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BIoÉTIcA Ayala Gurgel São Luís 2012 Universidade Estadual do Maranhão Núcleo de Tecnologias para Educação - UemaNet Campus Universitário Paulo VI - São Luís - MA Fone-fax: (98) 2106-8970 / 2106-8974 http://www.uema.br http://www.uemanet.uema.br Central de Atendimento 0800-280-2731 http://ava.uemanet.uema.br e-mail: comunicacao@uemanet.uema.br Proibida a reprodução desta publicação, no todo ou em parte, sem a prévia autorização desta instituição. Governadora do Estado do Maranhão Roseana Sarney Murad Reitor da UEMA Prof. José Augusto Silva Oliveira Vice-reitor da UEMA Prof. Gustavo Pereira da Costa Pró-reitor de Administração Prof. Walter Canales Sant’ana Pró-reitora de Extensão e Assuntos Estudantis Profª. Vânia Lourdes Martins Ferreira Pró-reitora de Graduação Profª. Maria Auxiliadora Gonçalves Cunha Pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação Prof. Porfírio Candanedo Guerra Pró-reitor de Planejamento Prof. Antonio Pereira e Silva Chefe de Gabinete da Reitoria Prof. Raimundo de Oliveira Rocha Filho Diretora do Centro de Educação, Ciências Exatas e Naturais - CECEN Profª. Andréa de Araújo Edição Universidade Estadual do Maranhão - UEMA Núcleo de Tecnologias para Educação - UemaNet Coordenador do UemaNet Prof. Antonio Roberto Coelho Serra Coordenadora de Tecnologias Educacionais Profª. Maria de Fátima Serra Rios Coordenador de Design Educacional Prof. Mauro Enrique Carozzo Todaro Coordenadora do Curso de Filosofia, a distância Profª. Leila Amum Alles Barbosa Responsável pela Produção de Material Didático UemaNet Cristiane Costa Peixoto Professor Conteudista Ayala Gurgel Revisão Liliane Moreira Lima Lucirene Ferreira Lopes Diagramação Josimar de Jesus Costa Almeida Luis Macartney Serejo dos Santos Tonho Lemos Martins Designer Aerton Oliveira Rômulo Santos Coelho Gurgel, Ayala Bioética / Ayala Gurgel. - São Luís: UemaNet, 2012. 131 p. 1. Bioética. 2. Ensino a distância I. Título. CDU: 171 ícones orientação para estudo Ao longo deste fascículo serão encontrados alguns ícones utilizados para facilitar a comunicação com você. Saiba o que cada um significa. ATIVIDADes ATenÇÃo sAIBA MAIs Pense GLossÁRIo ReFeRÊncIAs sUMÁRIo APResenTAÇÃo InTRoDUÇÃo UnIDADe 1 BIOÉTICA: genealogia e definições .................................................... 21 As bases históricas da Bioética .................................................. 21 Avanços científicos ............................................................. 22 Cidadania militante ..................................................................... 23 Medicalização da vida ................................................................ 23 Emancipação do paciente ......................................................... 24 Comitês de Ética em Pesquisa .................................................. 25 Necessidade de um paradigma moral ..................................... 26 Salvação da Ética ........................................................................ 27 As bases conceituais da Bioética .............................................. 28 Definição de Fritz Jahr ............................................................... 28 Definições de van Rensselaer Potter ....................................... 29 Definições de Warren T. Reich .................................................. 30 Definições de David Roy ............................................................ 32 Considerações sobre o conteúdo da unidade ............................... 34 UnIDADe 2 BIOÉTICA: discursos, paradigmas e enfoques ................................... 39 Critérios para tipologia dos discursos bioeticistas ......................... 39 Classificação dos paradigmas de Pessini e Barchinfontaine ...... 41 Classificação dos enfoques de Zoboli ...................................... 41 Classificação das vertentes valorativas de Pozzi .................... 41 Classificação das valorações axiológicas de Gurgel ............... 43 Teoria dos Enfoques em Bioética ................................................ 43 Enfoque principialista ....................................................................... 44 Enfoque da casuística ....................................................................... 44 Enfoque das virtudes ........................................................................ 47 Enfoque do cuidado ......................................................................... 52 Considerações sobre o conteúdo da unidade ............................. 53 UnIDADe 3 BIOÉTICA: princípios e aplicações .................................................... 59 Princípios em Bioética .............................................................. 59 Princípio de autonomia .................................................. 60 Princípio de Beneficência ............................................... 61 Princípio de Não-Maleficência ....................................... 62 Princípio de Justiça ........................................................ 62 Estudos de caso em Bioética ................................................... 66 Caso 1: Ética em pesquisa ............................................... 68 Caso 2: Executivos americanos retardam envelheci- mento com hormônios .................................................. 69 Caso 3: Caso E.M ............................................................ 73 Caso 4: Caso Ryan Gracie ............................................... 79 Considerações sobre o conteúdo da unidade ........................ 82 UnIDADe 4 BIOÉTICA: problemas e reflexões .................................................... 87 A questão do especismo nas ciências ..................................... 87 Argumentos a favor da experimentação com animais ............ 89 Argumentos contrários à experimentação com animais ......... 91 Há solução para a questão ética da experimetação animal ...... 95 A questão da morte digna ....................................................... 98 A medicalização do morrer ............................................ 99 A qualidade de vida terminal ......................................... 104 Considerações sobre o conteúdo da unidade ......................... 106 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 114 REFERêNCIAS ................................................................................... 123 PLAno De ensIno DIscIPLInA: Bioética carga horária: 60 horas eMenTA Origem e evolução da Bioética. Filosofia, Deontologia Médica e Ética Aplicada. As diferentes concepções da Bioética. O princípio da sacralidade da vida e princípio da qualidade da vida. Bioética das situações cotidianas: exclusão, cidadania, solidariedade e compromisso social; bioética das situações limites ou de fronteira; questões de nascimento, da vida, da morte e do morrer. Bioética e plurarismo moral. oBJeTIVos Geral Demonstrar compreensão do instrumental teórico-metodológico bioeticista. específicos • Identificar os eventos que originaram a Bioética e as formações conceituais iniciais desse movimento; • Tipificar os paradigmas, enfoques, vertentes e valorações classificatórias das narrativas bioeticistas; • Conceituar os princípios bioeticistas e suas propriedades por meio da aplicação a casos selecionados; • Analisar questões filosóficas que fazem interfaces com as questões bioeticistas. conTeÚDo PRoGRAMÁTIco UnIDADe 1 oRIGeM, eVoLUÇÃo e DeFInIÇÕes De BIoÉTIcA UnIDADe 2 DIFeRenTes concePÇÕese PARADIGMAs De BIoÉTIcA UnIDADe 3 PRIncíPIos De BIoÉTIcA e sITUAÇÕes coTIDIAnAs UnIDADe 4 BIoÉTIcA, PLURALIsMo MoRAL e QUesTÕes De VIDA e MoRTe MeToDoLoGIA O desenvolvimento e a avaliação da disciplina serão realizados de acordo com as diretrizes e orientações para a Educação a Distância. AVALIAÇÃo A avaliação se dará em função dos objetivos propostos, levando em consideração: a leitura dos textos sugeridos, o desenvolvimento das atividades propostas, as anotações e os questionamentos levantados e a participação nas discussões nos momentos presenciais. Caro estudante, Seja bem-vindo ao curso de Bioética. Como iremos perceber, Bioética deveria ser uma palavra usada sempre no plural, tantos são os seus significados, usos e abordagens. Talvez tenhamos que falar dela como um movimento diverso e difuso, cuja uma das interfaces é com a Filosofia. Talvez tenhamos que tratá-la como algo em construção. Algo que ainda não dominamos completamente, mas que já tem uma função social muito importante para a construção do saber e das condutas morais no trato com as questões inerentes aos avanços científicos, especialmente aquelas que envolvem a manipulação de organismos vivos. Este curso está direcionado para alunos de Filosofia ou pessoas que, de algum modo, estão envolvidas com a Filosofia, mas não se limitam a questões filosóficas. Pois, como se sabe, as questões examinadas pela Bioética são patrimônio da humanidade, debatidas por todas as áreas. Não há como separar Bioética e multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e diversidade cultural, jurídica, moral e religiosa. Todos os saberes estão convidados a discutir as questões que examinaremos. Somos todos atingidos por elas, conscientes ou não disso. Nessa perspectiva, com o objetivo de compreender como os bioeticistas operam suas