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CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 1 Fundamentos de Filosofia - Metafísica Aula 6 Professor Rui Valese CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 2 Conversa Inicial Nesta aula, nosso desafio é investigar o estado atual das discussões metafísicas. Inicialmente, começaremos por apurar as reflexões ontológicas realizadas pelos existencialistas no século XX, principalmente Sartre. Em seguida, procuraremos romper com a ontologia eurocêntrica, buscando captar as ontologias periféricas. Por fim, refletiremos sobre as principais críticas tanto internas, quanto externas à própria metafísica. Bons estudos! Antes de começar, acesse o material on-line e confira os comentários do professor Rui. Contextualizando No texto intitulado “O Existencialismo é um humanismo”, Sartre procura se defender das críticas feitas ao seu pensamento e ao existencialismo, a certa altura afirma: “Dostoiévski escreveu: ‘Se Deus não existisse, tudo seria permitido’”. Assim, a questão que propomos para reflexão é: se Deus não existe, realmente tudo é permitido? Veja no material on-line o vídeo com o comentário do professor Rui a respeito dessa citação. Pesquise Tema 1 – Metafísica e Existencialismo Jean-Paul Sartre é um dos pensadores mais influentes e polêmicos do século XX. Mesmo tendo passado por duas grandes guerras na Europa, uma na adolescência e outra na maturidade, guardou um certo otimismo de reconstrução após a Segunda Grande Guerra, sem ser ingênuo. Escreveu ensaios filosóficos, romances, peças de teatro, críticas de diversos gêneros e fez militância política. Sua influência na sociedade francesa e europeia, bem como em seus costumes, foi marcante. Para se ter uma ideia, em seu funeral compareceram cerca de 50 mil pessoas, número digno de um pop star. CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 3 Podemos dizer que, em termos filosóficos, levou o existencialismo à sua máxima expressão teórica e prática. O paradoxo “o homem está condenado a ser livre” expressa bem sua concepção existencialista. Suas ideias ontológicas se encontram no livro “O ser e o nada. Ensaio de uma ontologia fenomenológica”. Trata-se de uma extensa e profunda obra, na qual Sartre analise o Ser em sua mais pura essência. Sartre censura Husserl e sua ideia de intencionalidade da consciência, por ter caído no idealismo e no solipsismo1. A primeira obra em que Sartre buscará a superação desse egocentrismo é “A transcendência do ego”. Nela, afirma que o eu está fora da consciência e presente no mundo, sendo “um ente do mundo como o eu de outro”. Afirma ainda que, com o aparecimento do ser humano, o mundo adquire sentido, passa a existir. Da mesma forma, quando o ser humano perde seus objetivos, também o mundo perde sentido. No romance “A náusea”, desenvolve essa ideia afirmando que “Tudo é gratuito: este jardim, esta cidade, eu mesmo. E quando acontece de nos darmos conta disso, nosso estômago se revira e tudo se põe a flutuar [...] eis a náusea”. E tudo é gratuito, porque não existe nenhum ser que explique a existência necessária das coisas. Tudo é contingente. Nesse sentido, a vida do personagem Roquentin perde todo sentido. Por isso a náusea, muito próxima da angústia de Heidegger. Na obra a que nós já fizemos referência anteriormente — “O ser e o nada” — Sartre irá aprofundar sua ontologia existencialista. Nela, afirma que a consciência é sempre consciência de alguma coisa. Não há consciência em si. Ao mesmo tempo, é sempre consciência de algo que não é consciente. Ele afirma, ainda, que o ser humano tem consciência das coisas que existem no mundo. Mas esses objetos, que o ser humano tem consciência de existir, não são a consciência do ser humano. O mundo, que é onde estão as coisas, é o “em-si”. E a consciência, que é consciência do mundo e das coisas que estão 1 Doutrina que defende a ideia de que somente existe o eu e suas sensações. CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 4 no mundo, é o “para-si”. Assim, a consciência do mundo é o “para-si” do “em- si”. Da mesma forma, a consciência, que é a existência humana, é totalmente livre, é vazia de ser e, portanto, totalmente livre e uma possibilidade absoluta. Essa consciência é liberdade, pois “a liberdade não é um ser; ela é o ser do homem, isto é, o seu nada de ser”. Enquanto “nada de ser”, pode ser, absolutamente, qualquer coisa. Enquanto o ser, por exemplo, para Aristóteles, está determinado pela sua potência, para Sartre essa determinação não existe. O que existe é o nada, que, enquanto tal, pode ser qualquer coisa, uma vez que é totalmente livre. Nas palavras do próprio filósofo: “eu estou condenado a existir para sempre além dos moventes e dos motivos de meu ato: estou condenado a ser livre”. E, como tal, não posso arrumar desculpas para as minhas ações e escolhas. Se assim agisse, agiria de má-fé. Sou responsável pelo que sou, por que o que sou, é resultado de minhas escolhas. Eu sou aquilo que projetei ser; não previamente, mas enquanto vou vivendo. É a liberdade total e absoluta. Minha liberdade não é condicionada. Além de ser-para-si, o ser humano também é um ser-com-os-outros. Ao contrário do que se poderia imaginar apressadamente — e alguns críticos cometeram esse equívoco — o existencialismo não é egoísta, pelo contrário. Ainda que em “A portas fechadas”, uma das personagens afirme que “o inferno são os outros”; que a existência do outro invade a minha subjetividade; que na presença do outro perco a minha liberdade; que quando surge o outro, surge também o conflito, não tem como eu querer a minha liberdade, sem querer, também e ao mesmo