, conduzindo cada um, dessa forma, a trajetórias diferentes. Já nos anos 1960, Furtado era enfático em afirmar que os países da América Latina não deveriam tomar o modelo de desenvolvimento da América do Norte ou da Europa como algo a ser reproduzido na sua integralidade. Na realidade, esses modelos eram perniciosos, pois geravam uma dependência extrema dos países da América do Sul em relação às nações americana e europeia. No capítulo 3, aprofundare‐ mos o pensamento de Furtado. Agora, veremos os processos de desen‐ volvimento em suas raízes e o que podemos apreender por meio delas. A cultura sempre foi vista com alguma suspeita pelos estudiosos do desenvolvimento. Muitos ainda pensam que considerar o seu papel nos processos sociais pode levar a uma visão de que certos povos estão destinados a viverem na pobreza e na miséria social, como nos fala Guy Hermet. O autor12 mostra que essa desconfiança a respeito do lugar da cultura se confunde com o CULTURALISMO, no qual todas as explicações sobre uma sociedade são determinadas pela cultura. Na realidade, como nos fala Hermet, desenvolvimento e cultura estão intimamente ligados. Mas isso ocorre em uma perspectiva positiva, pois sugere que devemos refletir sobre a diversidade do desenvolvi‐ mento ou mesmo sobre uma diversidade de rotas para o desenvolvi‐ mento, como aposta Schneider13. O mesmo vale para as características sociais, econômicas, políticas e ambientais. De nada vale a criação de um projeto de desenvolvimento que não tenha nenhuma relação com o local, pois ele será vazio e sem sentido para as pessoas que dele devem participar. Por isso, o processo 18 de desenvolvimento deve ser pensado em conexão com o local, gesta‐ do de modo que faça sentido para as pessoas, isto é, em concomitância com as características particulares da sociedade. Do ponto de vista ambiental, se o que foi exposto anteriormente não é determinante, é, ao menos, bastante influente. O ambiente não é de‐ terminante no sentido de que regiões com características similares muitas vezes apresentam maneiras de se desenvolver muito diferentes; e, da mesma forma, regiões distintas podem ter iniciativas muito pare‐ cidas, como, por exemplo, na produção de vinhos na Serra gaúcha e no Vale do Rio São Francisco, produção esta que tem se mostrado tão importante para essas regiões consideravelmente distantes entre si. Mas o ambiente tem sua parcela de influência, pois ele dará as condi‐ ções iniciais para se decidir quais caminhos o desenvolvimento poderá tomar. Obviamente, considerar que o desenvolvimento deve ser pensado como um processo que possui raízes sociais, históricas, ambientais e culturais não significa negar experiências positivas de outras regiões ou países que podem ser úteis como pontos de reflexão. Entretanto, mais do que tentar copiar os modelos que são exteriores, os processos locais de desenvolvimento precisam filtrar e selecionar os elementos centrais com vistas a sua própria experiência. 1.4 Desenvolvimento e ação Essa postura descrita permite perceber que o desenvolvimento necessi‐ ta de uma postura pró‐ativa por parte das pessoas. O Estado é um ente fundamental para o desenvolvimento, no entanto, limitar a capacidade de ação e escolha das pessoas é danoso. Sen14 defende a ideia de que o desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais de que as pessoas desfrutam e explica que a realização do desenvolvimento depende da condição de agente dos indivíduos. Assim, as políticas de desenvolvimento que partem do Estado são essenciais, se interagem com os desejos e expectativas das pessoas, que são alvo dessas mesmas políticas. Aqui é preciso entender que, em certas situações, os sujeitos podem ser privados de tal maneira em relação às condições mínimas de existência (saúde, educação, trabalho e rendimentos), que é muito difícil estes terem capacidade de empre‐ enderem projetos por si sós. Assim, tornam‐se cruciais os programas estatais ou coordenados por Organizações Não Governamentais (ONGs). Porém, mesmo as pessoas que estão em condições mais gra‐ ves de miséria e vulnerabilidade são capazes de compreender sua situação e de realizarem escolhas. 19 Recentemente, gestores de políticas públicas têm se dado conta de que as políticas de desenvolvimento estilo top‐down (que em inglês significa “de cima para baixo”) possuem alta probabilidade de falharem em seus objetivos. Muitas vezes, essas propostas ou programas de desen‐ volvimento eram desenhados e gestados por grupos que não possuíam o mínimo conhecimento dos lugares em que eles seriam implementa‐ dos. Todavia, essa maneira de pensar o desenvolvimento vem perdendo sua força e abrindo espaço para as iniciativas conhecidas como bottom‐ up (que na língua inglesa significa “de baixo para cima”). Isso equivale dizer que as macropolíticas pensadas pelos gestores têm muita valida‐ de, mas somente se possuírem sintonia com os desejos e perspectivas das pessoas para as quais elas serão destinadas. Por essa razão, o de‐ senvolvimento não pode ser pensado como algo que somente as pes‐ soas organizadas pudessem levar adiante, o que equivaleria a um voluntarismo sem recursos humanos e materiais para efetivar as mu‐ danças aspiradas. Os processos de desenvolvimento são melhor colo‐ cados em prática se houver um “bom casamento” das ações do Estado, das ONGs e das próprias pessoas. A palavra‐chave para isso é partici‐ pação. 1.5 Desenvolvimento e participação Sachs adverte que uma das armadilhas do crescimento econômico excludente é a fraca participação política de uma grande parcela da população. Muitos autores já demonstraram a força simbólica que exerceu o populismo na América Latina, cujo fundamento era ludibriar a maior parte dos contingentes populacionais, fazendo‐os crer que participavam ativamente da vida política da nação, quando, na reali‐ dade, estes não passavam de uma massa governada pelas elites que visavam preservar seus próprios privilégios, em detrimento da coleti‐ vidade. Na proposta de Sachs15 em relação ao conceito de desenvolvimento, o autor inclui necessariamente os direitos civis, cívicos e políticos: “A democracia é um valor verdadeiramente fundamental e garante tam‐ bém a transparência e a responsabilização necessárias ao funcionamen‐ to dos processos de desenvolvimento”. E Veiga16 completa essa ideia, afirmando que enquanto os pobres e marginalizados não tiverem a capacidade de influenciar as decisões políticas em âmbito local e naci‐ onal, é provável que não obtenham vagas no mercado de trabalho e benefícios básicos, como saúde, educação e segurança. 