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A LEITURA DE MUNDO COMO PONTO DE PARTIDA PARA A LEITURA DA PALAVRA: DESAFIO DA FORMAÇÃO E PRÁTICA DE EDUCADORES DE PROGRAMAS DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS Rejane Mary Moreira Universidade Federal do Ceará– UFC rejanemary@ymail.com Maria das Dores Alves Souza Universidade Federal do Ceará– UFC profdorinha@gmail.com Modalidade: Relato de Experiência Eixo temático: A formação inicial de educadores(as) da modalidade de Educação de Jovens e Adultos nos cursos de Pedagogia e nas Licenciaturas (trabalhos que focalizam a gestão e experiências de formação inicial). RESUMO Este relato objetiva propor uma reflexão sobre a formação e a prática de alfabetizadores, na perspectiva de compreender se a ação alfabetizadora aponta para uma prática freiriana e se estes utilizam a leitura de mundo como ponto de partida para a leitura da palavra. Fundamenta-se em experiências de participação das autoras em atividades de formação de alfabetizadores de jovens e adultos, nas observações feitas durante o processo de acompanhamento pedagógico, em uma sala de aula do Programa Brasil Alfabetizado. Nas visitas à sala de aula, buscava-se perceber como os alfabetizadores demonstravam em suas práticas a apropriação do sistema de alfabetização proposto por Freire, considerando-se que esta foi a proposta trabalhada no processo de formação. Entende-se que as reflexões sobre a formação e a prática de alfabetizadores de jovens e adultos demonstram que ainda há, por parte destes, dificuldade em vivenciar a proposta de alfabetização freireana. Apesar de as formações terem como referência o pensamento pedagógico de Paulo Freire, os educadores, em quase sua totalidade, não conseguiram vivenciar, na prática, no desenvolvimento das atividades de alfabetização dos sujeitos, que a leitura de mundo precede a leitura da palavra. Palavras-Chave: alfabetizadores de jovens e adultos, formação e prática, leitura do mundo, leitura da palavra. 1. INTRODUÇÃO Historicamente, o sistema educacional brasileiro não priorizou a educação da classe trabalhadora, o que tem justificado, ao longo de décadas, o elevado índice de analfabetismo e o baixo nível de escolaridade. Desde o período colonial, a educação tem-se voltado para atender aos interesses de uma minoria, deixando as camadas populares excluídas do saber escolar. Sendo assim, a Educação de Jovens e Adultos – EJA surge para alcançar os segmentos da população que, por razões socioeconômicas, políticas e culturais não conseguiram concluir a educação básica, o que certamente, tem contribuído para intensificar os processos de marginalização inerentes a sociedade de classes. Este artigo tem como objetivo refletir sobre a formação e a prática de alfabetizadores, na perspectiva de compreender se a ação alfabetizadora aponta para uma prática freireana, e ainda, se estes se utilizam da leitura de mundo como ponto de partida para a leitura da palavra. Fundamenta-se em experiências das autoras com a formação de alfabetizadores de jovens e adultos e em observações de uma sala de aula do Programa Brasil Alfabetizado no processo de acompanhamento pedagógico, no qual se buscava perceber como os alfabetizadores em suas práticas demonstravam a apropriação do sistema de alfabetização freireano, principal referência da formação. 2. A Formação do Alfabetizador de Jovens e Adultos A formação do alfabetizador de jovens e adultos é um desafio político e pedagógico, quer seja pela formação inicial, nos cursos universitários e habilitações para a docência, quer seja na formação continuada. Do ponto de vista político, a formação de alfabetizadores de jovens e adultos, no Programa Brasil Alfabetizado-PBA, é realizada mediante parcerias entre órgãos públicos, universidades e/ou movimentos sociais com experiências de atuação no campo da educação de jovens e adultos. Para a UNESCO: A Formação continuada no interior de programas tem assumido um caráter para além do compensatório frente à inexperiência ou falta de habilitação específica dos alfabetizadores que neles atuam. Em muitos programas, estas instâncias formativas assumem um caráter reflexivo que considera o