tempo, a liberdade do outro. E arremata: “eu sou obrigado — escreve ele — a querer ao mesmo tempo minha liberdade e a liberdade dos outros, e não posso tomar minha liberdade como fim se não tomar igualmente como fim a liberdade dos outros”. “O existencialismo é um humanismo”, é título de um ensaio onde Sartre se defende dos ataques que sofria, tanto dos marxistas (porque acreditavam CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 5 que seu pensamento não era engajado) quanto dos cristãos (por seu pensamento ateu). Nessa obra, Sartre defende categoricamente: não há uma essência que determina a existência, mas, ao contrário, é a existência que determina a essência. Afirma ele: “se, na realidade, a existência precede a essência, nunca será possível explicá-la em referência a uma natureza humana dada e não modificável; em outras palavras, não há determinismo; o homem é livre, o homem é liberdade”. Como há liberdade de ser nada, pode ser absolutamente, qualquer coisa. Trata-se, portanto, de uma liberdade absoluta. Porém, não se trata de uma liberdade sem responsabilidades, como pode parecer quando ele recorre a Dostoievski, afirmando que se Deus não existe, tudo é permitido. Ora, esse “tudo é permitido” significa tão somente que o ser humano não é predeterminado e predestinado. Não existe uma potência que ele irá atualizar. O ser humano é o demiurgo de si mesmo. “O homem, sem nenhum socorro e apoio, está condenado a cada instante a inventar o homem [...]. O homem inventa o homem”. No entanto, Sartre não elimina as determinações materiais e históricas das possibilidades de existência dos indivíduos. Pelo contrário. O campo das possibilidades está circunscrito às suas condições materiais. O que ele pode ser, “depende estritamente da realidade social e histórica” desse indivíduo. Nas palavras do próprio filósofo: “dizerde um homem o que ele é significa dizer o que ele pode e reciprocamente: as condições materiais de sua existência circunscrevem o campo de suas possibilidades”. Para mais informações sobre a metafísica e o existencialismo, acesse o material on-line e confira o vídeo do professor Rui. CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 6 Acessando o link a seguir você confere 50 filmes que trabalham o existencialismo em seus enredos: http://cinetoscopio.com.br/2014/11/12/existencialismo-em-50-filmes-parte-1/ Confira também o artigo intitulado “A concepção de liberdade em Sartre”, de Aline Maria Vilas Bôas da Silva: https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/FILOGENESE/alinesilv a.pdf Tema 2 - Os novos desafios do neotomismo No século XVIII, o Iluminismo havia decretado a luta contra toda e qualquer forma de crendice e superstição. No século XIX, Nietzsche afirma: “Nós matamos Deus”. Da mesma forma, desde o século XVII, a ciência vinha se constituindo como outra alternativa de explicação das coisas, buscando superar tanto a Filosofia quanto as verdades teológicas emanadas a partir dos padres doutores da Igreja Católica. Em certa medida, podemos dizer que a fé estava em posição de defesa e, até mesmo, de quase derrota. Para fazer a fé “sair das cordas” e reagir, surge tanto a Filosofia Neoclássica quanto a sua forma mais específica: a Filosofia Neotomista. O movimento de resistência surge, primeiramente, no interior da própria Igreja Católica, por meio de duas encíclicas e, posteriormente, por meio de sacerdotes e leigos engajados. A relação com a Filosofia não é de negação, mas de, assim como na Idade Média, fazer uso dela para justificar as verdades teológicas, tentando transformar, novamente, a Filosofia em serva da Teologia (philosophia ancilla theologiae). Os neoescolásticos reagem a cinco movimentos: Ao racionalismo iluminista; Ao imanentismo idealista; Ao materialismo positivista e ao materialismo histórico; CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 7 Ao liberalismo político expresso no laicismo e na secularização; Às correntes culturais europeias contrárias à revelação e à teologia cristã. A reação interna Duas encíclicas iniciam o movimento de resistência. A primeira delas — Aeterni Patris (Da Pátria Eterna), de Leão XIII (1879) — condena drasticamente o movimento modernista, que era constituído por católicos com o objetivo de criar uma nova teologia e aderir aos pensamentos modernos. Nela, o papa Leão XIII sugere que se voltasse a buscar a sabedoria de São Tomás de Aquino. Pio X, no entanto, é mais radical. Para ele, as filosofias modernas seriam a síntese de todas as heresias medievais e, para combatê-las, era necessário cortar a “erva daninha” pela raiz. É o que ele expressa na encíclica Pascendi (1907). Já o Concílio Vaticano II, dando voz aos problemas sociais do século XX, procurará um diálogo com as diferentes manifestações culturais daquele século, para continuar o seu processo de difusão da mensagem cristã. Reação de sacerdotes e leigos A reação não institucional, mas que estava, de certa forma, ligada a ela, é iniciada pelo sacerdote belga Désiré Mercier. Sua proposta era opor sistema a sistema. Retomando o estudo do tomismo, influenciado pelos neoclássicos italianos, funda na Universidade de Louvain um centro de estudos e difusão da filosofia neoclássica. Outro importante pensador neoclássico é Joseph Maréchal. Na mesma linha de pensamento de Mercier, Maréchal se propõe a contrapor o pensamento kantiano. Considerando a verdade como o principal problema da Filosofia, segundo ele era necessário encontrar um critério para estabelecer a verdade das coisas, distinguindo-a do erro. A primeira questão que apresenta é “se o espírito humano é capaz de verdade”. Segundo ele, a verdade é uma CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 8 relação entre os dois termos de um determinado juízo, isto é, se há adequação, correspondência entre os termos dos juízos e as coisas. Professando o realismo gnosiológico, Mercier considerava o positivismo como um mal defensor da ciência, pois reduziam tudo à experiência sensível, não conseguindo chegar aos conceitos universais nem às teorias gerais. Em seu pensamento, Mercier distingui matéria de forma, entre ato e potência; a forma do corpo é a alma; do movimento das causas, chega à conclusão da existência de Deus. Ainda que concorde com o papel de submissão da filosofia à teologia, de certa maneira, ressignifica o papel daquela ao se perguntar: “Para quem queremos filosofar, se não para os homens do nosso tempo? E com que objetivo filosofamos senão para propor urna solução para as dúvidas que assaltam nossos contemporâneos?”. Assim, ele não vê a filosofia com o papel de resgate e ressurreição do pensamento medieval, mas de sua atualização, tratando das questões que incomodam os seres humanos contemporâneos. Outro importante pensador neoclássico é o francês Jacques Maritain; talvez o mais conhecido e o mais importante. O título de sua obra “Distinguir para unir: os graus do saber” é ao mesmo tempo um lema. Para ele, o ser abrange toda a realidade. Porém, a unidade desse todo não significa uma negação de suas respectivas partes, mas apenas a sua distinção. Ou seja, não se pretende unificar todas as coisas numa unidade indistinta e enganadora. Por meio dessa tese, é possível falar de toda a realidade. Porém, sem confundir a natureza das coisas, uma vez que os seres não são semelhantes. Nos mesmos seres, há aspectos diferentes e aspectos iguais. Por meio do conhecimento, também é possível realizar um duplo movimento: ao conhecer algo, torno-me outro, diferente de mim mesmo. Essa operação é realizada intencionalmente, não acidentalmente. Da mesma forma, quando conhecemos alguma coisa, não conhecemos a sua representação, mas “a própria coisa”. Procurando ressignificar o termo “humanismo”, segundo ele vinculado apenas ao socialismo, Maritain escreve “Humanismo Integral”. Nessa obra CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 9 procura no cristianismo a inspiração para o seu humanismo, sem, no entanto, submeter as instituições leigas, mantendo a sua autonomia. Antevendo, provavelmente, os totalitarismos de sua época, não concebe o Estado como um ente soberano, muito menos vê o povo como tal. Ele afirma que “Deus é a fonte verdadeira da autoridade de que o povo reveste homens e órgãos, mas estes não são vigários de Deus. Eles são vigários do povo; por isso, não podem ser separados do povo por nenhuma qualidade essencial superior”. Nessa mesma linha de raciocínio, defendia que todos os poderes deveriam prestar contas de seus atos. Todo poder implica em responsabilidades. Algo inimaginável no cenário brasileiro nesse início de século/milênio. Étienne Gilson é outro importante pensador neoclássico. Discípulo de Tomás de Aquino, entendia que seu mestre havia superado Aristóteles ao realizar a distinção entre essência e existência. Isso porque, segundo ele, a presença de um Deus criador permite pensar a natureza das coisas, esperar que se tornem existentes, o que acontece por força e vontade de Deus. Segundo ele, nenhuma essência inclui uma existência, a não ser Deus. Essa última, para efetivar-se, necessita da atuação de uma causa que seja essência e existência ao mesmo tempo. Isto é, que não precisa ser criado. Em suas palavras: “o que existe por meio de outro não pode ter outra causa primeira senão o que existe por si mesmo [...]. E esse ser que nós chamamos Deus”. Para mais informações sobreo novo neotomismo, acesse o material on-line e confira a videoaula do professor Rui. Acesse o link a seguir e leia o texto “A relação entre o neotomismo e o tomismo analítico”, do Dr. Ivanaldo Oliveira dos Santos: http://www.unicap.br/ojs/index.php/agora/article/download/43/27 CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 10 Para saber mais sobre o neotomismo, acesse o link a seguir: http://tomismovivo.blogspot.com.br/2006/08/alguns-defeitos-do-neotomismo-e- defesa.html Tema 3 – Dussel e a crítica à metafísica eurocêntrica Adentramos agora a uma seara bem recente, que engloba as formulações de um pensamento filosófico latino-americano com pouco mais de 50 anos. Ele ainda enfrenta resistência nas academias, já foi considerado como teologia e muitos disseram que ele já teria esgotado seu potencial criativo. Porém, esse pensamento tem se renovado e, ao mesmo tempo, se consolidado apesar das resistências — e até mesmo contra elas. Até o século XIX a dominação da América Latina, assim como de outros continentes, era obra de diversos países europeus e legitimada por ontologias totalizantes, por vezes substituindo, por vezes contando com o seu apoio e complacência. Hoje quem realiza esse processo de dominação são os Estados Unidos, não por meio de uma ontologia que tenham elaborado, mas reafirmando os mesmos princípios de uma ontologia dominante, de negação das identidades nacionais, impondo um Ser dominador. Isso acontece tanto por meios culturais (cinema, música, histórias em quadrinho, desenhos animados, língua etc.) como por meios físicos (guerras, terrorismos, embargos, bloqueios, sanções etc.). Assim, não tem como pensar na possibilidade de uma filosofia latino-americana sem considerar esse cenário entre tantos outros processos vividos por essa parte do mundo. É a partir dessas provocações, entre outras, que o filósofo argentino Enrique Dussel, a partir da década de 1960, publica uma série de obras e realiza uma