20 Mais recentemente, podemos verificar uma compreensão, impulsiona‐ da pelas diferentes formas de participação, das transformações por que têm passado os atores sociais e políticos. A democracia apenas se forta‐ lece quando os cidadãos percebem que devem sair de um estado de passividade em relação à política, assumindo atitudes mais ativas de participação, independentemente de quaisquer que sejam os âmbitos(nas questões comunitárias, no planejamento regional, nas dimensões que envolvem a economia, a cultura ou o meio ambiente). Tal como argumentado anteriormente, o planejamento do Estado para o desenvolvimento é uma ferramenta essencial. Mas Sachs sugere que o planejamento nacional deve surgir gradualmente por meio do diálo‐ go a ser conduzido entre todos os atores do processo de desenvolvi‐ mento, tanto no nível local como no nacional. 1.6 Desenvolvimento e ética Em um ensaio publicado após a realização do seminário Novos para‐ digmas do desenvolvimento, em São Paulo, os professores Glauco Arbix e Mauro Zilbovicius fazem questão de reconhecer que uma das marcas mais fortes das políticas públicas contemporâneas é o seu espírito utilitarista. O mais saliente, dizem os autores, é que grande parte des‐ sas políticas públicas é feita por pessoas que reduzem a sociedade a um conjunto de números e se recusam a pensar naquilo que não po‐ dem ver. Essa mesma economia, concluem Glauco Arbix e Mauro Zilbovicius17, citando a obra de Sen, “desdenha sistematicamente al‐ gumas preocupações básicas de seres humanos e cidadãos em uma sociedade moderna”. Sachs18 também se apoia em Sen para mostrar que houve um distanci‐ amento paulatino entre a economia e a ética, cuja ligação data dos textos clássicos de Aristóteles. Sachs afirma que esse vínculo é central, pois traz à cena o problema da motivação humana (como deveríamos viver?) e a avaliação das conquistas sociais. Para além da ideia de crescimento econômico, a noção de desenvolvi‐ mento pode colocar novamente a preocupação com a ética no centro do debate. Isso porque, como já afirmamos, o desenvolvimento não se reduz à mera “multiplicação da riqueza material”. A ética diz respeito a refletir e agir em relação às desigualdades sociais e à pobreza. Existem proposições que afirmam vivamente que o crescimento eco‐ nômico é a única maneira das classes menos favorecidas desfrutarem das benesses do desenvolvimento, demonstra Veiga. Essas proposições são realmente surpreendentes, pois não admitem qualquer hipótese de 21 distribuição de renda que venham a promover um processo de dimi‐ nuição das desigualdades: os ricos teriam que ficar mais ricos para os pobres ficarem menos pobres! Conclui Veiga19 que uma reaproxima‐ ção entre a economia, a política e a ética faz‐se muito necessária, pois a postura ética implica pensar no outro, assim como refletir sobre o de‐ senvolvimento também impõe pensar no outro. E esse preceito deve ser ampliado em toda a sua magnitude, à medida que o processo de desenvolvimento seja formulado com foco na capacidade de atuação dos atores sociais, na possibilidade de participação das camadas popu‐ lares, na inclusão do outro. Para Veiga20, Sachs é um dos autores que melhor pontua o rol de requisitos para que a ética e o desenvolvimento sejam conjugados, pois ele (...) “está cada vez mais convicto que o desenvolvimento pode permitir que cada indivíduo revele suas capacidades, seus talentos e sua imaginação na busca da autorealização e da felicidade, mediante esforços coletivos e individuais [...] Maneiras viáveis de produzir meios de vida não podem depender de esforços excessivos e extenuantes por parte de seus produtores, de empregos mal remunerados exercidos em condições insalubres, da prestação inadequada de serviços públicos e de padrões inadequados de moradia”. Embora Sachs considere que o trabalho e a economia sejam cruciais para atingir um desenvolvimento com liberdade, observa‐se que sua proposta possui sintonia com as ideias de Sen e Veiga, isto é, ela se assenta na aposta por uma visão aberta e ampla do desenvolvimento, que inclua as capacidades de escolha, a liberdade de imaginação, a concretização dos talentos, em suma, a possibilidade de uma vida mais feliz. Ponto final Vimos até aqui que, para ultrapassar uma visão economicista, é neces‐ sário não aceitarmos a afirmação de que o desenvolvimento possa ser sinônimo de crescimento econômico. Embora o crescimento econômico e o progresso material possam trazer benefícios para uma sociedade, eles não são suficientes se não houver, juntamente a estes, um com‐ promisso social e ambiental. É o que Veiga reitera, quando busca nas análises de Furtado a confirmação de que o projeto social subjacente demonstra ser uma característica crucial para o desenvolvimento. Vimos ainda que o desenvolvimento possui raízes sociais, culturais, econômicas, políticas e ambientais que não podem ser anuladas. Signi‐ fica reconhecer que o desenvolvimento sempre possuirá os matizes e as características particulares dos locais onde emerge, e será um pro‐ cesso de mudanças eminentemente qualitativas. Além disso, o desen‐ 22 volvimento nos designa a tarefa de pensar as relações sociais e políti‐ cas, uma vez que ele não existe se não atribuirmos às pessoas a capaci‐ dade de mudar e escolher seu futuro, tampouco se não houver um projeto participativo que possua relevância em uma dada sociedade. Por último, e não menos importante, o desenvolvimento enseja uma postura ética, que priorize o diálogo e o bem‐estar, a preocupação com o outro, a autorrealização e a felicidade. Nos próximos capítulos, alguns desses temas serão aprofundados. De modo geral, serão recuperados a história e o modo como o debate sobre o desenvolvimento e a sustentabilidade foi conduzido até hoje. Atividades 1) Realize uma enquete com pessoas nas ruas utilizando a seguinte pergunta: “O que significa desenvolvimento para você?”. Procure entrevistar pessoas com características distintas (idade, gênero, profissão, classe social, escolaridade). Perceba as diferentes res‐ postas, compare com os tópicos apresentados neste capítulo e re‐ flita a respeito. 2) Por que motivo as raízes sociais, culturais, econômicas, políticas e ambientais do desenvolvimento são tão importantes para explicá‐ lo? Faça uma reflexão com base no item 1.3, deste capítulo. 3) Qual a razão para a ética voltar ao centro do debate sobre o de‐ senvolvimento? 