educador como agente responsável pelo processo educativo, ao valorizar suas experiências pessoais, seus valores saberes práticos e teóricos, possibilitando, assim, a ressignificação de sua prática. (UNESCO, 2008, p. 116) A história vem demonstrando, que nos programas e/ou projetos de alfabetização de jovens adultos a formação do educador, nem sempre, se constitui como exigência para o assumir da sala de aula. Neste sentido, são frequentes posições de gestores dos programas que justificam a atuação de professores leigos, ou mesmo monitores, sem preocupação com a formação inicial e continuada. Para a UNESCO, “a falta de habilitação para a docência é uma característica desses agentes educativos, o que afeta a qualidade e os resultados dos programas de alfabetização e educação de jovens e adultos” (2008, p. 101). Em relação aos atores sociais que assumem a ação alfabetizadora, em geral, são pessoas que não tem formação docente. Nesse sentido Gadotti e Romão em seus estudos sobre a profissionalização do professor chamam atenção de que: Essa é uma profissão difícil em nosso país: exige segurança, tranquilidade, equilíbrio, competência, compromisso, é mal paga e pouco reconhecida socialmente. Exigi-nos liderança, disciplina, concentração, solidariedade e desprendimento, pois só podemos nos realizar quando o discípulo nos supera. Exige que solicitemos disciplina, concentração de outrem, sem, porém, perdermos a ternura. É uma missão quase impossível. (GADOTTI e ROMÃO, 2006, p.78) Ainda, segundo os autores em foco, devemos compreender que a formação do professor, [...] não tem por objetivo trabalhar o discurso, mas a prática, o primeiro passo é garantir que a própria prática da formação explicite aquilo que se pretende enfatizar na formação. Pouco ou nada adiantará dizer-se, na formação, que o educando é sujeito no processo quando a formação tratar os formandos como objeto. O primeiro passo para os alfabetizadores acreditarem no que é proposto é verificarem os resultados dessa proposição junto a eles próprios. (GADOTTI e ROMÃO, 2006, p.83) É importante ressaltar que a ação educativado alfabetizador tem relevância na aprendizagem do alfabetizando, e o processo de formação do alfabetizador de jovens e adultos não deve se restringir aos conteúdos escolares, mas também, possibilitar conhecimentos na área das ciências humanas e sociais que contribuam para a compreensão da realidade socioeconômico e cultural dos sujeitos da EJA, os quais, em sua maioria, são oriundos da classe trabalhadora e vivenciam em seu cotidiano diferenciadas formas de exclusão social. Nesse contexto, percebe-se a importância de conceber a alfabetização desses sujeitos como um processo que se inicia antes do acesso à escola, considerando-se que trazem conhecimentos acumulados nas interações com os diversos grupos sociais dos quais os alunos fazem parte devem ser o referencial norteador de tal processo, sendo um esforço constante em promover a constituição efetiva de um elemento essencial à cidadania, à leitura de texto, da sociedade e da cultura, conforme nos diz Paulo Freire: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra”. O ato de aprender a ler e escrever deve começar a partir de uma compreensão muito abrangente do ato de ler o mundo, coisas que os seres humanos fazem antes de ler a palavra. Até mesmo historicamente, os seres humanos primeiro mudaram o mundo, depois revelaram o mundo e, a seguir, escreveram as palavras. Os seres humanos não começaram por nomear A! F! N! Começaram por libertar a mão e apossar-se do mundo. (FREIRE, 2011, p.15) Ante essa reflexão, entende-se que o compromisso político-pedagógico do alfabetizador de jovens e adultos com uma ação didática de qualidade é determinante para evitar situações de fracasso escolar. A valorização dos saberes que os alunos trazem para a sala de aula, assim como do reconhecimento da existência de uma sabedoria no sujeito, por parte do professor, certamente, contribui com o interesse e a vontade do educando de continuar os estudos. Nesse contexto, é importante frisar que a área da Educação de Jovens e Adultos não abrange todo e qualquer jovem ou adulto, mas demarca um determinado grupo