série de pesquisas buscando cumprir um objetivo: construir um pensamento filosófico que rompa com a ontologia europeia, criando um pensamento autêntico e autóctone. O ponto de partida é a crítica ao pensamento produzido pela modernidade, mas não é só isso. CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 11 Principalmente por constituírem uma totalidade fundamentada numa ontologia que impõe um determinado tipo de Ser, de ente que é totalizante e dominador, guiado por uma vontade de poder que coisifica, que objetiva o outro, negando-lhe sua identidade, sua outridade. Dussel sugere que é necessário pensar uma ontologia fora desse centro totalizante, que parta da periferia historicamente dominada, oprimida, aculturada, assujeitada. Esse autor se desafia a pensar um sistema filosófico que não seja: Meramente reprodução do que já foi pensado; Uma filosofia nova, que parta da periferia e objetive pensar os problemas da periferia a partir de ferramentas epistemológicas gestadas na e pela periferia. Nesse projeto, porém, Dussel adverte que não é possível contar com aqueles que produziram um pensamento europeu preponderante (Kant, Hegel e Heidegger), muitos menos com alguns de seus críticos (Kierkegaard, Feuerbach e Marx) ou com aqueles que no continente latino-americano imitaram tais filosofares. Esses, Dussel classifica como inautênticos “porque é filosofia inautêntica. Tampouco poderíamos partir dos imitadores latino- americanos dos críticos de Hegel — da filosofia preponderante — porque igualmente eram inautênticos”. As razões pelas quais nem os primeiros nem os segundos podem ser utilizados para e na constituição desse novo pensamento são pelo menos três: Os primeiros, por criarem um pensamento otológico excludente; Por incluírem, em seu processo de desenvolvimento, os países e as culturas periféricas como objeto, como coisa; Os segundos por, mesmo que tenham feito a crítica aos fundamentos ontológicos dos primeiros, não conseguiram romper com a ontologia totalizante. CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 12 Esse novo pensamento, além de romper com essa ontologia totalizadora, não poderia ser, em hipótese alguma, opressor. Há que se romper com uma ontologia de um Ser (países centrais) que objetiva o Outro (países periféricos). Assim, percebe-se que não há como produzir um pensamento original sem começar questionando o processo histórico de dominação a que foi submetida a América Latina. Uma vez que esse processo de colonização, bem como o neocolonialismo e o imperialismo atual, está fundado, justificado e legitimado pela ontologia eurocêntrica. Percebe-se, então, que se trata de um duplo rompimento: ontológico e político-econômico-cultural. Como processo constitutivo de um pensamento original, Dussel propõe uma hermenêutica que vá em busca de uma nova visão de mundo (Weltaschauungen). Inspirando-se no pensamento de Paul Ricouer e na fenomenologia postranscendental de Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre entre outros. Partindo de uma crítica à visão de mundo grega e europeia, às quais opõe a visão judaico-cristã, questiona as pretensões das primeiras de, a partir de uma perspectiva linear de seu desenvolvimento histórico, propor-se como modelo de universalidade para o restante do mundo. No entanto, Dussel percebe que até mesmo a hermenêutica de Ricouer se mostra insuficiente para compreender o processo de dominação. O novo desafio, então, é compreender o Ser da América Latina, a partir da sua própria reconstrução histórica, e não a partir do desenvolvimento histórico europeu, que se fundamenta na negação da alteridade — negação do Outro — pela vontade de poder. O ego cogito cartesiano havia se transformado em ego conquiro. Para impor e expor seu pensamento, a Filosofia da Libertação, que é como ficou conhecido esse pensar latino-americano, precisa fazer com que a ontologia da totalidade do ser dominante eurocêntrico se abra à provocação das ontologias periféricas, num movimento transontológico que leve à abertura para a alteridade, que se abra ao Outro sem cair na máxima parmenídica de que “o ser é, e o não ser não é”. CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 13 Ora, somente rompendo com essa mentalidade objetivante e, ao mesmo tempo, provocando a ontologia totalizante para que se abra ao novo, numa nova relação com os outros centros de irradiação de identidades culturais não totalizantes, é que podemos tanto descolonizar nossas mentes como romper com a lógica do senhor e do escravo, opressor/oprimido. Assim, não é somente a periferia que deve romper com sua condição ontológica de não-ser. A ontologia, que até agora tem se apresentado como totalizante e objetivante, deve se abrir para a exterioridade. Como afirma Fanon (1979) Todo povo colonizado, isto é, todo povo no seio do qual nasce um complexo de inferioridade, de colocar no túmulo a originalidade cultural local — se situa frente a frente à linguagem da nação “civilizadora”, isto é, da cultura metropolitana. O colonizado se fará tanto mais evadido de sua terra quanto mais ele terá feito seus os valores culturais da metrópole. Ele será tanto mais branco quanto mais tiver rejeitado sua negrura... (FANON, 1979). Porém, não sejamos ingênuos otimistas. A crise que a Europa vive nesse momento (segunda década do século XXI), com os refugiados árabes, bem como com os africanos, tem mostrado que muitos europeus ainda não querem se abrir para a possibilidade de convivência com seres de outras ontologias. Isso se evidencia nas manifestações não somente de lideranças políticaseuropeias, mas de boa parte da população, que boicota a entrada de imigrantes e aplaude