2 O PÓS-GUERRA E AS TEORIAS DO DESENVOLVIMENTO Guilherme Francisco Waterloo Radomsky As teorias do desenvolvimento têm seu surgimento localizado no tempo. Foi depois da 2ª Guerra Mundial que o debate sobre as possibi‐ lidades de desenvolvimento dos países ditos atrasados ganhou fôlego. Elas acompanharam um conjunto de medidas estatais para que o cres‐ cimento econômico daqueles fosse impulsionado. Na realidade, pode‐ se afirmar que as ciências sociais contribuíram tanto para a análise dessas iniciativas governamentais como para a própria fundamentação das políticas econômicas. Neste capítulo, serão apresentados os principais fatos históricos que cercaram o momento em que o desenvolvimento começou a ser discu‐ tido, bem como as teorias mais relevantes do pós‐guerra. 2.1 O contexto do pós-guerra Com o fim da 2ª Guerra Mundial, inicia‐se um processo de recupera‐ ção da Europa, que dura cerca de dez anos. Nesse período, os investi‐ mentos econômicos (contribuições oferecidas pelos Estados Unidos e pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS) serviram para dinamizar as nações europeias, entre as quais muitas haviam sido destruídas durante o conflito. Após 1955, o capitalismo já vivia sua “época de ouro” e os aumentos nos padrões de vida das populações dos países da Europa, dos Estados Unidos e do Japão passaram a ser‐ vir de modelo para aqueles países que estavam aquém dele (na Améri‐ ca Latina, África e parte da Ásia). Segundo o professor de economia Nali de Souza1, os governoslatino‐americanos desejavam que os EUA estendessem o plano de desenvolvimento primeiramente implementa‐ do na Europa para a América Latina, o que significaria, segundo Her‐ met2, uma reorientação da política norte‐americana preocupada com a Guerra Fria e em trazer, por meio da “arma econômica”, os povos “deserdados” para o seu lado. 24 Os países centrais apresentavam crescimento dos índices de empregos, da renda per capita e dos padrões de consumo. Para os processos de desenvolvimento dessas nações, o Estado desempenhava um papel crucial, pois dele vinham investimentos fundamentais (infraestrutura, energia) e financiamento de diversas atividades econômicas. É preciso recordar que o sistema fordista de produção é, nesse momento, um mote para toda a economia: o processo de acumulação de capital leva‐ do a cabo pelos países centrais tinha como condição tanto a produção dos meios de produção (máquinas) como a produção de bens de con‐ sumo para os indivíduos e para as famílias. Para tanto, os salários não poderiam ser tão baixos, o que inviabilizaria, dessa forma, o consumo que alimentava a economia como um todo, mas não poderiam, igual‐ mente, ser tão altos a ponto de tornar oneroso o processo de produção para os empresários. Uma das condições fundamentais para equilibrar essa dinâmica foi a manutenção dos preços dos alimentos, que permitia que os salários dos operários e trabalhadores urbanos fossem gastos em produtos manufaturados e serviços. Isso somente foi possível porque os agricul‐ tores modernizaram seus processos produtivos, por estímulos exter‐ nos, e os custos da produção tenderam a cair, posto que o Estado asse‐ gurou aos produtores do campo a obtenção de crédito e aumento do capital mobilizado em benfeitorias e máquinas. Para Ricardo Abramovay3, professor da USP, o fordismo caracteriza‐se por uma articulação entre o PROCESSO DE PRODUÇÃO e o MODO DE CONSUMO da sociedade. Para esse fenômeno ocorrer, foi essenci‐ al a criação de uma “massa” de consumidores e uma situação geral de assalariamento nas sociedades. David Harvey4, pesquisador norte‐ americano contemporâneo, atenta para o fato de que o fordismo pre‐ sumia o crescimento econômico constante, pois a produção industrial era sólida, com alta produção e produtividade, além de acumulação de estoques. Esse período também marca a criação das agências multilaterais e do Acordo Geral das Tarifas Aduaneiras e Comércio (o GATT, que, em 1994, passou para o âmbito da Organização Mundial do Comércio, OMC). O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) foram criados em 1944, enquanto a ONU foi criada em 1945. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) é fundado um pouco mais tarde, mas ainda no período aqui analisado, mais precisamente em 1959, sendo estabelecido com o objetivo de auxiliar na reconstrução dos países da Europa pós‐guerra. Com o passar do tempo, seu foco de ação passou a ser o provimento de assistência financeira e técnica para 25 países em desenvolvimento – e, hoje, a principal razão para o BID existir consiste na concepção de subsídios para a redução da pobreza nessas nações. A criação das agências multilaterais no pós‐guerra não foi por acaso. É nesse período que as disparidades entre os países da América do Nor‐ te, Europa e Japão aumentam consideravelmente em relação às nações da América Latina, África e parte da Ásia. É evidente que, de acordo com Hermet5, se observou, na época, uma clara política mundial lide‐ rada no bloco capitalista pelos Estados Unidos, que tinham a intenção de favorecer a implantação do modelo de crescimento da América do Norte e da Europa – quando estes estavam em suas fases iniciais de industrialização nos moldes fordistas – na América Latina. A ideologia do progresso é a característica básica que moverá gover‐ nantes e formuladores de políticas públicas nos países considerados subdesenvolvidosa. O paradigma produtivista se tornou uma fórmula que nortearia o desenvolvimento, visto nessa época como sinônimo de crescimento econômico. 2.2 O desenvolvimentismo, o paradigma produtivista e a “Revolução Verde” Vimos que o fordismo foi a força motriz do desenvolvimento industri‐ al, depois de 1945, nos países do hemisfério norte. É muito importante perceber que, nesse período após a 2ª Guerra, o ideário do desenvol‐ vimento para as nações “atrasadas” aliou‐se a ideia de crescimento econômico – dessa junção surge o desenvolvimentismo. O desenvolvimentismo se caracteriza como uma política econômica cuja ênfase recai no crescimento industrial, na ampliação da infraestru‐ tura e no aumento do consumo, com a participação ativa do Estado. Mas ele não pode ser entendido apenas como política econômica – conforme Hermet, o desenvolvimentismo baseia‐se em diagnósticos realizados nos países ditos subdesenvolvidos, nos quais os resíduos de uma sociedade arcaica seriam passíveis de um processo de moderniza‐ ção social e cultural a ser comandada pelas elites, o qual não se limita‐ ria ao aparato da produção. a Guy Hermet (2002, p. 33) escreve que o conceito de subdesenvolvimento surge pela primeira vez no discurso sobre o estado da União , pronunciado por Harry Truman (ex‐presidentre dos EUA), em 1949. O discurso apelava para a obtenção de esforços em favorecer o crescimento econômico e a melhoria das condições de vida de regiões “subdesenvolvidas”. Os termos subdesenvolvido e subdesenvolvimento serão utilizados aqui conforme os autores analisados os empregaram. 