de pessoas no seio de toda a diversidade de grupos sociais e culturais existentes na sociedade contemporânea. Um grupo que é relativamente homogêneo pela história entrecortada de entradas e saídas da escola e, algumas vezes, nenhum ingresso. Entre estes, estão os que professam sua fé e são sujeitos da EJA. Essa reflexão possibilitou fazer uma relação com a pesquisa de dissertação de mestrado de uma das autoras deste texto, intitulada O Programa Brasil Alfabetizado na UECE: a alfabetização como mediação de inclusão social, que investiga alunos egressos do PBA, que concluíram a alfabetização em 2008. Este programa teve como referência a proposta pedagógica de Paulo Freire, que também é relacionada ao tema em pauta, “o pensamento pedagógico de Paulo Freire, assim como sua proposta para a alfabetização de adultos, inspirou os principais programas de alfabetização e educação popular realizados no País no início dos anos 1960”. (RIBEIRO, 1998, p. 22) Nas entrevistas para a dissertação, as alfabetizandas, ao responderem nossa indagação sobre o interesse de aprender a ler apontaram a leitura da Bíblia, o que pode ser constatado na reflexão de uma aluna de 62 anos ainda não alfabetizada. [...] agora só uma coisa que eu acho incrível, que eu mesmo fico me perguntando, é coisa de Deus, porque eu acompanho o jornal da missa todinho aí sei quando eu tô errada e quando não tá escrito eu percebo que não tá. Aí tem um livro lá em casa que eu só gosto de rezar o terço dos mistérios, aí eu leio todim, leio, leio a ladainha, decorei ficou na minha cabeça. Observa-se, neste depoimento, que a vontade da educanda de ler artigos religiosos a faz memorizar textos. Para ela, isso é um fato importante que a liga com o processo de alfabetização em curso. À primeira vista, esta afirmação decorre do fato de que a educanda apenas memorizou. No entanto, considerando o processo de leitura na perspectiva Freireana, é possível dizer que essas pessoas faziam sua leitura do 'mundo religioso' em que estavam inseridas. [...] a leitura da palavra é sempre precedida da leitura de mundo. E aprender a ler, a escrever, alfabetizar-se é, antes de mais nada, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto, não numa manipulação mecânica de palavras, mas numa relação dinâmica que vincula linguagem e realidade. (SEVERINO, 1982, p. 37) Essa assertiva reafirma o pensamento de Passos ao citar que A leitura do mundo, no entanto, precede a leitura do que dizemos. O mundo nos precede. Ao falar, objetivamos nosso pensamento para poder compreendê-lo... Ler a palavra é lê-la como um corpo consciente molhada por uma história vivida de mundo experimentado como real, de sorte que, “as palavras do povo [...] grávidas de mundo o partejam. Toda palavra é palavra mundo”. (PASSOS, 2010, p. 238). Diante dessa reflexão, é importante ressaltar que Paulo Freire desenvolve sua proposta de alfabetização através do trabalho com temas geradores. O estudo desses temas tem como base o diálogo, o questionamento e a pesquisa, que levam à compreensão dos fatos e à leitura crítica da realidade e do mundo. Diante dessa colocação surge a reflexão quanto ao uso das palavras geradoras, bem como da prática da alfabetizadora de uma turma de alunas idosas que atuava em uma igreja cuja prática percebe-se que, mesmo sabendo que as alunas eram católicas e valorizavam artigos religiosos, a alfabetizadora não utilizava palavras que faziam parte do contexto de vida desses sujeitos, como ponto de partida para à leitura da palavra. Tem sido comum entre os pedagogos progressistas a noção de que se devem respeitar os códigos culturais locais e sociais. Os pontos de partida são diversos, mas os de chegada devem ser comuns, independentemente de se estar trabalhando com crianças, adolescentes e adultos da metrópole ou das pequenas comunas, de classes sociais abastadas ou pobres, se da zona urbana ou da zona rural. (GADOTTI e ROMÃO, 2006, p.68) Nesse sentido, Barcelos (2010) esclarece que, ou se faz a escuta das situações e interesses dos educandos, ou teremos dificuldades com o processo de alfabetização, pois sabe- se que os jovens e adultos se envolvem melhor nos processos educativos, quando as