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ODETE
Setembro 2017
História
do
Terrorismo
Da Antiguidade à Alcaida
Editado por
Gerard Chaliand e Arnaud Blin
Traduzido com anotações por SAJ/INF Paraq Fernando D’Eça Leal
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Prefácio
Ao longo da história, o poder tem sido excessivamente maior do aquele exercido através
do terror – i.e., acicatando pelo medo. Todas as sociedades despóticas foram fundadas
sobre o medo, como os regimes totalitários na era moderna. A submissão à ordem
estabelecida e à força tem sido na maioria dos caos a única via da humanidade para a
segurança e, em última análise, para a liberdade. Sem ir até a pré-história, governada
pela insegurança aterradora em relação à natureza, animais selvagens e outros humanos,
o uso do terror para governar começou no próprio nascimento da sociedade organizada
como meio de dissuasão ou punição.
Terrere significa "fazer tremor" em latim. O primeiro império da Mesopotâmia, o de
Sargão da Acádia1, foi fundado no terror. O mesmo aconteceu antes do primeiro
império militar da antiguidade, o assírio, cujos métodos brutais de represália
destinavam-se a esmagar o espírito e quebrar a vontade. Anunciado com violência de
guerra, o terror permanece suspenso como uma espada em tempos de paz sobre as
cabeças de todos os que se atrevem a insurgir-se. Nas sociedades despóticas que
compõem a maior parte do tecido da história, serviram como instrumento esclavagista e
garante da obediência em massa. O terror do Estado seja implícito ou manifesto, tem
assombrado os séculos como bicho-papão da guerra, o espectro do assassinato em
massa. Uma vez desencadeada, pode dar o exemplo para restringir o comportamento
sem a necessidade de lutar. Os mongóis e Tamerlão2 usaram o terror desta maneira para
reduzir cidades sem ter que recorrer ao cerco.
Os historiadores do terrorismo, apontam a palavra "terror" aplicada ao terror do estado
da Revolução Francesa, mas muitas vezes omitem ao aplicá-la, em graus diversos, o
fenómeno constante de eras anteriores e também tem sido prevalecente desde então. De
facto, o terrorismo, cujo objectivo principal é aterrorizar, é fenómeno historicamente
muito mais amplo de o sugerido pelo uso actual do termo, que essencialmente resume à
descrição ou análise do uso ilegítimo da violência em acções de tipo terrorista.
O facto de os casos coevos mais notórios de terrorismo terem dimensão religiosa, apesar
dos fins políticos, deve servir para lembrar ainda tem sido historicamente verdade na
maioria das formas de terrorismo, como a dos Zelotas judeus do primeiro século, por
exemplo, ou a seita Assassinos ismaelita dos séc. XI ao XIII3. Em rigor, o referencial
religioso era muito central para a maioria das sociedades, e esse fenómeno ainda não se
esgotou.
Hoje em dia, o terrorismo supera a guerrilha como a arma preferida e praticamente
exclusiva dos fracos contra os fortes. O principal objectivo é a mente. Nesse sentido, o
terrorismo é a forma mais violenta de guerra psicológica, e o impacto psicológico é
comummente entendido como sendo muito maior do que os efeitos físicos. Inclinando-
1 ● [notas do tradutor] Também conhecido por Sargão, o Grande, foi rei acádio por 56 anos célebre nos séculos XXIV e
XXII ANE.
2 ● Nome do turcomano, Timur-i-Lenk (Tiumur, o Coxo) foi o último dos grandes conquistadores nómadas da Ásia
Central de origem turco-mongol. Com a ajuda de vasto exército, construiu poderoso império, conhecido como
Timúria, que não resistiu após a sua morte.
3 ● Corrente xiita, também denominados septimánicos, por reconhecerem apenas sete primeiros imãs do Islão xiita e
são considerados inimigos não só pelos sunitas mas pelos próprios xiitas. Na Síria no séc. XI o ramo nizari, fundado
por Hassan ibn Sabbah, com o intuito de criar nova corrente do ismaelismo, desenvolveu-se a seita chamada
hashashin (assassinos). Os cruzados ficariam surpreendidos com a fidelidade mais até com a sua ferocidade dos
membros. Curiosamente para Bernard Lewis, autor dos Assassinos [orig. The Assassins: A radical sect in islam
(1967)], tinham evidente paralelo entre estes com o comportamento do extremismo islâmico, assim como o ataque
suicida, como demonstração de fé. Apesar de etimologicamente o termo “Assass” ou seja, “os fundamentos” (da fé
islâmica), mas há várias versões das quais da qual deriva de “haxixe”, que significa fumador de [erva] haxixe,
conforme relatos da época, que estes teriam o hábito de consumir esta substância antes dos ataques, induzindo a visão
do Paraíso. Amin Malouf, pelo contrário, de acordo com os textos a partir de Alamut, Hassan-i Sabbah gostava de
chamar aos seus discípulos de Asasiyun, i.e., pessoas fiéis a Asas, que significa “fundação” da fé.
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se para os meios muitas vezes patéticos, o terrorismo é a maneira de criar o poder na
esperança de deter de baixo o que o estado exerce de cima.
Gérard Chaliand e Arnaud Blin
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
Gérard Chaliand e Arnaud Blin
De todas as paixões capazes de escravizar a vontade do
homem, nenhuma é mais incompatível com a razão e a
liberdade do que o fanatismo religioso.
Robespierre
Aconteceu em Washington, DC, na conferência sobre terrorismo – ou, mais
precisamente, contra-terrorismo – organizada pela Agência de Inteligência de Defesa do
Pentágono (AID). A maioria dos participantes trabalhou para os diversos (e numerosos)
serviços de inteligência americanos, tinham todos, de forma desigual, envolvimentos na
guerra contra o terrorismo. Após a Guerra Fria, a maioria desses homens misteriosos
mudaram para o campo especializado e crescente de "novas ameaças" – ameaças que
também incluem a proliferação nuclear, armas de destruição maciça e crime organizado.
Esta estranha reunião de sujeitos identicamente misteriroso ouviam atentamente a série
de oradores sobre a essência da luta contra o terrorismo. No final do dia, no entanto,
quando o último orador estava prestes a sair, uma figura bizarra subiu ao pódio levando
uma pasta e uma bolsa. Com longos cabelos e chapéu preto, barba grossa, óculos de sol,
calças rasgadas e colete de couro, destacou-se por destoar dos burocratas de
inteligência. De repente, abriu a pasta e o saco com velocidade relâmpago, o estranho
atirou duas granadas de mão na multidão e apontou a arma M16 para a audiência
paralisada.
Não houve explosão e a M16 permaneceu calada. O sujeito pegou calmamente no
microfone e começou a dirigir-se ao público. Os ouvintes, muitos deles pelo menos,
imediatamente reconheceram a voz familiar. Na verdade, era o director do AID, general
que se disfarçou de "terrorista" para demonstrar a facilidade com que qualquer um pode
entrar no prédio onde o colóquio se realizava (na cidade da Universidade George
Washington, Onde não foram instaladas medidas de segurança) e limpar o escol da
cultura anti-terrorista americana. De volta ao uniforme, o general tinha essas palavras
proféticas: "Um dia, os terroristas atacarão um prédio como este, em Washington ou
Nova Iorque. Matarão centenas de pessoas dando-nos o golpe psicológico sem
precedentes. A questão não é se tal ataque irá ocorrer em solo americano, mas quando e
onde. Cabe a si, cavalheiros, estarem preparados. A segurança do nosso território está
nas suas mãos". O colóquio ocorreu em 1998. Três anos depois, dezanove indivíduos
determinados mataram cerca de três mil pessoas no pior ataque terrorista da história,
atacando Nova Iorque e Washington, DC. O próprio Pentágono, sede do AID, foi
atingido. Na sua negligência, os serviços de inteligência americanos não conseguiram
impedir a operação.
Em retrospectiva, esse cenário parece quase surreal: primeiro, por causa do aviso
emitido pelo chefe de inteligência do Pentágono e segundo, por causa da incapacidade
da equipa de seguir o conselhoapesar da especificidade. Havia também incoerência
entre a imagem pitoresca do fanático marginal – praticamente a imagem viva do
anarquista dos desenhos animados de capa preta, bomba na mão – preparada para
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explodir o local em pedaços e falar sobre a iminência do terrorismo de alta tecnologia, o
notável "hiper-terrorismo" contra o qual foram redigidas todas as novas políticas.
O fenómeno terrorista é mais difícil de qualificar do que parece. A questão tende a ser
confundida por interpretações ideológicas, junto com a tentação, especialmente por
parte dos governos, de recorrer a imagens diabólicas sempre que o termo é apresentado.
O bom sítio para começar pode ter em conta que o objectivo do terror é aterrorizar –
papel historicamente assumido pela força organizada, seja Estado ou Exército, pelo
menos quando se trata de regimes despóticos. Isso sempre foi o caso dos países não
democráticos. Noutros contextos, em tempos de guerra, o terrorismo pode ser
legitimado, mesmo quando usado contra civis. Na era moderna, vem-nos à mente o
atentado bombista de Coventry, Dresden e Tóquio4 e as bombas atómicas lançadas
sobre Hiroshima e Nagasaki.
O terror em nome da religião, o terror sagrado, é fenómeno histórico recorrente.
Exemplo bem conhecido disso foi os judeus Zelotas do primeiro século, também
conhecidos como sicarii. Esta seita assassina ajudou a incitar a revolta contra a
ocupação romana que resultou, nomeadamente, na destruição do segundo templo em 70
EC5 e a diáspora. A seita ismaelita conhecida como Assassinos foi a correlação
islâmica6. Durante dois séculos, entre 1090 e 1272, fez com que o assassinato político
dos dignitários muçulmanos pela lâmina fosse marca registada. Nenhuma seita cristã
usou o terror com o efeito tão angustiante, embora possamos notar os Taboritas da
Boémia do séc. XV, os Anabaptistas do séc. XVI e o anti-semitismo activo da primeira
cruzada em 1095, para não mencionar os excessos da Inquisição. De qualquer forma, os
movimentos messiânicos circulam e prosperam no terror7.
O messianismo postula que um dia no futuro não muito distante, o mundo será
completamente transformado por evento marcado pelo fim da história. No cristianismo
primitivo, a crença no fim iminente sinaliza a Segunda Vinda de Cristo (Parousia8) era
usual. A ideia de apocalipse está intimamente ligada a várias escolas messiânicas de
pensamento e não exclusivamente entre as religiões reveladas. Os astecas acreditavam
que quatro sóis (quatro mundos) iam e vinham. Ficaram assombrados pelo medo de o
mundo acabar se o Sol não recebesse o devido tributo do sangue humano.
O espírito messiânico vivia dentro do judaísmo (v.g., no movimento de Sabbatai Zevi
do séc. XVII). Imediatamente após a vitória de Israel na Guerra dos Seis Dias, o
regresso à "terra prometida" provocou reflorescimento messiânico na forma da criação
de Gush Emunim, com o impulso dinâmico para colonizar a Judeia e a Samaria (a
Cisjordânia). O messianismo cristão é manifesto hoje entre certas seitas protestantes
fundamentalistas com raízes no séc. XIX. De entre estas seitas, o poderoso movimento
evangélico, está especialmente atento às fortunas de Israel, visto que os adeptos
acreditam que a vitória final de Israel é condição prévia para a Parousia. O islão tem os
próprios movimentos desse tipo, especialmente no que diz respeito à chegada esperada
do Mahdi, equivalente ao Messias cristão. O messianismo é central para o Xiismo
Duodecimano do Irão, com a antecipação do décimo-segundo imã. Embora o deles seja
conflito político, os eventos e antagonismos que alimentam os confrontos violentos
entre o islamismo radical e os Estados Unidos, como o conflito israelo-palestiniano,
também têm dimensão messiânica. Contrariamente a visão bastante difundida, estes não
têm nada a ver com o "choque de civilizações". Essa animosidade é igualmente crua
4 O ataque bombista de Tóquio em Março de 1945 matou entre 80 000 e 100 000 pessoas.
5 ● Era Comum.
6 Ver, por exemplo, Lewis, Assassinos.
7 Ver, por exemplo, Cohn, Pursuit of the Millennium.
8 ● Palavra antiga grega usada no sentido técnico de presença ou visita oficial de rei ou governante mas como surge
no Novo Testamento para a segunda vinda de Cristo também é usada nesse sentido.
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entre as sociedades como entre estas, como evidencia, por exemplo, o ataque de 1979
contra a Grande Mesquita em Meca por radicais sunitas, principalmente sauditas, ou o
assassinato de Yitzhak Rabin em 1995, considerado pelo membro de Gush Emunim por
ser cúmplice na renúncia da Judeia e Samaria9.
O terrorismo religioso é visto pelos praticantes como acto transcendental. Justificada
pelas autoridades religiosas, dá total sanção aos actores que se tornam instrumentos do
divino. O número e a identidade das vítimas não têm importância. Não há sentença
superior do que a causa pela qual o terrorista se sacrificou. Os perpetradores do
primeiro, apenas o ataque parcialmente bem-sucedido no World Trade Center em 1993,
obtiveram a primeira fatwa do xeique Omar Abdel Rahman, agora preso nos Estados
Unidos.
Apesar desta breve digressão à religião, ou pelo menos a faceta dela, o principal foco de
estudo é o terrorismo, que para muitos leitores contemporâneos se pode resumir ao
terrorismo islâmico. Recordemos a este respeito as questões teológicas e políticas estão
intimamente ligadas entre si no Islão. Este aspecto distintivo do Islão pode ser atribuído
aos primeiros dias, quando o chefe supremo – para se basear em vocabulário mais
familiar – era líder religioso e político. Este ideal foi mais tarde abandonado. Apareceu
o aparelho político, relativamente distinto do aparelho religioso e jurídico, mas, no
muçulmano, o ideal permaneceu numa estrutura única, o islão, através do Alcorão,
incorporado no conceito de din wa dawla (religião e estado). A Igreja cristã surgiu em
circunstâncias muito diferentes. Mesmo quando o cristianismo tornou-se religião oficial
do império no séc. IV, os aparelhos religiosos e políticos permaneceram separados,
embora a Igreja tenha sido brevemente inclinada a impor o domínio sobre os líderes
temporais na Idade Média.