26 O desenvolvimentismo teve seu auge nos anos 1950 e 1960, tendo o Estado um papel central, sendo este comandado por elites políticas e econômicas que desdenhavam a participação social. Hermet6 afirma que a insistência na industrialização assegurava que o desenvolvimen‐ to não se faria apenas pela substituição das importações, mas também por uma expansão crescente da indústria − um aparelho complexo, completo e de desenvolvimento vertical, que geraria a transformação das condições de vida da população, requisito básico para a democra‐ cia. Não são necessários muitos argumentos para verificar como essa pretensão era falaciosa e veio a consolidar um modelo de desenvolvi‐ mento excludente e deficitário, elemento para o qual voltaremos mais adiante. A produção industrial em larga escala viabilizada pelo consumo em massa acabou por repercutir na produção agrícola, que também pode‐ ria passar por um processo de otimização. A chamada revolução verde consistiu inicialmente em um programa criado pela Fundação Rockfel‐ ler dos Estados Unidos, entre os anos 1943 e 1965, conforme nos apon‐ ta Marcelo Conterato, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Segundo Conterato7, essa foi a fase pioneira da revolução, primeiramente conduzida no México, posteriormente ampliada e que possuía como objetivo “contribuir para o aumento da produção e pro‐ dutividade agrícola do mundo através de experiências [...] no campo da genética”. Baseada na produção de sementes melhoradas e tecnolo‐ gias modernas para a agropecuária, a “revolução verde”, já nos anos de 1950, tornou‐se um receituário para os países do terceiro mundo obterem melhorias significativas nos sistemas de produção agrícola, via adoção do uso intensivo de químicos e de equipamentos mecâni‐ cos. O interessante é compreender que havia um discurso (ainda presente, mas menos pujante) de que a produção agrícola moderna erradicaria a fome no mundo. Por esse motivo, o paradigma produtivista foi central na “sedução” promovida por esse ideário de progresso tecnológico.Na realidade, não é difícil perceber que a disponibilização dos pacotes tecnológicos concernentes à “revolução verde” para agricultores aten‐ deu a interesses de mercado das grandes indústrias produtoras de fertilizantes, pesticidas e máquinas de trabalho agrícola. Conforme Navarro8, a “revolução verde”, administrada pela introdu‐ ção dos pacotes tecnológicos na agricultura, “rompeu radicalmente com o passado por integrar fortemente as famílias rurais a novas for‐ mas de racionalidade produtiva [...] quebrando a relativa autonomia que em outros tempos a agricultura teria experimentado”. Com o novo 27 padrão de produção agrícola moderno, as diversas regiões rurais que vieram a aplicar o modelo de desenvolvimento de ímpeto modernizan‐ te e produtivista subordinaram‐se a interesses majoritariamente urba‐ nos. 2.3 Teorias do desenvolvimento no pós-guerra O tema do desenvolvimento alçou a um campo de singularidade histó‐ rica nos anos 1950, como afirma Navarro. Ele se tornou uma ideia‐ força capaz de mobilizar atores sociais diversos, orientar políticas, fundamentar debates intelectuais e constituir elementos para a mu‐ dança social, sobretudo de grupos sociais “interessados” nas mudan‐ ças. Conduzido por uma intenção de transformação social, econômica e cultural vigorosa e por uma esperança de romper com um passado considerado pré‐moderno nos países pouco desenvolvidos, Navarro9 afirma que o lema em voga, naquele momento, era o da possibilidade de desenvolvimento para todos. Um conjunto de teorias foi forjado e criou qualificativos aos países: os desenvolvidos e os subdesenvolvi‐ dos. Vejamos as principais teorias que embasaram o debate no período – a teoria da modernização, a teoria cepalina e a da dependência. Teoria da modernização Esse paradigma teórico apoiou‐se fortemente na dicotomia tradicional‐ moderna, seguindo o modelo sociológico das variáveis‐padrão, do sociólogo norte‐americano Talcott Parsons. Para o economista chileno Cristóbal Kay10, esse paradigma estava impregnado, além do dualismo tradicional‐moderno, de uma visão etnocêntrica, pois tomava os países desenvolvidos como modelo para os países em desenvolvimento. Jorge Larrain, professor da Universidade de Birmingham, afirma que foi Hoselitz quem construiu os tipos‐ideais “tradicional” e “moderno”, sendo fortemente influenciado pela leitura que Parsons fez dos textos clássicos de Max Weber. Jorge Larrain11 explica que, enquanto as soci‐ edades tradicionais possuíam uma estrutura social baseada na afetivi‐ dade, na difusão, no particularismo e na orientação para interesses coletivos, as sociedades modernas, ao contrário, caracterizariam‐se pela neutralidade afetiva, pela especificidade, pelo universalismo e pela orientação para os interesses privados. O desenvolvimento é per‐ cebido como a mudança de um estado (tradicional) para outro (mo‐ derno). Larrain também demonstra que algumas vertentes internas da teoria da modernização enfatizavam a natureza endógena da transformação, isto é, a capacidade que cada sociedade possui de mudar seus padrões, 28 enquanto outras enfocavam os fatores exógenos, tais como a difusão de valores, de tecnologia, de especialização e de formatos de organiza‐ ção tipicamente modernos. Cristóbal Kay12 corrobora o argumento de Larrain, afirmando que os países ricos deveriam difundir conhecimen‐ tos, tecnologia e capital para os países pobres até que estes se conver‐ tessem em “variantes dos países do Norte”. Estava implícito nesse paradigma de desenvolvimento que as nações do terceiro mundo deveriam seguir o mesmo caminho trilhado pelos países desenvolvidos. Walt Rostowb, economista norte‐americano, citado por Larrain13, acrescentou a versão econômica à teoria da mo‐ dernização, propondo que a evolução das sociedades se daria por etapas de crescimento econômico, argumentando que todas as socie‐ dades passariam pelas mesmas etapas e que, para os países subdesen‐ volvidos, o melhor seria que estes procurassem refazer o caminho trilhado pelos países