atos de selvageria e terrorismo contra os acampamentos de refugiados. Tem-se a sensação de que, para a comunidade europeia, esses refugiados não são seres humanos. Para mais informações sobre as ideias de Dussel e a crítica à metafísica eurocêntrica, acesse o material on-line e confira a videoaula do professor Rui. CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 14 Para saber mais, acesse o link a seguir e leia o texto “Europa, modernidade e eurocentrismo”, de Enrique Dussel: http://biblioteca.clacso.edu.ar/gsdl/collect/clacso/index/assoc/D1200.dir/5_Duss el.pdf Tema 4 – A metafísica dusseliana O pensamento ontológico de Enrique Dussel pode ser compreendido pelo estudo de pelo menos três obras: Para uma ética da libertação latino-americana, vol. I (num total de cinco volumes); Filosofia da Libertação (volume único); Método para uma Filosofia da Libertação (também volume único). O volume de “Para uma ética da libertação”, intitulado “Acesso ao ponto de partida da ética”, talvez seja o principal. A obra está dividida em três capítulos. Para essa aula, nos basearemos apenas no Capítulo I, intitulado “O fundamento ontológico”, que está subdividido em seis subitens, dos quais analisaremos o terceiro (A compreensão do ser) e o quarto (A compreensão como “poder-ser”). Segundo Dussel, por meio do intelecto, o ser humano, abrindo-se ao mundo enquanto tal, no seu horizonte de inteligibilidade, apreende o ser. Isso porque o ser se manifesta pela luz. E, por meio da luz, o ser humano ilumina o mundo e o habita, pondo fim, de certa forma, ao caos e à obscuridade dele. O ser humano é a origem que emerge do caos sem sentido e ininteligível. Surge do nada, num encontro entre o ser humano e o ser. É o único ente no qual e ao qual o ser se revela. As outras coisas existem; mas não têm consciência de que existem. Após a revelação do seu ser, o ser humano se percebe como aquele que está no mundo; que dá sentido ao mundo. Segundo Dussel: “O homem é o seu mundo; é o que nele se encontra de maneira intencional; o que são as coisas em sua inteligibilidade existencial”. O ser humano é; diferentemente das CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 15 outras coisas que existem no mundo, mas não compreendem seu ser. Até mesmo Deus não compreende as coisas que cria. Segundo Dussel “somente o homem é e compreende seu ser. As coisas simplesmente são; somente o homem as abarca ou compreende dentro de um horizonte ontológico: dentro do ser captado (implicitamente na atitude existencial cotidiana)”. Então, sem o ser humano não há mundo, sendo ele o único ente capaz de compreendê-lo. Ainda que seja um ser consciente de que é, o ser humano não produz o ser de si mesmo. O ser do ser humano é o a priori que se impõe ao ser humano e com o qual deve contar quando se der conta de que já o tem. Porém, ele não será apenas aquilo que ele recebeu do a priori que se impôs a ele, pelo contrário. Poderá ir além desse a priori, por meio da práxis. No entanto, jamais poderá deixar de ser o que já é, involuir; nem ser outro. Da mesma forma, mesmo indo além do ser que recebeu, continuará sendo o mesmo ente. Nessa problemática da anterioridade entre essência e existência, segundo Dussel, nem uma nem outra é anterior ou posterior. Para ele “é na ex-sistência que se manifesta ao homem seu ser pela com-preensão descobridora no mundo, que não é senão a mostração da prévia constituição do que o homem é na ordem do cosmos, metafísico”. Assim, nem a essência precede a existência nem a existência precede a essência. Pelo contrário, é no existir que a essência manifestar-se-á ao ser humano. Manifestação essa que será desencubridora do próprio mundo. No entanto, aquilo que o ser humano compreende do mundo não se deixa ser compreendido no todo. Ele se retira, num movimento de ausência. Enquanto os entes são finitos e limitados, o ser humano tem seu fundamento de ser na finitude. Da mesma forma, o ser humano não é o absoluto infinito, mas também não é o finito acabado. Ele é, em seu ser, uma totalização em movimento; portanto, nunca acabado. É um “poder-ser” (sein koennen); um ser em devenir. Dussel chama essa condição do ser humano de “essencial CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 16 intotalização”: um inacabamento que não é finitude, mas abertura para o “poder-ser”. Dussel alerta, no entanto, para a condição de precariedade do ser humano. Precariedade essa que ameaça o seu “poder-ser” e que pode fazê-lo chegar a não-ser. Para ele, o ser humano nunca alcançará sua totalidade; ele é um “vai-se-dando” diferente dos outros seres, tanto minerais e vegetais quanto os demais seres animais. Ele é “poder-ser”. Ele pode ainda ser “um ser aberto, que se transcende a si mesmo, que está diante de si com facticidade”. Ao se dizer que o ser humano é um “poder-ser” (sein koennen), que tem consciência de que está no mundo e o significa, Dussel está também afirmando que o ser humano é futuro, futuro esse na modalidade de projeto. Da mesma forma, não se pode falar do ser humano enquanto futuro, na modalidade de um projeto sem, na mesma medida, falar de sua temporalidade. Porém, não se trata da temporalidade vulgar de passado, presente e futuro, senão que temporalidade na profundidade ontológica. Dussel retira o conceito de temporalidade de Ser e tempo de Martin Heidegger. Para Dussel, “a temporalidade é o horizonte transcendental (...) que abarca num só movimento o ser, ao qual o homem se abre pela com-preensão do ser; como poder-ser”. Tal poder-ser não se traduz no fato de que ainda não foi realizado, mas como “presença-ausente”, possibilidade futura. Ao mesmo tempo o já dado é possiblidade