Os movimentos religiosos sempre se dividiram em seitas. Os movimentos cismáticos
sempre reivindicaram ser os verdadeiros intérpretes do credo original. Hoje em dia, os
sectários filiados ao islamismo radical, tendo-se entretido com a guerra de guerrilha
abandonada, são caracterizados pelo uso do terrorismo negro da religião, interpretado
para promover a mobilização e o envolvimento para prosseguir fins políticos.
Não devemos ficar aqui no desfile interminável de regimes despóticos que deixaram
marca na história chinesa, desde a fundação do estado chinês unificado no sec. III ANE
a Mao Zedong; nem nas sociedades do antigo Oriente e da Índia (excepto para notar a
surpreendente excepção na Índia de Aśoka, soberano que procurou governar de acordo
com os preceitos do budismo); nem nos impérios islâmicos, que, como todos os
governos, preferiam a injustiça à desordem, e o último dos quais, o império otomano,
explorava o terror sem escrúpulos. Nem o Ocidente era deficiente nesse sentido até o
surgimento de democracias embrionárias na Suíça, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos
e França. Além disso, a primeira república francesa caducou em nome da virtude ao
terror, atingindo o zénite em 1794 com a Lei de 22 Prairial10 que proibia testemunhas e
a representação legal da defesa e autoriza o Tribunal Revolucionário a passar as
sentenças de morte com base apenas na convicção.
A história – ou, mais precisamente, as crónicas dos vencidos cuja perspectiva ofuscou o
registo histórico – continua a reverberar com o terror generalizado incitado pelos
mongóis e pela emersão expansionista no séc. XIII, igualado apenas por Tamerlão com
as pirâmides de cabeças depois a queda de Bagdade. O próprio séc. XX, produziu o
nazismo e o terrorismoestalinista, lembrado como o século dos genocídios – dos
9 Ver Sprinzak, Brother against Brother, e “Fundamentalism, Terrorism and Democracy”.
10 ● Ou Pradial (do francês prairial de prairie foi o nono mês do calendário revolucionário que vigorou entre 22 de
Setembro de 1792 a 31 de Dezembro de 1805, correspondendo neste caso ao período de 20 de Maio a 18 de Junho do
calendário gregoriano, período durante o qual o Sol percorria a constelação de Gémeos.
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arménios do império otomano em 1915-16 e Ruanda em 1994 (comprometidos com a
apatia internacional geral) aos judeus e ciganos de 1942 a 1945. Também será lembrado
pelos massacres de grupos sociais específicos, como os culaques na Rússia, contra-
revolucionários, autênticos ou suspeitos, as alegadas raças inferiores, e assim por diante.
Também, legiões de seitas religiosas ou outros grupos em santa missão exerceram terror
com renúncia. Até à eliminação no séc. XIX, os chamados "Thugs"11 aterrorizavam os
viajantes em toda a Índia. Os Thuggee eram seita de estranguladores, cuja adesão
começa em idade jovem, muitas vezes passava de pai para filho, mas também através do
sequestro de crianças muito novas. Aos dez ou onze anos, os meninos eram autorizados
a acompanhar os Assassinos e a assistir à distância, sob a orientação do tutor, para
aprender as aptidões mercantis da seita e, acima de tudo, como manter a calma.
Participaram activamente desde a puberdade.
A seita adorou Kali, deusa da morte hindu. De acordo com os Thugs, criou dois homens
da transpiração das axilas para ajudar os demónios da batalha; em recompensa, deu-lhes
permissão para matar sem remorso, desde que não derramassem sangue. A tradição
religiosa dos Thuggee sustentava, no início, que a deusa tinha eliminado os cadáveres
devorando-os. Um dia, no entanto, um neófito virou-se e viu a deusa à refeição. Para
castigo, a partir daí recusou-se a descartar os próprios corpos. Em vez disso, ordenou
aos fiéis que os cortassem e enterrassem, e depois cumprissem ritual cerimonial.
Até o início do séc. XIX, todos os anos milhares de viajantes desapareceram. Quando o
Thug era feito prisioneiro, as autoridades de Mogul emparedavam-no vivo ou cortavam
as mãos e nariz. Em 1830, os britânicos propuseram-se desmantelar a seita e esta acabou
por desaparecer.
O terrorismo é acima de tudo instrumento ou, se quiser, técnica. Esta técnica é tão
antiga quanto a própria guerra, ao contrário da noção generalizada de o terrorismo ser
descendente dos movimentos nacionalistas do séc. XIX. A confusão pode ter resultado
da aparição tardia do termo na Revolução Francesa e o seu Terror.
Como todos os fenómenos políticos, o terrorismo é definido pela dualidade entre ideias
professadas e a sua implementação. E, como todos os fenómenos políticos, o terrorismo
apenas existe em contexto cultural e histórico. Durante três décadas, as actividades dos
movimentos terroristas estavam intimamente ligadas à ideologia marxista; os grupos
terroristas marxistas estão hoje em minoria, durante as décadas de 70 e 80
predominaram. O mesmo se aplica a toda a história dos movimentos terroristas,
adaptada pelo contexto político onde nasceram, viveram e morreram. Embora o
terrorismo seja fenómeno que se reinventa continuamente, a falta de continuidade entre
cada geração de terroristas geralmente implica ruptura de sinais com o passado.
Hoje em dia, a importância do componente cultural é mais evidente nos movimentos
terroristas de inspiração religiosa do que nos de inclinação nacionalista ou estritamente
ideológica. São os movimentos religiosos que se fazem ouvir. O Hamas e a Alcaida, em
particular, combinam aspirações políticas ou pseudo-políticas (a destruição de Israel e /
ou dos EUA) com significado religioso que serve o principal objectivo do recrutamento
e, assim, encontra eco na ideologia de outros movimentos. Deve-se notar que a fase
inicial do terrorismo palestiniano era essencialmente político e secular, apenas deriva na
religiosidade na década de 80, em sequência da revolução iraniana.
A organização terrorista é virtualmente oposta ao aparelho estatal. A natureza dessa
antítese geralmente define o carácter do movimento. Onde o aparato do Estado é
essencialmente racional, a causa terrorista tenderá a atrair fortemente a emoção. Onde a
11 ● Fraternidade secreta de assassinos e ladrões de viajantes, que aparecem na Índia. Os registos indicam que se
tornaram operantes a partir do séc. XVI (embora possam ter começado bem antes, no séc. XIII) até meados do séc.
XIX.
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máquina do estado funciona com base em políticas "realistas" e na compreensão do
equilíbrio de poder, o movimento terrorista imbuirá as políticas com poderoso tom
moral (cujo código varia dependendo da ideologia em jogo) e a estratégia do fraco
versus forte, dependente na maior parte do impacto psicológico sobre o adversário.
Raymond Aron teve a feliz maneira de chegar ao centro da questão: "A acção violenta é
considerada terrorista quando os efeitos psicológicos são desproporcionais aos
resultados puramente físicos".
O terrorismo actual é o que os especialistas chamam de terrorismo de grupo ou de baixo
para cima, mas o terrorismo de alto nível (estado) tem sido muito mais dominante ao
longo da história. Logrou o auge no séc. XX com o advento do totalitarismo. Em termos
de vítimas, o terrorismo de cima para baixo ocupou taxa muito maior do que a
contrapartida de baixo para cima.
Neste estudo, a atenção está no terrorismo de baixo para cima, mas não exclusivamente.
Como instrumento, seja de cima para baixo ou de baixo para cima, o terror adopta o
mesmo princípio estratégico: submeter a vontade do adversário enquanto afecta a
capacidade de resistência. Até muito recentemente, ninguém falou de "terrorismo de
Estado". O terrorismo de Estado, como se entende hoje, aplica-se sobretudo ao apoio
prestado por certos governos (Líbia ou Irão, por exemplo) a grupos terroristas, mas
possui muitas outras formas. É também o instrumento sistematicamente usado por
regimes totalitários. O terrorismo de estado também se manifesta na doutrina militar das
forças armadas. A doutrina da "estratégia bombista", por exemplo, desenvolvida no
Ocidente na década de 30, baseava-se inteiramente no terror provocado pelo
bombardeamento em massa de populações civis para obrigar os governos a se renderem.
Esta doutrina resultou em Dresden e na destruição atómica de Hiroshima e Nagasaki.
Os limites entre terrorismo de cima para baixo e de baixo para cima são muitas vezes
enevoados, como explicado por Lenine antes de 1917 depois de assumir o poder. Todos
vimos que o terrorista corrente torna-se chefe de Estado amanhã, com quem os governos
terão de enfrentar ao nível diplomático. Menahem Begin prova essa metamorfose típica.
A tradição ocidental considera a violência legítima somente quando é praticada pelo
estado. A definição tão limitada não leva em conta o terror praticado por aqueles que
não têm outros meios de corrigir a situação que consideram opressiva. A legitimidade
de o acto terrorista reside nos objectivos dos agentes. Precisamos apenas imaginar
entrevistas com terroristas de outrora para entender a ideia de que "o fim justifica os
meios" é o motor da maioria das acções terroristas. É a causa abraçada pelo movimento
terrorista, ao invés do modo de acção, sujeito à avaliação moral. No contexto das
guerras da libertação nacional das décadas de 50 e 60, as acções terroristas são
frequentemente vistas de forma positiva porque aceleraram a libertação dos povos
oprimidos. Os agentes do terrorismo – seja na Argélia ou na Indochina – são heróis. Na
maior parte, não tiveram arrependimentos. Tudo se resume à ideia de "guerra justa" que
legitima a acção violenta.
No Ocidente e noutros lugares, no entanto, existe a tendência de rotular a acção
"terrorista" quando seconsidera ilegal. Esta confusão sempre perigosa entre a
interpretação moral de o acto político e o próprio acto turva a compreensão do
fenómeno terrorista. O acto é considerado "terrorista" quando chega de fanatismo ou
quando os fins de os perpetradores não parecem legítimos nem coerentes. O observador
perde-se no labirinto de movimentos terroristas, que variaram ao longo dos séculos e
evoluíram em contextos históricos e culturais distintos. Outra confusão surge da ideia de
o acto terrorista é, por definição, destinado a civis12. A população civil torna-se alvo da
12 Carr, Lessons of Terror, 66-67, por exemplo, considera os actos terroristas visam exclusivamente civis, o que
excluiria os Assassinos.
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estratégia indirecta quando o destino como a vítima potencial pode influenciar as
decisões tomadas pelos líderes. A noção de o destino dos civis suporta automaticamente
a liderança política representa compreensão contemporânea e contingente da política. É
comum aceitar o conceito de soberania popular – explorada, aliás, para justificar o terror
do estado – surgiu apenas com o Iluminismo. Pouco mais tarde, o terrorismo político
evoluiu com a mudança de mentalidade – os populistas russos do séc. XIX, por
exemplo, foram fortemente influenciados pela tradição romântica.
Se o terrorismo moderno tende na prática principalmente a atingir civis, o fenómeno
deriva, de facto, da evolução geral das estruturas políticas e do surgimento dos meios de
comunicação de massa. No Ocidente, as estruturas políticas evoluíram para a
democracia desde o final do séc. XVIII. A actual comunicação social, componente
crítico da democracia liberal, surgiu em conjunto. Agora, a legitimidade política da
democracia e os representantes eleitos é, por definição, dos cidadãos, e é por isso que o
terrorismo é mais eficaz contra países democráticos do que contra ditaduras. Isso não é,
como é amplamente aceito, porque as ditaduras são mais eficientes para encontrar e
punir os terroristas – embora tenham maior margem de manobra do que as democracias
ao fazê-lo – mas porque o impacto de o ataque é mais vasto num país livre do que num,
cujo povo não tem voz no governo e os meios de comunicação servem ou são
controlados pelo estado. Portanto, não é impreciso afirmar que o terrorismo moderno é
em parte consequência da democracia.
Isso não significa, no entanto, o fenómeno do terrorismo esteja necessariamente ligado à
democracia, uma vez que a exploração do terror é anterior ao estado democrático
moderno. E ainda – e é aí que a confusão tende a surgir – o terrorismo "pré-
democrático" foi praticado em outras formas, o que, à primeira vista, parece ser bastante
distinto do terrorismo conhecido hoje.
Das primeiras manifestações da técnica terrorista é o que uma vez foi chamado de
"tiranicídio" – termo longo caído em desuso. Tradicionalmente, o ataque contra o tirano
foi executado em nome da justiça. O tiranicídio foi a forma de terrorismo da era pré-
moderna mais difundida. A organização mais temível daquele período, actuando em
nome da pureza ideológica, foi a seita Assassino, activa nos séculos XIII e XIV. Isso
tem alguma semelhança com certas organizações terroristas contemporâneas.
Nenhuma sociedade tem o monopólio do terrorismo e, ao longo da história, os actos
terroristas deixaram marca em qualquer número de esferas geográficas e culturais. Os
Zelotas (ou sicarii) e os Assassinos, por exemplo, estavam activos no Médio Oriente,
que continua a ser o paraíso para importantes organizações terroristas até hoje. Após a
IIª GM, o estado de Israel abriu caminho para a acção através da estratégia baseada em
tácticas terroristas. Os palestinianos baseiam-se hoje no terrorismo contra Israel.
Durante vários séculos, a Ásia Central e o Médio Oriente foram presas do terror
praticado por vários exércitos nómadas, incluindo os de Gengis Cão e Tamerlão. Desde
o séc. XIX, a Rússia tem sido o teatro de numerosos actos de terrorismo, incluindo o
terror do estado no qual todo o aparelho soviético se baseou durante sete décadas. Hoje,
o terrorismo na Rússia é mais uma vez "de baixo para cima". Na Europa, a Guerra dos
Trinta Anos (1618-48) provou a prontidão com que os exércitos opostos recorreram ao
terror. Mais recentemente, a Europa foi varrida por diversas ondas de terrorismo:
anarquistas, terrorismo irlandês, acções de grupos ideológicos como as Brigadas
Vermelhas na Itália e a Facção do Exército Vermelho Alemão e, ultimamente, os
movimentos bascos e corsos.
Os Estados Unidos experimentaram ataques anarquistas no final do séc. XIX. Além
disso, o assassinato de figuras políticas (Lincoln, McKinley) deve algo à tradição do
tiranicídio – John Wilkes Booth exclamou "Sic semper Tyrannis!" ("Assim sempre aos
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tiranos!"), quando matou Lincoln e está profundamente enraizado na história americana.
As acções da organização semi-clandestina como o Ku Klux Klan também estão
assentes no terror através da prática do linchamento. As organizações da extrema-
direita, até certo ponto seguiram os passos do KKK, continuam a implantar tácticas
terroristas (como o atentado bombista de Oklahoma City), mas por meios modernos
cada vez mais sofisticados. Apesar do terrorismo internacional poupar o próprio solo, os
Estados Unidos foram tragicamente atingidos a 11 de Setembro de 2001.
