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EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA, com fundamento no disposto no art. 102, § 1º, da Constituição Federal e nos dispositivos da Lei nº 9.882/99, vem propor a presente ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL com o objetivo de (a) declarar a constitucionalidade dos dispositivos da Lei 5.346/08, do Estado do Rio de Janeiro; ou (b) subsidiariamente, caso a Corte entenda incabível ou improcedente o pedido acima, invalidar a decisão do Egrégio Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, proferida na Representação por Inconstitucionalidade 09/2009 (Processo nº 2009.007.00009), que suspendeu a eficácia do citado ato normativo. DOS FATOS Em 11 de dezembro de 2008, o Estado do Rio de Janeiro editou a Lei nº 5.346, que “dispõe sobre o novo sistema de cotas para ingresso nas universidades estaduais e dá outras providências”. O referido ato normativo tem a seguinte redação (doc. 1): “Art. 1º. Fica instituído, por dez anos, o sistema de cotas para ingresso nas universidades estaduais, adotado com a finalidade de assegurar seleção e classificação final nos exames vestibulares aos seguintes estudantes, desde que carentes: I- negros; II- indígenas; III- alunos da rede pública de ensino; IV – pessoas portadoras de deficiência, nos termos da legislação em vigor; V- filhos de policiais civis e militares, bombeiros e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço. § 1º. Por estudante carente entende-se como sendo aquele assim definido pela universidade pública estadual, que deverá levar em consideração o nível sócio-econômico do candidato e disciplinar como se fará a prova desta condição, valendo-se, para tanto, 2 dos indicadores sócio-econômicos utilizados por órgão públicos estaduais. § 2º. Por aluno da rede pública de ensino entende- se aquele que tenha cursado integralmente todas as séries do 2º ciclo do ensino fundamental e do ensino médio em escolas públicas do território nacional. § 3º. O edital do processo de seleção, atendido ao princípio da igualdade, estabelecerá as minorias étnicas e as pessoas portadoras de deficiência beneficiadas pelo sistema de cotas, admitida a adoção do sistema de auto-declaração para negros e pessoas integrantes de minorias étnicas, e da certidão de óbito, juntamente com a decisão administrativa que reconheceu a more em razão do serviço, para filhos dos policiais civis, militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, cabendo à universidade criar mecanismos de combate à fraude. § 4º. O candidato, no ato da inscrição, deverá optar por qual reserva de vagas estabelecidas no caput e nos incisos I ao V do presente artigo irá concorrer. § 5º. As universidades estaduais, no exercício de sua autonomia, adotarão os atos e procedimentos necessários para a gestão do sistema, observados os princípios e regras estabelecidos na legislação estadual, em especial: I- universalidade do sistema de cotas quanto a todos os cursos e turnos oferecidos; II- unidade do processo seletivo; III- em caso de não preenchimento de vagas reservadas a determinado grupo, estas serão, prioritariamente, ocupadas por candidatos classificados dos demais grupos (art. 1º, I ao V), seguindo a ordem de classificação IV- caso persistam as vagas ociosas depois de esgotados os critérios do inciso anterior, as vagas remanescentes deverão, obrigatoriamente, ser completadas pelos candidatos não optantes pelo sistema de cotas. 3 § 6º. No prazo de um ano anterior ao fim do prazo de prorrogação estabelecido no caput deste artigo, o Poder Executivo instituirá comissão para avaliar os resultados do programa de ação afirmativa, presidida pelo Procurador-Geral do Estado, com representantes dos órgãos participantes do referido programa, além de representantes das instituições da sociedade civil, em cada etnia ou segmento social objeto desta Lei. § 7º. O Relatório da avaliação do programa será publicado e encaminhado à Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro – ALERJ, para fins de acompanhamento. Art. 2º. As cotas de vagas para ingresso nas universidades estaduais serão as seguintes, respectivamente: I- 20% (vinte por cento) para os estudantes negros e indígenas; II- 20% (vinte por cento) para os estudantes oriundos da rede pública de ensino; III- 5% (cinco por cento) para pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor, e filhos de policiais civis, militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço. Art. 3º. É dever do Estado do Rio de Janeiro proporcionar a inclusão social dos estudantes carentes destinatários da ação afirmativa objeto desta Lei, promovendo a sua manutenção básica e preparando o seu ingresso no mercado de trabalho, inclusive mediante as seguintes ações: I- pagamento de bolsa-auxílio durante o período de curso universitário; II- reserva proporcional de vagas em estágios na administração direta e indireta estadual; III- instituição de programas específicos de crédito pessoal para instalação de estabelecimentos profissionais ou empresariais de pequeno porte e núcleos de prestação de serviços. 4 Art. 4º. É mantido o procedimento de declaração pessoal para fins de afirmação de pertencimento à raça negra, devendo a administração universitária adotar as medidas disciplinares adequadas nos casos de falsidade. Art. 5º. O Estado do Rio de Janeiro promoverá, noventa dias antes das inscrições para os exames vestibulares das universidades estaduais, campanha publicitária de orientação social para informar os estudantes destinatários desta Lei. Art. 6º. As disposições desta Lei aplicam-se, no que for cabível, a todas as instituições públicas de ensino superior, mantidas e administradas pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. Art. 7º. Esta Lei será objeto de revisão a ser iniciada seis meses antes do termo final do prazo a que se refere o art. 1º, revogadas as disposições em contrário, em especial a Lei nº 4.151, de 4 de setembro de 2003 e a Lei 5.074, de 17 de julho de 2007.” O ato normativo em questão, que é resultante de projeto de lei de iniciativa do Governador do Estado do Rio de Janeiro, substituiu o anterior sistema de cotas das universidades estaduais, que era regulado pela Lei 4.151/03. As universidades mantidas pelo Estado do Rio de Janeiro são a Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e a Universidade Estadual do Norte Fluminense - UENF. As políticas de ação afirmativa no ensino público superior vêm sendo implementadas há vários anos no Estado do Rio de Janeiro, que foi pioneiro no país nessa questão1. Elas têm gerado resultados extremamente positivos, ampliando o acesso à universidade pública de 1 Em 2000, o Estado do Rio de Janeiro editou a Lei 3.534/2000, instituindo reserva de vagas nas universidades públicas estaduais para candidatos egressos de escolas públicas, e, em 2001, foi promulgada a Lei 3.708/01, prevendo cota nas mesmas instituições de ensino para negros e pardos. Tais atos normativos foram revogados pela Lei 4.151/2003, que tratava do sistema de cotas nas universidades estaduaisfluminenses , que vigorou até o advento da Lei 5.346/2008. 