no horizonte, tanto de alguma forma presente, como ausente. Trata-se, a temporalidade, de um tempo adveniente, pois que, nos encaminhamos para algo que se retira, que se afasta como o horizonte, do qual imaginamos que nos aproximamos. Porém, quanto mais caminhamos, mais percebemos que o mesmo horizonte é impossível de ser alcançado, é utopia, um não lugar que nos move em direção de. O poder-ser é, ao mesmo tempo, passado, presente e futuro, que se imbricam numa unidade indivisível. Como afirma Dussel: “O homem como finalidade nunca totalizada se desdobra no horizonte da temporalidade a partir do poder-ser ad-veniente”. CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 17 O ser humano que compreende essa condição de ser, como poder-ser adveniente, compreende-se, conscientemente, como ser que está lançado no mundo. Lançado na responsabilidade de si mesmo e consciente que é responsável por si mesmo. Quando compreende essa condição de poder-ser, como ser que está lançado, pode transcender essa mesma condição como um ser que se projeta. Como um ser que se abre a diferentes possibilidades. Porém, não podemos nos esquecer, como lembra Sartre, essa condição de possibilidade, de poder-ser, é também correr o risco do fracasso, já que fomos entregues, lançados, sem escolha, à nossa própria liberdade. Por fim, afirmamos que, essa condição de poder-ser enquanto presença-ausente, que se compreende como um ser no mundo consciente de sua condição, é um processo dialético. Essa condição de dialeticidade nos manifesta algumas coisas: A primeira delas é como o ser humano, na sua facticidade de estar no mundo, manifesta, situa seu poder-ser; A segunda manifestação diz respeito à relação estabelecida com o passado, presente e futuro, em um existir coletivode ser-com-os-outros, fundando a cultura e chegando até a totalidade da humanidade. Em terceiro lugar, sua compreensão de temporalidade histórica de sua existência, não numa perspectiva escatológica ou teleológica, mas numa perspectiva dialética, que compreende que o seu “último horizonte é sempre o poder-ser ad-veniente (...) que se dá na compreensão dialética como movimento de totalização histórica, história que nunca termina, a não ser no caso de cada um (com sua morte)” e não com o fim da humanidade. Para mais informações sobre a metafísica dusseliana, acesse o material on-line e confira a videoaula do professor Rui. CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 18 Tema 5 – Outras perspectivas metafísicas Ao finalizarmos essa aula, que trata de algumas questões metafísicas do século XX, bem como dos seus desafios para o século XXI, algumas questões são apresentadas: A metafísica/ontologia é uma área da Filosofia que está morta, não tendo mais nada de novo para dizer aos viventes desse século? Cabe à metafísica/ontologia tratar os problemas já investigados historicamente, esclarecendo-os, quando muito, atualizando-os? Cabe à metafísica/ontologia se reinventar, ressignificar-se e redescobrir seu sentido original? É de nosso entendimento que esse último item faz mais sentido, já que viemos trabalhando com essa perspectiva desde o início. Não se trata de fazermos uma negação in totum, mas de ressignificá-la à luz tanto dos desafios apresentados no século XX como dos novos que se anunciam nesse início de século/milênio. Esse é o propósito e o objetivo dessa unidade temática. Em 2003, o psiquiatra Jurandir Freire Costa escreveu um artigo para o jornal “Folha de São Paulo” intitulado “A fúria de um mundo agonizante”2. Nele o autor, ante os conflitos armados daquele período — entre os quais ele destaca a nova invasão do Iraque por parte dos EUA, França e Inglaterra que foi patrocinada e financiada pelas mais diferentes nações — faz uma dura crítica ao modelo de sociedade predominante no século XX e que se anuncia como projeto para o novo século/milênio que se iniciava. O primeiro questionamento feito diz respeito aos motivos pelos quais as pessoas lutavam e matavam. Se, em alguns casos, historicamente, havia uma certa nobreza em matar ou morrer (num duelo, numa revolução ou como mártir, por exemplo), a partir do século XX esses acontecimentos passam a não carecer de nenhuma justificação ética/moral. Mata-se e se morre pelos 2 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u54275.shtml>. Acesso em: 6 mar. 2016. CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 19 motivos mais banais: por petróleo; por roupa de grife, celular ou tênis; por briga de trânsito, por discussão de condomínio ou por time de futebol; por desacordo de orientação sexual, religiosa ou política; por briga de bar, por linchamento e por aí vai. Da mesma forma, o consumismo desenfreado pós Revolução Industrial tem levado as pessoas a comprarem coisas sem a menor necessidade ou pura e simplesmente para ostentar um status que, quase sempre, não existe e é alimentado pela indústria e incentivado pelas estratégias de marketing. Como consequência desse consumismo que promete a felicidade por meio da aquisição de bens materiais fúteis, inúteis, entre outros predicados, há o incentivo de uma existência fundamentada no ter e não no ser. Como resultado, tem-se a coisificação das pessoas, das relações pessoais, interpessoais, com os demais seres viventes e até mesmo com o planeta Terra. O projeto hedonista que coloca o prazer como o fim último da existência, nas promessas de uma “felicidade” que é etérea e fugaz, mas que, ao invés de contribuir para a realização da felicidade, acaba por levar a novas infelicidades, das quais se tenta, inutilmente, evadir. Nas palavras do próprio psiquiatra: Observadas de perto, as promessas da “sociedade de