A África subsaariana, que há muito parecia imune, tem sido vítima, nos últimos anos,
do terrorismo de exércitos regulares, irregulares e bandos armados. O problema é
particularmente agudizado na região dos Grandes Lagos, onde o conflito na República
Democrática do Congo reivindicou três milhões de vítimas, principalmente civis. O uso
do terror na África ecoa como o da Guerra dos Trinta Anos. No contexto da
globalização, a África, tangencialmente, tornou-se alvo terrorista, como evidenciou nos
atentados das embaixadas dos EUA na Tanzânia e no Quénia. Por outro lado, a América
Latina foi o teatro da miríade de conflitos de guerrilha, inclusive nas cidades. Os
guerrilheiros naturalmente recorreram a tácticas terroristas, especialmente no tipo de
guerrilha travada pelos Tupamaros no Uruguai.
No Irão, em 1979, o islamismo radical explodiu no palco na encarnação xiita. No
mesmo ano, a guerra no Afeganistão – com a ajuda dos Estados Unidos, Arábia Saudita
e do Paquistão – estimulou o surgimento do islamismo radical sunita. O movimento foi
aumentado por elementos de praticamente todos os países muçulmanos, além dos da
África subsaariana, e voltaram-se contra os EUA, uma vez que a URSS se retirou do
Afeganistão. A hostilidade com os Estados Unidos manifestou-se na série de ataques em
meados da década de 90. A de 11 de Setembro de 2001 marcou o auge e levou à
expedição punitiva de Washington contra o regime talibã no Afeganistão e à Alcaida. A
administração Bush acusou o Iraque de albergar armas de destruição maciça, tendo
ligações à Alcaida e figurava ameaça para a paz mundial e para a segurança dos Estados
Unidos. Claramente, parte da luta global contra o terrorismo, a guerra que se seguiu,
decidida unilateralmente, tem sido fonte de dificuldades inesperadas pelos falcões de
Washington.
Não se pode condenar o terrorismo sem condenar a violência de todas a espécie. É
preciso, no mínimo, considerar o porquê e por quem está a ser praticado. Como a
guerra, e talvez ainda mais, o terrorismo se apega às mentes e às vontades. À primeira
vista, as democracias parecem ser especialmente vulneráveis. E, no entanto, se o desafio
é grande ou mesmo fundamental, as pessoas provam ser surpreendentemente capazes de
o aguentar e as tensões psicológicas que geram. O terrorismo é justificado como último
recurso. No mundo real, os fracos não têm outra arma contra os fortes. Muitos
movimentos tornaram-se mais tarde legítimos ao usaram-no. Quanto aos estados, os
monopolistas da violência legal, são projectados e obrigados a se defender.Em geral, qualquer movimento com certo grau de substância social pratica o terrorismo
como táctica de pressão para forçar concessões e a solução negociada do estado. No
caso do islamismo militante, a característica que o separa de todos os outros
movimentos, passados e presentes, é não terem nada para negociar. A verdade é que a
luta é a morte.
Como fenómeno internacional, o terrorismo é mais incómodo irritante do que força
verdadeiramente desestabilizadora, excepto pelo impacto psicológico. O terrorismo é o
preço – em última instância, pouco modesto pago pelo Ocidente, e especialmente pelos
Estados Unidos, pela hegemonia. O truque, se alguém tem a perspicácia política para
aprender, é evitar alimentá-lo enquanto reivindica lutar contra isso.
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TERRORISMO COMO ESTRATÉGIA DE INSURGÊNCIA
Ariel Merari
Este artigo apareceu pela primeira vez de forma ligeiramente diferente no Terrorism and Political
Violence 5, nº 4 (Inverno 1993): 213-51, publicado por Frank Cass, Londres.
O terrorismo político é modo de guerra. O modo de luta dos insurgentes é ditado pelas
circunstâncias, e sempre que possível, adoptam a diversidade de estratégias. O
terrorismo, forma mais fácil de insurgência, é quase sempre um desses. Este ensaio
estuda as características únicas do terrorismo ao compará-lo com outras formas de
conflitos violentos, traça as principais ideias estratégicas pelas quais os terroristas
esperam cumprir objectivos e avaliar o sucesso e as condições que o afectam.
Antes de chegar a esses assuntos, no entanto, preciso esclarecer o que quero dizer com
"terrorismo político". O termo tem sido usado pelos governos, mídia e até mesmo pelos
académicos para indicar fenómenos que têm muito pouco em comum. Assim, para
alguns, o terrorismo significa actos violentos de grupos contra estados; para outros, a
opressão dos próprios cidadãos pelo Estado; e para outros ainda, actos bélicos de
estados contra outros estados.
O obstáculo importante no sentido de alcançar a definição amplamente adoptada de
terrorismo político é a conotação emocional negativa do termo. O "terrorismo" tornou-
se apenas outra palavra depreciativa, em vez indicar o tipo específico de acção.
Geralmente, as pessoas usam o termo como rótulo de desaprovação para toda a gama de
fenómenos que não gostam, sem se preocupar em definir com precisão o que constitui o
comportamento terrorista. Este ensaio trata o terrorismo como modo de luta em vez de
aberração social ou política, abordando o fenómeno tecnicamente em vez de moralista.
DEFINIÇÃO DE TRABALHO DO TERRORISMO
Como mencionado acima, "terrorismo" tem significados diferentes para diferentes
pessoas. A terminologia é sempre questão de acordo com o objectivo de entendimento
comum. Não há momento algum na busca de definições baseadas em lógica de termos
pertencentes ao domínio da ciência política ou social, especialmente quando o termo em
questão traz conotação emocional negativa. Afastado da aceitação geral dos
pressupostos básicos e da semântica necessária para a definição de terrorismo, não há no
mundo forma, por exemplo, para os Estados Unidos provarem logicamente que os
ataques patrocinados pela Líbia nos aeroportos de Roma e Viena em 1985 foram actos
de terrorismo. Os Estados Unidos estão certamente consistentes com a própria definição
de terrorismo, mas o Coronel Muamar Cadafi ainda pode manter que o termo
"terrorismo" deve ser reservado para actos como a invasão punitiva dos EUA na Líbia,
em Abril de 1986, e os ataques em Roma e Viena são mais adequadamente descritos
como formas de violência revolucionária, luta armada ou luta pela liberdade.
Alcançar consenso sobre o significado do termo "terrorismo" não é o fim importante em
si, excepto, talvez, para linguistas. Ainda assim, para estudantes de violência política, a
classificação dos fenómenos que se enquadram nesta categoria geral é o primeiro passo
essencial da pesquisa. É necessário diferenciar entre várias condições de violência e
distinguir entre diversos modos de conflito, o que quer que possamos denominá-los, se
quisermos entender melhor as origens, factores que os afectam e como lidar com eles.
Os propósitos, circunstâncias e métodos envolvidos na violência de o Estado contra os
próprios cidadãos são inteiramente diferentes daqueles que caracterizam a violência de
estados contra outros estados ou por grupos insurgentes contra governos. A aplicação do
termo "terrorismo" a todas as três situações é ofuscante e perturba a pesquisa académica
e aborda esses problemas na acção política. Enquanto o termo "terrorismo"
Dell
Nota
TERRORISMO COMO ESTRATÉGIA DE INSURGÊNCIA
Ariel Merari
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simplesmente denota comportamento violento que é deplorável aos olhos do usuário do
termo, a sua utilidade é em propaganda e não na investigação.
A abordagem interessante para o problema da definição do terrorismo foi tomada por
dois investigadores holandeses da Universidade de Leiden, Alex Schmid e Albert
Jongman13. Colectaram 109 definições académicas e oficiais de terrorismo e
analisaram-nas em busca dos principais componentes. Descobriram que o elemento de
violência foi incluído em 83,5% das definições e em termos políticos 65%, enquanto
51% enfatizaram o elemento de infligir medo e terror. Apenas 21% das definições
referiam arbitrariedade e alvos indiscriminados, e apenas 17,5% incluíam a vitimização
de civis, não-combatentes, neutros ou estrangeiros14.
Olhar mais detalhado sobre a variedade de definições citadas por Schmid e Jongman
mostra que as definições oficiais do terrorismo são bastante semelhantes. Assim, o
grupo de trabalho do vice-presidente dos EUA de 1986 definiu o terrorismo como "uso
ilícito ou a ameaça de violência contra pessoas ou propriedades para ulteriores fins
políticos ou sociais. Pretende-se, em geral, intimidar ou forçar governo, indivíduos ou
grupos a modificar comportamentos ou políticas"15. A definição do Gabinete para a
Protecção da Constituição da República Federal da Alemanha é: "O terrorismo é a luta
persistentemente liderada por objectivos políticos, que... [é] destinado a ser alcançado
por meio de acometimentos à vida e propriedade de outras pessoas, especialmente por
meio de crimes graves, conforme detalhado no art. 129a, § I do código de direito penal
(principalmente: assassinato, homicídio, sequestro extorsivo, incêndio criminoso,
deflagração de explosivos) ou por meio de outros actos de violência, que servem como
preparação de tais actos criminosos"16. A definição legal britânica contém os mesmos
ingredientes de forma sucinta: "Para efeitos da legislação, o terrorismo é ‘o uso da
violência para fins políticos e inclui qualquer uso de violência com o objectivo de
colocar o público ou qualquer parte do público com medo’"17. Existem três elementos
comuns nas definições citadas acima: (1) uso da violência; (2) objectivos políticos; e (3)
a intenção de semear medo em população-alvo.
Em comparação com as definições oficiais de terrorismo, os oferecidos pelos
académicos são, sem surpresa, mais variados, embora a maioria contenha os três pilares
das definições governamentais. Antes de nos tornar excessivamente eufóricos sobre o
consenso evolutivo sobre o terrorismo, lembremos que a amostra de definições
oferecidas por Schmid e Jongman reflecte, em geral, as percepções e atitudes dos
académicos e entidades oficiais ocidentais. As opiniões sírias, líbias e iranianas sobre o
que constitui o terrorismo são bastante diferentes, e também, provavelmente, são os dos
muitos outros países do Terceiro Mundo. O consenso ocidental em evolução sobre a
essência do terrorismo provavelmente não é partilhado pela maioria das pessoas na
Terra.
Além disso, as três características básicas comuns de terrorismo delineadas acima não
bastam para tornar a definição útil. Como definições de trabalho, as entidades oficiais
citados acima são muito amplos para serem úteis. O principal problema é que nãofornece o terreno para distinguir entre o terrorismo e outras formas de conflitos
violentos, como guerrilha ou até guerra convencional. Claramente, tanto a guerra
convencional como a guerrilha constituem o uso da violência para fins políticos. O
bombardeamento sistemático em larga escala de populações civis nas guerras modernas
13 Schmid e Jongman, Political Terrorism (1983, 1988, 2005).
14 Ibid. (1988), 5–6.
15 Ibid., 33.
16 Ibid., 33–34.
17 Ibid., 34.
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foi explicitamente destinado a espalhar o medo entre as populações-alvo. Por exemplo,
o folheto lançado sobre as cidades japonesas pelos bombardeiros americanos em Agosto
de 1945 declarava:
Estes folhetos estão a ser lançados para notificar de que a sua cidade foi arrolada para ser
destruída pela nossa força aérea poderosa. O bombardeamento começará em 72 horas.
Damos ao grupo militar essa notificação porque sabemos que não há nada que possa fazer
para impedir o nosso poder irresistível e determinação de ferro. Queremos que veja o como
o exército é impotente para o proteger.
A destruição sistemática da cidade após cidade continuará enquanto seguir cegamente os
seus líderes militares18.
O lançamento das bombas atómicas em Hiroshima e Nagasaki que encerraram a IIª GM
também pode ser vista como adequada nas definições de terrorismo, embora em maior
escala. Nitidamente, foram actos de violência, cometidos ao serviço de fins políticos,
com a intenção de espalhar o medo entre toda a população japonesa.
A história da guerrilha também oferece ampla evidência de vitimização sistemática de
civis na tentativa de controlar a população. Durante a luta pela independência da
Argélia, a Frente de Libertação Nacional (FLN) assassinou cerca de 16 mil cidadãos
muçulmanos e sequestrou 50 mil outros, que nunca mais foram vistos; além disso, cerca
de 12 mil membros da FLN foram mortos em "purgas" internas19. A ordem vietnamita
de 1965 era bastante explícita sobre os tipos de pessoas que tiveram de ser "reprimidas"
– mormente, punidas ou mortas: "Os alvos para a repressão são elementos contra-
revolucionários que procuram impedir a Revolução e trabalham activamente para o
inimigo e para a destruição da Revolução". Incluem-se entre eles "elementos que lutam
activamente contra a Revolução em partidos reaccionários, como o Partido Nacionalista
Vietnamita (Quoc Dan Dang), o Partido para o Vietname Grande (Dai-Viet) e o Partido
da Personalidade e do Trabalho (Can-Lao Nhan-Vi) e reaccionários-chave em
organizações e associações fundadas pelos partidos déspotas ou pelos imperialistas dos
EUA e pelo governo fantoche". Igualmente a "reprimir" são os "elementos reaccionários
e recalcitrantes que se aproveitam de várias religiões, como o catolicismo, budismo,
caodaismo20 e protestantismo, para se oporem activamente e destruir a Revolução e
elementos-chave nas organizações e associações alicerçadas por essas pessoas"21. O
exemplo mais recente é a prática do Sendero Luminoso peruano, Caminho Luminoso,
organização mortífera e estropiadora de aldeãos por tais ofensas como votarem em
eleições.
Se a definição de terrorismo é igualmente aplicável à guerra nuclear, à guerra
convencional e à guerrilha, o termo perde qualquer significado útil. Simplesmente se
torna sinónimo de intimidação violenta em contexto político e, portanto, reduzido a
termo inflexível, descrevendo aspecto vil de conflitos violentos de todos os tamanhos e
formas, conduzidos ao longo da história humana por todos os tipos de regimes. Se
ambos o atentado de avião comercial por pequeno grupo insurgente em tempo de paz e
o bombardear estratégico de populações inimigas por superpotência em guerra mundial
são "terrorismo", os cientistas sociais, decisores políticos e legisladores só podem
suspirar. Se desejamos usar o termo "terrorismo", em análise de ciência política,
devemos limitar isso ao tipo de fenómeno mais específico, diferenciado de outras
18 Daugherty, “Bomb Warnings”
19 Horne, Savage War of Peace (1987), 537–38.
20 ● Cao Dai (do vietnamita que significa Morada Alta) é religião sincrética e monoteísta fundada em 1926 por Ngô
Văn Chiêu. Possui 7 a 8 milhões de seguidores no Vietname, além da significante quantidade em locais de emigração
vietnamita como a Nova Zelândia e a Oceânia.
