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A ALEGORIA DA CAVERNA, OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO E A FORMAÇÃO DA REALIDADE Abrão Iuskow abraoiuskow@gmail.com filosofiaprática.com.br Ninguém pode formar uma visão humana da realidade social se não estiver entre humanos. As histórias das crianças criadas entre animais provam isso. Então, uma sociedade de humanos só é possível se houver meios de comunicação. Os gestos, a fala e a escrita foram estes meios durante milênios. No final do século XIX entramos na era das comunicações à distância, o que incrementou a transmissão dos conteúdos sem, no entanto, modificar o essencial: ser humano é ser comunicante. Mesmo que a velocidade da transmissão tenha aumentado muito em relação a dos nossos antepassados, hoje, em meio à existência de uma imensa rede de infinitas linhas, continua valendo a mesma verdade: sobrevivemos enquanto nos comunicamos pessoalmente, pois através dessa comunicação intercambiamos valores, sentimentos, ideias, projetos. Mesmo nas grandes redes sociais da internet, são aspectos muito humanos que são abordados. Assim, qualquer meio de comunicação terá obrigatoriamente a nossa face. Belo ou monstruoso, é sempre a nossa face. Nada que é humano nos é estranho, já disse alguém. Talvez pudéssemos inverter o título deste texto. Ao invés de “Os meios de comunicação e a formação da realidade”, poderíamos dizer “A formação da realidade e os meios de comunicação”, ou seja, para plasmar a realidade, sempre precisaremos de meios de comunicação. O que importa é perguntarmo- nos que realidade queremos formar, pois os meios estão aí para serem utilizados. Os meios enquanto tais são neutros. Entretanto, sabemos o quanto o mercado tomou conta de tudo e o domínio destes meios se tornou condição de sua existência. A soma entre mercado, comunicação, tecnologia e ambição não possui mais um controle refletido. Talvez uma crise no sistema financeiro possa reverter as tendências autodestrutivas desse círculo. A vontade humana, porém, pouco pode fazer, pois diante dele se tornou impotente. O fato de ninguém querer perder as muitas coisas que estão em jogo é que trava qualquer possibilidade de melhora a partir do interior do sistema. Quem admite perder o que já ganhou? Assim, ter o domínio sobre os veículos de informação sempre foi a ação primeira, visto que qualquer governo que deixa esses veículos em mãos discordantes fica próximo de seu fim. Essa é uma verdade pragmática que é transmitida naturalmente como chave para a hegemonia de classe. Importa aqui não fazer uma conversão lógica inválida: é o domínio social que implica a busca do monopólio dos veículos de comunicação e não o contrário, ou seja, o monopólio que implica o domínio. A segunda afirmação é falsa, bastando ver na História os monopólios que não conseguiram evitar a derrocada de seu status político, por não contarem com a força das resistências internas ou com a força das discordâncias externas ao processo. Como exemplos, sejam vistos todos os totalitarismos que nasceram e encontraram o seu fim. Contudo, atente-se de que esse desejo de domínio é muito natural, dado o comportamento grupal dos seres humanos, regido pela sobrevivência. A garantia do domínio do bando exige atitudes dominantes, que dependem da lei do mais forte. Porém, em função da liberdade, os humanos discordam das leis que lhes regem e assim, entre eles, as leis naturais não imperam sempre. Transformam- se em um jogo cultural com regras próprias, com condutores e conduzidos que aparentemente aceitam seus lugares. Note-se, contudo, que essas regras funcionam somente enquanto os jogadores conduzidos se submetem à condução. Está claro que os jogadores condutores fazem de tudo para que os conduzidos não percebam sua condição. Aqui entra em jogo a força da persuasão, e novamente a lei do mais forte atua, sendo neste novo nível denominada ideologia. Porém, se os recursos ideológicos alcançam sucesso porque atuam na previsibilidade da movimentação coletiva, não há garantia de que isso aconteça em nível individual. Os processos sociais se distinguem dos processos individuais, nos quais a liberdade incide com mais força. Assim, tal qual na Alegoria da Caverna de