5 estudantes de camadas excluídas da população, e pluralizando, com isso, o corpo discente dessas instituições, sem qualquer prejuízo para a qualidade do ensino ou para o rendimento dos alunos. Neste período, por outro lado, não se percebeu no Estado do Rio de Janeiro qualquer agravamento de tensão ou animosidade social ou racial que possa ser correlacionado, direta ou indiretamente, com tais medidas de democratização do ensino público superior. Contudo, o ato normativo em questão foi impugnado no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, através da Representação de Inconstitucionalidade nº 09/2009, proposta pelo Deputado Estadual Flávio Nantes Bolsonaro, do Partido Progressista (PP/RJ). Na referida representação (autos em anexo – doc. 2), postulou-se a declaração de inconstitucionalidade, em face da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, de toda a Lei Estadual nº 5.346/08. Contudo, na petição inicial (fls. 02/22), foram questionadas apenas as cotas étnicas, que criaram reserva de vagas em favor de negros e indígenas, o que, salvo melhor juízo, configura hipótese de inépcia. Como se percebe da leitura da citada petição inicial, toda a argumentação do representante é relacionada a normas e valores hospedados na Constituição Federal, notadamente o princípio da isonomia, a vedação de discriminações raciais, o acesso igualitário ao ensino e a proteção à segurança jurídica. É verdade que o representante fez referência também a preceitos da Constituição do Estado do Rio de Janeiro que reproduzem os comandos pertinentes da Constituição Federal – são normas de reprodução obrigatória - algumas vezes com pequenas variações de redação. Porém, verifica-se claramente que inexiste na sua impugnação 6 qualquer questão que não se reconduza diretamente à Constituição da República. O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em decisão proferida por 12 votos a 7, em 25/05/2009, concedeu a medida cautelar pleiteada na referida Representação, por decisão da lavra do Desembargador Joaquim Carlos S. Murta Ribeiro, que tem a seguinte ementa: “REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONA- LIDADE DA LEI 5346/2008 – APRECIAÇÃO DE LIMINAR NO SENTIDO DE SUSPENDER A EFICÁCIA DESTE DIPLOMA LEGAL QUE ESTABELECE NOVO SISTEMA DE COTAS PARA INGRESSO NAS UNIVERSIDADES ESTADUAIS – PRESENÇA DO FUMUS BONI IURIS ANTE A PROXIMIDADE DO VESTIBULAR E ANTERIORES REVOGAÇÕES DAS LEIS ESTADUAIS Nº 3.534/2000 E Nº 3.708/2001 – PRECEDENTE JURISPRUDENCIAL NESTE TRIBUNAL ESTADUAL E NO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL – LIMINAR QUE SE CONCEDE PARA SUSPENDER ATÉ A DECISÃO FINAL DE MÉRITO A EFICÁCIA DA LEI ESTADUAL Nº 5.346/2008 ORA IMPUGNADA. Presentes na hipótese os pressupostos legais das medidas cautelares se, como demonstrado nos autos, ocorre plausibilidade da tese exposta, irreparabilidade e insuportabilidade dos danos emergentes do próprio ato impugnado com a realização do certame vestibular 2009. As ações afirmativas, assim denominadas para a inclusão dos menos desfavorecidos, data vênia, não podem ser discriminatórias ao reverso, contrariando expressa disposição da Constituição Estadual em seu artigo 9º, § 1º, que estatui, verbis: “Ninguém será discriminado, prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, idade, etnia, raça, cor, sexo, estado civil, trabalho rural ou urbano, religião, convicções políticas ou filosóficas, deficiência física ou mental, por ter cumprido pena nem por qualquer particularidade ou condição”. Esta a justa posição da hipótese sub examinem. Por igual, testilha a lei estadual impugnada com a Constituição Federal no seu artigo fundamental das garantias individuais: art. 5º, caput, da Constituição Cidadã de 1988, 7 verbis: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, e à propriedade, nos termos seguintes: ... omissis”. A contradição é manifesta quando se tem Lei Ordinária discriminatória por Etnia – Negros e Indígenas –, pela cor - pardos -; convicções filosóficas; e, bem assim, quando ocorre qualquer particularidade ou condição – alunos da rede pública de ensino, pessoas portadoras de deficiência, nos termos da legislação em vigor, filhos de policiais civis e militares; bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço -, o que também é expressamente vedado pela Carta Magna, também no seu artigo 3º, inciso IV: “promover o bem de todos, sem quaisquer preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” Certo, outrossim, que não é o regime de cotas a única ação positiva includente nem a melhor. In casu, vulnera- se de rijo o princípio da igualdade de todos perante a lei e, data venia de doutas opiniões em contrário porventura existentes, pretende-se prática afirmativa includente nas Universidades Estaduais, que, como é do conhecimento de todos é o ponto culminante da pirâmide da Educação no Brasil. Em realidade, tais políticas afirmativas deveriam ter lugar no ensino fundamental e médio, reservando-se às Universidades o critério de mérito. Porque então não aplicar na espécie outras práticas includentes, como o sistema de Bolsas de Estudos? A Lei impugnada, como posta, cria, na verdade, numa proporção de 45% das vagas, privilégios não só para os Afrodescendentes e Índios – aqui numa direta relação com a Etnia, criando-se um “apartheid” até então inexistente em nosso País -, mas, também, para alunos provenientes da rede pública de ensino; pessoas portadoras de deficiência; e filhos de policiais civis e militares e inspetores de segurança da Administração Penitenciária, nesta parte, contrariando de forma cabal e inafastável a parte final do § 1º do Artigo 9º da Constituição Estadual e o inciso IV do art. 3º da Constituição Federal. Em sede do exame liminar só estes argumentos são suficientes para tornarem presentes os pressupostos legais das medidas de urgência: a plausibilidade da tese exposta, o fumus boni iuris, bem como a irreparabilidade dos danos 8 emergentes, o periculum in mora, isto, face a proximidade do certame vestibular. Precedentes jurisprudenciais na Argüição de Inconstitucionalidade Incidenter Tantun nº 15/2009 e no Exame da Liminar do Agravo 2008.02.012162- 1 no Mandado de Segurança nº 2008.50.01.007305- 5. Liminar, pos, que se defere.”( fls. 97/100 dos autos em anexo) Posteriormente, apreciando questão de ordem suscitada pelo Estado do Rio de Janeiro, o Órgão Especial atribuiu eficácia ex nunc à referida medida cautelar, para excluir da sua incidência o vestibular em curso das universidades mantidas pelo Estado do Rio de Janeiro (fls. 545/548 dos autos anexo). Diante dessa decisão, diversas entidades da sociedade civil e do movimento negro, encabeçadas pela Educafro, encaminharam à Procuradoria-Geral da República a anexa representação (doc. 3), postulando a propositura de ADPF no STF, “a fim de garantir a manutenção e permanência das políticas de ações afirmativas já adotadas e bem sucedidas pela UERJ e demais instituições de EnsinoPúblico do Brasil”. No momento, a instrução processual da Representação de Inconstucionalidade nº 009/2009 já foi concluída no TJ/RJ, e o seu julgamento definitivo pode ocorrer a qualquer momento. Sem embargo, a medida cautelar proferida pelo Órgão Especial do TJ/RJ já instaurou grave insegurança jurídica em relação à política de ação afirmativa em discussão. Isto porque, além da importância real e simbólica do instrumento – a ação direta de inconstitucionalidade – o Pleno adentrou na discussão do mérito da medida, para desqualificá-la juridicamente. Como o primeiro vestibular a que se aplica a Lei 5346/2008 ainda está em curso, não há precedentes de controle incidental 9 de constitucionalidade envolvendo a referida lei. Contudo, a decisão do TJ/RJ, apesar de inaplicável a este vestibular, é um verdadeiro convite à judicialização para os candidatos que se sentirem prejudicados com a política de ação afirmativa em discussão, pois sinaliza que, no âmbito daquela Corte, será praticamente certo o êxito, em eventuais impugnações aos resultados do certame. Por outro lado, gera grave insegurança para todo o universo de beneficiários das cotas instituídas pelo legislador fluminense. De resto, o Supremo Tribunal Federal discute no momento a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa no campo da educação superior. Tramitam na Corte, dentre outras ações, a ADI 3.330-1, em que se analisa a constitucionalidade de medidas de discriminação positiva previstas no PROUNI; a ADPF 186, em que se discute a validade das cotas étnicas instituídas pela UnB; assim como o Recurso Extraordinário 597.285/RS, que trata de políticas de ação afirmativa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Houve, inclusive, a convocação de Audiência Pública no STF, a ser realizada nos dias 3 a 5 de março de 2010, para discussão do tema, em louvável iniciativa do Ministro Ricardo Lewandowski, Relator dos dois últimos feitos. Nesse quadro, nada justifica que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em sede de fiscalização abstrata de constitucionalidade, se antecipe à iminente decisão do STF sobre o tema das cotas no ensino público superior, sobretudo quando se percebe a inclinação da Corte Estadual no sentido de invalidar a decisão do legislador fluminense, que vem se esforçando por concretizar, no campo da educação superior, os mandamentos constitucionais de promoção da igualdade material e do pluralismo. 