21 “Viet Cong Directive on ‘Repression’ ”, 37.
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formas de violência política. Apesar das ambiguidades e desentendimentos
anteriormente discutidos, o conceito terrorismo no uso moderno é mais comummente
associado a certos tipos de acções violentas feitas por indivíduos e grupos em vez de
estados e com eventos que ocorrem em tempo de paz e não como parte da guerra
convencional. Embora o uso original do termo em contexto político se referisse à
violência e à repressão do Estado (o "Reino do Terror" na Revolução Francesa)22, do
ponto de vista prático, a recente definição do termo pelo Departamento de Estado dos
EUA é o melhor apoio. De acordo com essa definição, o terrorismo é premeditado,
violência politicamente motivada perpetrada contra alvos não combatentes por grupos
subnacionais ou agentes estaduais clandestinos, geralmente destinados a influenciar a
audiência23. Praticamente é o único motivo pelo qual, no restante deste ensaio, o termo
"terrorismo "é usado para conotar a violência insurgente e não estatal. Nas secções
seguintes, identifica-se o terrorismo mais precisamente entre as outras formas de
violência insurgente.
O UNIVERSO DA VIOLÊNCIA POLÍTICA
Teoricamente, há infinitas maneiras de classificar a violência politicamente motivada.
No entanto, com os critérios de utilidade e parcimónia em mente, a classificação básica
relacionada com o iniciador da violência e com o alvo, distinta entre estados e cidadãos,
é apresentada na Tabela 1.
A Tabela 1 é a maneira útil de circunscrever o foco de interesse deste ensaio. Abrange,
grosso modo, todas as formas de violência política levadas a cabo pelos humanos contra
outros humanos, ao mesmo tempo diferenciam os principais tipos. Cada uma das quatro
células inclui a categoria distinta de comportamento truculento. Estes serão descritos
brevemente nos parágrafos seguintes:
Tabela 1 Classificação Básica de Violência Política
Alvo
Estado Cidadãos
Iniciador
Estado Estado Guerra em larga escala;
acção beligerante em tempo de
paz (e.g., operações ocultas e
ataques punitivos)
Opressão legal e ilegal da aplicação da lei
Cidadãos Guerra de Guerrilha; Terrorismo
insurgente; Golpe de Estado;
Revolução Leninista
Terrorismo vingador; Terrorismo étnico
Estados contra Estados
A violência iniciada pelos estados pode ser dividida conceitualmente em dois tipos
principais: (1) violência estatal dirigida contra outros estados, e (2) violência infligida
aos próprios cidadãos.
As acções agressivas dos estados contra outros estados geralmente assumiram a forma
de guerra convencional: choque de grandes exércitos regulares. Isto, sem dúvida, foi a
forma mais consequente na história da violência. Vários aspectos das guerras
convencionais, como a estratégia militar e as leis da guerra, foram estudados
extensivamente e tornaram-se disciplinas ou subdisciplinas académicas reconhecidas.
Obviamente, os estados também usaram a infinidade de níveis mais baixos de violência
nos confrontos com outros estados, como ataques da força aérea limitada, incursões
22 Para compreensão sumária sobre a origem do termo, ver Laqueur, Age of Terrorism, esp. Cap. 1.
23 U.S. Department of State, Patterns of Global Terrorism: 1988, v.
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comando ou o assassinato de agentes inimigos. No entanto, em todos os casos, esses
actos podem ser descritos como organizados e planeados e reflectem a capacidade de
grande burocracia.
Estados contra Cidadãos
O uso da força por estados contra ospróprios cidadãos inclui duas principais
subcategorias. Uma deles é o processo legal comum e aberto pelo qual os estados
cumprem as leis. O outro é o uso furtivo da violência ilegal por parte de o governo,
destinado a intimidar e aterrorizar os cidadãos com a intenção de impedir que se
oponham ao regime. Às vezes, a violência ilegal do Estado é exercida no contexto de
conflitos internos em nome da eficiência: devido a desvios nos processos legais que
dificultam a luta contra os insurgentes. Os exemplos são abundantes. Os casos mais
extremos envolveram os enormes regimes totalitários da Alemanha nazi e da União
Soviética estalinista. Os "esquadrões da morte" em vários países latino-americanos,
geralmente dirigidos por membros das forças de segurança, fornecem exemplo menos
eficiente, embora bastante repugnante, de marca diferente.
Cidadãos contra Cidadãos
A forma mais banal de violência dos cidadãos contra outros cidadãos é, naturalmente, o
crime comum. Ao contrário dos tipos de violência mostrados na Tabela 1, o delito
comum é motivado geralmente por razões que nada têm a ver com objectivos políticos.
A maior parte disso está comprometida com o ganho económico pessoal e outra parte
importante é estimulada por animosidades pessoais. Assim, a grande massa de violência
dos cidadãos contra outros cidadãos não está relacionada com o assunto deste ensaio, a
saber, a violência política. Há, no entanto, também fenómenos de violência dos cidadãos
cometidos por motivações políticas ou sociais. Alguns deles estão relacionados a
rivalidades ou conflitos raciais ou étnicos; outros estão associados a ideologias sociais
de direita ou de esquerda; e outros ainda têm a ver com a diversidade de questões
idiossincráticas, como o aborto, conservação do meio ambiente ou direitos dos animais.
O caso especial de violência de cidadãos, justicialismo, merece menção especial24. A
violência de milícias populares às vezes ligada à tentativa não autorizada de controlar o
crime, mas às vezes com violência contra minorias étnicas ou políticas.
Cidadãos contra o Estado
A violência dos cidadãos contra os estados pode ser organizada ou espontânea. Às
vezes, é expressão impulsiva do descontentamento, sem objectivos políticos claros nem
liderança organizada ou plano. Na forma organizada, a violência dos cidadãos
enquadra-se na categoria de insurgência, visando derrubar o governo. As principais
formas de insurgência são estratégias distintas de insurreição que diferem umas das
outras em várias características importantes. Antes de voltar a examiná-las em maior
detalhe, no entanto, é necessário lidar com a definição de terrorismo e distinguir esse
modo de violência e outras formas de conflito.
FORMAS DE VIOLÊNCIA DA INSURGÊNCIA
A violência insurgente pode assumir várias formas. Isso inclui a revolução, o golpe de
Estado, a guerrilha, o terrorismo e os tumultos. Nos últimos anos, o termo "intifada"
24 Webster’s New World Dictionary (1966) define “comité de vigilância” como “1. Grupo de pessoas organizadas
sem autorização legal prescrita para manter a ordem e punir o crime quando a polícia aparentemente falha ao fazer
isso. 2. Em particular antigamente no Sul, este tipo de grupos organizados para aterrorizar e controlar negros e
abolicionistas e, durante a Guerra Civil, para suprimir o apoio da União”.
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ganhou publicidade, referindo-se ao levantamento palestiniano nos territórios
administrados por Israel. Com excepção dos tumultos, essas formas de violência política
também podem ser vistas como estratégias de insurgência. A Tabela 2 lista estas formas
em estrutura que os distingue de acordo com várias características. O propósito da
tabela é ajudar na caracterização do terrorismo como modo de luta, enfatizando as
diferenças entre isso e outras formas de violência insurgente.
Antes de nos concentrar nas características do terrorismo como estratégia insurgente,
vamos descrever brevemente outras formas de insurgência, salientado atributos únicos.
Golpe de Estado
O golpe de estado é " golpe súbito e contundente na política; especialmente, o súbito e
forçado derrube de governo"25. É a apreensão do poder por indivíduo ou pequeno grupo
de pessoas que controlam posições importantes na maquinaria do estado. Edward
Luttwak, que escreveu o livro muito informativo e divertido sobre o golpe de Estado,
caracterizou esta estratégia como "a infiltração de pequeno mas crítico segmento do
aparelho estatal, usado para alterar o governo do controlo do restante"26. Normalmente,
mas nem sempre, o golpe cresce das fileiras dos militares. Em qualquer caso, para
conclusão bem sucedida do golpe, os rebeldes devem assegurar a cooperação de pelo
menos parte das forças armadas. O sucesso de o golpe depende da surpresa, a fim de
conquistar o governo desprevenido. É, portanto, imperativo que os preparativos para o
golpe sejam feitos em grande segredo. Em comparação com outras estratégias de
insurgência, o golpe geralmente envolve pouca violência, e às vezes é alcançado sem
derrame de sangue. O golpe é sempre planeado para ser rápido e normalmente é
episódio breve, independentemente do sucesso, embora os golpes fracassados se tenham
desenvolvido ocasionalmente em guerras civis prolongadas. Em suma, o golpe de
Estado pode ser caracterizado como insurgência planeada num alto nível das fileiras do
Estado, por algumas pessoas, envolvendo relativamente pouca violência durante período
muito breve.
Tabela 2 Comparação das Formas de Insurgência
Formas de Insurgência Nível de
Insurgência
Número
Envolvido
Duração
da Violência
Violência
Ameaça ao
Regime
Espontaneidade
Golpe de Estado Alto Alguns Curta Diversas Grande Não
Revolução Leninista Baixa Muitos Curta Grande Grande Não?
Guerrilha Baixa Média Longa Grande Diversas Não
Motim Baixa Média Curta Pequena Diminuta Sim
Terrorismo Baixa Alguns Longa Pequena Diminuta Não
Resistência Não violenta Baixa Muitos Longa Nenhuma Diversas Não
Revolução Leninista
A revolução geralmente é significada no sentido de mudança radical social, político ou
económica. Ao contrário do golpe de Estado, a revolução é mudança do sistema e não
da estratégia. Em alguns casos, a mudança revolucionária do sistema foi alcançada com
pouca ou nenhuma violência (por exemplo, a transformação da forma de governo na
Checoslováquia, Alemanha Oriental e Polónia no final dos anos 80 e 90 ou, como
exemplo muito diferente, a Revolução Industrial do séc. XVIII, Inglaterra)27. Em outros
25 Webster’s NewTwentieth Century Dictionary Unabridged, 2d ed. (1980).
26 Luttwak, Coup d’état, 27.
27 A caracterização de algumas revoluções como não-violentas é controversa: "revolução não-violenta", desde que
essas palavras conservem qualquer significado preciso, é no que se refere contradição ", afirma Chalmers Johnson,
por exemplo. "No entanto, é bem verdade que muitas revoluções foram realizadas sem o fluxo de sangue nas
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casos, as revoluções envolveram enormes derramamentos de sangue, como no caso da
Revolução Comunista Chinesa. Algumas mudanças revolucionárias envolveram
convulsões prolongadas e outras foram relativamente rápidas. "A revolução é das
palavras mais vagas", começa por dizer no tratado clássico de Crane Brinton sobre o
assunto28.
No contexto deste ensaio, no entanto, o termo "revolução" é usado em sentido muito
mais limitado, conota a estratégia ao invés do resultado social ou político. Embora as
revoluções da história às vezes tenham sido eventos espontâneos, não planeados e
tenham usado a diversidade de formas de luta, uma vez que o interesse deste ensaio é
primordialmente na natureza e implicações da estratégia de insurgência, devemo-nos
concentrar no conceito de revolução Leninista. O Partido Social-Democrata da Rússia
sob a liderança de Lenine, e especialmente o ramo bolchevista,procurou executar a
revolução marxista através de processo minucioso de preparativos clandestinos29. O
período de violência deveria ser breve, mas a apreensão real do poder foi concebida
como episódio cataclísmico que poderia envolver enormíssima violência30. Antes desse
confronto decisivo final, estava previsto no entanto, longo e árduo período de trabalho
de base destinado a preparar a organização revolucionária. Os três elementos mais
importantes deste período preparatório foram recrutar, educar e organizar quadros
revolucionários. Neste ápice, o mecanismo preparado seria colocado em acção. No
momento oportuno, adviria quando as características económicas do regime capitalista
inerentes provocassem o seu colapso31. Claro, nem toda a actividade do partido
revolucionário era clandestino. Havia organizações de frente e outros instrumentos de
propaganda a desempenharem a importante tarefa de preparar os corações e as mentes
das pessoas. Mas o elemento mais importante da revolução Leninista era o aparelho de
partido clandestino muito unido. O modelo da estratégia revolucionária Leninista pode,
portanto, ser caracterizado como insurgência de baixo, envolvendo numerosas pessoas.
O período de preparação é muito longo, mas o confronto violento directo deve ser
breve.
Guerrilha
Em espanhol, guerrilla é diminutivo para "guerra pequena". Essa forma de guerra é,
talvez, tão antiga quanto a humanidade, certamente mais antiga que a guerra
convencional. A guerra de guerrilha é tipo de guerra difusa, combatida em formações
relativamente pequenas, contra o inimigo mais forte. Em vários casos, a guerra de
guerrilha apenas serviu como forma auxiliar de luta, especialmente por trás das linhas
inimigas, com o principal esforço militar sob a forma de guerra convencional. Em
muitas insurreições, no entanto, a guerra de guerrilha foi a principal forma de luta,
durante algum tempo. Como estratégia, a guerra de guerrilha evita batalhas directas e
decisivas, opta pela luta prolongada que consiste em muitas pequenas lutas. Algumas
sargetas. O que então, sociologicamente falando, queremos dizer com a violência? Esta questão também é básica para
a análise da revolução" (Johnson, Revolutionary Change, 7).
28 Brinton, Anatomy of Revolution (1965), 3.
29 Em 1903, o revolucionário Partido Social Democrata russo foi dividido em bolcheviques e mencheviques. A
divisão foi sobre a questão da adesão do partido. Enquanto Lenine e apoiantes prevêem uma organização
conspiradora aperfeiçoada e controlada centralmente que inclua apenas activistas dedicados, os mencheviques
preferiram organização mais geral, menos exigente e menos centralizada. Ver, e.g., Deutscher, Prophet Armed.
30 Na realidade, contudo, a revolução de Outubro de 1917 foi executado de forma a golpe de estado. Teve poucas
baixas no processo de tomada ao poder, apesar da Guerra civil posterior resultando em grande derramamento de
sangue e destruição.