análises e chegam às suas conclusões, este curso irá trabalhar em duas linhas, uma mais hitórico-conceitual, na qual introduziremos o debate acerca da diversidade de modelos de Bioética, e outra mais pragmática, na qual os conceitos, princípios e paradigmas de Bioética serão desafiados pela realidade dos problemas associados aos diversos desenvolvimentos técnico-científicos. APResenTAÇÃo Nem sempre encontraremos respostas para as questões aqui levantadas. Isso é normal em Bioética. Algumas dessas questões estão ainda no nível de elaboração. Outras, terão respostas conflitantes e sem solução consensual. Isso também é normal em Bioética. Contrário à normatividade tradicional, Bioética não tem respostas morais prontas e acabadas. Não tem imperativos categóricos (apesar da proposta de Jahr), mandamentos, leis ou regras inalienáveis (apesar da evocação de algumas “regras de ouro”). Ela tem mais questões, diretrizes, apelos e interfaces dialogais do que qualquer outra forma de regulação do comportamento. É normal que ao longo do curso fiquemos, em alguns momentos, confusos e nos sintamos carentes de mais informações. É normal também que encontremos certas dificuldades para manejar termos técnicos de outras áreas. Contudo, isso não deve nos desestimular. Ao contrário, o filósofo ao se deparar com dificuldades dessa natureza sente-se em casa para ir além, investigar mais. A internet tem sido bastante amigável nessa tarefa e se mostrado importante fonte de recursos. Conversar com pessoas de outras áreas também ajuda bastante. Livros e filmes sobre o assunto existem aos milhares. Só não pode faltar disposição e interesse. Para facilitar o acesso ao instrumental teórico, conceitual, epistemológico, metodológico e pragmático de Bioética, o curso oferece a seguinte organização: Inicialmente, abordaremos Bioética em sua genealogia. Não para contar uma historinha, mas para relacionar os eventos importantes com os quais ela se relaciona e o porquê de diversos intelectuais, das mais diversas áreas, terem consensualizado a importância de uma disciplina dessa natureza. Aqui, veremos que Bioética vem sendo formada aos poucos, como um movimento plural, por meio de cada coletivo ou de pensadores isolados que tomaram para si as preocupações com as consequências dos mais diversos desenvolvimentos técnico-científicos contemporâneos, especialmente aqueles que envolvem a manipulação de organismos vivos. Na segunda unidade, examinaremos como esse movimento tem sido catalogado em diversos paradigmas, cada qual com uma proposta diferenciada. Veremos que Bioética está longe de ser um movimento homogêneo. Que sem a interface dialogal e dialógica, cada paradigma pode se isolar em suas propostas e não atingir seus objetivos. Que essa pluralidade não é danosa, mas faz parte da própria lógica da organização dos saberes e reguladores de comportamento da sociedade contemporânea. A diversidade que se apresenta dentro de Bioética é correlata à diversidade que se apresenta nos nossos processos de valoração sobre o mundo, portanto legítima. Na terceira unidade, intitulada “Bioética: princípios e aplicações”, introduziremos os estudos de caso. Não sem antes apresentarmos os princípios que irão nortear as suas análises. Isso não significa uma adesão ao principialismo nem à casuística. Não temos a intenção de orientá- lo para nenhum princípio, enfoque, vertente ou valoração bioeticista. A decisão de como você irá se posicionar dentro de Bioética é sua. Queremos apenas ajudá-lo nisso, oferecendo algumas ilustrações de como os bioeticistas operam, o que será discutido na unidade seguinte. Na quarta unidade, Bioética: problemas e reflexões, analisaremos duas questões bastante familiares do filósofo: o especismo e a morte digna. À luz das reflexões bioeticistas, essas questões dizem respeito a duas perguntas: podemos dispor dos animais? Podemos dispor da forma de nossa morte? Ambas, portanto, são enfrentadas a partir do paradigma de que toda decisão tem um fundamento axiológico. Qual o fundamento que está por trás da (in)disposição dos outros animais para a experimentação científica e qual o que se encontra por trás das decisões em busca de uma forma digna de morte serão os norteadores dessa unidade. Ao término de cada unidade oferecemos um conjunto de questões para fazê-lo pensar sobre o que foi estudado. É importante não ter pressa e não precisa se isolar para respondê-las. Essas questões foram projetadas para gerar um tipo de postura perante as informações aqui lançadas: um pensamento crítico, profundo e preciso, como são as questões bioeticistas. Este fascículo não esgotará todas as complexidades envolvidas em Bioética. Ele é, antes de tudo, um convite para adentrar nessa maneira de pensar as questões que os diversos modelos de desenvolvimento técnico-científicos nos lançam diariamente. Justamente por isso, paralelo a cada unidade, ofereceremos sugestões para aprofundar o assunto, bem como as referências bibliográficas e sítios da internet que poderão ser úteis nessa tarefa. Bom estudo! Em tempos de sensacionalismo falar em Bioética pode soar como mais um modismo. Mais uma onda que vem e vai, na vã tentativa de preencher a relatividade de sentido estabelecida com aquilo que se conhece nas palavras de Debord (1997) como “Sociedade do espetáculo”. Debord (1997) chama de “Sociedade do espetáculo” a nossa atual sociedade, pois ela transformou a vida real em algo que precisa ser reapresentado sob a forma de um modelo que se dá à imitação, que não basta ser, mas tem que aparecer como um produto que precisa ser consumido. Por exemplo, uma camisa, que é uma mera vestimenta, ganha um caráter fetichista e passa a valer pela imitação que ela é capaz de realizar: ser a imitação de uma camisa que determinadacelebridade usou em uma festa. Ou a camisa de uma determinada marca. As pessoas passam a consumir essa camisa, primariamente, não porque precisam se agasalhar, mas porque precisam dar o seu show particular, uma exibição de status, de participação no espetáculo geral. Os modelos, quanto mais próximos do original mais caros, quanto mais distantes e mais grosseiros, mais acessíveis às camadas menos favorecidas da sociedade. No entanto, a sociedade cria artefatos para que todos, de algum modo, partilhem da ilusão de que participam do mesmo espetáculo. Não há como negar que algumas formas de Bioética não passam de um show, algo para inglês ver, ou, como diziam Cazuza e Frejat (2008), “uma ideologia para viver”. Em razão disso, não vamos argumentar contra a ideia de que Bioética seja mais uma dessas coisas da “Sociedade do espetáculo”, afi nal ela surgiu como discurso consolidado justamente nessa época (a pós- InTRoDUÇÃo moderna), e, portanto, está relacionada diretamente às suas conjunturas. No entanto não vou aceitar que Bioética se resuma a isso. Há algo nos discursos que forjaram esse termo que o postulam para além do espetacular ou do contemporâneo, afinal, nem tudo que é coexistente a uma forma de organização social está, necessariamente, subsumido à sua lógica. Digo isso porque postulo que a noção de sociedade é apenas uma abstração racional de uma realidade muito mais complexa que comporta inúmeras contradições, algumas das quais extemporâneas. Se tem sido assim com tanta frequência nos últimos séculos, por que seria diferente agora? Por que justamente quando vivemos o modelo social que mais nega a existência de modelos teríamos cessado nossas contradições? Certamente que não. Estamos, na verdade, exponenciando-as ao seu limite. Ao limite da evidência. E por ser tão evidente é que se parece tão enigmática, pois, como já dizia Heidegger (1993), nada é mais obscuro do que o óbvio. Nessa perspectiva, o curso que apresentaremos sobre o que vem a ser isso que se nomeia por Bioética será, prioritariamente, uma busca pelo sentido oculto desse termo, aquilo que pode resistir tanto ao instante contemporâneo quanto à natureza do espetáculo; que sobrevive aos arroubos dos discursos mais inflamados e eloquentes. Mas, o que significa sentido oculto? Significa que há algo para além ou aquém daquilo que se nomeia como Bioética? Sentido oculto não nos remeteria à ideia de que Bioética é um evento de má fé? Ou mesmo que há a necessidade de ritos iniciáticos associados a esse vocábulo? Ou ainda que estaríamos lidando com uma conspiração tramada contra as ciências, cujo termo seria apenas a sua forma pública de manifestação? Não é nessa direção que nos guiaremos. Neste curso, sentido oculto tem o mesmo significado de sentido ontológico, aquele que designa as propriedades de um termo cuja valência está para além de suas delimitações consensuais. Esse sentido pode ser buscado em muitos lugares, de muitos modos. Vamos buscá-lo na sua serventia – ou seja, no uso que se faz dele – seguindo o método da axiologia formal, de clara inspiração na lógica ilocucionária de Vanderveken (1990-1991; 2004). Isso porque as definições mais comuns e as pesquisas mais recentes tendem a colocar Sentido oculto de Bioética é o seu sentido ontológico, aquele que subsiste às diversas operações axiológicas que os bioeticistas particulares fazem. Não é um sentido metafísico, no sentido de afastado da realidade, mas, ao contrário, é aquele sentido que está por trás do significado, da valência, da palavra