10 DO DIREITO O Cabimento da ADPF A arguição de descumprimento de preceito fundamental ou ADPF, prevista no art. 102, § 1º, da Constituição Federal, e regulamentada pela Lei 9.882/99, é cabível quando um ato do Poder Público causar lesão ou ameaça a preceito fundamental da Constituição, e não houver qualquer outro meio processual apto a saná-las. Tais pressupostos estão plenamente configurados na hipótese. O ato do Poder Público, no caso, é a decisão adotada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que, no julgamento da medida cautelar na Representação de Inconstitucionalidade nº 009/2009, suspendeu, por suposta incompatibilidade com os princípios da isonomia e de proibição de discriminação, a aplicação da Lei nº 5.346/08, que instituíra política de ação afirmativa para acesso às universidades públicas estaduais fluminenses. A lesão a preceito fundamental resulta do fato de que a orientação jurisprudencial seguida pelo TJ/RJ afrontou, por interpretá-los incorretamente, os princípios constitucionais da igualdade substantiva (art. 3º, III e 5º, caput, CF) e da proibição de discriminações arbitrárias (art. 3º, IV, CF). De mais a mais, ao gerar quadro de grave incerteza jurídica, a decisão também violou o princípio de proteção à segurança jurídica, que tem fundamento na cláusula do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, CF). Todos estes princípios, pelo papel destacado que possuem no ordenamento constitucional brasileiro, ostentam indiscutivelmente a qualidade de preceitos fundamentais. Já a inexistência de outro meio para sanar a lesão a preceito fundamental (princípio da subsidiariedade da ADPF, art. 4º, § 1º, 11 da Lei 9.882/99) decorre de duas circunstâncias. Em primeiro lugar, não cabe Ação Declaratória de Constitucionalidade - nem existe qualquer outro instrumento na nossa jurisdição constitucional – para reconhecer a constitucionalidade de ato normativo estadual, uma vez que a Carta de 88 autorizou apenas a propositura da ADC que vise à declaração de constitucionalidade de norma federal (art. 102, I, “a”, in fine, CF). Tampouco existe qualquer outro meio hábil para impugnar a citada decisão judicial. É verdade que cabe recurso extraordinário das decisões definitivas proferidas pelos Tribunais de Justiça na fiscalização abstrata de constitucionalidade dos atos normativos estaduais e municipais, em face das constituições estaduais. Porém, esse recurso é incabível em relação às decisões que apreciam os pedidos de medida cautelar, na linha da jurisprudência do STF2, que se encontra sedimentada em sua Súmula 735. Por outro lado, a posição majoritária do STF também não admite o manejo do incidente de suspensão de liminar, previsto no art. 4º da Lei nº 8.437/92, para sustar os efeitos de decisão de Tribunal de Justiça proferida em sede de controle abstrato de lei municipal ou estadual3. Daí por que o pressuposto da subsidiariedade da ADPF se encontra plenamente configurado no caso. O arguente não ignora a orientação do STF, que demanda a existência de ampla controvérsia jurisprudencial a propósito da validade de um ato normativo, para a admissibilidade da ação declaratória de constitucionalidade.4 Tal exigência justifica-se tendo em vista o princípio de presunção de constitucionalidade das leis. Como o exercício da jurisdição constitucional não pode se confundir com mera consulta 2 RE 570610/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJ 23/05/2008; AI 638462 ED/DF, Rel. Min. Menezes Direito, Primeira Turma, DJ 07/05/2009 3 Susp. Lim. 10 AgR/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJ 16/04/2004; Pet 1534 AgR/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 09/11/2001. 4 Questão de Ordem na ADC nº 1, Relator Ministro Moreira Alves, RTJ 157/1. 12 formulada à Corte Suprema, só se justifica a propositura da ADC diante da configuração de um estado de incerteza sobre a validade da norma discutida, que abale aquela presunção, o qual se evidencia pela existência do dissídio pretoriano. Contudo, cabem aqui algumas rápidas considerações. Em primeiro lugar, a presente ação, embora almeje a declaração de constitucionalidade de um ato normativo, não é uma ADC, mas uma ADPF, e há diferenças entre os pressupostos dessas duas medidas. Por outro lado, não há dúvida de que, pela sua própria natureza, uma decisão proferida no âmbito do controle abstrato de normas, dotada de eficácia erga omnes, que suspende a aplicação de um ato normativo, apontando-lhe diversas supostas inconstitucionalidades, já é mais que suficiente para instaurar um estado de incerteza a propósito da validade da lei em questão, justificando a postulação de reconhecimento da sua constitucionalidade. Além disso, é certo quea Lei 5346/08 apenas introduziu mudanças pontuais no sistema de cotas adotado nas universidades estaduais fluminenses, e, antes do seu advento, já existia ampla controvérsia judicial a propósito da constitucionalidade das normas estaduais que disciplinavam a questão5. Finalmente, seria excessivo formalismo deixar de admitir a presente ADPF, considerando que uma das mais importantes controvérsias constitucionais no país, travada não apenas nos tribunais judiciais, mas também na opinião pública e na sociedade civil, é exatamente a propósito do tema de fundo da presente ação: a legitimidade das políticas de ação afirmativa no ensino público superior. Aliás, não foi por outra razão que o Ministro Ricardo Lewandowski decidiu convocar uma audiência pública no STF, para discussão da questão. 5 A favor da constitucionalidade, os seguintes acórdãos doTJ/RJ: Ap. Civ. 32610/2003, 12910/2004, 26268/2004, e 42897/2005. Em sentido contrário: Ap. Civ. 3512/2004, 4268/2004, e 23440/2005. 13 Porém, caso esta Corte entenda inadmissível o pedido de declaração de constitucionalidade da Lei 5.346/08 do Estado do Rio de Janeiro, pela ausência de demonstração de dissídio pretoriano sobre a sua validade, ou por qualquer outra razão – hipótese que se levanta apenas para argumentar - caberá ainda apreciar a postulação subsidiária, de invalidação da decisão do Órgão Especial do TJ/RJ, que concedeu a medida cautelar na Representação de Inconstitucionalidade nº 09/2009, suspendendo a eficácia do referido ato normativo. Igualdade e Ação Afirmativa no Sistema Constitucional Brasileiro O princípio da igualdade, tal como concebido no sistema constitucional brasileiro, não só é compatível, como, em determinadas situações, até reclama a promoção de políticas de ação afirmativa, para superação de desigualdades profundamente entrincheiradas nas nossas práticas sociais e instituições. A Constituição de 1988 insere-se no modelo do constitucionalismo social, no qual não basta, para observância da igualdade, que o Estado se abstenha de instituir privilégios ou discriminações arbitrárias. Pelo contrário, “parte-se da premissa de que a igualdade é um objetivo a ser perseguido através de ações ou políticas públicas, que, portanto, ela demanda iniciativas concretas em proveito dos grupos desfavorecidos”.6 Em outras palavras, o constituinte não ignorou a profunda desigualdade que viceja na sociedade brasileira. Antes, propôs-se 6Daniel Sarmento. “Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial”. In: Flávia Piovesan e Douglas Martins (Coord.). Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 66. 