palavras ou temas utilizados pertencem à sua experiência existencial, ou são explicitados a partir de seu universo cultural. Para tanto, destaca o autor que é necessário inventar e reinventar as práticas didático-pedagógicas e metodológicas, fomentando bases participativas na relação educador-educando. Numa perspectiva freiriana, significa levar em consideração, como elemento de entrada, o aluno, isto é, os códigos culturais e as necessidades específicas da clientela a que se dirige o ato pedagógico. Em segundo lugar, implica na contextualização desses códigos, no conjunto mais amplo das relações socioculturais. (GADOTTI e ROMÃO, 2006, p.68). Ante o exposto, é importante pensar que o processo de legitimar e deslegitimar algumas práticas pedagógicas, ao longo dos tempos, ocorre como se houvesse uma única forma de alfabetizar, sendo comum a ideia de que se aprende a ler lendo e a escrever escrevendo. Se os professores não estiverem em constante formação centrada na reflexão de sua prática, a tendência é de que a docência desses, seja de acordo com o método que conhecem, fato que os faz se sentirem mais seguros em suas práticas. É, pois, importante frisar a necessidade de os educadores se apropriarem de estratégias diversificadas, no sentido de levarem em contaas condições e desejos reais de vida dos educandos quanto à aprendizagem da leitura e da escrita. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente relato buscou refletir acerca da formação e da prática de alfabetizadores, na perspectiva de compreender se a ação alfabetizadora aponta para uma prática freiriana e se estes utilizam a leitura de mundo como ponto de partida para a leitura da palavra. Nas visitas em sala de aula, constataram-se debates descontextualizados da realidade de vida dos alfabetizandos, da realização de cópias do alfabeto, da repetição mecânica das letras e sílabas, enfim, de práticas pouco dialogais e distanciadas das ideias defendidas por Freire, contrariando, assim, as orientações feitas por ocasião das formações. Entende-se que as reflexões sobre a formação e a prática de alfabetizadores de jovens e adultos demonstram que ainda há, por parte destes, dificuldade em vivenciar a proposta de alfabetização freireana. Apesar das formações possuírem como referência o pensamento pedagógico de Paulo Freire, os educadores, em sua quase totalidade, não conseguiram vivenciar no processo de alfabetização atividades pedagógicas que possibilitassem aos alfabetizandos a compreensão de que “a leitura de mundo precede à leitura da palavra”. Nesse sentido, é importante ressaltar que a prática do educador deve ser construída em direção a uma nova concepção de educação, rompendo, assim, com antigos métodos antes adotados, considerando as condições de vida dos educandos, bem como as suas reais necessidades de se apropriarem da habilidade da leitura. Ou seja, uma nova maneira de educar que considere a leitura de mundo como ponto de partida para chegar à leitura da palavra. REFERÊNCIAS BARCELOS, Valdo. Educação de Jovens e ADULTOS: currículo e práticas pedagógicas. 2. 2. ed. Valdo Barcelos-Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. FREIRE, Paulo. Alfabetização: Leitura do mundo, leitura da palavra? Paulo Freire, Donaldo Macedo; tradução Lólio Lourenço de Oliveira. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. GADOTTI, Moacir; ROMÃO, José E. (orgs.). EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: teoria, prática e proposta - 8. ed. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2006. - (guia da escola cidadã; v.5). PASSOS, Luiz Augusto. Leitura de Mundo. In: STRECK, Danilo R; REDIN, Euclides; Jaime José Zitkoski (orgs.). Dicionário Paulo Freire. 2. ed., ver. amp. 1. Reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. RIBEIRO, Vera Maria Masagão. Alfabetismo e atitudes: pesquisa junto a jovens e adultos. São Paulo: Ação Educativa; Campinas: Papirus, 1998. SEVERINO, Joaquim Anto. A importância do Ato de Ler. São Paulo, Editora Cortês: 1982. UNESCO. Relatório de Monitoramento Global de Educação para Todos – EPT. Brasília, 2005. (Relatório Conciso). UNESCO, 2005.
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