Platão, na sociedade é sempre possível que um dos indivíduos prisioneiros consiga desvencilhar-se dos grilhões ideológicos que o aprisionam. A partir de alguma sofrida experiência pessoal, uma nova visão pode se lhe apresentar, a qual provavelmente o fará olhar criticamente a situação anterior, o que indica simplesmente que agora há um olhar sob novos critérios, ou seja, um novo olhar porque é uma pessoa “renovada” que olha. Na Alegoria, depois de libertado das correntes, o prisioneiro consegue ver as estatuetas moverem-se por sobre o muro e percebe que elas são muito mais verdadeiras do que as coisas que via antes, as quais agora lhe aparecem como sombras. A cada transformação pessoal, também nós passamos a olhar o que nos cerca sob novos critérios, e certamente as interpretações anteriores se nos aparecem como sombras. Para alguns, o início do curso universitário pode ser considerado essa saída da caverna. Novas teorias, novas visões de mundo, da sexualidade, da religião. Novas interpretações que levam a outros caminhos. Para os egressos, a saída da caverna pode ser justamente o afastamento desse circuito acadêmico. A reaproximação do mercado de trabalho, a constituição de uma família, a criação dos filhos, os problemas de relacionamento familiar. Teorias acadêmicas que viram sombras e agora são olhadas com descrença. Para outros ainda, a saída da caverna pode estar na perda das convicções religiosas herdada dos pais. Um novo mundo se abre, novas perspectivas a respeito dos erros, dos acertos, das limitações. Para os filhos pródigos, esta saída da caverna pode estar no (re)encontro destas convicções, um novo olhar sobre o passado, sobre o presente, sobre o futuro. É o ser humano com suas medidas particulares. Esses exemplos nos fazem pensar o quanto em nossa época é forte a sensação de que a verdade é percebida como algo relativo. É a Alegoria de Platão sendo interpretada retroativamente à la Protágoras. Talvez até possamos dizer que na Alegoria contemporânea tudo se passa dentro da caverna, com o seu saguão de entrada bem aberto. Atualmente, o que importa é o interior. Hoje, não há um sol a ser vislumbrado, pois não existe uma verdade a ser encontrada. Protágoras e os sofistas renasceram. É o relativismo, onde cada ponto de vista é a vista de um ponto. Contudo, como vimos, não existe sociedade sem um conjunto de informações e os meios de levá-los adiante. Portanto, não existe uma relação que transforma um grupo em vilão ideológico e outro em vítima. É o adeus à visão sociológica que postula a existência de opressores e oprimidos. Uma sociedade se forma a partir de um conjunto de princípios socialmente aceitos que precisa ser veiculado. Esse processo é a própria sociedade, que somente ocorre nesta veiculação. Cada sociedade será formada a partir de um consenso entre comandantes e comandados, sendo que estes terão de suprir as necessidades daqueles, sem nos esquecermos de que os comandantes também precisam suprir as necessidades dos comandados, se quiserem continuar em seus lugares. O mais é “mimimi” de esquerda. Porém, é bom recordar, mais uma vez, que é assim que os processos funcionam coletivamente, mas não é assim que funcionam individualmente. O coletivo é massa de manobra e para esse nível valem as análises estruturais marxistas. No âmbito individual, contudo, valem as regras da liberdade. Isso faz lembrar a cena de outra alegoria, o livro de ficção Ami – Oamigo das estrelas, de Henrique Barrios, em que um extraterrestre apresenta ao menino terráqueo vários planetas mais desenvolvidos que o nosso e depois mostra que na Terra já há indivíduos que alcançam o elevado nível dos indivíduos dos planetas mais evoluídos. O episódio nos permite concluir que sempre podemos encontrar pessoas que estão livres dos grilhões mesmo vivendo em situação de caverna, e que vislumbram o sol para além do saguão. Mas, situação não é a mesma coisa que condição. Uma situação é externa e uma condição é interna. E por que vivem em situação de caverna? Simplesmente por ser aquele o seu meio e se sentirem chamados a ficar entre os seus. Sua condição de virtude permite que assumam uma situação exigente. Sua trajetória de libertação é feita interiormente e se caracteriza pelo