cada vez que ela é usada. Bioética como um tipo de ética, senão como parte integrante dos estudos morais contemporâneos, o que a torna uma especifi cidade dos discursos axiológicos mais gerais. E, como tal, ela fi ca submetida às mesmas regras de qualquer valoração. Nessa ótica, uma operação axiológica realizada por um bioeticista é, na verdade, a apropriação de regras gerais da valoração. Saber, portanto, como operamos as nossas valorações é de fundamental importância para decifrarmos as valorações bioeticistas em particular. E sobre o quê operam as valorações bioeticistas? Elas operam basicamente sobre as mudanças, consequências e promessas de mudanças, no âmbito da organização da vida, ocorridas com as ciências nos últimos séculos. Isso porque, nos dois últimos séculos, mais especialmente nos últimos trinta ou quarenta anos, aconteceram coisas nas áreas da ciência e da tecnologia que os maiores visionários não ousavam tirar do âmbito da fi cção. Falamos por celulares comprados em supermercados, usamos microchips com milhares de informações, estudamos pela internet, temos acesso a bibliotecas do mundo inteiro, baixamos fi lmes raros, temos carros cada vez mais velozes, água potável reciclada a partir de água salgada ou de esgotos, guerras com armas que possuem alta precisão de ataque, transplantes de órgãos e clonagens de organismos, vírus capazes de destruir a humanidade em questão de meses. Alguns nomeiam isso de “avanços”, outros de “loucura”, outros ainda, os mais religiosos, chamam de “sintomas do apocalipse”. Seja o que for, tais eventos afetam tanto a nossa vida que não é possível fi car apático a eles. Cedo ou tarde teremos que debater com alguém, em algum lugar, alguma questão perpassada por um desses eventos. Dentre essas mudanças, as que acontecem na área das ciências biológicas e da saúde nos chamam ainda mais a nossa atenção: o homem, de criatura, se tornou criador. Ele desenvolveu ciência e tecnologia nos últimos anos mais do que durante toda a história da humanidade. Se por um lado aumentou a sua capacidade de se adaptar e sobreviver neste planeta, também aumentou o seu poder de destruição: a vida perdeu a sua sacralidade e deixou de ser o último recanto sobre o qual não se exercia o poder de destruição. Operação axiológica é qualquer operação semântica que implique uma valoração, como são os juízos de valor que fazemos sobre os estados de coisa. Por exemplo, quando digo “é bom que se fale a verdade em um tribunal para evitar perjúrio”, isso é uma operação axiológica e o termo “é bom que” é o operador axiológico. Embora a vida em geral, e em particular a vida humana, nunca tenha sido devidamente respeitada, já houve em muitas épocas concepções fi losófi cas, teológicas, políticas ou até mesmo científi cas, que pregavam uma defesa irrevogável da vida, como um sacrossanto mistério intocável. Veja, por exemplo, a postura jusnaturalista de Thomas Hobbes, exposta em obras como Leviatã, ou Do Cidadão. Nessa área, somos bombardeados com notícias provenientes de todas as diferentes partes do mundo, relatando (fora as que não são relatadas) a utilização de novos métodos investigativos, de novas técnicas, de novas eficiências, de mais eficácia de determinados métodos revistos, da descoberta de fármacos mais eficazes, da extensão de mais anos de vida, do controle da degeneração de certas células, do retardamento do envelhecimento, das novas combinações alimentícias, do conhecimento e controle de doenças até então silenciadas como sinônimo de morte certa, do conhecimento e manipulação dos átomos e dos genes. O mundo, atônito, vê o desenvolvimento de tudo isso sem tempo para assimilar o que está a acontecer, tamanha é a velocidade e complexidade com a qual tudo isso se passa. Mal temos tempo para pensar sobre um acontecimento, já vem outro e mais outros a demandarem da nossa capacidade cognitiva e moral, respostas e posturas à altura e na rapidez que eles se desenvolvem. Graças a essa rapidez, nossas posturas chegam a ser as mais antagônicas:de uma completa aceitação e aplauso ao desenvolvimento tecnocientífico, ao completo oposicionismo a uma prática que põe o homem no lugar de Deus. Excessos à parte, essa é uma situação que precisa ser compreendida e vivenciada com a cautela que as questões envolvidas exigem. Não se trata mais de uma simples equação metodológica ou técnica para saber se funciona ou não. É mais que isso: a de saber quais as prováveis implicações presentes e futuras para os envolvidos no processo, para a espécie e para o planeta como um todo. Há dois argumentos em jogo que precisam ser analisados. Ambos compõem uma antilogia. Um de cada lado contradiz o outro. De um lado, o argumento que diz: “não é importante o que vai acontecer com o planeta e a vida que nele habita”; do outro lado, a sua negação: “é importante o que vai acontecer com o planeta e a vida que nele habita”. Se ainda não ficou claro e suficientemente decidido o que vamos fazer com a vida deste planeta, é preciso então mais cautela. O laboratório e o cientista não são mais compreendidos como isolados do resto da sociedade, cujas pesquisas ficam à mercê Trata-se de uma contradição entre ideias de um mesmo discurso, ou de contradições entre as partes ou os passos de um livro ou obra literária. Quando há uma antilogia, somente um dos lados pode ter razão, mas não é fácil decidir qual. única e exclusivamente de sua consciência (ou da consciência das agências fomentadoras). Seja com a literatura, seja com a fi losofi a ou a ciência responsável, desde o século XIX que temos refl exões (algumas bastante severas) sobre os limites da prática científi ca (metódica e tecnologicamente). Assim, a denúncia representada pela irresponsabilidade do Dr. Jekyll, ou da arrogância do Dr. Frankenstein, mais as refl exões de Weber (1993), Marx (1973) e Nietzsche (2006), colocam a ciência no seu devido posto: como uma instituição social devotada a um modelo de sociedade. No caso do Dr. Victor Frankenstein (não confundir: quem é Frankenstein é o médico, não a criatura, que sequer tem um nome), da obra de Mary Shelley Frankenstein ou o moderno Prometeu, ele pretendia criar um meio que desse ao homem uma vida imortal ou longeva, livre de doenças e fadigas. O resultado foi uma criatura dócil e inteligente, mas que, graças à ignorância dos homens, acabou se tornando uma criatura assassina e fugitiva. No mundo contemporâneo, especialmente no fi nal do século XX e início do século XXI, essa discussão tem tomado cada vez mais fôlego, cujo destaque são as contribuições de Bioética e do Biodireito. No século XX, Jonas (1990), entre outros, procurou reatar a cisão feita em meados do século XIX que rompera fi losofi a e ciência. Para esse autor, a refl exão fi losófi ca sobre a ética tinha que urgentemente fazer parte da mentalidade do homem tecnológico. Sem tal refl exão esse homem poderia muito bem não só desorganizar a vida deste planeta, como também mudar radicalmente os fundamentos da vida, de criar e destruir a si mesmo. Uma consequência não desejável é que a ciência se tornaria elitista e, mais que antes, a qualidade de vida se tornaria um status discriminatório, fazendo com que todos os avanços políticos, toda a tradição democrática, toda a luta por justiça e isonomia entre os povos e as pessoas estivesse prontamente decidida como uma hipótese falida. Pensemos a respeito: Informações e poder concentrados nas mãos de poucas pessoas não seria a fórmula perfeita da mais fria e efi ciente (sem deixar de ser dolorosa) forma de holocausto mundial? Quem poderia impedir que São órgãos públicos, privados ou de economia mista que fi nanciam as pesquisas. CNPq e CAPES são exemplos de agências públicas de fomento. Dr Jekyll e Mr. Hyde diz respeito aos personagens literários criados por Louis Stevenson na obra O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr Hyder (às vezes traduzida como O Médico e o Monstro). O Dr. Jekyll queria isolar a maldade do homem para poder destruí- la, contudo, acabou criando um monstro mais poderoso do que ele. pessoas inescrupulosas lançassem mão de informações privilegiadas para fins eugênicos? Quem poderia impedir que se lançasse mão de informações sobre as probabilidades de uma pessoa vir a desenvolver determinada doença no futuro devido a uma falha em seu código genético, para usá-las contra essa mesma pessoa? Quem poderia impedir que grupos religiosos mais radicais não utilizassem informações eugenistas com fins de eliminação racial, ou que cientistas militares não lançassem mão desses conhecimentos com o intuito de produzir armas cada vez mais letais e genocidas? Pode parecer desesperador, mas há ainda a hipótese de uma seleção geneticamente induzida, mudando completamente o perfil da vida humana no planeta, ou talvez, da vida em geral. Às vezes esse discurso pode parecer uma barreira a mais enfrentada pela ciência e pela tecnologia. Não bastassem as dificuldades inerentes à pesquisa científica, a falta de incentivos fiscais e apoio financeiro, o amparo e remuneração ao pesquisador, a socialização das informações, além da formação e capacitação profissional, da defasagem e sucateamento dessa área; agora essa de moralizar e controlar a pesquisa científica. No entanto, não se trata propriamente de ser um obstáculo ao