14 a combatê-la energicamente, o que se evidencia pela própria linguagem empregada no texto constitucional, em que muitos dos preceitos relacionados com a igualdade foram redigidos de forma a denotar a necessidade de ação7. Como salientou Carmem Lucia Antunes Rocha, “(...) a Constituição brasileira tem, no seu preâmbulo, uma declaração que apresenta um momento novo no constitucionalismo pátrio: a idéia de que não se tem a democracia social, a justiça social, mas que o Direito foi ali elaborado para que se chegue a tê-los (...) Verifica-se que os verbos utilizados na expressão normativa – construir, erradicar, reduzir, promover – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. (...) Somente a ação afirmativa, vale dizer, a atuação transformadora, igualadora pelo e segundo o Direito possibilita a verdade do princípio da igualdade que a Constituição assegura como direito fundamental de todos.”8 . A própria Constituição, aliás, consagrou expressamente políticas de ação afirmativa em favor de segmentos sociais em situação de maior vulnerabilidade. Para citar os dois exemplos mais evidentes, o art. 7º, XX, da Carta, que prevê “a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei”, bem como o seu art. 37, VIII, segundo o qual “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá critérios para a sua admissão”. Por outro lado, a Constituição de 1988 não encampou uma visão puramente econômica da desigualdade. O constituinte sabia que a opressão e a injustiça também são produzidas e reproduzidas no âmbito 7Cf. Marco Aurélio Mendes de Faria Mello. “Óptica Constitucional: A Igualdade e as Ações Afirmativas”. In: Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 11/20. 8“Ação Afirmativa: O Conteúdo Democrático do Princípio da Igualdade Jurídica. In: Revista Trimestral de Direito Público nº 15, 1996, p. 93/94 15 cultural, e que, portanto, para perseguir a igualdade, é necessário atuar não apenas no campo da distribuição de bens escassos, como também na esfera do reconhecimento e valorização das identidades dos grupos não hegemônicos no processo social.9 Esta concepção se revela com nitidez nos arts. 215 e 216 da Lei Maior, que determinam a valorização das contribuições indígenas e afrobrasileiras à cultura nacional. Nesse contexto normativo, o art. 3º, inciso IV, da Carta, ao vedar os preconceitos de “raça, sexo, cor, idade, e outras formas de discriminação”, não pode ser visto como um empecilho para a instituição de medidas que favoreçam os grupos e segmentos que são costumeiramente discriminados, ainda que tais medidas adotem como fator de desigualação qualquer destes critérios. Portanto, entre as duas interpretações que disputam espaço no direito antidiscriminação – a perspectiva antidiferenciação10 e a perspectiva antisubordinação11 - não há dúvida de que é a segunda a mais harmônica com o sistema de valores em que se assenta a Constituição brasileira, bem como a mais consentânea com a realidade de um país fortemente marcado pela desigualdade, em todas as suas dimensões. 9Sobre a relação entre justiça e reconhecimento veja-se Nancy Fraser. “Redistribuição, Reconhecimento e Participação: Por uma Concepção Integrada da Justiça”. In: Daniel Sarmento, Daniela Ikawa e Flávia Piovesan (Coords.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 167-190. 10Nas palavras de Roger Raupp Rios, “a perspectiva da antidiferenciação, como indica o próprio nome, reprova tratamentos diferenciados (prejudiciais ou benéficos) em favor de quem quer que seja, considerados os critérios proibidos de discriminação. Ela se preocupa com a neutralidade das medidas tomadas por indivíduos e instituições”, sendo portanto “hostil à idéia de ações afirmativas em favor de certos grupos, considerando-as discriminatórias em relação aos grupos não-beneficiados” (Direito da Antidiscriminação: Discriminação direta, indireta e ação afirmativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 33). 11Ainda de acordo com Roger Raupp Rios, a perspectiva antisubordinação “reprova tratamentos que criem ou perpetuem situações de subordinação. Ela admite tratamentos diferenciados, desde que estes objetivem superar situações de discriminação, assim como considera discriminatórios tratamentos neutros que reforcem a subordinação de quem quer que seja (...) Primordialmente, ela se preocupa com os efeitos sofridos por grupos subordinados em virtude das práticas recorrentes , ainda que não intencionais. A perspectiva da antisubordinação, por conseguinte, admite ações afirmativas, sempre que estas se revelarem necessáriase eficazes no combate à situação de subordinação, não as considerando discriminatórias em face de grupos privilegiados”. (Op. cit., p. 36/37). 16 Em resumo, tem perfeita aplicação ao ordenamento brasileiro a magistral definição de Ronald Dworkin, de que o respeito à igualdade não consiste em tratar as pessoas de modo igual, mas sim em tratá-las como iguais, merecedoras do mesmo respeito e consideração. Mas tratar as pessoas como iguais pressupõe muitas vezes favorecer, através de políticas públicas, àquelas em situação de maior vulnerabilidade social. ● É neste sentido que o legislador brasileiro, nas diversas esferas da federação, vem promovendo inúmeras políticas de ação afirmativa em favor de grupos mais vulneráveis ou estigmatizados, como as pessoas com deficiência, mulheres, idosos, negros e indígenas etc, em áreas variadas como acesso ao mercado de trabalho, à educação superior e às candidaturas nas eleições proporcionais. O próprio Supremo Tribunal Federal, quando presidido pelo Ministro Marco Aurélio, instituiu política de ação afirmativa na seleção de empresa para prestação de serviços de comunicação social à Corte, exigindo que pelo menos 20% do seu quadro de jornalistas fosse composto por afrodescendentes12. No campo da educação superior, nada menos do que 82 instituições públicas de ensino adotam, atualmente, políticas de ação afirmativa para favorecer o acesso, às suas vagas, a integrantes de grupos desfavorecidos. Essa orientação, de resto, foi estabelecida no Plano Nacional de Educação, instituído pela Lei nº 10.172/01, que previu a necessidade de criação de “políticas que facilitem às minorias, vítimas de discriminação, o acesso à educação superior, através de programas de compensação de deficiências de sua formação escolar anterior, permitindo-lhes, desta forma, competir em igualdade de condições nos processos de seleção e admissão a esse nível de ensino” (item 19). 12 Edital de Licitação para a Concorrência nº 03, de 2001. 17 E a jurisprudência do STF tem orientação francamente favorável às políticas de ação afirmativa. No julgamento da ADI 1.276- 2/SP, a Corte, por unanimidade, considerou válida a concessão de benefício fiscal, no que concerne ao IPVA, a empresas que tivessem pelo menos 30% dos seus empregados com idade superior a 40 anos. No voto do Relator, Ministro Octavio Gallotti, consignou-se: “Os homens são desiguais na sociedade e na natureza, tanto quanto as coisas, os lugares, os fatos, as circunstâncias. O princípio da igualdade jurídica não traduz, no campo do direito, como uma opinião atrasada ou tendenciosa quer fazer crer, o desconhecimento desta igualdade natural. É antes um esforço para balanceá-la, compensando o jogo das inferioridades e superioridades, de modo que elas não favoreçam também uma igual proteção jurídica.”13 Na mesma linha, a 1ª Turma do STF, no julgamento do Recurso. Ordinário em Mandado de Segurança 26.071-1, Relator Ministro Carlos Britto, afirmou, por unanimidade: “A reparação ou compensação dos fatores de desigualdade factual com medidas de superioridade jurídica constitui política de ação afirmativa que se inscreve nos quadros da sociedade fraterna que se lê desde o preâmbulo da Constituição de 1988.”14 E o voto do Ministro Carlos Britto, proferido no julgamento, ainda inconcluso, da ADI nº 3.330-1/DF, em que houve a impugnação de normas do chamado PROUNI, que instituíram medida de ação afirmativa, inclusive com corte étnico/racial, também enveredou pelo mesmo caminho: “Esta possibilidade de o Direito legislado usar a concessão de vantagens a alguém como uma técnica de compensação de anteriores e persistentes 13 DJ de 15.12.1995. A citação é do julgamento da Medida Cautelar na ADI, que foi corroborada no julgamento definitivo, realizado em 29 de agosto de 2002. 14 Julgamento em 13.11.2007. 