ricos. O sociólogo argentino Gino Germani foi o intelectual mais destacado dessa corrente de pensamento na América Latina. Tendo como ele‐ mento central de análise o conceito de marginalização, Germani, citado por Kay14, propôs que a marginalidade possuía um caráter multidi‐ mensional. Nas sociedades não‐modernas, grande parte da população estaria inserida no subsistema produtivo (em situação de desemprego ou exercendo funções em empregos precários e pouco produtivos), no subsistema de consumo (acesso limitado a bens e serviços) e nos sub‐ sistemas cultural e político. A marginalidade surgiria, de acordo com Germani, nos processos de transição para a modernidade − algumas sociedades ficam, por assim dizer, “para trás” no processo de desen‐ volvimento, haja vista que as mudanças sociais podem desencadear uma falta de sincronismo entre os grupos que se transformam, geran‐ do, por consequência, o processo de marginalização. Para o sociólogo, a modernização conduziria as sociedades, necessariamente, de um estado de indiferenciação relativa de instituições para um momento de diferenciação e especialização. A própria modernização tinha como pano de fundo uma complexa transformação social, pois a passagem da sociedade tradicional para a sociedade moderna implicava que os sistemas sociais evoluíssem a tal ponto que obtivessem diferenciação funcional (e estrutural) e meca‐ nismos de integração. Conforme Henry Bernstein15, “a diferenciação b Rostow argumentou que haveria cinco etapas: sociedade tradicional, pré‐condição para o desenvolvimento autossustentado , o caminho da maturidade e a era do elevado consumo de marcas. 29 abrange complexa divisão social do trabalho e uma racionalidade que produz inovação e crescimento”, enquanto a integração garante a estabilidade social. O conceito de marginalização que Germani enfatizou nos seus traba‐ lhos foi central para que os teóricos pudessem sustentar que as socie‐ dades atrasadas (sobretudo as latino‐americanas) faltava integração dos diferentes setores e grupos sociais. Enquanto as regiões rurais eram, quase em sua totalidade, “marginais”, a sociedade global, no mundo urbano, eram os trabalhadores desempregados, os desqualifi‐ cados ou os trabalhadores em ocupações autônomas que possuíam esse rótulo. Kay16 também mostra que, de um certo modo, se usava a palavra marginal como sinônimo de pobreza. Tendo em vista esse tipo de diagnóstico que os autores realizavam, não é de se surpreender com os modelos produtivistas para a agricultura. A “revolução verde” foi defendida como a forma principal pela qual os grupos marginais poderiam acessar mercados e alçar patamares tecno‐ lógicos viáveis para o crescimento econômico. A ideia é que, sem uma integração social (promovida pelos mercados), as sociedades permane‐ ceriam fraturadas, com setores atrasados e outros modernos, e esses mesmos grupos não‐modernos seriam responsabilizados pela inviabi‐ lização do desenvolvimento pleno das sociedades. As críticas às teorias da modernização são diversas. Larrain17 mostra que é um erro de perspectiva histórica tratar o subdesenvolvimento como uma situação pela qual todas as nações passaram. Outro pro‐ blema comum é que essa teoria tende a assumir um caráter prescritivo geral, em vez de se analisar os processos particulares históricos das nações. Na sequência, veremos como as teorias elaboradas no âmbito da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal)se contrapu‐ nham à teoria da modernização. A Cepal e o problema do desenvolvimento Com o término da 2ª Guerra Mundial, as Nações Unidas criaram em 1947 a Cepal, com sede em Santiago, capital do Chile. Raúl Prebisch, então presidente do Banco Central da Argentina, foi o pensador mais destacado e original nas primeiras décadas de trabalho da Comissão, cujos preceitos tornaram‐se uma corrente teórica denominada teoria cepalina. Prebisch questionou fortemente as teorias econômicas em voga, postulando que elas não podiam servir de esquema explicativo das sociedades e das economias periféricas. Além do já citado Prebisch, Hans Singer também prestou grandes contribuições a essa corrente de pensamento. Celso Furtado, por sua vez, é tido geralmente como um 30 seguidor de diferentes teorias (as formuladas pela Cepal e a teoria da dependência). Aliás, a terminologia utilizada pelos autores da Cepal se modifica radicalmente, comparada aos teóricos da modernização, pois não está mais em questão considerar as sociedades com base na dicotomia tradicional‐moderna. O que existe no sistema econômico mundial é uma estruturac de posições que os países ocupam, sendo que alguns são “centrais” e outros são “periféricos”. Conforme Kay18, os principais temas que atraíram a atenção dos pesquisadores da Cepal, naquele momento, foram as relações de comércio internacional, a industrializa‐ ção na América Latina por meio da substituição de importações, a inflação e o desenvolvimento rural. Souza19 mostra que uma das críticas mais expressivas de Prebisch ao pensamento econômico ortodoxo recaía sobre a teoria das vantagens comparativas, de David Ricardo, um dos “pais” da ciência econômica clássica inglesa do séc. XVIII. Conforme David Ricardo, os países deve‐ riam se especializar naquilo em que apresentassem vantagens compa‐ rativas de custos. Por exemplo: enquanto a Inglaterra, nesse período, já possuía fábricas de produção têxtil e grandes criações de ovelhas para a obtenção de lã, Portugal era um ótimo produtor de vinho. Ora, para David Ricardo, a equação era simples: a Inglaterra exportaria tecidos para Portugal e os portugueses comercializariam vinho com os ingle‐ ses, pois ambos teriam vantagens na produção de seus respectivos produtos. Acontece que os produtos industrializados ingleses teriam preços maiores, uma vez que a incorporação de tecnologia e trabalho na indústria são efetivamente mais intensos, enquanto os produtos agroindustriais portugueses permaneceriam com preços menores. Prebisch criticou duramente essa teoria, ainda que a proposição das vantagens comparativas mostrasse que, ao longo do tempo, poderia haver uma acumulação de capital por parte dos países exportadores de produtos primários e que essas nações poderiam reinvesti‐lo interna‐ mente. Prebisch, citado por Souza20, não aceitava essa proposta e mostrou que ocorreria, ao longo do tempo, uma deterioração dos termos da troca. O pesquisador analisou um ciclo longo de relações comerciais entre paí‐ ses desenvolvidos e subdesenvolvidos e observou que havia uma ten‐ dência de queda dos preços dos produtos primários frente aos preços dos produtos industriais. c Por essa razão, Kay (2004) denomina o pensamento da Cepal como paradigma estruturalista. 