exercício da pesquisa científica. Trata-se, antes de tudo, de decidir responsavelmente por modelos aceitáveis de pesquisas científicas. Ou melhor, trata-se de contextualizar as mais diversas produções científicas e as suas serventias, uma vez que não há a pesquisa científica, a ciência ou a tecnologia, como se houvesse um único modelo ou um modelo dominante. O trabalho que começou com a literatura no século XIX (cuja temática é recorrente ao longo da história da humanidade) e tomou fôlego com as teses de Kuhn (1973) denunciam a diversidade dos modelos e métodos científicos. Não há a Ciência, há ciências. Há as mais diferentes tecnologias a serviço dos mais diferentes interesses e modelos de sociedade. É justamente isso que a reflexão filosófica recente traz sobre as ciências, sob a tutela de Bioética. Assim, não se trata de ser um obstáculo contra o desenvolvimento da pesquisa científica, mas, uma vez que se decida o modelo de sociedade que queremos e o modelo de homem que nela habitará, podemos questionar as práticas e princípios científicos que com esses se ajustam. Você acha que toda e qualquer pesquisa científica é válida? Que qualquer modelo de ciência deve ser aceito pela sociedade? O século XX, preocupado com essa questão, em especial após acontecimentos históricos de proporções monstruosas que faz de obras como O estranho caso do Dr. Jekill e Mr. Hyder e Frankenstein parecerem contos infantis, resolveu pensar ética e cientificamente os limites da prática científica. Apareceu, portanto, Bioética. Essa é, justamente, a matéria sobre a qual trataremos neste curso. HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1993. HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2010. ______. Do Cidadão. São Paulo: Martin Claret, 2010. JONAS, H. Il Principio Responsabilità. Un’etica per la civiltà tecnológica. Turim: Einaudi Editore, 1990. KUHN, T. The structure of scientific theories. Illinois: University of Illinois Press, Ed. F. Suppe, 1973. MARX, K. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política. 8. ed. Grundrisse. Ciudad de México: Siglo XXI, 1973. v.2. NIETZSCHE, F. W. A genealogia da moral. São Paulo: Editora Escala, 2006. SHELLEY, M. Frankenstein ou o moderno Prometeu. São Paulo: Martin Claret, 2001. STEVENSON, R. L. O estranho caso do Dr. Jekylle Mr. Hyder. Rio de janeiro: Newton Compton Brasil, 1996. WEBER, M. A “objetividade” do conhecimento na ciência social e na ciência política. In: _________. Metodologia das Ciências Sociais. 2. ed. São Paulo: Cortez Editora, 1993, p.107-154, v. 1. VANDERVEKEN, D. Meaning and Speech Acts (2 tomos). Cambridge: University Press, 1990-1991. ______. Success, Satisfaction and Truth in the Logic of Speech Acts and Formal Semantics. In: DAVIS, S; GILLAN, B. (eds) Semantics A Reader. Oxford: University Press, 2004. 1 UnIDADe oBJeTIVo DesTA UnIDADe: Identificar os eventos que originaram a Bioética e as formações conceituais iniciais desse movimento. BIoÉTIcA: genealogia e definições As bases históricas da Bioética Bioética não aparece como uma forma unívoca ou homogênea para pensar os desafios da prática científica. Antes, faz parte do espírito de uma época (cujo ápice é a década de 1970) orientado pelo holismo responsável e crítico. Nesse espírito, a questão da manipulação da vida passa a ser contemplada a partir de variados ângulos: bio-técnico-científico, político, econômico, social, jurídico, moral, multidisciplinar, multicultural, humano, crítico e, sobretudo, competente (não panfletário). O Brasil também tem participado dessas discussões. E, tal como as demais nações, aqui também têm se pactuado critérios e princípios para nortear as pesquisas envolvendo seres humanos, embora ainda se aguarde por decisões políticas mais seguras, como a criação de um conselho nacional de Bioética, de políticas FILosoFIA22 emancipatórias, da implementação de câmaras de decisão e controle social da população nos hospitais etc. Rothman (1991), ao tentar pontuar os eventos mais importantes que deram origem ao movimento da Bioética, acabou criando uma tendência entre os estudiosos do assunto. Clotet (2003) segue essa tendência e enumera um grupo importante de sete classes de mudanças que justificam o surgimento da Bioética, bem como sua expansão pelo mundo: Avanços científicos O progresso das ciências biológicas e biomédicas, segundo Rothman (1991), altera os processos da Medicina tradicional. Alguns desses eventos são: • A descoberta da estrutura helicoide do DNA em 1953, por J Watson e F. Crick, que permitiu, posteriormente, o seu mapeamento e a associação de diversas qualidades fenotípicas a essa estrutura; • A construção do primeiro gene por via sintética, em 1970, por H. G. Khorana, o que abre a possibilidade de manipulação, para os mais diversos fins, e correção na organização genética de um organismo; • A prática de reanimação-ressuscitação, a DNR (do-not-resuscitate- orders) e a CPR (cardiopulmonary resuscitation), cuja questão central é o poder de decidir reanimar ou desistir de prolongar a vida por meios artificiais; • A descoberta da máquina de hemodiálise, em 1961, por Belding Scribner; • O primeiro transplante de coração, em 1967, realizado por Christian Barnard, o que evocou não somente o conceito de morte encefálica (note-se, o transplante foi realizado antes da definição de morte encefálica), bem como a possibilidade de realização de transplantes de órgãos complexos; • O nascimento do primeiro bebê fecundado in vitro e congelado, em 1978, no Oldham Public Hospital, Londres, por Robert Edwards e Patrick Steptoe, entre outras. BIoÉTIcA | UnIDADe 1 23 Estes avanços têm produzido uma alteração na postura dos profissionais das áreas biomédicas, como também no comportamento do público assistido. Cidadania militante A socialização do atendimento médico e a questão da cidadania ligada diretamente a uma consciência de luta por garantias individuais têm produzido conquistas e ganhos nas formas da organização e distribuição dos recursos e benefícios das áreas biomédicas. O médico deixou de ser um produto privativo das elites e passou a ser um profissional do Estado. Assim, para Clotet (2003, p.17), a “[...] imagem do médico que conhecia o paciente e cuidava dele anos a fio, já não é mais comum. Novos padrões de conduta presidem as relações e decisões na medicina contemporânea”. Essas alterações de caráter e na forma de abordar os interesses individuais e coletivos, especialmente nos países capitalistas centrais, é produto de muitas lutas sociais e não podem ser ignoradas na genealogia da Bioética. Medicalização da vida Há uma aproximação da sociedade com a prática médica. Ou melhor, uma justaposição entre vida, morte e Medicina, de modo que, como expôs Clotet (2003, p.17), “[...] existem especialidades médicas para as diversas etapas da vida: neonatologia, pediatria, clínica médica, obstetrícia, geriatria”, entre outras. Se antes a vida social tinha outros centros de referência, como por exemplo, o domicílio ou a igreja (pois as pessoas nasciam em casa e ali eram tratadas quando adoeciam, bem como morriam em casa, geralmente assistidas por um sacerdote e cercada de parentes e amigos), ela foi transferida para o hospital, sob a tutela médica (hoje, a maioria das pessoas nascem, são cuidadas quando adoecem e morrem nos hospitais. Essa morte geralmente é afastada da família e amigos e cuidada por desconhecidos). FILosoFIA24 A aproximação entre as ciências biomédicas e a vida social cria alguns problemas (a dependência médica, a manipulação da consciência pela indústria farmacêutica, a expropriação da saúde pela empresa médica, a prática da eutanásia, distanásia, mistanásia, ortotanásia – falaremos sobre esses conceitos na terceira unidade) e exige a definição de prioridades para que as conquistas dessas ciências sejam universalizadas, acessíveis e, principalmente, na ótica mais social, disponibilizadas ao público carente. Emancipação do paciente Embora o médico ainda possa ser chamado de “déspota benigno”, conforme propõe Lockwood (apud CLOTET, 2003, p.18), no sentido de que “[...] nem sempre é dada ao paciente a informação necessária relativa ao diagnóstico e prognóstico da doença, nem solicitado o seu consentimento para o processo terapêutico”, há avanços considerados na conscientização da relação médico-paciente. Na opinião de Clotet (idem) isto é uma repercussão da “[...] ênfase social e política pelo reconhecimento dos direitos fundamentais das pessoas”. Entre esses direitos fundamentais, Clotet (2003, p.15) ressalta a importância da vida e da saúde, “[...] cuja posse e distribuição determinam o grau de desenvolvimento e qualidade de uma sociedade e da eficiência de um governo”. Podem ter contribuído para isso as denúncias de Henry K. Beecher, em 1966, contra 22 pesquisas nos EUA, em que seres humanos eram tratados à moda nazista; mesmo depois das edições do Código de Nuremberg, em 1947, e da Declaração de Helsinque, em 1964. Desse modo, práticas, posturas e procedimentos das áreas biomédicas, embora clássicas, são questionadas e julgadas abertamente, ao passo que são substituídas por alternativas mais humanistas. Código de Nuremberg, é um documento, com 10 tópicos, retirado após o Tribunal Internacional de Nuremberg, em 1947, que, ao julgar os crimes nazistas, decidiu