consumo” são espantosas. Tudo cabe numa lista tacanha, onde, de um lado, estão os meios de evasão — a cocaína, o ecstasy ou o mais novo psicotrópico contra o mais novo sofrimento existencial — e, de outro, a realidade social da qual todos querem se evadir – o tédio; a aridez da inveja e da competição; o medo do desemprego; o tormento das decepções românticas; a obsessão pela magreza e pela boa-forma; a anorexia; a bulimia; as mutilações corporais; as pancadarias adolescentes dos fins de semana; a depressão; a insônia crônica; o estigma da obesidade; o receio da solidão; o exame fóbico das taxas de colesterol, enfim, o pavor do câncer, do infarto, da doença de Alzheimer, da “feiúra” da velhice etc. (COSTA, 2003). Compete-nos, agora, buscar as origens desse fracassado projeto existencial, bem como, a partir do mesmo e contra o próprio, construir, ainda que teoricamente, uma outra perspectiva para a existência humana que efetivamente possa conduzir à felicidade. Quando criada, a metafísica antiga se fundou numa concepção de Ser CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 20 que tem nos princípios de identidade e de não contradição, dois de seus principais pilares. Traduzido em termos lógicos, temos a seguinte proposição: A = A, isto é, a identidade de cada ente com a sua essência, e negação de tudo aquilo que é diferente desse mesmo ente. Assim, cada coisa é o que é em si mesma. Isto é, cada ser tem uma identidade, identificando-se somente consigo mesmo e, portanto, independentemente do outro. Cada ser, portanto, participa de uma determinada natureza, que o define e identifica como partícipe de uma espécie, e que se identifica com outros seres que possuem a mesma essência e a mesma identidade. A partir dessa concepção metafísica, define-se o Ser que é e o ser que não-é ou não-pode-ser. Ou seja, existe o ente que, com sua essência e identidade, forma uma totalidade; e existem os não-entes, que estão fora dessa totalidade, são excluídos ou são incorporados por meio de processos de objetivação, coisificação. Por exemplo: é o negro ou o indígena que foi “incluído” no sistema colonial como mercadoria e como mão de obra escravizada, seja no processo produtivo ou no dos favores sexuais de senhores e senhoras escravagistas, sendo simplesmente morto para que roubassem dele não somente suas riquezas, mas também suas terras? Isso considerando desde o Alaska até a Terra do Fogo, no continente Americano; desde o Estreito de Gibraltar até o Cabo da Boa Esperança, na África. Nessa lógica ontológica, a essência do ente que se define como Ser é imutável, perfeita, superior e eterna. E, por possuir essas características, tem o direito e, por vezes, num discurso ideológico, o dever de se impor aos outros entes que não participam dessa essência, dessa identidade. Por exemplo o bárbaro, o selvagem, o pagão, o negro, a mulher, o não hétero, o pobre etcse colocando em relação a eles com pensamentos como “oh, Senhor, muito obrigado por eu não ter nascido gentio, escravo nem mulher”. Dentro dessa lógica, o que é histórico é definido como natural, e o que CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 21 é natural passa a ser definido como de ordem histórica ou até mesmo sobrenatural. As desigualdades sociais, por exemplo, passam a ser definidas como tendo origem ou na sorte do indivíduo ou como resultado do fruto do seu esforço e das conquistas pessoais. Da mesma forma, a pobreza, por exemplo, também passa a ser explicada como castigo divino pela “preguiça” inerente ao sujeito. Por outro lado, catástrofes naturais, como tsunamis,provocadas pela movimentação de placas tectônicas, são vistas como resultado da ira divina pelos “costumes imorais” das pessoas daquele lugar, numa versão moderna de Sodoma e Gomorra. Assim, o Ser se identifica com determinados entes (homem, branco, rico, forte, hétero, que estudou, do hemisfério norte), enquanto exclui outros (mulher, negro, asiático, indígena, pobre, fraco, não hétero, com pouco ou nenhum estudo, do hemisfério sul)3. Assim, os discursos divinos (teológicos) e humanos (ontológicos e científicos) foram construídos com o intuito de justificar e legitimar construções que são históricas. A razão que se constrói a partir de Descartes (século XVII) e se consolida com Kant e Hegel (séculos XVIII e XIX, respectivamente) reafirma a “supremacia e superioridade” do Ser europeu, em detrimentos de outros entes. Em “Lições sobre a filosofia da história universal”, Hegel vê, em ideias metafísicas, a justificativa para a supremacia europeia diante de outros povos. A história da Europa seria o auge do desenvolvimento humano, como resultado da marcha histórica do absoluto, manifesta no desenvolvimento dos povos germânico, francês e inglês. Já os demais estariam excluídos desse processo e deveriam ser submetidos pelos três. Hegel afirma categoricamente que “as zonas quente e fria não são o teatro da história. Estas regiões extremas ficam excluídas do espírito livre, deste ponto de vista. Assim, em 3 É curiosa essa divisão da terra entre hemisférios. Se ela está, digamos, “suspensa” no espaço, que não tem nem começo nem fim, não há em cima, embaixo, lado direito ou lado esquerdo. Isto é, para eu definir esses pontos, preciso de um ponto de partida, que é a Europa, a qual impôs o seu Ser aos demais. Fenômeno que persiste atualmente, tanto por parte dela quando dos EUA, por meio dos processos de aculturação, bélicos e econômicos. CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 22 geral, a zona temperada é a que há de oferecer o teatro para o drama da história universal”. Hegel considerava as culturas e geografias não europeias como