31 Kay21 escreve que os pensadores ligados à Cepal percebiam claramente que a especialização dos países periféricos em produtos agrícolas limi‐ tava a capacidade de crescimento econômico, uma vez que este de‐ pendia das exportações, ou seja, das trocas no mercado internacional com os países centrais. Para Prebisch, citado por Kay22, era visível que os níveis de renda alcançavam patamares maiores nos países centrais, comparados aos acréscimos nos padrões de renda das nações periféri‐ cas. O fundamento desse fenômeno estava assentado na própria carac‐ terística de relações: a divisão internacional da produção e do comér‐ cio, na qual os produtos primários eram majoritariamente produzidos pelos países subdesenvolvidos e os produtos industrializados eram originários das nações desenvolvidas. Para poder mudar essa situação, a perspectiva cepalina dava forte ênfase ao processo de substituição de importações. Souza23 apresenta que, na visão de Prebisch, o desenvolvimento latino‐americano deveria consistir em: (1) compressão do consumo supérfluo, sobretudo dos importados; (2) incentivo ao ingresso de capitais vindos do exterior, com finalidade de aumentar os investimentos em infraestrutura; (3) realização de reforma agrária, para aumentar a produção agrícola e (4) aumento da participação do Estado na economia. No capítulo 3, vere‐ mos em detalhes em que consistiu o processo de industrialização por meio da substituição de importações no Brasil. Souza24 também mostra que, para os pesquisadores vinculados à Ce‐ pal, o desenvolvimento dos países periféricos dependia de fatores externos e internos. No plano externo, dependiam do dinamismo das economias centrais, para onde exportavam produtos primários, além de depender da importação de máquinas e de outros produtos. No plano interno, os fatores que determinavam a condição de subdesen‐ volvimento dos países tidos como atrasados era a concentração de ter‐ ras, o mercado interno reduzido e o crescimento demográfico expres‐ sivo. No ponto de vista de Kay, o enfoque da Cepal negava o economicismo estreito, pois havia uma preocupação significativa com a dinâmica política interna dos países periféricos aliada à ideia de que o Estado deveria intervir fortemente na economia. Em um primeiro momento, pareceu muito sedutora a ideia de desenvolvimento endógena à nação – com a industrialização via substituição de importações – mas logo a situação foi tomando contornos não desejáveis. Esse modelo de desen‐ volvimento, cujo processo era monopolizado pelas elites e pelos go‐ vernantes desses países, teve como resultado um crescimento econô‐ mico concentrador (social e geograficamente falando), no qual os fru‐ 32 tos do progresso tecnológico ficaram nas mãos de grandes capitalistas, exacerbando as desigualdades sociais no interior dos países. Teoria da dependência A teoria da dependência possui duas variantes, uma marxista e outra estruturalista, ambas surgindo na ciência social latino‐americana no final dos anos 1960. Segundo Kay25, a vertente marxista tem uma con‐ tribuição mais distintiva, motivo pelo qual somente ela será tratada aqui. Baseado em um artigo de Theotonio dos Santos, o cientista social José Guilherme Merquior26 explica que a relação de dependência se configura quando o crescimento econômico de alguns países só se dá como reflexo da expansão dos países dominantes. Isso significa que as situações de subdesenvolvimento seriam resultado das múltiplas rela‐ ções de dependência e dominação que o sistema mundial gera. Na verdade, essa teoria surgiu com o propósito não apenas de compreen‐ der a situação de dependência dos países subdesenvolvidos, mas tam‐ bém com o objetivo de encontrar uma forma de dirimi‐la. Os principais autores da teoria da dependência são Andre Gunder Frank, Fernando Henrique Cardoso, Theotonio dos Santos e Samir Amin. Celso Furtado e Osvaldo Sunkel também são citados, embora tenham posições relati‐ vamente mais moderadas. A teoria da dependência, ao menos na sua vertente marxista, sofreu forte influência do pensamento leninista e de suas críticas ao “imperia‐ lismo capitalista”. De certo modo, os autores latino‐americanos se fundamentaram no conceito de imperialismo, porém atualizando‐opara compreender o sistema mundial no qual a condição dos países desenvolvidos implicava a existência do subdesenvolvimentod. A ideia de dependência nasce como reação à teoria da modernização e a sua interpretação dualista dos aspectos tradicional/atrasado e mo‐ derno/avançado de desenvolvimento, que existiriam concomitante‐ mente nos países subdesenvolvidos. Em vez de ver essa situação de subdesenvolvimento como uma etapa, os intelectuais da teoria da dependência a observavam como uma posição na economia mundial. Conforme Merquior27, a teoria da dependência concordava em muitos aspectos com a teoria cepalina, mas não aceitava que o programa de substituição das importações fosse a receita para o desenvolvimento dos países. Merquior28 mostra também que outro sociólogo, o mexica‐ no Rodolfo Stavenhagen, procurou sustentar que a industrialização d Embora não seja muito citado pelos teóricos da dependência, Cristóbal Kay (2004) afirma que o intelectual peruano e marxista José Carlos Mariátegui foi um dos seus grandes inspiradores. Mariátegui escreveu entre os anos 1920 e 1930 e foi um dos primeiros a aplicar criticamente o marxismo à realidade latino‐americana. Seu livro mais conhecido intitula‐se Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. 