que não seriam mais toleradas BIoÉTIcA | UnIDADe 1 25 as práticas médicas e científicas com seres humanos, que não respeitassem a dignidade do ser humano e o poder de consentir sua livre participação ou submissão a pesquisas e procedimentos clínicos. Você pode acessar esse código, na íntegra e em português no sítio http://www.bioetica.ufrgs.br/nuremcod.htm (acessado em 14/06/2012). Declaração de Helsinque, ou Declaração de Helsinki, é um documento da Associação Médica Mundial, elaborado inicialmente em 1964, mas já revisadodiversas vezes e motivo de discórdia entre vários países, especialmente aqueles que são polos da indústria farmacêutica. Esse documento resguarda os princípios do Código de Nuremberg e assegura obrigações de reparação a danos causados em virtude de pesquisas ou procedimentos aos sujeitos da pesquisa, bem como o acesso aos resultados e produtos por parte da população. Você pode acessar esse documento, na íntegra e em português no sítio http://www.bioetica.ufrgs.br/ helsin1.htm (acessado em 14/06/2012). Isso tudo cria uma nova linguagem, incluindo termos como: consentimento informado (que após a Resolução 196/96 do CNS/MS mudou para Termo de Consentimento Livre e Esclarecido), princípios de independência, emancipação e autonomia do paciente, entre outros. Comitês de Ética em Pesquisa A criação e funcionamento dos CEH (Comitês de Ética Hospitalar), dos CBHs (Comitês de Bioética Hospitalar) e dos CEPs (Comitês de Ética em Pesquisa) são também diferenciais genealógicos de Bioética. Segundo Clotet (2003, p.18), tais comitês foram criados em um espírito de proteção e orientação das pesquisas envolvendo seres humanos, e não para funcionarem como empecilhos ao desenvolvimento da pesquisa científica das áreas biomédicas. Por isso, a “[...] função primária desses organismos não é decidir nem policiar, mas proteger e orientar”, de onde se exige a participação da sociedade na formação desses comitês. É muito importante notar que emancipação e autonomia não são sinônimos. A autonomia diz respeito à capacidade de um indivíduo ser reconhecido como capaz de tomar certas decisões, o que será sempre condicionado ao seu repertório de possibilidades efetivas para agir ou deixar de agir. A emancipação, por sua vez, é a condição indispensável para que um sujeito possa ser considerado autônomo. Ela é a ampliação dos seus repertórios. filosofia26 Justamente por essa ampla participação, bem como pela representação de usuários, tais comitês diferem dos comitês e tribunais de ética tradicionais, cuja composição dominante, quando não exclusivamente, é escolhida entre os pares. Os comitês de ética têm uma forte aproximação com o “princípio da alteridade” de Emanuel Levinás, de onde se oriunda a clara exigência da participação do usuário para a sua formação. A primeira manifestação oficial brasileira data de 1988, quando foi promulgada pelo Conselho Nacional de Saúde a Resolução 01/88, ficando praticamente inoperante até a sua substituição pela Resolução 196/96, do mesmo conselho. Dessa resolução em diante, Bioética despontou em todo o território nacional como um verdadeiro movimento social, abrangendo tanto as instituições públicas e privadas, quanto os indivíduos. Ganham destaque nesse movimento, os Comitês de Ética em Pesquisa, os Comitês de Bioética, os Comitês de Ética Hospitalar, além dos Comitês de Bioética ligados a laboratórios, empresas, conselhos profissionais e associações, bem como a implementação de disciplinas e cursos de Bioética para a população. Os Comitês de Ética em Pesquisa estão ligados em rede dentro do sistema CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa). As informações sobre composição e funcionamento desses comitês podem ser encontradas no sítio oficial da CONEP: http://conselho. saude.gov.br/web_comissoes/conep/index.html (acessado em 14/06/2012). Necessidade de um paradigma moral A necessidade de um paradigma moral que possa ser compartilhado por pessoas de moralidades diferentes é outra base genealógica sobre a qual Clotet (2003, p.19) funda a Bioética. Para ele, existe uma exigência mundial de se encontrar “[...] alguns princípios comuns para que se resolvam problemas também comuns, decorrentes do progresso das ciências biomédicas e da tecnologia científica aplicada à saúde”. BIOÉTICA | unIdAde 1 27 Essa base comum não pode ser como na ética tradicional, uma ética de máximas, do mesmo modo que também não pode ser aos moldes da ética analítica, que apenas examina os proferimentos morais sem propor decisões concretas. Por essa razão, e outras, Adela Cortina propõe uma ética de mínimos. Cortina (2009) critica os excessos cometidos pela ética analítica, ao que ela chama de ética sem moral, e defende uma moral de mínimos, em contrapartida à moral de máximas, como a kantiana. Parte do procedimentalismo e do discurso da ética, em defesa da racionalidade no âmbito prático e o caráter universalista e dialógico da ética. Do mesmo modo, defende que a racionalidade sozinha não fundamenta a ética. É preciso ter em conta as circunstâncias históricas e culturais que operam as valorações, bem como lutar por elas. A inserção da virtude como regra dos princípios seria a solução para não se cair em um principialismo vazio. Salvação da Ética Entende-se a “Salvação da Ética” como o crescente interesse da Ética para os temas que se referem à vida, à reprodução e à morte do ser humano. Para autores como Clotet (2003) e Cortina (2009), a ética analítica teria afastado a ética filosófica da moral e, consequentemente, deixado de se preocupar com problemas concretos para se preocupar apenas com problemas de linguagem. Cortina (2009), a esse respeito, frisa, sobretudo, a salvação da Ética filosófica e da Ética teológica, uma vez que está bastante influenciado pela obra de Walters, que relaciona Teologia e Bioética sob um paradigma cristão-católico. Esse tópico realça uma dupla importância no universo das teorias: o da Ética sobre as práticas médicas e o das práticas médicas sobre a Ética. Você acha que a ética analítica, de fato, afastou a ética filosófica da moral? Que a única preocupação da ética analítica seja, de fato, a resolução de problemas da linguagem moral? filosofia28 As bases conceituais da Bioética Apesar de a origem do termo nos remeter ao trabalho de Fritz Jahr, ainda no início do século XX, as definições mais utilizadas de Bioética foram, certamente, as elaboradas por Van Rensselaer Potter, Warren T. Reich e David Roy. Isso porque, quando foi fundado, em 1971, o Instituto Kennedy de Ética na Universidade de Georgetown pelo neonatologista André Hellegers, como o primeiro Centro Nacional para a Literatura de Bioética e primeiro programa de pós-graduação em Bioética do mundo, estava-se assumindo uma tradição discursiva que ditaria as regras conceituais do termo. Justamente por isso, tem sido bastante difícil para qualquer outra concepção de Bioética manter-se, a não ser como uma vertente revisionista ou apócrifa dessa tradição. Mesmo os países em que as experiências de pesquisa e atentado à dignidade humana ou convivência ambiental são totalmente distintas das que deram suporte às reflexões dessa tradição são obrigados a se colocarem à sua disposição. Definição de Fritz Jahr Fritz Jahr apresentou em um artigo da revista Kosmos, em 1927, a proposta de um termo, Bio Ethik, como a necessidade emergente de obrigações éticas não apenas com o homem, mas com todos os seres vivos. De cunho religioso-franciscano e evidentemente não-especista, a proposta de uma atenção indiferenciada à vida reaparecerá entre bioeticistas católicos (como Leonardo Boff), com um antiespecismo moderado, e ateus (como Peter Singer), com um antiespecismo radical, dando forte respaldo às reflexões antiespecistas de Jahr. O termo proposto por Jahr (1927) seria a reunião da palavra Bio + Ethik, oriundas do alemão e se refere não a um conceito, no sentido clássico, mas a um imperativo, o que ele chamou de imperativo Bioético, sob a forma: “Respeita cada ser vivo em princípio como uma finalidade em si e trata-o como tal na medida do possível”(JAHR, 1927, p.2). É a postura filosófica, teológica e moral que elege as qualidades de uma espécie (geralmente a espécie humana) como critério para julgar as demais espécies. O especismo tem como principal oponente o antiespecismo, mas também existe o especismo moderado e o não- especismo. BIOÉTICA | unIdAde 1 29 Nesse sentido, não só a ideia de Bioética como uma ética antiespecista, mas igualmente como ética deontológica, ou seja, baseada no princípio das ações, são, portanto, credoras da elaboração de Jahr. Definições de Van Rensselaer Potter A primeira das definições de Van Rensselaer Potter é considerada por muitos autores como a própria inauguração da Bioética. Essa definição procura combinar os conhecimentos das ciências da vida (representados pela Biologia) com os conhecimentos humanísticos. Na intenção de Potter, Bioética não seria apenas uma reflexão social ou uma crítica literária, mas uma ciência. Ciência essa preocupada com prioridades profissionais e ambientais para o que ele chamou de uma sobrevivência aceitável. A sua primeira definição apareceu em 1970, por ocasião da publicação de um artigo intitulado Bioethics: the Science of Survive, quando escreveu: Eu proponho o