18 desvantagens factuais não é mesmo de se estranhar, porque o típico da lei é fazer distinções. Diferenciações. Desigualações. E fazer desigualações para contrabater renitentes desigualações. É como dizer: a lei existe para, diante dessa ou daquela desigualação que se revele densamente perturbadora da harmonia ou do equilíbrio social, impor outra desigualação compensatória.” A Normativa Internacional e as Políticas de Ação Afirmativa O Brasil é signatário de diversos tratados internacionais, devidamente incorporados ao nosso ordenamento, que são expressos no reconhecimento da validade da promoção de políticas de ação afirmativa com o objetivo de promoção da igualdade. É o caso da Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (art. 1º, item 4), da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (art. 4º), e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (art. 5º. Item 4). Destaque-se aqui, por pertinente, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, devidamente incorporada ao ordenamento interno brasileiro com hierarquia supralegal. Tal Convenção é expressa ao autorizar, no seu art. 1º, item 4, as políticas de ação afirmativa baseadas em critério racial para favorecimento de indivíduos e grupos em situação de desvantagem: “4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos de indivíduos que necessitem de proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de 19 direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.” Vale também ressaltar a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – a primeira incorporada pelo Brasil seguindo o procedimento previsto no art. 5º, § 3º, da Lei Maior, e que, por isto, se reveste de hierarquia constitucional. Dita Convenção é também peremptória ao avalizar as políticas de ação afirmativa: “ Artigo 5 Igualdade e não-discriminação 1. Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei. ...............omissis 4. Nos termos da presente Convenção, as medidas específicas que forem necessárias para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade das pessoas com deficiência não deverão ser consideradas discriminatórias.” Este quadro reforça o argumento no sentido da constitucionalidade da Lei 5.346/2008. Alguns Argumentos Adicionais em Favor da Ação Afirmativa no Acesso ao Ensino Público Superior Um argumento fundamental em favor da constitucionalidade das políticas de ação afirmativa no acesso ao ensino superior é o de que se trata de promoção da igualdade substantiva, objetivo 20 fundamental no contexto de um Estado Social, e de uma sociedade que se pretende justa e solidária. Sabe-se que os processos seletivos das universidades públicas tenderam, historicamente, a privilegiar a elite econômica, composta quase exclusivamente de pessoas brancas. As provas de vestibular favorecem aqueles que estudaramnas melhores escolas – no Brasil, quase invariavelmente privadas - que são caras, e portanto, inacessíveis aos membros dos grupos desprivilegiados, compostos majoritariamente pelos afrodescendentes. Nesse contexto, cotas para os integrantes destes grupos desfavorecidos são medidas importantes para viabilização do acesso mais igualitário à universidade pública. Outra justificativa relevante para a ação afirmativa no ensino superior é a promoção do pluralismo. Esse argumento, que teve grande peso no debate judicial15 e filosófico16 norte-americano , é inteiramente pertinente à realidade brasileira. Afinal, vivemos em um país que tem como uma das suas maiores riquezas a diversidade étnica e cultural. Porém, para que todos se beneficiem dessa valiosa riqueza, é preciso que haja um contato real e paritário entre pessoas de diferentes etnias e egressas de variadas realidades sociais. É necessário romper com o modelo informal de segregação, que exclui o pobre, o negro e a pessoa com deficiência da universidade, confinando-os a posições subalternas na sociedade. Especialmente no ensino, o convívio com a diferença torna a formação e o aprendizado do estudante uma experiência mais rica e frutífera para todos, e não apenas para os beneficiários da política de ação afirmativa. 15 No primeiro precedente importante em matéria de ação afirmativa nos Estados Unidos – caso Bakke v. Regents of the University of Califórnia, julgado em 1978, o argumento do pluralismo desempatou o julgamento, para justificar políticas racialmente sensitivas para acesso ao ensino superior. 16 Cf. Michael J. Sandel. “Arguing Affirmative Action”. In: Public Philosophy: Essays on Morality in Politics. Cambridge: Harvard University Press, 2005, p. 101-104. 21 As políticas de ação afirmativa para acesso ao ensino superior também são positivas na medida em que quebram estereótipos negativos, como os que veem os negros como indivíduos predestinados a exercerem papéis subalternos na sociedade, ou as pessoas com deficiência como “fardos sociais” ou como “coitadinhos”, incapazes de uma vida produtiva. A aplicação dessas políticas aumenta a chance de sucesso dos seus beneficiários, fazendo com que as crianças e jovens negras ou portadoras de deficiência passem a ter cada vez mais exemplos de indivíduos semelhantes desempenhando papéis de destaque social, em que possam se inspirar. Isso contribui para o fortalecimento da sua auto-estima e para que se desfaçam preconceitos ainda muito incrustados na sociedade brasileira. Outro argumento relevante é o da justiça compensatória, sobretudo em relação aos candidatos negros e com deficiência. Quanto aos primeiros, não há dúvida de que os vários séculos de escravidão, e as fundas cicatrizes que deixaram na estrutura sócio-econômica e cultural do país, contribuíram decisivamente para o quadro de desigualdade material que penaliza os afrodescendentes no Brasil, inclusive no que tange ao acesso ao ensino superior. Nesse contexto histórico, justifica-se ainda mais o esforço estatal, no sentido da promoção da igualdade étnico/racial. No que tange às pessoas com deficiência, não há dúvida de que os sofrimentos que padecem não decorrem apenas dos impedimentos resultantes da sua condição, como também das barreiras atitudinais e ambientais existentes numa sociedade ainda profundamente excludente17. Essas barreiras, impostas pela ação ou pela omissão do Estado e da sociedade, comprometem gravemente a possibilidade de que pessoas 17 Neste sentido, é preciso o item “e” do Preâmbulo da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ao reconhecer que “a deficiência resulta da interação entre as pessoas com deficiência e barreiras atitudinais e ambientais que impedem sua plena e eftiva participação na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”. 22 com deficiência concorram, em igualdade de condições, a uma vaga no ensino público superior. Trata-se de uma razão adicional para a admissibilidade das cotas em favor das pessoas com deficiência no acesso às universidades públicas, que podem ser vistas também como uma compensação às barreiras que a sociedade e o Estado impõem à inclusão educacional desses indivíduos. Finalmente, outro argumento de peso é o da razoabilidade na alocação dos recursos públicos. Sabe-se que o custeio do ensino superior impõe um elevado ônus econômico ao Estado. Será que, numa ordem jurídica que se propõe a instaurar uma sociedade livre, justa e solidária, é razoável que esses recursos revertam para as elites de sempre, perpetuando o quadro de injustiça social que caracteriza o país? Parece óbvio que a alocação dos recursos públicos, também na área do ensino superior, não pode prescindir de considerações sobre os destinatários finais dos gastos estatais, o que justifica a busca de critérios que visem a favorecer os grupos tradicionalmente excluídos do acesso às universidades públicas. Ação Afirmativa e Meritocracia Um argumento frequentemente invocado contra as políticas de ação afirmativa no acesso às universidades públicas é o de que tais medidas seriam incompatíveis com o sistema meritocrático, acolhido na Lei Maior, que prevê que “o acesso aos níveis mais elevados de ensino” devem se dar de acordo com a “capacidade de cada um”. O raciocínio apenas teria procedência se as formas de ingresso nas universidades brasileiras de