33 nem sempre difunde um progresso geral. Stavenhagen mostrou que a estruturas de classes e as relações de dominação eram essenciais para a compreensão das situações de dependência dos países subdesenvolvi‐ dos, devido ao fato de que a burguesia não se opõe aos senhores de terras, assim como os operários e os camponeses não possuem interes‐ ses em comum e as classes médias não são empreendedoras e tampou‐ co progressistas. A essa altura, a teoria da dependência já tomava contornos claramente marxistas, pois mostrava que a estrutura de classes no interior dos países tinha efeitos cruciais na maneira como eram conduzidos os processos de mudança social. Além do fato de que não era apenas o sistema mundial a causa da perversidade dos termos das trocas no comércio internacional (ideia difundida pelos cepalistas), os dependen‐ tistas enfocavam especialmente o modo como o capitalismo produzia os efeitos danosos às sociedades menos desenvolvidas. Para tanto, não bastava sugerir que a estrutura das relações internacionais polarizava os países e os interesses, mas, acima de tudo, seria concluir que as elites no interior dos países subdesenvolvidos se voltavam para fora. Esse processo se torna claro ao se analisar mais detidamente a obra Dependência e desenvolvimento na América Latina: o ensaio de interpretação sociológica (1967) escrita por Fernando Henrique Cardoso, sociológo e ex‐presidente do Brasil, em parceria com o historiador chileno Enzo Faletto. Nesse livro, que teve um grande impacto na sociologia da sua época, os autores mostram que as nações latino‐americanas possuíam condições econômicas para um crescimento sustentado no período pós‐guerra, pois o processo de substituição das importações já havia sido iniciado. As outras condições para tal feito eram o estímulo ao mercado interno, a diferenciação do sistema produtivo e a redistribui‐ ção de renda. Constatou‐se, porém, que fatores condizentes unicamen‐ te à política econômica não conseguiram determinar que fato contribu‐ iu para que o desenvolvimento não tenha se dado da forma esperada. Cardoso e Faletto fazem uma análise sociológica do desenvolvimento, considerando as alianças de classe e os sistemas de dominação econô‐ mica. De acordo com Cardoso e Faletto29, o conceito de dependência é o mais adequado para atender as necessidades dessa análise, haja vista a ideia de subdesenvolvimento está estreitamente ligada aos fatores econômi‐ cos, por desejar enfatizar o sistema de dominação que ocorre entre nações centrais e de periferia no capitalismo mundial, bem como suas relações com as formas de dominação e alianças de classe no interior dos países dependentes. Ao contrário da teoria cepalina, os diferentes 34 matizes da teoria da dependência darão expressiva ênfase ao processo histórico. Uma das questões centrais do livro de Cardoso e Faletto diz respeito à forma como as economias de países periféricos se vincularam de forma dependente ao o desenvolvimento dos países centrais, quando estes expandiram mercados. Grupos dominantes no interior dos países periféricos se constituíram e definiram relações orientadas para o exte‐ rior. A dominação realizada por grupos internos ao país dependente enfatiza que não há determinismo de controle dos grupos externos, mas que grupos internos aliam‐se e orientam‐se para o exterior. Uma das críticas feitas à teoria da dependência, listada por Merquior, faz a seguinte indagação: Por que certos países, como o Canadá, por exemplo, que é consideravelmente dependente da economia dos Esta‐ dos Unidos, consegue obter níveis consideráveis de riqueza, em con‐ traposição ao penoso desenvolvimento de outros países, tais como o México, que possui a mesma dependência? Essa é uma questão à qual os dependentistas não possuem resposta e cuja explicação talvez fuja do escopo da teoria da dependência. Ponto final Foi no período do pós‐guerra que surgiu um conjunto de esforços direcionados ao desenvolvimento dos países considerados subdesenvol‐ vidos, lembrando sempre que, nesse período, desenvolvimento e cresci‐ mento econômico eram tratados como sinônimos. Tanto na criação das agências multilaterais, como a ONU, quanto na criação dos tratados de diminuição de tarifas para o comércio internacional, pressupunha‐se que uma ordem de relações cada vez mais globais se impusesse aos países. O paradigma produtivista, a “revolução verde” na agricultura e o processo de industrialização por substituição de importações foram vias pelas quais se tentou construir os caminhos do desenvolvimento do terceiro mundo, almejando um crescimento econômico constante que livraria essas nações de um suposto subdesenvolvimento. Com essas iniciativas, as ciências sociais e econômicas se envolveram nessa dinâmica, criando diferentes escolas de pensamento em torno do tema do desenvolvimento. Com elas, um rol de teorias surgiu, dentre as quais pode‐se destacar a teoria da modernização, a teoria da Cepal e a teoria da dependência, cada uma com distintos matizes. Enquanto a teoria da modernização postulava que as nações deveriam seguir os passos trilhados pelos países já desenvolvidos e industrializados, transformando o sistema social, tornando‐o mais moderno, as teorias cepalina e da dependência mantinham uma postura mais crítica, ad‐ 35 vogando que o subdesenvolvimento não era um problema de etapa de desenvolvimento, mas de posição na estrutura econômica mundial. Os teóricos da Cepal defenderam a substituição de importações como via de desenvolvimento para a América Latina, procurando acentuar tam‐ bém os fatores econômicos internos que impossibilitavam o crescimen‐ to. Já os pensadores da teoria da dependência mostravam que os fato‐ res internos de obstáculos para o desenvolvimento eram de natureza política e econômica, sustentando que as elites nacionais dos países dependentes se aliaram e se orientaram para o exterior, formando uma estrutura histórica de dominação. Atividades 1) Discorra sobre a relação entre a teoria da modernização e a “revo‐ lução verde”. 2) Compare a teoria desenvolvida no âmbito da Cepal com a teoria da dependência e verifique diferenças e semelhanças. Destaque apenas os pontos principais. 3) Por que razão Fernando Henrique Cardosoe Enzo Faletto preferi‐ ram utilizar o conceito de dependência em lugar do conceito de subdesenvolvimento na obra Dependência e desenvolvimento na Améri‐ ca Latina? Revise o item 2.3.3 para esta atividade. 3 O DEBATE BRASILEIRO SOBRE O DESENVOLVIMENTO NOS ANOS DE 1950 A 1970 Guilherme Francisco Waterloo Radomsky O debate brasileiro sobre o desenvolvimento assume características próprias, resultado das disputas entre projetos distintos que visavam a modernização e a industrialização do país. A política de industrializa‐ ção por substituição de importações adquire hegemonia logo após a República Velha (1889‐1930), sendo combatida a partir dos anos 1950. A discussão sobre a natureza dualista da economia brasileira, o papel do Estado nas políticas econômicas e o novo caráter da dependência demanda grande energia dos intelectuais. Destacam‐se aqui os pontos de vista de dois pensadores brasileiros que tiveram expressiva participação na discussão teórica sobre o desenvol‐ vimento − Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso. Ao final, poderemos vislumbrar os resultados da concepção de desenvolvimen‐ to adotada no Brasil até os anos 1970. 