termo Bioética como forma de enfatizar os dois componentes mais importantes para se atingir uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: o conhecimento biológico e valores humanos (POTTER, 1970, p.128). Contudo, o conceito que passou para a história, como o conceito de Bioética potteriano, foi aquele publicado em 1971, por ocasião do lançamento de seu livro: Bioethics: the Bridge to the Future. A Bioética é a combinação da biologia com conhecimentos humanísticos diversos constituindo uma ciência que estabelece um sistema de prioridades médicas e ambientais para a sobrevivência aceitável (POTTER, 1971, p.2). Essa definição estaria sob a tutela da ética, como mais adiante ele coloca, e se deteria sobre temas ligados às ciências da vida. Assim, Bioética é também “[…] o ramo da ética que enfoca questões relativas à vida e à morte, propondo discussões sobre alguns temas, entre os quais prolongamento da vida, morrer com dignidade, eutanásia e suicídio assistido (POTTER, 1971, p.117). filosofia30 Esse conceito, revisto e reafirmado pelo próprio Potter, em 1988, em seu livro Global Bioethics. Building on the Leopold Legacy, consolidou- se como a definição de Bioética mais usada pelos potteristas. Uma contribuição importante para essa difusão foi dada por André Hellegers, quando passou a utilizá-lo e divulgá-lo de modo institucional, “[...] para significar o novo campo de pesquisa biomédica” (CLOTET, 2003, p.33), com a criação, em 1971, do The Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and Bioethics, e, posteriormente, o Kennedy Institute of Ethics. Percebe-se, portanto, que as definições de Potter, com o suporte e a orientação dados por Hellegers, apresentam Bioética como algo diferente da orientação deontológica de Jahr (1927). Não se trata de uma verificação dos princípios de ação, mas das escolhas que fazemos para tornar o futuro suportável ou não, o que significa que suas definições coadunam com as éticas consequencialistas, para as quais são as consequências das ações ou de princípios, o que deve ser especialmente observado nas escolhas morais. Igualmente se percebe certa tendência de superação do especismo potteriano. Se, inicialmente, a concepção de Bioética dele o aproxima da defesa de uma sobrevivência humana, como aparece em 1970, isso é revisado até o ponto de ceder às intenções não-especistas, com a assunção de uma Bioética global, em 1988. Com essa noção de Bioética global, que considera tanto o ser humano como um todo quanto todas as espécies de vida deste planeta, Potter (1988) se afasta bastante do que propôs em 1970, quando a preocupação era apenas com a sobrevivência humana. Digamos, contudo, que ele não assume uma postura antiespecista, mas apenas a de um não-especismo, uma vez que ainda continua antropocêntrico. O que ele faz, é apenas reconhecer que essa sobrevivência humana não depende exclusivamente dele, mas também da sobrevivência de outras espécies. Definições de Warren T. Reich A primeira definição elaborada por Warren T. Reich, membro do Kennedy Institute of Ethics, em 1978, é menos ousada que as de Potter (1970; 1971), haja visto que Reich (1978) não advoga um estatuto BIOÉTICA | unIdAde 1 31 científico para Bioética, se contentando em apresentá-la como um estudo sistemático. No entanto ele procura explicitar o caráter moral desse estudo, acrescentando-lhe o atributivo variedade metodológica. Ainda não fala de interdisciplinaridade como inerente a Bioética, mas apresenta-a como um cenário no qual esse estudo deverá se desenvolver. Intuitivamente Reich (1978) diferencia ética de moral e as reúne em Bioética. Essa definição apareceu na Encyclopedia of Bioethics, nos seguintes termos: "Bioética é o estudo sistemático da conduta humana, no âmbito das ciências da vida e da saúde, examinada à luz de valores e de princípios éticos" (REICH, 1978, p.116), que depois foi revisada, em um artigo de 1995, ‘The word bioethics: the struggle over its earlier meaning, para uma definição mais definitiva e usual entre os pesquisadores, compilada, inclusive na edição de 1995, da Enciclopédia de Bioética: Bioética é o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão moral, decisões, conduta e políticas – das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar. âmbito das ciências da vida e da saúde, examinada à luz de valores e de princípios éticos (REICH, 1995, p.XXI). Evidentemente especista, ou, no mínimo, de um antropocentrismo radical, as definições de Reich (1978, 1995) estão mais preocupadas com a eliminação do caráter epistemológico presente em Potter (1970; 1971), ou seja, com a natureza de Bioética. A eliminação do caráter epistemológico (e sua substituição por uma reflexão mais aberta) é apenas uma face do imperativo político com o qual Reich (1978, 1995) se depara: a vida acadêmica. Essa vida acadêmica está centrada nas subjetividades (ou nos egos) com os quais os moralistas se deparam, o que exige que seus discursos sejam direcionados para as suas condutas, fazendo dessa concepção de Bioética uma aproximação com a ética das virtudes, pois o foco é o caráter moral dos agentes. Outra aproximação da vida acadêmica é a exigência da elaboração de certas sínteses intelectuais – uma influência kantiana nas universidades, certamente, o que descamba para a visão enciclopedista. No entanto, filosofia32 uma definição enciclopédica não satisfaz a totalidade dos pesquisadores, em especial, porque novas questões e novos paradigmas aparecem constantemente, desafiando as sínteses recém acabadas. Dentre os novos desafios impostos à Enciclopédia estão aqueles abertos com a pós-modernidade, ou a revisão das éticas especistas. Definições de David Roy A definição elaborada por David Roy, na verdade, faz parte de uma tradição católica canadense de Bioética, revisionista da tradição americana, que envolve também nomes como Engelhardt (1991) e Durant (1995). Tal tradição, próxima da visão enciclopedista, também não tem a pretensão de apresentar Bioética como uma ciência, mas como um estudo interdisciplinar, do mesmo modo que se mantém no horizonte da ética das virtudes, porque foca no caráter dos agentes. No entanto, diferente da visão de Reich (1978, 1995), ela acrescenta duas propriedades essenciais à Bioética: a qualidade da interdisciplinaridadecomo inerente à Bioética, o que não apareceu em Reich (1978, 1995), mas estava presente em Potter (1970; 1971), e o termo responsável: a administração deve ser responsável, que vai aparecer na definição de 1988 de Potter. A máxima dessa tradição é que Bioética deve facilitar um consenso responsável tornando a sobrevivência aceitável. Ou seja, mantém um foco evidente no caráter dos agentes, mas assume perspectivas con- sequencialistas. No entanto seu consequencialismo é assumidamente especista, uma vez que, como Roy (1979) defendeu, Bioética deve es- tudar exatamente as condições exigidas para a administração da vida humana. E por vida humana se compreende tanto o seu aspecto geral (a vida humana) quanto o seu aspecto particular (a pessoa humana). Ou seja, o que é importante nas elaborações de Bioética é a vida de uma determinada espécie. Na definição de Roy (1979), esse especismo é justificado graças à preocupação com um rápido e complexo progresso do saber das tecnologias biomédicas. Assim ficou a sua definição: BIOÉTICA | unIdAde 1 33 A Bioética é o estudo interdisciplinar do conjunto das condições exigidas para uma administração responsável da vida humana, ou da pessoa humana, tendo em vista os progressos rápidos e complexos do saber e das tecnologias biomédicas (ROY, 1979, p.60). A essa justificação Engelhardt (1991, p.19) acrescentou que Bioética “[...] funciona como uma lógica do pluralismo, como um instrumento para a negociação pacífica das instituições morais”, ao que Durant (1995, p. 22) chamou de “[...] pesquisa de soluções para os conflitos de valores no mundo da intervenção biomédica”. Ou seja, Bioética aparece como uma mediação de conflitos preocupada com a sobrevivência da espécie humana, o que é diferente de ser militante ou partidária do antiprogresso científico. Dessas definições saíram praticamente todas as tradições de Bioética com a qual convivemos hoje, desde aquelas mais analíticas às mais moralistas ou religiosas, cujo resultado significa que quando usamos o termo Bioética, não estamos pronunciando um termo unívoco. São muitas as tendências contemporâneas para essa área de reflexão. No entanto elas têm em comum algumas áreas de atuação, mais conhecidas como tópicos de abrangência, dentre os quais destacamos: • Experiências com células-tronco; • Clonagem; • Transplante; • Aborto; • Eutanásia; • Mistanásia; • Ortotanásia; • Alimentos transgênicos; • Reprodução Humana Assistida; • Responsabilidade científica; • Consentimento; • Justiça; • Autonomia; filosofia34 • Paternidade; • Tecnologias Medicamentosas; • Armas químicas; • Vírus artificiais; • Direitos dos animais; • Patente sobre material biológico, etc Essas áreas demandam, cada qual ao seu modo, diversos problemas que são abordados sob as diversas valorações, que chamamos de paradigmas ou enfoques de Bioética, cujo assunto será tratado na unidade a seguir. considerações sobre o conteúdo da unidade Embora a maioria dos historiadores e escritores sobre Bioética remetam a sua