hoje efetivamente medissem apenas as capacidades de cada candidato. Ele só seria válido se elementos como a pobreza, a péssima qualidade do ensino público fundamental e 23 médio, o preconceito e desigualdade racial e as barreiras existentes para as pessoas com deficiência não contaminassem profundamente os procedimentos ditos meritocráticos, como os concursos de vestibular, desigualando as oportunidades dos concorrentes. Mas não é isso o que ocorre. Aqui, pode-se parafrasear o Presidente norte-americano Lyndon Johnson, que, em célebre discurso proferido em 1965, no qual cunhou a expressão “ação afirmativa” (affirmative action), destacou: “Você não pega uma pessoa que durante anos foi tolhida por correntes, e a liberta, a põe na linha de partida de uma corrida e então diz – ‘você está livre para competir com os outros’ – e ainda acredita que está sendo totalmente imparcial. Não é justo o bastante, neste caso, abrir as portas ou oportunidades.”18. E, ainda que assim não fosse, o “princípio meritocrático” não se reveste de natureza absoluta, podendo ceder numa ponderação diante de outros princípios e interesses constitucionais, como os que buscam a concretização da igualdade material, a compensação de injustiças históricas, a promoção do pluralismo no ensino superior e a quebra de estereótipos negativos sobre minorias estigmatizadas. Ação Afirmativa no Ensino Superior ou Melhoria no Ensino Fundamental?: Um Falso Dilema Outro argumento comumente empregado contra as políticas de ação afirmativa no acesso ao ensino superior, e utilizado na decisão do Órgão Especial TJ/RJ, é no sentido de que não caberia a adoção dessas medidas, uma vez que a solução para a inclusão no ensino estaria na melhoria dos seus níveis inferiores. 18 Cf. Daniel Sarmento. Livres e Iguais. Op. cit., p. 158. 24 Contudo, o argumento padece de um vício lógico, já que as propostas não são incompatíveis, mas antes se reforçammutuamente. Sem dúvida, é um dever do Estado melhorar a qualidade do ensino básico. Isso, contudo, não excluiu a necessidade de também atuar no âmbito do ensino superior, sobretudo no afã de democratizá-lo, em favor dos grupos vulneráveis e historicamente excluídos. A seguir, alguns argumentos adicionais serão explorados, focados nas ações afirmativas de corte étnico-racial, seja porque são elas as mais polêmicas no cenário jurídico-político brasileiro, seja porque foram o objeto central da impugnação na Representação de Inconstitucionalidade nº 09/2009. A Desigualdade Racial no Brasil: Que Democracia Racial? As relações sociais e a economia nacional se assentaram durante mais de três séculos sobre a escravidão negra. Após a abolição, em 1888, não se instituiu no Brasil um sistema de segregação oficial, como o que existia em alguns estados norte-americanos e na África do Sul dos tempos do apartheid, mas, até alguns anos atrás, nunca tinha sido realizado no país qualquer esforço de inclusão dos afrodescendentes. Esse passado deixou cicatrizes profundas na sociedade brasileira. Atualmente, os negros – aqui incluídos os pretos e pardos – figuram em situação inferior aos brancos em todos os indicadores sociais relevantes: renda, expectativa de vida, mortalidade infantil, acesso a saneamento, taxa de analfabetismo, nível de instrução, etc.19 A proporção de negros exercendo as funções mais valorizadas na sociedade, nos cargos de direção e gerência de empresas, nos parlamentos, na magistratura, em 19 Cf. Marcelo Paixão. Novos Marcos para as Relações Raciais. Rio de Janeiro: FASE, 2000. 25 profissões com a Medicina e o Direito, dentre outras, é muito inferior à sua representatividade no total da população brasileira. Dá-se o oposto na sua super-representação nos presídios e na sua participação nos índices das vítimas de homicídio e de violência policial, por exemplo. São precisas, nesse ponto, as palavras de Joaquim Barbosa: “Brancos monopolizam inteiramente o aparelho do Estado e nem sequer se dão conta da anomalia que isso representa à luz dos princípios da Democracia. Por diversos mecanismos institucionais raramente abordados com a devida seriedade e honestidade, a educação de boa qualidade é reservada às pessoas portadoras de certas características identificadoras de (suposta ou real) ascendência européia, materializando um tendência social perversa, tendente a agravar ainda mais o tenebroso quadro de desigualdade social pelo qual o país é universalmente conhecido. No domínio do acesso ao emprego impera não somente a discriminação desabrida mas também uma outra de suas facetas mais ignominosas – a hierarquização -, que faz com que as ocupações de prestígio, poder e fama sejam vistas como apanágio os brancos , reservando-se aos negros e mestiços aquelas atividades suscetíveis de realçar-lhes a condição de inferioridade”20 Apesar de condenado socialmente, o racismo continua marcante nas relações sociais travadas no Brasil. Um racismo muitas vezes velado, “cordial”, que raramente se exterioriza de forma violenta, mas nem por isso menos insidioso21, e que se revela com nitidez em alguns contextos, como na seletividade racial das blitzes policiais. 20 Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 12. 21Nas palavras de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães: “Assim é o racismo brasileiro: sem cara. Travestido em roupas ilustradas, universalistas, tratando-se a si mesmo como anti-racismo, e negando, como anti-nacional, a presença integral do afro-brasileiro ou do índio-brasileiro. Para este racismo, o racismo é aquele que separa, não o que nega a humanidade de outrem; desse modo, racismo para ele, é o racismo do vizinho (o racismo americano)” (Racismo e Anti-Racismo no Brasil. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 57). 26 No Brasil, mesmo após a abolição da escravidão, tiveram grande penetração as idéias racistas, que viam o negro como ser inferior e acusavam a miscigenação de responsável pelo atraso nacional. A idéia do “embranquecimento” da população nacional como solução das mazelas do país foi sustentada por intelectuais do porte de Silvio Romero, Euclides da Cunha, Paulo Prado, Oliveira Vianna e Nina Rodrigues22. No início dos anos 30 do século passado, a idéia da democracia racial, empregada e defendida na petição inicial, surge na obra clássica de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala23. A tese do pensador pernambucano era de que as relações raciais no Brasil não seriam tão opressivas como aquelas existentes em outros países em que também houve escravidão, porque os contatos sexuais, o grau elevado de miscigenação e a aproximação cultural teriam levado à inexistência de um fosso tão marcante entre brancos e negros. No contexto da época, Gilberto Freyre se opunha aos pensadores racistas, que criticavam a mistura entre as raças no Brasil, que ele celebrava e via como fator positivo da nossa civilização. Com o tempo, o mito da democracia racial transformou- se em retórica oficial, passando a servir como um álibi para que o Estado e a sociedade brasileira nada fizessem no sentido do combate ao preconceito e da luta pela inclusão social do afrodescendente. Durante muitas décadas, a democracia racial constituiu um discurso legitimador da inércia estatal, que, no seu ufanismo, prestou-se ao papel de proteger o status quo de injustiça racial, levando a que o problema da brutal desigualdade entre as raças fosse completamente ignorado no país. Em boa hora, o Estado brasileiro abandonou esse mito, reconhecendo a profunda injustiça que permeia a relação entre as raças no 22 Cf. Sergio Abreu. Os Descaminhos da Tolerência: O afro-brasleiro e o princípio da igualdade e da isonomia no Direito Constitucional. Rio de Janeito: Lumen Juris, 1999, p. 5/36. 23Casa Grande e Senzala. 46ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2002. 