31 Na verdade, o factor dominante no colapso do regime czarista em 1917 foi a desagregação do exército resultado
das derrotas na Iª GM. Ver Skocpol, States and Social Revolutions.
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doutrinas de guerrilha esperam que a vitória final resulte no desgaste do inimigo32.
Outras doutrinas, no entanto, insistem que a guerra de guerrilha é apenas fase provisória
da luta, destinada a permitir aos insurgentes erigir exército regular para, eventualmente,
vencer pela guerra convencional33.
As guerrilhas tentam compensar a inferioridade em mão-de-obra, armas e equipamentos
ao adoptarem o estilo de guerra muito flexível, baseado em operações de toca e foge.
Para isso, os guerrilheiros usam o terreno para tirar vantagem disso, misturam-se com a
população ou, às vezes, lançam ataques desde países vizinhos. O princípio é sempre
evitar as forças governamentais empreguem o poder total no conflito. Tacticamente, no
entanto, os guerrilheiros conduzem a guerra de forma idêntica aos exércitos
convencionais. Quando os guerrilheiros montam uma emboscada ou atacam uma aldeia,
fazem da mesma forma que uma unidade de infantaria regular faria.
Tumulto
O tumulto é violência da plebe. Os distúrbios são geralmente não organizados, no
sentido de os manifestantes não serem nem totalmente controlados por líder nem
organizados em unidades ou alguma outra estrutura hierárquica34. No entanto, os
tumultos às vezes foram intencionalmente incitados por activistas políticos organizados
e pelo menos parcialmente direccionados. Ao contrário das outras formas de violência
discutidas neste capítulo, os tumultos não podem ser caracterizados como estratégia de
insurgência ou forma de guerra. Embora a grande insurreição às vezes tenha nascido
com tumultos, como nos casos da Revolução Francesa de 1789 e da Revolução Russa
de Fevereiro de 1917, a violência de rua espontânea não faz parte de esquema
cuidadosamente planeado para derrubar o regime. Em contraste com as guerrilhas e as
lutas terroristas, os tumultos são episódios breves e não planeados. Podem ocorrer
várias semanas ou meses, mas, no entanto, constituem erupção espasmódica em vez de
campanha planeada, organizada e prolongada.
Resistência Pacífica
Por definição, a resistência pacífica está além do escopo de o ensaio sobre violência
política. Abrange métodos como manifestações, greves de trabalho, de fome, boicote de
bens, recusa em pagar impostos e outras variações de desafiar as autoridades sem
derramar sangue. Esta forma de insurreição foi incluída na Tabela 2 com a finalidade de
comparação com estratégias violentas. Além disso, o comentário sobre a resistência
pacífica parece exigido por causa da importância moral e prática que lhe é atribuída
como alternativa aos modos violentos de revolta35.
Modelos de lutas pacíficas famosas conseguiram induzir grande mudança política
incluem o movimento de Gandhi na Índia, a campanha de direitos civis de Martin
Luther King nos EUA e, claro, os movimentos de protesto de 1989 na Europa Oriental.
Em vista desses sucessos deslumbrantes, pergunta-se por que as lutas pacíficas foram
tão raras na história. Alguns sugeriram a razão de ser que a resistência não violenta só
foi descoberta no séc. XX. Isso certamente não é verdade. Gene Sharp menciona vários
32 Ver, e.g., a doutrina da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP), in Amos, Palestinian Resistance, 192–
93.
33 Foi doutrina advogada por Mao Zedong e seguidores. Ver, e.g., Laqueur, Guerrilla, Cap. 6.
34 Com base na constatação empírica sobre a participação em tumulto em Newark, Nova Jérsia, Paige, “Political
Orientation and Riot Participation” define tumulto como “a forma de protesto político desorganizado envolvido por
aqueles que se tornaram altamente descrentes nas instituições políticas existentes” (819).
35 Defensores da resistência não-violenta geralmente enfatizam a moral superior deste modo de luta, mas no livro em
1973, Politics of Nonviolent Action, Gene Sharp, enfatiza as vantagens práticas embora o ponto de partida seja aquela
resistência não-violenta moralmente preferível.
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casos na história a comprovarem o contrário36. A explicação mais plausível é que a
resistência pacífica é de valor prático apenas quando o governo desafiado se abstém de
usar o poder para quebrar a resistência pela força. Nesse sentido, a mudança de padrões
políticos pós IIª GM, expressa reconhecimento global do direito à autodeterminação e
tendência geral para maior liberalização das democracias, ofereceu à resistência pacífica
melhor condição do que nunca.
Apesar disso, mesmo na segunda metade do séc. XX, não havia o único caso bem-
sucedido de desafio pacífico a regime totalitário ou poder externo que estava
determinado a enfrentá-lo pela força. Esta lição foi muito bem aprendida pelos húngarosem 1956, checos em 1968 e os estudantes chineses em 1989.
À primeira vista, o sucesso dos movimentos pacíficos na Alemanha Oriental, Polónia,
Checoslováquia e Bulgária na mudança dos regimes nesses países em 1989 parece
contrariar essa generalização. Deve-se lembrar, no entanto, que esses movimentos
foram impulsionados pela liberalização na União Soviética, e conseguiram apenas
porque a URSS mudou a política de intervenção anterior e recusou-se inviabilizar os
regimes comunistas dos antigos satélites, mesmo com apoio político mínimo no esforço
para reter o poder. A diferença entre o êxito da revolta checa em 1989 e o fracasso de
1968, ou entre o sucesso na Alemanha Oriental e o fracasso na China, não podem ser
atribuídos à maior determinação ou capacidade dos insurgentes nos casos bem-
sucedidos, mas à menor determinação por parte dos governos. A revolução islâmica
iraniana de 1979 e o fracasso do golpe de Agosto de 1991 em Moscovo são outras
manifestações aparentes da eficácia da resistência pacífica. No entanto, nestes
exemplos, o sucesso dos civis desarmados foi resultado da indecisão e da inépcia dos
governantes. Com toda a probabilidade, a maior determinação por parte do Xá no Irão
ou a junta golpista na URSS teria resultado em esmagamento sangrento da resistência.
Em suma, a resistência pacífica é modo prático de conflitos somente quando o governo
permite que isso ocorra. É absolutamente inútil contra os regimes repressivos
determinados a permanecer no poder.
Além disso, raramente a resistência pacífica existe como único modo de luta.
Juntamente com a luta pacífica de Gandhi contra o domínio britânico, foram numerosos
os casos de terrorismo e tumultos na Índia37. A insatisfação negra nos Estados Unidos
na década de 60 não foi expressa apenas em marchas e manifestações pacíficas, mas
também em tumultos violentos. A revolta ampla é geralmente expressa em várias
formas simultâneas, e é difícil avaliar individualmente os efeitos dos vários aspectos da
luta abrangente.
TERRORISMO
Como é que o terrorismo se encaixa no espectro da violência política? Como sugerido
supra, o uso habitual do termo refere, pelo menos no Ocidente, a acções como o
atentado do voo 103 da PanAm em Dezembro de 1988, os ataques aos passageiros nos
aeroportos de Roma e Viena em Dezembro de 1985, e a tomada da embaixada da
Arábia Saudita em Cartum em Março de 1973. Estas acções representam a forma de
violência política diferente da guerrilha, da guerra convencional e dos tumultos. As
acções desse tipo, quando são executadas de forma sistemática, constituem estratégia
distinta de insurgência. Esta estratégia deve ter nome, seja "terrorismo" ou outro, e
"terrorismo" tem a vantagem de familiaridade. Na verdade, os praticantes e defensores
36 Ibid., 75–90.
37 Ver Laqueur, Age of Terrorism, 21, 44–48.
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desta forma de luta usaram o termo para descrever o método38. No entanto, as definições
do termo deixam várias questões sem respostas. Agora vou examinar algumas das áreas
da confusão.
Terrorismo e guerrilha
Os termos "terrorismo" e "guerra de guerrilha" são frequentemente usados
indistintamente. Além de o descuido no uso da terminologia técnica pela mídia,
políticos e até mesmo académicos, essa sinonímia defeituosa reflecte confusão quanto à
definição de terrorismo e, muitas vezes, o desejo de evitar a conotação negativa que o
termo adquiriu. A "guerra de guerrilha" não tem concepção difamatória, e o seu uso,
portanto, parece ser de grande número de autores por carregar objectividade. Como
observou Walter Laqueur, o uso generalizado da "guerrilha urbana" para descrever a
estratégia de terrorismo como extensão ou substituição da guerrilha provavelmente
contribuiu para a confusão39. No entanto, como estratégias de insurgência, o terrorismo
e a guerrilha são bastante distintos. A diferença mais importante é que, ao contrário do
terrorismo, a guerrilha tenta estabelecer o controlo físico do território. Esse controlo é
geralmente parcial. Nalguns casos, os guerrilheiros dominam a área durante a noite e as
forças do governo controlam durante o dia. Noutros, as forças governamentais
conseguem garantir as principais rotas de transporte, mas o território da guerrilha mede
tão pouco quanto algumas centenas de metros à direita e à esquerda. Em muitos casos,
os guerrilheiros conseguiram manter o controlo total de porção considerável de terra por
longos períodos de tempo. A necessidade de dominar o território é elemento-chave na
estratégia de guerrilha insurgente. O território sob o controlo da guerrilha fornece o
reservatório humano para o recrutamento, base logística e – o mais importante – o
terreno e a infra-estrutura para estabelecer o exército regular40.
A estratégia terrorista não rivaliza pelo controlo tangível do território. Não obstante o
facto de os terroristas tentarem impor a vontade à população em geral e canalizar o
comportamento semeando o medo, essa influência não possui linhas de demarcação
geográfica. O terrorismo como estratégia não depende de "zonas libertadas" como áreas
de preparação para consolidar a luta e levá-la mais além. Como estratégia, o terrorismo
permanece no domínio da influência psicológica e carece dos elementos materiais da
guerrilha.
Outras diferenças práticas entre as duas formas de guerra acentuam ainda mais a
distinção básica das duas estratégias. Essas diferenças pertencem ao domínio táctico,
mas são, na verdade, a extensão dos conceitos estratégicos essencialmente divergentes.
Relacionam-se ao tamanho da unidade, armas e tipos de operações de guerrilha e
terrorismo. Os guerrilheiros costumam fazer guerra em unidades de pelotão ou tamanho
de companhia, às vezes até em batalhões e brigadas. Existem exemplos históricos bem
conhecidos onde os guerrilheiros usaram formações até mesmo de tamanho de divisão
na batalha41. Os terroristas operam em unidades muito pequenas, geralmente variam do
38 Os revolucionários do séc. XIX usavam o termo “terrorismo” com orgulho. Ver, e.g., N. Morozov, “The Terrorist
Struggle”, G. Tarnovski, “Terrorism and Routine”, e Johann Most, “Advice for Terrorists,” in Terrorism Reader, ed.
Laqueur and Alexander, 72–84, 100–108. Na segunda metade do séc. XX, contudo, a maior parte das organizações
insurgentes adoptaram a doutrina terrorista como estratégia evitam o termo a favor da variedade de eufemismos.
Ainda assim, a autoridade moderna da doutrina terrorista, Carlos Marighella, escreveu: “O terrorismo é o braço
armado do revolucionário que nunca pode renunciar” (Marighella, “Minimanual of the Urban Guerrilla” in Terror
and Urban Guerrillas, ed. Mallin, 103).
39 Laqueur, Guerrilla, x, xi.
40 Ver, e.g., Mao, “Base Areas in the Anti-Japanese Guerrilla War”.
41 Na batalha de Dien Bien Phu (1954) o Vietmin usou quarto divisões contra a força francesa de 15 000 (Dupuy e
Dupuy, Encyclopedia of Military History, 1296. A batalha em si foi conduzida ao longo das linhas da guerra regular,
embora tenha sido travada no quadro geral de luta de guerrilha. Ver, e.g., Laqueur, Guerrilla.
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assassino solitário ou de a única pessoa que fabrica e coordena o dispositivo explosivo
improvisado para a equipa de tomada de reféns de cinco membros. As equipas maiores
em operações terroristas foram numeradas de quarenta a cinquenta pessoas42. Estes, no
entanto, foram muito raros. Assim, em termos de tamanho de unidades operacionais, os
limites superiores de unidades terroristas têm limites mais baixos das unidades de
guerrilha.
As diferenças nas armas usadas nestes dois tipos de guerra também são evidentes.
Considerando que os guerrilheiros usam principalmente armas comuns de tipo militar,
como armas automáticas, metralhadoras, morteiros e até artilharia, as armas terroristas
típicas incluem bombas caseiras, carros-bomba e sofisticados dispositivos de pressãobarométrica projectados para explodir a bordo de aeronaves no ar. Essas diferenças no
tamanho da unidade e nas armas são apenas corolários do facto mencionado acima, cuja
táctica, as acções de guerrilha parecem-se ao modo de operação do exército regular.
Como os terroristas, ao contrário dos guerrilheiros, não têm base territorial, devem
mergulhar entre a população civil em geral para não se tornarem patos para caçadores. É
por isso normalmente os terroristas não podem admitir o uso de uniformes, enquanto os
guerrilheiros costumam fazer. Em comparação tanto quanto simplificada, portanto,
pode-se dizer, enquanto a guerrilha e a guerra convencional são dois modos de guerra
diferentes em estratégia, mas idênticas em tácticas, o terrorismo é a forma única de luta
em estratégia e táctica. A Tabela 3 resume as diferenças entre terrorismo, guerrilha e
guerra convencional como modos de luta violenta.
Tabela 3 Características do Terrorismo, Guerra de guerrilha e Guerra convencional como Modos de Luta Violenta
Guerra convencional Guerra de guerrilha Terrorismo
Tamanho da Unidade em batalha Grande
(exércitos, corpos, divisões)
Médio
(pelotões, companhias, batalhões)
Pequena
(geralmente menos que 10 pessoas)
Armas Gama completa de equipamento
(força aérea, blindados, artilharia,
etc.)
Armas na maioria do tipo infantaria
ligeira mas algumas vezes também
peças de artilharia
Pistolas, granadas, armas de assalto e
armas especializadas (e.g., carros-
bombas, bombas de pressão
barométrica)
Tácticas
Geralmente operações conjuntas
atingindo vários ramos militares
Tipo Comando
Especializado: raptos, assassinatos,
carros-bombas, sequestro, barricada com
reféns, etc.