3.1 O processo de substituição de importações e a dualidade estrutural do Brasil Até 1930, o Brasil mantinha uma economia baseada nos produtos pri‐ mários, com esparsas instalações industriais pelo território nacional. Era uma economia exportadora, porém os resultados obtidos pelo comércio internacional de café e outros produtos agrícolas eram mas‐ sivamente concentrados e usufruídos pelas elites rurais que comanda‐ vam a política nacional. A quebra da bolsa de Nova York, em 1929, abalou a economia cafeeira e mostrou a vulnerabilidade da monocul‐ tura exportadora. Com o golpe de 1930, pode‐se dizer que a burguesia brasileira assume o poder e, em consequência disso inicia‐se uma fase de industrialização. Isso não significou, entretanto, que as elites agrá‐ rias tenham perdido seus privilégios, sendo mais plausível encontrar alianças, em vez de conflitos, entre as diferentes classes sociais. 37 O modelo de industrialização seguiu o processo de substituição de importações. Essa estratégia significava produzir internamente o que antes era importado. Conforme Argemiro Brum1, a evolução desse processo obedeceu a três fases de produção: bens de consumo imedia‐ to (não‐duráveis), bens de consumo duráveis e bens de capital. A substituição de importações demanda uma série de medidas gover‐ namentais, tais como o aumento de tarifas, no intuito de controlar o ingresso de produtos importados e a desvalorização da moeda, objeti‐ vando inibir tal ingresso. Esse processo se tornou uma política econô‐ mica amplamente aplicada nos países considerados subdesenvolvidos, cuja meta foi a proteção da indústria nascente. Uma das justificativas é a de que esse tipo de política favorecia a diversificação de atividades, bem como o aprendizado da comunidade local a médio e longo prazo, mesmo que os custos fossem elevados, até que as empresas atingissem patamares razoáveis de produção, tornado a economia do país mais dinâmica. Por isso, a participação do Estado na economia foi essencial. No início dos anos 1950, o Brasil já vivia um intenso processo de indus‐ trialização e de urbanização. Era o momento no qual as indústrias de base cediam, aos poucos, seu espaço para as indústrias de bens durá‐ veis e de consumo, principalmente a automobilística e a de eletrodo‐ mésticos. O processo de industrialização sentia uma mudança funda‐ mental: a entrada do capital estrangeiro e a diminuição relativa da participação das indústrias nacionais, principalmente a partir do go‐ verno de Juscelino Kubitschek, de 1956 a 1961. O Brasil se urbanizava, porém grandes contingentes populacionais continuavam a povoar o meio rural. Tanto as grandes como as médias e pequenas propriedades tinham sua importância na economia do país, mas essa sociedade rural era bastante diferenciada internamente, possuindo setores tradicionais e setores modernos. Para Brum2, as últimas fases da substituição de importações consolidam um mercado nacional e vêm a demandar a ampliação e o aperfeiçoamento da infra‐ estrutura de comunicações e dos transportes. Porém, o crescimento econômico concentrado em São Paulo e no Rio de Janeiro já mostrava sinais de que o Brasil se desenvolvia de modo bastante irregular e descompassado. Embasados nas teorias da modernização, alguns pensadores tentaram mostrar que o país possuía duas economias − uma, atrasada e tradicio‐ nal, e outra, moderna e avançada. Considera‐se que Ignácio Rangel3 foi um dos proponentes da dualidade estrutural do Brasil. Para ele, no Brasil conviviam os latifúndios ineficientes e as propriedades capitalis‐ tas; o coronelismo no meio rural junto às gestões democráticas das 38 cidades; o latifúndios também se contrapunham às pequenas proprie‐ dades rurais, uma vez que estas se caracterizavam pela impossibilida‐ de de empregar o contingente excessivo de trabalhadores, e aqueles pela escassez de mão de obra. Esse argumento foi, em parte, desconstruído por estudos sociais e econômicos que observavam não haver duas economias, mas apenas uma que era extremamente desigual e que combinava setores relacio‐ nados. A diferença na interpretação está na maneira como os setores “arcai‐ cos” e “modernizados” se relacionavam. Enquanto parte da intelectua‐ lidade analisava o país como “dois Brasis” que pouco se comunicavam no campo econômico, outros mostravam a relação intrínseca entre eles. Francisco de Oliveira, sociólogo brasileiro, escreve no início dos anos 1970 um ensaio intitulado Economia brasileira:, que marca a produção das interpretações sobre o Brasil. O autor critica a visão dualista de Rangel, destacando que o atraso de setores menos desenvolvidos do país é funcional para os setores avançados. Não é negado o caráter pré‐ capitalista de certos rincões, mas sim a contradição entre os setores díspares. Oliveira4 mostra que a agricultura tradicional e a economia urbana marginal são funcionais ao processo de acumulação capitalista, pois rebaixam os custos gerais de produção. Porém, antes de apresentar os dilemas da modernização brasileira nesse período, convém introduzir o pensamento do economista Celso Furtado, um dos intelectuais brasileiros que mais se destacou na refle‐ xão sobre o desenvolvimento, tanto no Brasil como no exterior. 3.2 O pensamento de Celso Furtado Celso Furtado, citado por Souza5, defendia a industrialização por subs‐ tituição de importações e reiterava a importância da participação do Estado, não apenas corrigindo desequilíbrios estruturais e eliminando o estrangulamento do crescimento, mas também da atuação das em‐ presas estatais em projetos de base como mineração, energia, transpor‐ te e telecomunicações. O Estado teria papel central na transformação de estruturas arcaicas da sociedade, tais como na situação da agrope‐ cuária e a sua falta de produtividade. No entendimento de Furtado, essa era uma das causas da inflação. Na realidade, a rigidez na oferta das economias subdesenvolvidas, tanto na agricultura como na indústria, provocaria a inflação, visto que a heterogeneidade da economia se caracterizaria por estrangulamentos na produção, no pensamento de Furtado, citado por Souza6. A inflação 39 seria um fenômeno próprio do subdesenvolvimento, contornado com a criação de oferta agrícola e eficiência da industrialização. O subdesenvolvimento, para Celso Furtado, não é uma etapa entre dois polos contínuos que vão do “não‐desenvolvido” ao “desenvolvi‐ do”. O fenômeno do
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