27 Brasil. Nos últimos anos, multiplicaram-se no país as iniciativas voltadas à inclusão social dos negros, com destaque para a promoção de políticas de ação afirmativa, sobretudo no acesso ao ensino superior. Tais medidas não são uma afronta à igualdade, mas resultam do reconhecimento de que a sua promoção pode e deve envolver uma postura ativa do Estado, em favor de grupos tradicionalmente excluídos. A Falácia do Argumento da Inexistência das Raças Não é preciso ir longe para concordar com a assertiva de que o critério raça, numa abordagem biológica, carece de cientificidade. Desde o preâmbulo da Constituição da Unesco de 1945 chegando a inúmeros outros documentos internacionais, com vistas à eliminação de quaisquer formas de discriminação racial, todos reconheceram que os seres humanos pertencem a uma mesma espécie e têm uma mesma origem. A Convenção para a eliminação de todas as formas de discriminação raial, adotada pela Resolução 2016 A (XX), da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 21 de dezembro de 1965, e ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968, assinala em seu preâmbulo: Doutrina de superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, 28 inexistindo justificativa para a discriminação racial, em teoria ou prática, em lugar algum24. Contudo, da inexistência biológica das raças não decorre a impossibilidade de que o termo seja usado como resultado de uma construção histórico-social, voltada para justificar a desigualdade.25Observa Trina Jones: Raça é o significado social atribuído a uma categoria. É um conjunto de crenças e convicções sobre indivíduos de um grupo racial em particular. Essas crenças são abrangentes, compreendendo convicções sobre a parte intelectual, sobre a parte física, sobre classe e moral, dentre outras coisas (Shades of Brown: the Law of Skin Color. In: Duke Law Journal, v. 49:1487,200, p.1497)26 O Supremo Tribunal Federal empregou argumentação muito similar a esta no julgamento do Habeas Corpus nº 82.424/RS, em que se discutia a possibilidade de punição de editor de livros anti-semitas pelo crime de racismo. Uma das teses de defesa era a de que os judeus não constituem raça, o que ensejaria a desqualificação do delito para outro tipo penal, com o consequente reconhecimento da prescrição. O STF refutou o argumento, não porque os judeus constituam raça no sentido biológico, mas porque existe uma construção cultural difundida que assim os identifica, 24No caso Siegfried Ellwanger, o Ministro Gilmar Mendes invocou Kevin Boyle, segundo o qual; reconhecemos hoje que a classificação biológica dos seres humanos em raça e hierarquia racial – no topo da qual encontrava-se certamente a raça branca – era produto pseudo-científico do século XIX. Num tempo em que nós mapeamos o genoma humano, prodigiosa pesquisa que envolveu o uso de material genético de todos os grupos étnicos, sabemos que existe somente uma raça – a raça humana. Diferenças humanas em aspectos físicos, cor da pele, etnias e identidades culturais, não são baseadas em atributos biológicos. Na verdade, a nova linguagem dos mais sofisticados racistas abandona qualquer base biológica em seus discursos. Eles agora enfatizam diferenças culturais e irreconciliáveis como justificativas de seus pontos de vista extremistas (Boyle, Kevin. Hate Speech – The United States versus the rest os fe world? In: Maine Law Review, v. 53:2, 2001, p. 490). 25cf. parecer produzido pelo professor Celso Lafer, nos autos do HC 82.424-2 (caso Siegfried Ellwanger). Vale, também, mais uma vez, a observação do Ministro Gilmar Mendes, por ocasião do julgamento, de que historicamente, o racismo prescindiu até mesmo daquele conceito pseudo-científico para estabelecer suas bases, desenvolvendo uma ideologia lastreada em critérios outros. 26Extraído do voto do Ministro Gilmar Mendes, acima referido. 29 para tomá-los como vítimas de discriminação e preconceito. No voto do Ministro Maurício Corrêa, relator daquele memorável julgado, consignou- se: “39. Embora hoje não se reconheça mais, sob o prisma científico, qualquer subdivisão da raça humana, o racismo persiste enquanto fenômeno social, o que quer dizer que a existência de diversas raças decorre de mera concepção histórica, política e social, e é ela que deve ser considerada na aplicação do direito. É essa circunstância de natureza estrita e eminentemente social e não biológica que inspira a imprescritibilidade do delito previsto no inciso XLII do artigo 5º da Carta Política.”27 Ação Afirmativa e Harmonia Social Outro temor infundado é o de que políticas de cotas para negros poderiam criar no Brasil tensão racial até então inexistente. O argumento não procede e não possui qualquer lastro empírico. Já tem mais de uma década a introdução das primeiras políticas de ação afirmativa focadas em critério racial, e não houve, até o momento, qualquer episódio sério de tensão ou conflito racial violento no Brasil que possa ser associado a tais medidas. Na verdade, os efeitos são inversos. As quotas no ensino superior aumentam o convívio entre pessoas de raças diferentes, que viviam em mundos quase segregados, ampliando os espaços para diálogo, interação e aprendizado recíproco. Ademais, elas atenuam um quadro crítico de desigualdade, que, este sim, é um solo fértil para a desarmonia e o ódio racial. 27 Julgamento concluído em 19 de setembro de 2003. 30 A Auto-Declaração como Critério de Seleção dos Beneficiários das Cotas Étnicas Num país que tem elevada taxa de miscigenação racial, e no qual os códigos culturais de tratamento da raça são mais gradualistas do que binários, a forma de identificação dos beneficiários das cotas raciais levanta, de fato, um problema complexo. Porém, a fórmula adotada no ato normativo em discussão, baseada na auto-declaração, com controle de fraudes, parece bastante razoável, diante das alternativas existentes. ● Com efeito, critérios genéticos seriam inviáveis, seja porque a raça, como antes salientado, é um fenômeno cultural e não biológico, seja pelo elevado nível de miscigenação da população brasileira. Ademais, como a discriminação racial no Brasil não está associada exclusivamente à ascendência, mas envolve e amalgama aspectos fenotípicos, culturais e econômicos28, esses critérios seriam plenamente arbitrários na promoção da igualdade material. Parece inequívoco que as classificações raciais devem incorporar a idéia de auto-declaração, seja porque ignorar a percepção que cada um tem da própria identidade seria uma violência, atentatória à própria dignidade da pessoa humana, seja porque o critério encontra-se previsto no art. 1º, item 1, alínea “a” Convenção 169 da OIT, em vigor no ordenamento brasileiro. Por outro lado, a Lei 5.346/08 é expressa ao prever, no seu artigo 4º, a necessidade de as universidades mantidas pelo Estado do 28 É clássica, no pensamento social brasileiro, a distinção feita por Oracy Nogueira entre o “preconceito de marca” existente no Brasil, em que predomina a discriminação fundada na aparência física, do “preconceito de raça” predominante nos Estados Unidos, focalizado precipuamente na origem biológica Veja-se Oracy Nogueira. Tanto preto quanto branco: Estudos das relações raciais. São Paulo: T.A Queiroz, 1954. 