Alvos
Geralmente unidades militares,
infra-estruturas industriais e de
transporte
Na maioria, pessoal militar, polícia e
administrativos, bem como oponentes
políticos
Símbolos do estado, oponentes políticos
e público em geral
Impacto pretendido Destruição física Sobretudo fricção física do inimigo Coerção psicológica
Controlo do território Sim Sim Não
Uniforme Usa uniforme Por vezes usa uniforme Não usa uniforme
Reconhecimento de zonas de guerra Guerra limitada a área geográfica
reconhecida
Guerra limitada ao país em luta Não reconhece zonas de guerra;
operações levadas a cabo pelo mundo
Legalidade internacional Sim, se conduzida por regras Sim, se conduzida por regras Não
Legalidade doméstica Sim Não Não
Método e Causa: Terroristas e Lutadores da Liberdade
Os grupos terroristas normalmente descrevem-se como movimentos de libertação
nacional, ou lutadores contra a opressão social, económica, religiosa ou imperialista, ou
qualquer combinação destes. Do outro lado da barricada, na tentativa compreensível de
degradar o terrorismo, os políticos apresentaram os termos "terroristas" e "combatentes
da liberdade" como contraditórios. Assim, o vice-presidente George H. W. Bush
escreveu em 1988: "A diferença entre terroristas e combatentes da liberdade às vezes
42 ● Grandes equipas terroristas foram usadas em sequestro: portanto, e.g., 50 membros da Liga Popular 28 de
Fevereiro participou na tomada da embaixada panamaniana em San Salvador a 11 de Janeiro, 1980, e 41 membros do
grupo M-19 colombiano assaltaram o Palácio da Justiça. in Bogota on November 6, 1985 (Mickolus et al.,
International Terrorism in the 1980s, 1: 5–6; 11: 298–300).
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está turva. Alguns dizem que o combatente da liberdade é outro terrorista. Rejeito essa
noção. As diferenças filosóficas são rígidas e fundamentais"43.
Sem julgar a auto-descrição de qualquer grupo particular, tentar apresentar os termos
"terroristas" e "combatentes da liberdade" como mutuamente exclusivos é, em geral,
falácia lógica. "Terrorismo" e "luta pela liberdade" são termos que descrevem dois
aspectos diferentes do comportamento humano. O primeiro caracteriza método de luta,
e o segundo a causa. As causas dos grupos que adoptaram o terrorismo como modo de
luta são tão diversas quanto os interesses e aspirações da humanidade.
Entre as causas professadas de grupos terroristas estão as mudanças sociais no espírito
de ideologias de direita e de esquerda, aspirações associadas a crenças religiosas,
queixas étnicas, questões ambientais, direitos dos animais e questões como o aborto.
Alguns grupos terroristas, sem dúvida, lutam pela autodeterminação ou pela libertação
nacional. Por outro lado, nem todos os movimentos de libertação nacional recorrem ao
terrorismo para promover a causa. Por outras palavras, alguns grupos insurgentes são
terroristas e lutadores da liberdade, alguns são um ou outro, e alguns não são.
Terrorismo e Moralidade
O herói da abordagem moralista do terrorismo é o russo chamado Ivan Kalyayev,
membro da "organização de combate" do Partido Social Revolucionário Clandestino,
que adoptou assassinar funcionários do governo como principal estratégia na luta contra
o regime czarista. Kalyayev foi escolhido pela organização para assassinar o Grão-
duque Sergei. Em 02 de Fevereiro de 1905, Kalyayev esperou, com a bomba sob o
casaco, pela chegada do Grão-duque. Quando a carruagem deste último se aproximou,
Kalyayev entretanto percebeu que o alvo ia acompanhado pela esposa e dois meninos,
sobrinhos, filhos do Grão-duque Pavel. No impulso do momento, Kalyayev decidiu
conter-se de atirar a bomba para não ferir a inocente filharada de Sergei. Dois dias
depois, Kalyayev completou a missão e foi capturado e posteriormente julgado e
executado44. A insistência de Kalyayev em definição muito rígida de alvos pretendidos
de violência revolucionária ganhou o estatuto de santo no evangelho dos analistas
moralistas do terrorismo e algo como teste decisivo para rápida identificação do certo e
errado na violência revolucionária45.
O tratamento mais concentrado da questão da moralidade do terrorismo é
provavelmente o oferecido por Michael Walzer46. A sua posição básica é resumida pela
seguinte citação: "Nas manifestações modernas, o terror é a forma totalitária de guerra e
política. Destrói a convenção de guerra e o código político. Atravessa limites morais
além do qual nenhuma restrição adicional parece possível, pois dentro das categorias de
civil e cidadão, não há nenhum grupo menor para o qual a imunidade possa ser
reivindicada... Os terroristas, de qualquer forma, não fazem tal afirmação; matam
qualquer um"47.
O teste decisivo da moral de Walzer é responsabilidade das vítimas por actos que são
objecto das desavenças dos atacantes. De acordo com este critério, oferece o que se
poderia chamar escala grosseira de "assassinabilidade": os funcionários do governo que
43 George H. W. Bush, introduction to U.S. Department of Defense, Terrorist Group Profiles, n.p. Ver ainda
Menachem Begin, “Freedom Fighters and Terrorists”, in International Terrorism: Challenge and Response, 39–46.
44 Ivianski, Revolution and Terror, 274–78 (em hebraico).
45 Muitos autores que tratam sobre o assunto da moral em terrorismo usam Kalyayev como exemplo. A lista parcial
inclui Hackers, Cruzados, Criminosos, Loucos, 294–95; Ivianski, “Moral Issue,” in Morality of Terrorism, ed.
Rapoport and Alexander, 230; Laqueur, Age of Terrorism, 83; Walzer, Just and Unjust Wars, 198–99; Bell, Assassin
(1979), 235.
46 Walzer, Just and Unjust Wars, 197–206.
47 Ibid., 203
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fazem parte do presumido aparelho opressivo são "assassináveis". Exemplo disso é a
vítima de Kalyayev. As pessoas ao serviço do governo que não estão relacionadas aos
aspectos opressivos do regime (e.g., professores, pessoal do serviço médico, etc.)
constituem categoria questionável. O veredicto pouco ambíguo de Walzer é porque "a
variedade de acções patrocinadas e pagas pelo estado moderno é extraordinária... Parece
intemperante e extravagante fazer todas essas actividades em ocasiões para o
assassinato"48. Aspessoas privadas definitivamente não são, assassináveis, de acordo
com Walzer. Estes não podem poupar as suas vidas por alterarem o comportamento.
Matá-los é, portanto, inequivocamente imoral.
A análise de Walzer deixa vários problemas principais sem resposta satisfatória. O mais
importante tem a ver com a essência do julgamento moral. A questão fundamental é se
as normas morais em geral e as normas de guerra em particular são absolutas, imutáveis
ao longo do tempo e idênticas em todas as sociedades, ou o reflexo em mudança da
condição humana e, portanto, variam em todas as sociedades e desviam perenemente
para se encaixarem em novas situações. As normas morais absolutas podem presumir-se
de uma de duas fontes: o édito divino ou o traço psicológico universal, comum aos
homens e mulheres em todas as sociedades da história. No primeiro caso, não há motivo
para argumentar: as regras divinas não são negociáveis, são questão de crença. Para
aqueles que acreditam na fonte divina, são regras fixas de conduta humana, que não
mudam ao longo do tempo. Walzer admite no tratado alicerçar-se na tradição religiosa
ocidental49, mas não está claro se essa atribuição é declaração de identificação cultural
ou anúncio de convicção religiosa pessoal. As normas culturais são certamente a
influência poderosa sobre atitudes, opiniões e comportamentos, e podem ser retratados
como o elenco onde os valores pessoais são moldados. Mas para reivindicar o estatuto
de o valor absoluto da raça humana, é necessário mostrar que o valor em consideração é
partilhado por todas as culturas.
Dada a enorme diversidade de culturas, a afirmação de que certo valor é universal deve
basear-se no pressuposto de que esse valor decorre do conjunto de atitudes e emoções
que prevalecem em todas as sociedades.
No que diz respeito à questão específica em apreciação, a saber, valores morais
relacionados à violência política, a suposição de universalidade é insustentável. Isso é
comprovado pelo facto de que a divergência do código de guerra moral apresentado por
Walzer como máxima absoluta é tão comum. As violações flagrantes das regras de
Walzer na história moderna não podem ser explicadas apenas pela loucura pessoal ou a
imoralidade de indivíduos que passaram a dominar regimes totalitários permitindo-lhes
agir em contradição com a vontade da maioria dos habitantes dos seus países. Em
muitos casos, as violações da moral foram apoiadas pela maioria da população do país
que as cometeu. As partidas em larga escala das leis da guerra foram praticadas mesmo
pelas democracias, forma de regime onde a acção governamental é circunscrita pela
vontade pública. Assim, o bombardeamento maciço da população civil japonesa, com a
intenção de prejudicar a moral, e a destruição total de Hiroshima e Nagasaki por
bombas atómicas na IIª GM foram, sem dúvida, apoiados pela maioria do povo
americano.
É óbvio, na aplicação real, o código moral em geral, incluindo as regras da guerra, é
produto das necessidades, percepções e conveniências das pessoas e sujeito a
influências culturais e circunstanciais. As diferenças culturais em relação ao estatuto de
não-combatentes foram expressas, por exemplo, no aproveitamento de reféns.
Considerando que a maioria dos ocidentais considerou o uso, pelo Iraque em 1990, de
48 Ibid., 202
49 Ibid., xiv.
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reféns civis – homens, mulheres e crianças – como escudo humano contra possível
bombardeamento de alvos estratégicos como acto repugnante e imoral, para muitos no
mundo árabe, isso era táctica legítima moralmente justificada. Parece, no entanto, que
os factores situacionais têm papel muito maior do que a diversidade cultural na
determinação da conduta na guerra. A forma de governo é, talvez, o factor mais
importante. Algumas das violações mais severas dos direitos humanos na história
moderna foram cometidas por regimes ocidentais totalitários. A necessidade percebida
também desempenha papel importante. Na verdade, todos os estados têm quebrado
repetidamente as regras da guerra. Em quase todas as guerras modernas, as populações
civis foram vitimadas intencionalmente e a magnitude da transgressão foi determinada
pela capacidade e pela necessidade tanto quanto pelos princípios morais.
O terrorismo não é diferente de outras formas de guerra na segmentação de não-
combatentes. No entanto, o terrorismo, mais do que qualquer outra forma de guerra,
viola sistematicamente as regras de guerra internacionalmente aceitas. Tanto na guerra
de guerrilhas quanto na guerra convencional, muitas vezes as leis do envolvimento são
ignoradas, mas o terrorismo descarta essas leis ao se recusar distinguir entre
combatentes e não-combatentes e, no que diz respeito ao terrorismo internacional,
também rejeitar as limitações das zonas de guerra. Ao contrário das guerras
convencionais e de guerrilha, o terrorismo não tem legitimidade jurídica no direito
internacional (do ponto de vista do direito interno, todas as insurreições são tratadas
como crimes). Por essa razão, o terrorismo como estratégia e terroristas como parte em
conflito não tem esperança em obter qualquer estatuto legal. Portanto, o terrorismo pode
ser descrito correctamente como forma ilegal de guerra, mas caracterizar isso como
imoral não faz sentido. Os terroristas fazem guerra pelos próprios padrões, e não pelos
dos inimigos. As regras de conduta de ambos os lados decorrem de capacidades e
necessidades e sofrem mudanças por razões basicamente pragmáticas. É claro que
pessoas e estados aprovam juízo moral sobre guerras e actos particulares na guerra. O
julgamento, no entanto, não reflecte nada além de as próprias normas culturais
existentes, na melhor das hipóteses e, muitas vezes, a visão partidária, influenciada por
interesses directos. No entanto, a moral, embora não possa ser tratada de forma coerente
como valor absoluto, é, a dado momento, a sociedade e o contexto, o facto psicológico
e, portanto, político. Os públicos aprovam julgamentos morais sobre pessoas,
organizações e acções. Reagem com base em padrões morais, independentemente de de
estes podem ser emocional e irracional. Na verdade, é o componente emocional do que
o lógico que tornam as atitudes baseadas na moral tão poderosas.
A moral é o código de comportamento que prevalece em determinada sociedade em
determinado momento. Como tal, a moralidade corresponde de perto à lei existente, mas
esta tem vantagens de clareza, precisão e formalidade. Como reflexo das normas
actuais, o terrorismo é a forma de guerra imoral nas sociedades ocidentais do séc. XX.
O poder desta caracterização é enfraquecido, no entanto, pelo facto de em praticamente
todas as guerras modernas, os códigos de comportamento morais (e, de facto, as leis da
guerra) foram violados por todas as partes em grande escala, pelo menos em relação a
alvos civis. A este respeito, a diferença entre terrorismo e outras formas de guerra são
questões de abrangência. Os terroristas geralmente descartam completamente a lei, sem
sequer fingir cumpri-la, enquanto os estados homenageiam leis e normas e violaram-nas
apenas em circunstâncias extremas; mas deve-se notar a relatividade da moral também
foi expressa nas mudanças nas regras de combate ao terrorismo. Se as leis reflectem
padrões morais prevalecentes em determinada sociedade, pode-se considerar interesse
no facto de que todos os estados, quando confrontados com a ameaça da insurgência,
promulgaram leis especiais ou regulamentos de emergência permitindo às forças de
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segurança actuarem de forma que normalmente seria considerado imoral. Na verdade,
em tais circunstâncias, os estados tendem a sancionar o incumprimento das forças de
segurança dessas leis ou, na melhor das hipóteses, punir esses "excessos" com bastante
indulgência.
TERRORISMO COMO ESTRATÉGIA DE INSURGÊNCIA
Na prática, o inventário operacional dos terroristas é bastante limitado.Colocam cargas
explosivas em locais públicos, assassinam adversários políticos, executam assaltos com
armas pequenas ao público em geral e tomam reféns raptando, sequestrando ou se
barricam em edifícios. Na maioria dos casos, a capacidade é bastante frágil. Considere,
por exemplo, o grupo alemão conhecido como a Facção do Exército Vermelho
(amplamente conhecido como Baader-Meinhof). Em determinado período ao longo da
sua existência, tinha menos de trinta membros activos, que puderam assassinar vários
funcionários públicos e empresários, raptar dois e criar incidente de reféns barricados.