origem à década de 1970, nos Estados Unidos, com Potter, a pesquisa sobre sua genealogia nos apresenta Bioética como um movimento mais amplo e de origens mais tardias. Não se trata apenas de dizer que o termo foi forjado em 1927, por Jahr, muito antes de Potter, em 1970, e que ali já se encontravam as bases do que a reflexão posterior viria assumir ou negar em termos de objetos de análises bioeticistas. Mais do que isso, Bioética se mostrou ser um movimento que começou, paulatinamente, com o eclodir das ciências ocidentais nos séculos XIX e XX. Ela é a outra face desses desenvolvimentos. E não começou de uma forma pura, mas presente em meio a obras literárias, como as de Stevenson e Shelley, e filosóficas, como as reflexões de Rousseau, Nietzsche, Weber e Marx sobre as ideologias científicas. Antes de Bioética ganhar um nome, ela já estava presente e se solidificando, como uma preocupação com as consequências que um modelo desenfreado de ciência poderia trazer para os organismos BIOÉTICA | unIdAde 1 35 vivos, especialmente os humanos. Ela se projetava entre a classe intelectual que via, nesse modelo de desenvolvimento científico, um risco potencialmente danoso e que deveria ser controlado. Ela germina, portanto, no âmbito das preocupações éticas e científicas, mas eclode como uma necessidade social especialmente após os eventos ocorridos nos campos de concentração nazistas, poloneses e americanos. Do mesmo modo, se mantém como necessidade porque suspeitam-se, com sérias evidências, que as práticas que sustentaram as ciências naqueles experimentos não desapareceram do mundo. Elas são, ainda, uma realidade em muitos países, e não somente em países distantes e empobrecidos. Além disso, novas questões surgem. Questões para as quais as regulamentações de condutas atuais, éticas, religiosas e jurídicas podem não ter respostas. Surgem em velocidade e complexidade que nos desafiam a pensá-las, renovadamente, em novos e múltiplos paradigmas. E, mesmo assim, pode ser que não encontremos respostas a todos os seus desafios. Bioética é, talvez, o tipo de desafio às regulamentações de conduta que mais traz perguntas que respostas. A propriedade dialogal, multidisciplinar, não é apenas uma ferramenta metodológica dessas narrativas, mas uma necessidade epistemológica, sem a qual nenhuma competência cognitiva isolada (a religião sozinha, a ética sozinha, o direito sozinho) dará conta. ResUMo É importante não esquecer que Bioética não é um movimento homogêneo, mas diversificado e legitimamente divergente. Sua origem se liga, especialmente, às preocupações com as consequências e os modelos de desenvolvimentos técnico-científicos contemporâneos que manipulam organismos vivos ou interferem na sua forma de organização. filosofia36 Essa preocupação é legitimada pela exposição de experimentos científicos que foram realizados e causaram muito mal aos seus participantes, apesar das conquistas para a humanidade decorrente deles, como aqueles feitos pelos nazistas e que foram denunciados no Tribunal de Nuremberg. Mas também pela medicalização da vida e sua consequente expansão do poder médico sobre a população. Também é importante notar que Bioética não é um movimento de mão única. Ele envolve diversos sujeitos, individuais e coletivos, e reúne conquistas (e perdas) de muitas lutas sociais em favor de maior controle social das pesquisas, mais acesso aos seus resultados e, principalmente, mais assistência com qualidade à saúde e necessidades sociais das populações mais carentes. Além disso, há também aqueles que defendem a importância de defender a vida do planeta, incluindo nisso a defesa da espécie humana ou não. É a polêmica em torno da questão do especismo, que trataremos mais a fundo em outra unidade. Bioética não tem uma única definição, mas várias, desde as mais desesperadoras àquelas que acreditam que Bioética é a salvação da ética. Em meio a esses extremos, muitas outras operam com a multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade e convidam a todas as áreas a pensar as questões Bioéticas porque é um saber necessário, mas inacabado. Quais são os diversos contextos que originaram Bioética? Qual é a condição de possibilidade para que a questão de fundo de todas as propostas de Bioética passem pela análise do argumento que coloca em pauta a preocupação ou não com o futuro do planeta e das espécies atuais, especialmente a humana? BIOÉTICA | unIdAde 1 37 Apesar de a origem do termo Bioética nos remeter ao trabalho deFritz Jahr, ainda no início do século XX, as definições mais utilizadas de Bioética foram, certamente, as elaboradas por Van Rensselaer Potter, Warren T. Reich e David Roy. Isso porque, quando foi fundado em 1971 o Instituto Kennedy de Ética na Universidade de Georgetown pelo neonatologista André Hellegers, como o primeiro Centro Nacional para a Literatura de Bioética e primeiro programa de pós-graduação em Bioética do mundo, estava- se assumindo uma tradição discursiva que ditaria as regras conceituais do termo. Quais são essas definições? Qual a diferença principal entre as concepções de Fritz Jahr, Van Rensselaer Potter, Warren T. Reich e David Roy? CAZUZA; FREJAT. R. Ideologia. Disponível em: <http://letras.terra.com. br/cazuza/43860>. Acesso em: 26 dez. 2008. CLOTET, J. Bioética: Uma aproximação. Porto Alegre: EDPUCRS, 2003. CORTINA, A. Ética mínima. São Paulo: Martins Fontes, 2009. DURANT, G. A Bioética: natureza, princípios, objetivos. São Paulo: Paulus, 1995. ENGELHARDT, H.T. Manuale di Etica. Milano: Il Sagiatore, 1991. JAHR, F. Bio Ethik. Eine Umschau über die ethichen Beziehung des Meschen zu Tier und Pflanze. Kosmos. 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Um dos primeiros, já em 1978, foi Reich (1978), que coordenou uma tentativa de compilar essas discussões sob a forma de enciclopédia, da qual resultou a Enciclopédia de Bioética, revisada pela primeira vez em 1995. Em 1998, Singer e Kuhse (2001) organizaram um compêndio, Compêndio de Bioética, que tomou como ponto de partida justamente a pluralidade de opiniões sobre temas e definições de Bioética. Ainda no âmbito das produções coletivas, dessa vez sob a tutela de entidades representativas, temos três importantes declarações. a) Declaração de Gijón, produzida pelo Comitê Científico da Sociedade Internacional de Bioética, em junho de 2000; b) Declaração Ibero-Latino-Americana, datada de 1996 e revisada em 1998, produzida pelos participantes do Encontro sobre Bioética e Genética de Manzanillo, em 1996, e de Buenos Aires, em 1998, procedentes de diversos países da América Ibérica e da Espanha; e, oBJeTIVo DesTA UnIDADe: Tipificar os paradigmas, enfoques, vertentes e valorações classificatórias das narrativas bioeticistas. 2 BIoÉTIcA: discursos, paradigmas e enfoques FILosoFIA40 c) Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, homologada pela Unesco, em 2005, durante sua 33a conferência. Em todos os casos, individuais ou coletivos, tratam-se de compilações consensuais que focam a discussão em problemas éticos e políticos típicos dos países capitalistas desenvolvidos, o que produziu novos dissensos. Em função desse perfil, vários autores da África e da América Latina vêm destacando a necessidade da inserção de questões pertinentes aos problemas dessas regiões do planeta nas discussões sobre Bioética. Na América Latina, como é o nosso caso, tem se sobressaído tanto a imitação de modelos bioeticistas tipicamente euro-americanos quanto a busca por modelos mais consonantes com a ética da vida. Por ética da vida, na ótica de Clotet (2003, p.47), tem se nomeado a luta dos povos desse continente por alimentação, saneamento básico, transporte, trabalho, renda, justiça e dignidade, culminando na necessidade de uma Bioética da pobreza. O argumento de Clotet (2003) para a inserção de uma Bioética da Pobreza é o de que a peste do século XX não é a Aids, mas a pobreza. Em função disso, se não houve desenvolvimento técnico-científico na América Latina que justifique o temor do descontrole da ciência, tal como tem aparecido na Europa e EUA pós-guerra, há, no mínimo, o temor da cobaia. A razão desse temor seria decorrente das revelações que vieram à público com os escândalos de Nuremberg (Alemanha nazista), em 1947, e Belmonte (EUA), em 1978, nos quais ficou-se sabendo que as populações mais vulneráveis foram (ou são?) usadas como cobaias para testes de novos fármacos e técnicas terapêuticas. No Brasil, em termos de produção coletiva sob a forma de compêndios e manuais já temos uma quantidade a perder de vista, como nos mostra Braga (2002). No entanto, com o intuito de compilar os diversos sentidos de Bioética somos mais tímidos, destacando-se os esforços BIoÉTIcA | UnIDADe 2 41 de Pessini e Barchifontaine (2005), Zoboli (2003), Pozzi (2001) e Gurgel (2010). Classificação dos paradigmas de Pessini e Barchinfontaine Pessini e Barchifontaine (2005, p.46-49) propuseram, em 1995, a reunião dos mais diversos sentidos da Bioética americana em 10 paradigmas, a saber: • Principialista; • Libertário; • Das virtudes; • Casuístico; • Fenomenológico e hermenêutico; • Narrativo; • Do cuidado; • Do direito natural; • Contratualista; e, • Antropológico personalista. Classificação dos enfoques de Zoboli Zoboli (2003, p.29-31) rejeita a nomenclatura