31 Rio de Janeiro adotarem mecanismos para coibição de fraudes na auto- declaração. O Respeito ao Princípio da Proporcionalidade e Autocontenção Judicial Um dos papéis mais importantes da jurisdição constitucional é a proteção das minorias estigmatizadas, diante do arbítrio das maiorias instaladas nos poderes políticos. Nessas situações, os instrumentos da democracia majoritária tendem a falhar, o que justifica um maior ativismo judicial, em proteção dos grupos mais vulneráveis. Porém, quando o Judiciário se depara com normas e medidas que visam a favorecer grupos minoritários e hipossuficientes, a sua postura deve ser diferente. Se outros órgãos estatais empenham-se em promover um objetivo constitucional de magna importância, que é a inclusão efetiva de minorias étnicas no ensino superior, não deve o Poder Judiciário frear-lhes as iniciativas, convertendo-se no guardião de um status quo de assimetria e opressão, a não ser quando haja patente afronta a normas ou valores constitucionais. Assentada essa coordenada, chega-se à conclusão de que as quotas instituídas pela Lei 5.346/08 não ofendem a nenhum dos subprincípios em que se desdobra o princípio da proporcionalidade. Quanto à adequação, é evidente que se o objetivo é promover a inclusão de grupos desprivilegiados no ensino público superior, a medida encetada é idônea, na medida em que contribui para o atingimento deste fim. No que tange à necessidade, não se vislumbra, a priori, qualquer outra medida que promova com a mesma intensidade a finalidade perseguida. Políticas públicas de caráter universalista, cegas à cor dos seus 32 beneficários,ou a outras das suas particularidades, por exemplo, são essenciais para o país, mas não tendem a diminuir as gritantes diferenças hoje existentes no acesso ao ensino público superior, entre integrantes dos grupos hegemônicos e as minorias vulneráveis. Finalmente, no que tange à proporcionalidade em sentido estrito, cumpre atentar para o valor que tem o ingresso no ensino superior na emancipação real dos excluídos no Brasil. A admissão em boas universidades talvez seja a mais importante porta de acesso a funções socialmente relevantes, que propiciam o empoderamento das minorias estigmatizadas e a promoção da justiça material. Em um quadro social de brutal exclusão do negro, do pobre e da pessoa com deficiência, e no marco de uma Constituição que tem como obsessão a conquista da igualdade material e o combate ao preconceito e ao racismo, deve-se reconhecer a extraordinária importância da promoção dos interesses subjacentes à medida em discussão, na escala dos valores constitucionais. Por outro lado, as restrições a outros bens jurídicos acarretadas pela medida não são tão intensas. Mais da metade (55%) das vagas das universidades públicas estaduais fluminenses permanece aberta à disputa em igualdade formal de condições. E os percentuais das cotas não são tão elevados, considerando-se o quadro empírico subjacente. ● Com efeito, quanto aos negros – aí compreendidos os pretos e pardos – estes, no Censo de 2000, correspondiam a cerca de 44% da população do Estado do Rio de Janeiro, de acordo com os dados do IPEA29. E a cota dos afrodescendentes e indígenas30 é de 20%. 29 Dados obtidos em http://www.ipeadata.gov.br/ipeaweb.dll/GeoShowN. 30 O número de indígenas no Estado do Rio de Janeiro não é significativo do ponto de vista estatístico, pois existem apenas algumas centenas de indivíduos. 33 Em relação às pessoas com deficiência, elas equivalem a quase 15% da população do Estado do Rio de Janeiro, de acordo com dados do Censo de 2000.31 Contudo a cota das pessoas com deficiência que é compartilhada com os filhos de policiais civis e militares, bombeiros e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço, é de apenas 5% ● O mesmo pode-se dizer em relação aos alunos egressos de escolas públicas. Embora cerca de 78% dos estudantes no Estado do Rio de Janeiro estejam matriculados em escolas públicas, percentual que sobe para mais de 83% se considerarmos apenas o ensino médio32, a cota destinada aos alunos egressos da rede pública foi fixada pelo legislador em 20%. Ressalte-se, por outro lado, que a carência econômica é condição necessária para a fruição da política de ação afirmativa prevista na Lei 5.346/08, o que visa a evitar que os estudantes da elite, mas integrantes das categorias beneficiadas, tenham como “pegar uma carona” na referida medida de inclusão social, o que configuraria evidente desvio de finalidade. Finalmente, o legislador estadual teve o cuidado de prever medidas visando a propiciar a efetiva possibilidade de os estudantes favorecidos pelas cotas permanecerem na universidade e se aproveitarem dessa oportunidade de inclusão social. Pouco adiantaria assegurar vagas reservadas, sem proporcionar os meios necessários a que o aluno carente pudesse estudar e desfrutar do ambiente universitário. Por isso, a Lei 5.436/08 previu medidas importantes, como o pagamento de bolsas de estudo para os alunos cotistas (art. 3º, inciso I). 31 Dados obtidos em http://www.ibge.gob.br/home. 32 Dados obtidos em http://www.ibge.gov.br/estadosat/temas.php?sigla=rj&tema=educacao2008 34 Assim, não há qualquer afronta ao princípio da proporcionalidade, revelando-se razoável e perfeitamente sintonizada com os valores e o espírito da Constituição de 1988 a política de ação afirmativa instituída pela Lei 5.346/08 do Estado do Rio de Janeiro. Da Suspensão da Representação de Inconstitucionalidade nº 009/2009 ● ● É firme a jurisprudência do STF, no sentido de que quando existir impugnação simultânea à constitucionalidade de um ato normativo estadual no âmbito do Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, ambas alicerçadas nos mesmos fundamentos, deve a primeira ser suspensa, até que a segunda seja apreciada pela Corte Superior33. Como se sabe, a ADPF, como as demais ações do controle abstrato de normas, possui efeito dúplice ou ambivalente. Isto significa dizer que se o pedido em uma ADPF é a declaração da constitucionalidade de um ato normativo, como ocorre in casu, a sua improcedência pode resultar na invalidação desse mesmo ato normativo. Daí por que estão presentes aqui as mesmas razões que justificam a suspensão do processo na Corte Estadual: a instauração duplicada de controle abstrato, nas esferas estadual e federal. A não- suspensão gera o risco de divergência de entendimentos entre os Tribunais, com a possibilidade de que prevaleça a posição do TJ/RJ sobre a interpretação do princípio da igualdade, o que contraria toda a lógica do 33 Cf. Ag.Reg. Rcl 425/RJ, Rel. Min. Néri da Silveira: “Em se tratando, no caso, de lei estadual, esta poderá, também, ser, simultaneamente, imugnada no STF, em ação direta de inconstitucionalidade, com base no art. 102, I, letra ‘a’, da Lei Magna Federal. Se isso ocorrer, dar-se-á a suspensão do processo de representação no Tribunal de Justiça, até decisão final do STF.” 35 sistema judicial, que tem o STF em sua cúpula, na função de guardião da Constituição. Por isso, o arguente requer que seja determinada a suspensão da Representação de Inconstitucionalidade nº 09/2009, em trâmite no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, comunicando- se imediatamente o fato ao Relator daquele feito, Desembargador Sérgio Cavalieri. Da Medida Cautelar Estão presentes os pressupostos legais para a concessão da tutela cautelar. Quanto ao fumus boni iuris, ele se consubstancia na plausibilidade jurídica das teses sustentadas nessa peça, atinentes à constitucionalidade da Lei 5.346/08 do Estado do Rio de Janeiro. O periculum in mora, por seu turno, se evidencia diante da constatação de que, após a decisão proferida pelo órgão Especial do TJ/RJ, que suspendeu cautelarmente a eficácia do ato normativo em questão, gerou-se grave insegurança jurídica quanto à política de ação afirmativa prevista naquela lei. A citada decisão, embora só produza efeitos a partir do vestibular de 2010, tenderá a provocar a multiplicação de litígios judiciais envolvendo a aplicação da política pública instituída na Lei 5.346/08, e os efeitos deletérios deste quadro de incerteza não terão como ser solucionados por ocasião do julgamento definitivo da presente ADPF. Assim, o arguente postula a concessão de medida cautelar, para, até o julgamento definitivo dessa ação, sustar os efeitos da decisão do órgão Especial do TJ/RJ, que suspendeu os efeitos da Lei 5.346/08 do Estado do Rio de Janeiro. 36 DO PEDIDO Pelo exposto, o arguente espera que a presente ação seja julgada procedente, a fim de que: a) seja declarada a constitucionalidade da Lei 5.346/08 do Estado do Rio de Janeiro; ou b) subsidiariamente, caso a Corte entenda incabível ou improcedente o pedido acima, seja invalidada a decisão proferida pelo órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estadodo Rio de Janeiro na Representação de Inconstitucionalidade nº 009/2009, que suspendeu a eficácia do referido ato normativo. Brasília, de novembro de 2009. DEBORAH MACEDO DUPRAT DE BRITTO PEREIRA VICE-PROCURADORA-GERAL DA REPÚBLICA APROVO: ROBERTO MONTEIRO GURGEL SANTOS PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA 37
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