Como é que esperavam alcançar o objectivo político de grande alcance de dominar o
governo alemão e instituir o regime marxista? O mesmo enigma também se aplica a
organizações muito maiores, como o Exército Republicano Irlandês (IRA), segundo a
estimativa britânica na década de 90 tinham estimado a participação activa de 200-400
homens e mulheres e o grupo de apoiantes muito mais amplo. Como poderiam ganhar a
batalha contra a Grã-Bretanha? Nesta secção deste ensaio, examino os principais
elementos e variações do terrorismo como estratégia, tentando explicar como os
terroristas pensam que podem superar o fosso entre os seus meios escassos e objectivos
sublimes.
O Elemento Psicológico
Essencialmente, o terrorismo é a estratégia baseada no impacto psicológico. Muitos
autores observaram a importância do elemento psicológico do terrorismo50, que também
é reconhecido nas definições oficiais do termo. As referências à intenção do terrorismo
"influenciar a audiência", na definição do Departamento de Estado dos EUA, ou com o
móbil de "colocar o público ou qualquer parte do público com medo", na definição legal
britânica de 1974, referem-se à questão dos efeitos psicológica deste modo de guerra51.
Na verdade, todas as formas de guerra têm o ingrediente psicológico significativo, tanto
na tentativa de danificar o moral do inimigo, semeando o medo nas fileiras como no
fortalecimento da autoconfiança e da vontade das próprias forças. No famoso tratado
Estratégia: Abordagem Indirecta, Sir Basil Liddell Hart, dos mais eminentes teóricos da
estratégia do séc. XX, chegou a afirmar, em quase todas as grandes batalhas da história,
"o vencedor tem no oponente a desvantagem psicológica antes do choque ocorrer"52.
Ideia idêntica foi expressa há cerca de 2.500 anos, de forma muito concisa, pelo antigo
estratego chinês Sun Tzu53.
No entanto, as guerras convencionais são, antes de tudo, colisões maciças de forças
materiais, e geralmente são conquistadas pela eliminação física da capacidade do
inimigo de resistir, destruindo as forças de combate, infra-estrutura económica ou
ambas. Mesmo que a afirmação de Liddell Hart seja correcta, o impacto psicológico das
manobras cruciais de abordagem indirecta decorre da crença do inimigo de que a
resistência é inútil por razões materiais. Embora em muitos casos, essa conclusão seja o
50 E.g., Crenshaw, “Introduction,” in Terrorism, Legitimacy, and Power, ed. id., 1; Wilkinson, Terrorism and the
Liberal State (1977), 110; Wardlaw, Political Terrorism, 34–42.
51 U.S. Department of State, Patterns of Global Terrorism: 1988; Schmid e Jongman, Political Terrorism (1988), 34.
52 Liddell Hart, Strategy, 163.
53 Sun Tzu, Art of War, Cap. 3.
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produto da surpresa e da confusão da liderança militar e não reflecte o verdadeiro
equilíbrio de poder, ainda depende das avaliações materiais, o que pode ser errado.
Assim, o sucesso psicológico descrito por Liddell Hart pode ser caracterizado como
rápido movimento ilusório, que consegue atirar para fora do equilíbrio o inimigo numa
única e surpreendente manobra do tipo jiu-jitsu. A base psicológica da estratégia do
terrorismo é inteiramente diferente em natureza. Como a guerrilha, o terrorismo é a
estratégia de luta prolongada. A guerrilha, no entanto, apesar do componente
psicológico, é principalmente a estratégia baseada em confronto físico. Embora os
teóricos da guerrilha do séc. XX realçam o valor da propaganda das operações de
guerrilha na divulgação da palavra da revolução, para atrair apoiantes e despertar
oponentes latentes do regime e fornecer-lhes a receita de resistência, a importância
desses elementos psicológicos permanecem secundários. Todas as doutrinas de
guerrilha insurgentes insistem que o campo de batalha contra as forças governamentais
é no campo. O próprio conceito de organizar a luta nas áreas rurais, longe dos olhos da
imprensa, enfraquece o significado do factor psicológico. Na verdade, o impacto
psicológico é o elemento mais essencial do terrorismo como estratégia.
A validade desta generalização recai sobre as condições básicas da luta terrorista. Os
grupos terroristas são pequenos. A participação varia de alguns indivíduos a vários
milhares, e na maioria de algumas dezenas para algumas centenas. Mesmo o mais fraco
dos governos tem força de combate muito maior do que a dos insurgentes terroristas.
Sob tais circunstâncias, os insurgentes não podem esperar ganhar a luta de maneira
física. Descrever a estratégia do terrorismo como forma de guerra psicológica não
explica especificamente a forma como os terroristas a esperam vencer. Embora os
terroristas raramente tenham sido suficientemente claros em estabelecer o plano
estratégico completo e coerente, é possível discernir várias ideias estratégicas que os
terroristas têm mantido como conceito prático e fundamental da sua luta. Estes são
descritos infra como noções distintas, embora não sejam exclusivas mutuamente
obrigatórias, e os terroristas repetidamente os adoptaram simultaneamente.
Propaganda pela Acção
Os fundamentos da base psicológica da luta terrorista mudaram pouco desde o séc. XIX,
quando os escritos anarquistas formularam os princípios desta estratégia. A ideia básica
foi formulada como "propaganda pela acção"54. Isso significava que o acto terrorista era
o melhor herdeiro da necessidade de derrubar o regime e o archote que vai iluminar o
caminho para o fazer55. Os terroristas revolucionários esperavam que os ataques iriam
transformar assim de pequeno clube conspirador em movimento revolucionário maciço.
De certa forma, o conceito original de propaganda pela acção, como explicado e
praticado pelos revolucionários do séc. XIX, foi mais refinado do que o uso moderno na
era pós IIª GM. Considerando que os praticantes anteriores tiveram o cuidado de
escolher alvos simbólicos, como chefes de Estado, governadores infames e ministros
opressivos, para chamar a atenção para justificar a causa, a marca mais recente voltou-
se para ataques indiscriminados visando causar múltiplas baixas. Ao fazê-lo, trocaram a
justificação do valor de propaganda pelo valor do maior choque, garantindo a cobertura
mediática massiva. Essa mudança parece reflectir a adaptação estratégica à era da
televisão. De qualquer forma, esse conceito básico da natureza da luta terrorista não
constitui estratégia completa. Como algumas outras concepções do terrorismo, na ideia
de propaganda pela acção, o terrorismo é apenas para ser a primeira etapa da luta. É o
54 Laqueur, Age of Terrorism, 48–51; Wardlaw, Political Terrorism, 21.
55 Ver, e.g., Most, “Advice for Terrorists”, in Terrorism Reader, ed. Laqueur and Alexander, 105–6; Ivianski,
Revolution and Terror, 106–7 (em hebraico).
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mecanismo de levantamento de uma bandeira e recrutamento, o prelúdio que irá
permitir aos insurgentes ampliar outros modos de luta. Em si, não se espera que o
governo caia.
Intimidação
Outro elemento psicológico saliente na estratégia do terrorismo tem sido, como o termo
indica, a intenção de espalhar o medo nas fileiras inimigas. A noção é simples e não
precisa ser elaborada. Para o regime e funcionários-chave, cuja própria existência é
desafiada pelos insurgentes, a luta é questão de vida oumorte, e geralmente não são
susceptíveis de desistir devido à ameaça dos terroristas. No entanto, os terroristas às
vezes conseguiram intimidar categorias selectas de pessoas, como juízes, jurados ou
jornalistas, através de campanha sistemática de assassinato, estropiação ou sequestro. A
extensão desta ideia de terrorismo coercivo aplica-se à população em geral. Não só os
funcionários do governo e empregados são punidos pelos terroristas, mas também todos
aqueles que cooperam com as autoridades e se recusam a auxiliar os insurgentes.
Exemplos de uso desta estratégia em larga escala foram os assassinatos de
colaboradores reais ou presumidos com as autoridades pelo Vietmin e Vietcongue no
Vietname, a FLN na Argélia e os "Comités de Choque" palestinianos nos Territórios
Ocupados de Israel. Ainda mais extensivo o uso deste tipo de intimidação é projectado
para forçar a população a tomar posição. Na verdade, é principalmente destinado a
afectar os neutros, em muitos casos, constituem a grande maioria do público, ao invés
de intimidar os reais adversários. Alistair Horne nota, nos primeiros dois anos e meio da
guerra da FLN contra os franceses na Argélia, esta assassinou pelo menos 6.352
muçulmanos, em comparação com 1.035 europeus. Os assassinatos foram muitas vezes
feitos de forma particularmente horrível, a fim de maximizar o efeito aterrorizante56.
As organizações insurgentes às vezes aplicaram imposições inúteis à população com o
único propósito de exercitar e demonstrar o controlo. Na rebelião árabe de 1936-1939
na Palestina, os insurgentes exigiram à população urbana árabe fosse impedida de usar o
tarboosh [fez] – chapéu popular entre os homens citadinos – e, em vez disso, o kaffiyeh
[Shemag]. Aqueles que ignoraram o édito foram punidos severamente57. Na mesma
linha, em 1955, a FLN exigiu à população muçulmana na Argélia de se abster de fumar.
Puniram aqueles que quebraram a proibição cortando os lábios com tesouras de poda58.
Mais uma vez, é difícil encontrar qualquer lógica por trás desse edital, além da
demonstração de poder para controlar a população.
Provocação
O componente importante da estratégia terrorista é a ideia de provocação. Como o tema
da propaganda pela acção, ideia encontrada nos escritos dos revolucionários do séc.
XIX59. No entanto, é dada proeminência especial no "Mini-manual do Guerrilheiro
Urbano ", de Carlos Marighella, 1969, um dos manuais terroristas mais influentes
56 Ver Horne, Savage War of Peace.
57 Ver Arnon-Ohanna and Mi’Bayit, Internal Struggle, 282–84 (em hebraico). O kaffiyeh era o lenço de cabeça
tradicional dos aldeões e alguns autores consideravam a sua aplicação na população urbana como sintoma de rebelião
social contra a burguesia, além do elemento nacionalista que era a principal motivação da rebelião. Naquela época, os
grupos insurgentes eram principalmente compostos por aldeões. Independentemente da verdadeira origem da
demanda dos insurgentes, o kaffiyeh tornou-se símbolo da rebelião, e os insurgentes impuseram à população como
símbolo de obediência.
58 Ver Massu, Vraie Bataille d’Alger.
59 Laqueur, Age of Terrorism, 43, notas, Por exemplo, os revolucionários arménios da década de 80 e 90 [séc. XIX]
assumiram que os seus ataques contra os turcos provocariam uma retaliação brutal, o que, por sua vez, resultaria em
radicalização da população arménia e possivelmente também levaria à intervenção dos países ocidentais.
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(embora o próprio autor tenha sido terrorista sem sucesso). Marighella escreveu como
resultado de ataques terroristas, o seguinte:
O governo não tem alternativa, excepto redobrar a repressão. As redes policiais, buscas ao
domicílio, detenções de pessoas inocentes e de suspeitos, bloqueio de ruas, tornam a vida na
cidade insuportável. A ditadura militar embarca na perseguição política maciça. Assassinatos
políticos e terror policial tornam-se hábito...
As pessoas recusam-se a colaborar com as autoridades e o sentimento geral é de que o governo é
injusto, incapaz de resolver problemas e recursos pura e simplesmente para a liquidação física dos
oponentes60.
A ideia é, em geral, simples e verdadeira, não só no ambiente político de ditadura latino-
americana, mas também em democracias liberais. Os ataques terroristas tendem a
evocar respostas repressivas por qualquer regime, que necessariamente também afecta
partes da população que não estão relacionadas aos insurgentes. Essas medidas, por sua
vez, tornam o governo impopular, aumenta assim o apoio público aos terroristas e às
suas causas. Quando as acções anti-terroristas do governo não são apenas draconianas,
mas também ineficazes, o sentimento anti-governo é ainda mais dominante.
A versão especial da doutrina de provocação é relevante para o conflito que tem
dimensão internacional. Quando os insurgentes representam a facção nacionalista
radical da entidade política maior ou são apoiados pelo estado, podem esperar que os
actos de terrorismo provoquem a guerra entre o seu país alvo e o estado que os
patrocina. Esta foi a estratégia inicial da al-Fatah, como Khaled al-Hassan, um dos
principais ideólogos da al-Fatah, explicou:
A técnica da luta armada era ostensivamente simples. Chamamos essas tácticas de
"acções e reacções", porque pretendemos levar a cabo acções, os israelitas
reagiriam e os estados árabes, de acordo com nosso plano, apoiar-nos-iam e
financiavam a guerra sobre Israel. Se os governos árabes não fossem à guerra, os
povos árabes apoiar-nos-iam e forçariam os governos árabes a apoiar-nos.
Pretendemos criar o ambiente de espírito de luta na nação, para que surgissem e
lutassem61.
A Estratégia do Caos
A ineptidão do governo é a base de outra alavanca psicológica na estratégia de alguns
grupos terroristas, que tentam criar o ambiente de caos para demonstrar a incapacidade
do governo de impor a lei e ordem. Essa "estratégia do caos" ou "estratégia de tensão" é
típica dos insurgentes de direita62. Os insurgentes esperam que o público, em tais
circunstâncias, exija que o governo liberal "fraco" seja substituído por regime forte. A
fim de criar o meio de desordem e insegurança, os terroristas recorrem a atentados
bombistas aleatórios de lugares públicos. Assim, o grupo neo-fascista italiano Ordine
Nero (Ordem Negra) colocou uma bomba num trem em 05 de Agosto de 1974, matando
arbitrariamente 12 passageiros e ferindo 48. Outro grupo italiano ultra-direita, o Núcleo
Revolucionário Armado, foi acusado do atentado bombista à estação ferroviária de
Bolonha em Agosto de 1980, causando a morte de 84 e 200 feridos63. A mesma ideia
provavelmente motivou os terroristas alemães de extrema-direita, que detonaram a
bomba no meio da multidão divertida que celebrava o festival da cerveja Oktoberfest
60 Marighella, “Minimanual of the Urban Guerrilla,” in Terror and Urban Guerrillas, ed. Mallin, 111.
61 Bechor, Lexicon of the PLO, 279 (em hebraico).
62 Ver Rentner, “Terrorism in Insurgent Strategies”, 51; P. Jenkins, “Strategy of Tension”,
63 Janke, Guerrilla and Terrorist Organisations, 47–48.
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em Munique em 26 de Setembro de 1980. Treze pessoas foram mortas e 215 ficaram
feridas na explosão64. Táctica similar foi usada pelo grupo terrorista ultra-direita belga,
entre 1982-85, que assassinou quase 30 pessoas em tiroteio aleatório de espectadores
durante assaltos a supermercados. Não havia nenhuma razão aparente para os
assassinatos além de criar pânico na população65. Como os outros conceitos estratégicos
de terrorismo descritos acima, a "estratégia do caos" não é plano abrangente para
assediar o poder. É apenas a forma de criar ambiente público que, segundo os
insurgentes, dá-lhes melhor hipótese de continuar a luta de maneira não especificada.