infantis, “menores, mais fracas, mais impotentes”. Assim, diante dessa razão e ontologia totalizantes e excludentes, há que se pensar o Ser sob novos fundamentos ônticos e ontológicos. Isso porque o pensar europeu preponderante (Descartes, Kant, Hegel e Heidegger), como afirma Dussel “nos incluem como ‘objeto’ ou ‘coisa’ em seu mundo”. Da mesma forma, afirma ainda que “não podíamos partir daqueles que os imitaram na América Latina, porque é filosofia inautêntica. Tampouco podíamos partir dos imitadores latino-americanos dos críticos de Hegel, porque igualmente eram inautênticos”. Resta-nos, dessa forma, partir dos críticos do pensar europeu preponderante (Feuerbach, Kierkegaard e Marx, no século XIX; Sartre e Levinas, entre outros, no século XX), bem como dos “movimentos de libertação na América Latina, África ou Ásia”, como afirma Dussel, além dos pensamentos originais produzidos pelos povos habitantes desses continentes. Ante às pseudociências, ideologias e fanatismos políticos e religiosos; aos autoritarismos com roupagem de democracia, aos filosofismos de autoajuda; à fragmentação e pasteurização da cultura e do conhecimento produzido pelos conglomerados midiáticos, enfim, à razão instrumental que coisifica e objetiva os seres humanos, é necessário opor uma ontologia que parta do Outro, mas que não se enrede em novas totalidades totalizantes que tão somente inverta os papeis entre dominador e dominado, incluído e excluído. É necessário ter, por exemplo, aquilo que a filosofia Ubuntu, por meio de uma máxima Zulu, define ontologicamente o que é o Ser: “Umuntu ngumuntu ngabantu” (uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas). Ou, traduzindo em termos ontológicos: um Ser é um Ser, através de outros Seres. E não por meio da negação. CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 23 Assim, não se trata de afirmar o princípio de identidade e de não contradição, mas de pensar que a minha existência está condicionada a existência do Outro, e não fazer qualquer análise a partir do meu eu. O Eu só adquiri sentido, como afirma Martin Buber em “Eu e Tu”, na presença de um Tu. No entanto, essa relação/presença não é de conflito, como afirma o ego conquiro cartesiano/europeu/estadunidense, mas de dialogicidade, como afirma Paulo Freire; de alteridade como defendem Levinas, Dussel, Buber, Fornet-Betancourt, Gandhi, Martin Luther King, Madre Tereza, entre muitos outros. O que não significa que todas as pessoas que vivam abaixo ou acima da Linha do Equador sejam oprimidas e opressoras, respectivamente. Há que se pensar em termos de geopolítica, relações econômicas, culturais, sociais, de gênero, étnicas, pedagógicas e eróticas para identificar e romper com os esquemas de submissão e coisificação. Para mais informações sobre outras perspectivas metafísicas, acesse o material on-line e confira a videoaula do professor Rui. Trocando Ideias Entre no fórum e comente sobre a dialogicidade freiriana como princípio constitutivo de uma relação pedagógica emancipatória entre estudante e professor, em oposição ao ego cogito e ego conquiro cartesiano. Na Prática O fio condutor dessa rota de aprendizagem é a ideia de que o Ser se define a partir do momento em que existe, bem como de que existe junto com outros Seres e não excluindo ou sendo excluído. Uma forma de iniciar a discussão a partir dessa perspectiva é fazer um exercício: O que você deixou de fazer, por exemplo, por ser homem ou por ser mulher? Ou, ao contrário, o que teve que fazer por ser homem ou por ser mulher, a partir de um meio cultural que impõe o que é ser um ou outro? CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 24 A partir das respostas dadas, pode-se partir para sistematizações e trocas em grupos mistos ou não. Da mesma forma, outras identidades ou cotidianeidades, como diz Heller, podem ser sugeridas como ponto de partida: religião, condição social e/ou econômica etc. Síntese Começamos essa aula pelo existencialismo sartreano. Sartre foi um dos maiores pensadores do século XX. Sua vida não foi apenas dedicada às atividades intelectuais, mas também às atividades políticas e artísticas. Analisamos sua tese central: não é a essência que define a existência, mas, ao contrário. Em seguida, passamos a analisar primeiramente a crítica de Enrique Dussel, filósofo argentino, à metafísica antiga, a partir de seus limites. A partir desse autor, a ontologia antiga constituiu uma concepção de Ser excludente que serviu, ao longo da história, de discurso de justificação e legitimação de processos de dominação e exclusão. Depois apresentamos o que seria sua tese de superação dessa ontologia, que deveria se constituir a partir de um Ser que integra e não que exclui. Um Ser que mantém uma relação com o outro não como negação, mas como com-vivente. Finalizamos essa unidade buscando refletir, a partir de alguns dos problemas que afligem a humanidade no início desse século/milênio, quais seus elementos constitutivos, bem como onde e como podemos buscar sua superação. Acesse o material on-line e confira o vídeo de síntese do professor Rui. CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 25 Referências DUSSEL, Enrique D. Método para uma Filosofia da Libertação. São Paulo: Edições Loyola, 1986. DUSSEL, Enrique D. Para uma Ética da Libertação Latino-Americana. Vol. I. São Paulo: Edições Loyola, 1986. DUSSEL, Enrique D. Para uma Ética da LibertaçãoLatino-Americana. Vol. III. São Paulo: Edições Loyola, 1986. REALE, Giovanni. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 2003. ZIMMERMANN, Roque. América Latina – o Não-Ser. São Paulo: Vozes, 1996.
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