amadurecimento na virtude. Fazem sua jornada de amadurecimento e a recomeçam cada vez que as exigências dos relacionamentos lhes bate à porta. Está claro que esta não é uma leitura ontológica da Alegoria da Caverna, que divide a realidade entre o sensível e o supra-sensível. Não é uma leitura dialética antiga, que procura uma superação do grau da opinião – as sombras – para o da crença – as estátuas – até que se encontre o mundo fora da caverna e o sol – a verdade. Não é uma leitura teológica, que vislumbra uma conversão para o Bem e, por fim, também não é uma leitura política, que apregoa o retorno para a libertação dos antigos companheiros escravos. Esta é uma visão psicológica, portanto relativista, que entende como essencial o encontro existencial do indivíduo. Porém, ao fazer isso, também questiona o que há de supra-sensível no sensível – fazendo ontologia – confronta a sua crença com a crença dos outros em pé de igualdade na busca da verdade conjunta – fazendo dialética – entende a conversão como consideração das forças do inconsciente – fazendo teologia e, por fim, fazendo política, entende que não só aquele que sai da caverna tem algo a dizer na partilha das singularidades, pois todos constroem a história. Pois bem, nesta leitura psicológica da Alegoria da Caverna e na relação que ela pode ter com os meios de comunicação, o que podemos concluir? Talvez que, numa leitura moderna, a verdade maior não está onde a Alegoria quer aparentar estar. É a existência de cada um dos personagens da caverna que permite ao liberto chegar aonde chegou. E mais. Também eles, os figurantes da história, os prisioneiros e os que carregam as figuras, têm o direito a um caminho de libertação, conforme suas intenções e seu projeto de vida. Na democracia sem castas, o sol é para todos e o protagonismo não é somente para o ator principal. Existe uma história da vida privada que é tão digna quanto a história oficial. Talvez que, numa leitura moderna, haja uma jornada própria para cada personagem, já que ela pode ser feita interiormente, não importando qual seja o personagem. São bilhões os seres humanos. Se todos tivessem que fazer o caminho do protagonista libertado, o que seria da libertação dos outros? Se o único caminho verdadeiro for o intelectual, tudo acaba ficando muito injusto. Mas se o caminho for individual e ético-psicológico, torna-se universal, e cada um pode percorrê-lo singularmente. Assim, no uso dos meios de comunicação entre os humanos, podemos interpretar que cada indivíduo encontra aquilo que procura, conforme o seu desejo interior de ascese. Cada um merece fazer a sua história pessoal e, através dela, também forma a sua realidade. Por fim, é importante dizer que é quando se associam a grupos de ideias nobres, que diferem da mídia, da moda e do mercado, que as pessoas conseguem se desacorrentar. As verdades que podem libertar já existem há muito tempo, elas não são originais de nossa época. O que hoje é original são as adaptações. Para não sofrer zombaria, importa voltar-se ao movimento certo. Quando alguém entra em um ideário provado pelo tempo, estará assumindo sobre si a história desse ideário. Quem se inicia em um movimento filosófico, religioso, político ou cultural estará de um momento para outro, por essa iniciação, obtendo a proteção da experiência e da história desse movimento. A experiência de cada indivíduo é proporcional à maturidade do movimento ao qual ele pertence. Se o movimento tem cem, duzentos, mil ou dois mil anos de maturidade, essa será a idade da sua experiência. Enfim, a pertença a uma experiência coletiva e histórica é, provadamente, o melhor caminho para proteger-se do pensamento que é moda passageira da nossa época. As correntes que aprisionam não são personalizadas, não foram feitas sob medida e não levam o nome de ninguém. São indivíduos que estendem suas mãos a elas e não elas que são colocadas forçadamente nos indivíduos. Ninguém é preso nelas forçadamente e o único poder que os que querem dominar têm sobre os outros é o da palavra, este é o seu meio. Seu meio de comunicação. E é nessa categoria estão as ideologias, particularmente as de cunho político-totalitário.
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