paradigmas, preferindo enfoques, e tornou popular quatro: • Principialista; • Das virtudes; • Do cuidado; e, • Casuística. Classificação das vertentes valorativas de Pozzi Pozzi (2001) também não chama de paradigmas, mas de Vertentes valorativas da Bioética Contemporânea. Trata-se de uma sistematização dos tipos de discursos com base na análise de conteúdos. Para essa autora, existem vertentes valorativas que podem ser usadas como FILosoFIA42 marcadores dos conteúdos discursivos sobre Bioética. Sua análise propõe três modelos: situacionista, moderantista e oposicionista, conforme se observa no quadro a seguir: Quadro 1: Vertentes valorativas da Bioética Contemporânea de acordo com Pozzi Bioética Situacionista Bioética Moderantista Bioética Oposicionista Dissolução crítica do sujeito de conhecimento na aceitação da suposta neutralidade tecno-científica. Perspectiva crítica do sujeito de conhecimento no contexto da vigília sobre os usos e aplicações do conhecimento. Perspectiva crítica do sujeito de conhecimento a partir da mudança de cosmovisão e da natureza do conhecimento. Bases racionalistas, utilitaristas, positivistas, pragmáticas, tendo o sujeito pleno domínio da liberdade e exercício ilimitado das possibilidades do conhecer, intervir e agir. Bases racionalistas e deontológicas. Bases filosóficas de crítica ao racionalismo e ao dualismo. Incorporação do sentimento como elemento constitutivo de moralidade. Metafísica. Microética secular. Macroética secular e religiosa institucional. Macroética secular/mística/religiosa institucional. Justificadora e legitimadora do progresso quantitativo ilimitado. Utópica. Crítica do progresso quantitativo ilimitado e suas possíveis consequências Ajustes na utopia. Crítica aoprogresso quantitativo ilimitado através de propostas superadoras. Não- utópica. Antropocêntrica contemporânea com bases no individualismo e apologia do sujeito racional na perspectiva dualista. Antropocêntrica com incorporação da solidariedade social e discussão sobre sentido mais abrangente da alteridade. Não-antropocêntrica e não contemporânea. Aplicada. Normativista. Estabelecimento de regras de ação sobre critérios mínimos sem aprofundamento no campo axiológico. Tentativas de articulação entre o campo dos valores e das normas. Em fase de grande esforço de fundamentação teórica. Bioética de resultados. Eficácia. Ação a-posteriori. Adequação social aos benefícios. Imperialismo do Fazer. Inevitabilidade do processo. Bioética analítica. Implicações e avaliações sociais, políticas, econômicas e culturais do impacto tecno-científico. Ação a posteriori. Avaliação dos riscos e benefícios. Delimitação do fazer e adequação prudente do ser perante sua potencialidade. Inevitabilidade do processo: necessidade de controle. Bioética analítica e ação a-priori. Desconstrução dos pressupostos fundacionais da tecnociência e previsão negativa a longo prazo dos avanços tecno- científicos. Perspectivas superadoras em termos de pensamento e ação. O fazer visto a partir de doutrinas do Ser. Especialização e institucionalização oficial. Institucionalização, transdisciplinaridade. Transdisciplinaridade e institucionalização alternativa. Cosmovisão Moderna Cientificista. Cosmovisão Moderna não cientificista. Cosmovisão Pós-Moderna. Visão «molecular» e reducionista, da Natureza, entendida como matéria em movimento, máquina (fenômenos externos).Objeto exterior de domínio. Reprodução e hereditariedade objetivadas em sistemas determinísticos. Os seres vivos são redutíveis às suas partes físicas e bio-químicas elementares. Manipulação empírico intervencionista e abstração matemática. Intervenção no processo evolutivo natural. Mantém a ideia de um objeto de conhecimento despojado de valor e a separação do Ser e do Dever-Ser, sem questionar os pressupostos ônticos da cosmovisão científica. Teorias biológicas da auto-organização e dos sistemas complexos(cosmovisão sistêmica). Holismo. Filosofias e teorias (busca de fundamentos filosóficos, científicos e religiosos que favoreçam o entendimento da Natureza do ponto de vista teleológico e finalístico. Os seres vivos não podem ser reduzidos às suas partes. Interdependência e interconexão. Ser humano: ser vivo singular e em vínculo de pertença. Responsabilização formal e resolução de conflitos entre partes. Responsabilização formal crítica Responsabilização ontológica. Fonte: POZZI (2003, p.315) BIoÉTIcA | UnIDADe 2 43 Classificação das valorações axiológicas de Gurgel Por fim, mas não menos importante, Gurgel (2010) faz uma leitura analítica das narrativas bioeticistas e propõe classificá-las pela análise axiológica das valorações (GURGEL, 2003) com as quais esses autores operam. As perguntas norteadoras são: o que se encontra como sentido oculto nas mais diversas abordagens de Bioética? O que há além do espetacular em muitos desses acontecimentos que têm passado à ordem do dia como o jeito contemporâneo de se fazer ética? Qual o sentido ontológico, aquele que designa as propriedades do termo Bioética e cuja valência está para além de suas delimitações consensuais? A que tem servido esse termo na sociedade contemporânea? A hipótese apresentada em Gurgel (2010) é a de que Bioética é uma valoração como outra qualquer, portanto, submetida às mesmas regras axiológicas da valoração em geral, conforme observa-se na estrutura dos seus proferimentos. Essas regras nos dizem que uma sentença axiológica é uma valoração (ou juízo de valor) cujos termos estão definidos pelos seguintes tipos de valorações bioeticistas: • Bioética como valoração normativa; • Bioética como valoração aplicada; • Bioética como valoração descritiva; e, • Bioética como valoração analítica. Graças à sua simplicidade, e como o objetivo não é cobrir todas as tipologias dos paradigmas bioéticos, vamos aprofundar, neste curso, a classificação proposta por Zoboli (2003), ao mesmo tempo que acrescentamos algumas contribuições ao seu trabalho. Teoria dos enfoques em Bioética A multiplicidade de discursos é reunida por Elma Zoboli em quatro enfoques, já mencionados, cada um com suas variantes internas, mas que podem funcionar como tipos-ideais nos quais são pensados contemporaneamente a Bioética. A saber: FILOSOFIA44 Enfoque principialista O Enfoque principialista dá ênfase aos princípios e aos atos, mais afiliado à Ética normativa. De acordo com Zoboli (2003, p.25), Tom Beauchamp e James Childress, em 1979, se tornaram os responsáveis pelo lançamento desse enfoque, especialmente após a publicação da obra Princípios de ética biomédica, em 1979, na qual sugerem uma Ética médica fundamentada em quatro princípios: a beneficência, a não- maleficência, a autonomia e a justiça. As teorias principialistas de Beauchamp e Childress (2001) repousariam sobre as teses de Ross (1930), para o qual os princípios são prima facie, isto é, obrigam a ação de forma condicional – dependendo do contexto no qual ocorrem os conflitos. Não há, portanto, uma hierarquia de valores a priori. É bem verdade que nem todo principialista permanece fiel à tese condicionalista de Ross (1930). Alguns, como Gracía (1998), já romperam com essa postura e buscam trabalhar com um principialismo hierárquico. Em suma, o Enfoque principialista tem as seguintes qualidades, como escreve Zoboli (2003, p.27): O principialismo não faz abstração de caos, porque as compreensões dos princípios e de suas implicações tornam-se possíveis com a realização de juízos em circunstâncias concretas. O enfoque principialista, com efeito, centra-se na análise dos atos, especialmente os conflitivos, buscando o modo de resolver as pendências. Assim, nas deliberações relativas à assistência médico- sanitária, esta teoria ética pode, e deve, dialogar com outras. Os princípios constituem referenciais que alertam para a necessidade de não ser maleficente, de não ser injusto, de respeitar a autonomia das pessoas e de ser beneficente para com elas. O principialismo tem influenciado muitos autores brasileiros, em especial aqueles de tendência mais normativa. No entanto, mesmo autores que pregam que Bioética é única e exclusivamente uma espécie de Ética aplicada, têm recorrido a esses princípios. Enfoque da casuística De acordo com Zoboli (2003), outro enfoque nos estudos atuais de Bioética é o da casuística. Esse, mais de tendência histórica, se liga BIOÉTICA | unIdAde 2 45 diretamente às preocupações de médicos, teólogos e filósofos que estavam voltados para os problemas que assolavam o mundo na década de 1960, especialmente, na sociedade norte-americana. Trata-se de uma postura que traz as discussões teóricas para a análise de casos concretos, como lembra Zoboli (2003, p.28): “[...] percebem- se discutindo casos, e não teorias, sentindo a necessidade de uma abordagem que se mantenha mais próxima das particularidades e circunstâncias da situação em foco”. Essa postura recebeu o nome de “método de casos”, e ficou assim definida: A análise de questões éticas, usando procedimentos de equacionamento baseados em paradigmas e analogias, levando à formulação de uma opinião de expertise sobre a existência e a abrangência de obrigações morais particulares, que são moduladas em termos de regras e máximas que são gerais, mas não universais ou invariáveis, uma vez
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