A Estratégia de Atrito
Alguns grupos insurgentes consideraram o terrorismo como estratégia de luta
prolongada,planeada para desgastar o adversário. Na verdade, essa é a única concepção
do terrorismo que considerou esse modo de luta como forma completa de alcançar a
vitória, e não como complemento ou prelúdio para outra estratégia. Os insurgentes
estavam plenamente conscientes da inferioridade como força de combate em
comparação com a força do governo e, ao contrário dos conceitos de luta delineados
supra, não esperavam que fossem suficientemente fortes para derrotar o governo em
confronto físico. No entanto, assumiram que tinham maior resistência do que o governo
e, se persistissem, o governo acaba por cair. Uma vez que essa estratégia pressupõe que
os insurgentes podem prevalecer com grande perseverança, em vez de construir força
mais forte, é perfeitamente adequado para conflitos onde a questão em questão não é de
vital importância para o governo.
Se o governo vê a luta como questão de vida ou morte, não sucumbirá ao assédio
terrorista, por mais prolongado e desagradável que possa ser. Além disso, quando o
governo luta pela vida ou pela existência do estado, é provável que tire as luvas e use
todos os meios necessários para reprimir a insurreição, ignorando restrições e controlos
normalmente impostos às forças de segurança ou instituindo leis de emergência e
regulamentos que suspendem tais restrições. Em confronto simples, o grupo insurgente
que usa o terrorismo como estratégia principal tem poucas hipóteses de ganhar,
enquanto as forças de segurança forem leais ao regime. Se, no entanto, os interesses do
governo na disputa são questão de utilidade e não de defesa da própria existência, a
abordagem ao problema provavelmente será a análise custo-benefício. O governo pesa
as perdas políticas, económicas ou estratégicas que provavelmente vão suportar se
cederem às exigências dos insurgentes em relação ao preço provável a pagar se a luta
subsistir.
Este processo de análise custo-benefício raramente, ou nunca, é avaliação metódica
lúcida da situação e das probabilidades. Normalmente, é questão de tentativa e erro,
marcada por flutuações em resultado de pressões políticas e desentendimentos públicos
e debates entre analistas e decisores. No entanto, o que eventualmente determina o
resultado é a importância relativa da luta pelo governo e para os insurgentes,
respectivamente, e o valor e a durabilidade dos incómodos dos terroristas.
Terrorismo Expressivo
Até agora, o terrorismo foi tratado como estratégia, implicando plano organizado para
alcançar o fim político, geralmente para tomar o poder. No entanto, em vários casos, o
terrorismo tem sido resposta emocional sem objectivo estratégico claro, embora os actos
64 O atentado foi aparentemente executado por membros do grupo terrorista neo-nazi Wehrsportgruppe Hoffman
(Grupo Militar Desportivo Hoffman), ou o Wehrsportgruppe Schlageter (Grupo Militar Desportivo Schlageter). Ver
Mickolus et al., International Terrorism in the 1980s, 1: 87; Schmid and Jongman, Political Terrorism (1988), 558.
65 P. Jenkins, “Strategy of Tension”.
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de violência tenham sido perpetrados por grupo de forma táctica. É certo que a
afirmação leva-nos ao território sombrio da racionalidade dos terroristas e do
terrorismo. Retrospectivamente, julgar o escasso sucesso na obtenção dos objectivos
políticos declarados, o terrorismo não é estratégia efectiva, e os terroristas podem,
portanto, ser conotados, em geral, serem irracionais, pelo menos na medida em que o
comportamento político está em causa. No entanto, nalguns casos, a luta terrorista
parece não ter fim na medida em que a irracionalidade é sobretudo impressionante.
Exemplo disso é o terrorismo molucano na Holanda nos anos 70. A comunidade
molucana na Holanda é o remanescente da era colonial holandesa. Após saída holandesa
das colónias, no Sudeste Asiático, a República do Sul molucana foi criada em 1950,
mas logo para ser conquistada pela Indonésia. Cerca de 15 mil molucanos do Sul, a
maioria membros da administração holandesa, encontrou refúgio na Holanda. As
frustrações políticas e sociais criaram o grupo terrorista dentro da comunidade, que
executou diversos ataques terroristas espectaculares nos Países Baixos. O mais notório
deles foi a tomada da embaixada Indonésia e o comboio de passageiros em 1975 e a
tomada da escola e outro comboio em 1977. Em troca da libertação de reféns, os
terroristas exigiram do governo dos Países Baixos, o seu Estado inexistente e a
libertação dos camaradas presos em operações anteriores66.
O terrorismo arménio nas décadas 70 e 80 é outro exemplo. O Exército Secreto Arménio
para a Libertação da Arménia (ESALA) e o Comando Justiça para o Genocídio
Arménio (CJGA) executaram numerosos ataques terroristas em 1975-1985, a maioria
contra diplomatas turcos. A motivação por detrás desses actos era a vingança pelo
massacre dos arménios feito pelos turcos em 1915, no qual cerca de 1,5 milhão de
arménios morreram. Os grupos terroristas exigiram aos turcos a admissão oficial de
responsabilidade pelo massacre, cujo governo da Turquia recusou sempre admitir. Além
dessa exigência explicitamente emocional, a ESALA também exigiu a reinstituição do
estado arménio independente, que incluía as províncias antigas arménias na Turquia67.
Actualmente, apenas cerca de 50.000 arménios vivem na Turquia, muito poucos deles
na região histórica da região. Cerca de quatro quintos dos arménios vivem na antiga
União Soviética, a maioria deles na antiga República da Arménia da URSS68. No
entanto, a acção terrorista arménia tem sido dirigida principalmente contra a Turquia.
Tanto o terrorismo molucano como o arménio são exemplos de terrorismo expressivo.
A motivação dominante dos homens e mulheres jovens que executaram actos de
violência pertencentes ao domínio emocional e não ao domínio do planeamento político
racional. O terrorismo nesses casos expressou o estado emocional, em vez de servir
como ferramenta instrumental não da estratégia de insurgência. Sem dúvida, o elemento
emocional também é parte da força motriz por trás da actividade de outros grupos
terroristas. Na maioria dos casos, no entanto, o desespero do caso político não é tão
clara como nos exemplos arménios e molucanos, impossibilitando o julgamento externo
sobre o peso do factor emocional.
COMO O TERRORISMO É BEM SUCEDIDO?
A avaliação do sucesso do terrorismo como estratégia depende da forma como o
sucesso é definido. A maioria dos grupos terroristas esforça-se para deitar o actual
governo e apoderar-se do poder. Por este critério de sucesso, levando em conta apenas
66 Schmid and Jongman, Political Terrorism (1988), 623. Ver ainda Janke, Guerrilla and Terrorist Organisations,
57–58; Yaeger, “Menia Muria”.
67 Kurz and Merari, ASALA. Ver ainda Schmid and Jongman, Political Terrorism (1988), 673, 675; Janke, Guerrilla
and Terrorist Organisations, 276.
68 Kurz and Merari, ASALA, 14–15.
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os insurgentes que usaram o terrorismo como principal estratégia, apenas alguns grupos
anticoloniais completaram-se plenamente o que pretendiam fazer. À medida que as lutas
da EOKA, o Agoniston de Kyipon de Organisma Ethniki (Organização Nacional dos
Combatentes Cipriotas) no Chipre e Mau Mau no Quénia contra o governo britânico e a
FLN na Argélia contra os franceses são exemplos bem conhecidos. A maioria dos
problemas de grupos terroristas que existiram na segunda metade do séc. XX fracassou
lastimosamente com os objectivos declarados69. O facto de sucesso do terrorismo se
limitar às lutas anticoloniais não é acessório. A razão principal é muito importante para
os insurgentes do que para o governo.
Onde a luta da organização terrorista tem como objectivo mudar a natureza sociopolítica
do regime, como no caso dos insurgentes de direita ou de esquerda, o governo em
exercício luta pela vida e está pronto a fazer o que for necessário para reprimira
insurgência. Para os governos da França, da Alemanha e da Itália, a luta contra a Acção
Directa, Facção do Exército Vermelho e as Brigadas Vermelhas era a questão de tudo
ou nada. Não havia espaço para arriscar: o sucesso dos terroristas significaria a extinção
do governo.
O mesmo também é verdade para a maioria dos casos de luta separatista, onde as
aspirações dos insurgentes são percebidas pelo governo como ameaça à soberania e à
integridade territorial do estado, como na luta separatista basca em Espanha70.
Diferenças no grau de sucesso dos terroristas separatistas derivam principalmente da
medida em que a separação da parte disputada do país parece, para a maioria dos
cidadãos do estado, ser o equivalente a separar um dos próprios membros. Para a
França, por exemplo, deixar os protectorados da Tunísia e de Marrocos ou as colónias
do Mali e Madagáscar era muito menos doloroso do que renunciar ao governo da
Argélia, legalmente parte da França e onde mais de um milhão de franceses viviam
entre a população de maioria muçulmana; e desistir da Bretanha ou da Normandia é
impensável. Nesse sentido, o sucesso do terrorismo separatista na obtenção de
objectivos é o critério para o grau onde o território em disputa é verdadeiramente a
entidade separada.
Também é verdade, no entanto, a causa nacionalista geralmente é muito mais poderosa
para motivar pessoas do que a questão social e, de qualquer outra forma, a intensidade
da violência decorrente dos sentimentos nacionalistas geralmente é maior que a gerada
por queixas socioeconómicas.
Considerando a efectivação dos objectivos dos insurgentes na íntegra é rara, muitas
vezes os terroristas conseguiram alcançar objectivos parciais. Quatro tipos de sucesso
terrorista parcial podem ser discernidos: (1) recrutamento para apoio doméstico, que
permite aos terroristas passar para nível mais alto de insurreição; (2) atrair atenção
internacional para as queixas dos terroristas; (3) adquirir legitimidade internacional; e
(4) obter concessões políticas parciais do adversário. Estes são discutidos mais à frente.
Foi mencionado que a noção mais básica de terrorismo como estratégia é a ideia de
"propaganda pela acção", que vê esse modo de luta como instrumento para espalhar a
palavra da insurreição, expandindo a base popular e, portanto, servindo como alavanca e
prelúdio da forma mais avançada de insurreição. Para a maioria dos grupos terroristas,
mesmo essa doutrina elementar, no entanto não funcionou. Embora os actos de
violência tenham obtido tremenda publicidade, como os ataques terroristas sempre
69 A base de dados da Unidade de Pesquisa de Violência Política da Universidade de Telavive incluiu dados sobre
mais de 800 grupos terroristas distintos que operaram na década de 80.
70 Para discussão da influência da questão em jogo na prontidão para ceder ao terrorismo, ver Merari and Friedland,
“Social Psychological Aspects of Political Terrorism”, in International Conflict and National Public Policy Issues,
ed. Oskamp.
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fazem, não conseguiram atrair simpatia e apoio público e gerar a ampla insurreição
popular que esperavam activar. Este foi, por exemplo, o caso com movimentos radicais
de esquerda e de direita na Europa Ocidental e nos EUA nas décadas de 70 e 80.
No entanto, houve casos onde o terrorismo, aparentemente, ajudou a acender e despertar
movimento mais amplo. O exemplo foi os sociais-revolucionários russos no início do
séc. XX. Embora não conseguissem transformar o próprio aparelho clandestino em
instrumento político capaz de conquistar o poder, e não obstante o facto de a Revolução
de Outubro de 1917 ter sido eventualmente executada pelos bolcheviques mais bem
organizados, os actos terroristas dos sociais-revolucionários provavelmente
contribuíram muito para manter a tocha revolucionária acesa. Ao longo dos anos, os
sociais-democratas (bolcheviques e mencheviques) estavam a construir a infra-estrutura
clandestina sem acções dramáticas para inflamar o entusiasmo das pessoas, os sociais-
revolucionários, pelo assassinato de ministros de Estado opressivos e outros
funcionários do governo, manteve a ideia e o espírito de luta viva entre potenciais
revolucionários. Ironicamente, parece que o terrorismo social-revolucionário, embora
muito criticado e ridicularizado pelos sociais-democratas, permitiram que estes
alcançassem em 1917 a capacidade de derrrubar o poder.
O resultado mais comum do terrorismo internacional leva as queixas dos terroristas à
consciência internacional. Em si, essa consciência não é suficiente para efectuar as
mudanças desejadas pelos insurgentes e algumas vezes resulta em repercussões que são
prejudiciais à causa dos terroristas. No entanto, em condições favoráveis, concede aos
insurgentes a escada pela qual podem subir ainda mais. Entre os públicos ocidentais, a
reacção inicial à campanha terrorista é, invariavelmente, a condenação veemente. Esta
resposta, no entanto, é frequentemente seguida de prontidão para examinar o caso dos
terroristas com mais atenção, com tendência a considerar favoravelmente as queixas.
Paradoxalmente, o público pode acabar por apoiar a causa ao denunciar o método pelo
qual foi trazida à sua atenção.
A atitude benevolente para a causa dos terroristas é mais provável que ocorra em
públicos que sofrem com os ataques dos terroristas, mas nada têm nada a perder com o
cumprimento das exigências. Nessa situação, a raiva inicial é logo substituída pelo
desejo de que o problema desapareça. Quando a atitude política positiva à causa dos
terroristas parece poder comprar a paz, os governos geralmente adaptam a política para
ganhar a boa vontade dos terroristas. Há o elemento aqui conhecido em psicologia como
"dissonância cognitiva", e não é necessariamente consciente. Essencialmente, envolve
encontrar desculpa aceitável para o curso de comportamento que pode produzir conflito
porque contradiz alguns princípios ou crenças. Certamente, é muito mais tolerável para
o governo ou público pensar, numa análise mais atenta, os terroristas terem razão, do
que ceder à pressão terrorista.
Quando outras pressões e interesses são acrescentados à vontade de acabar com ataques
terroristas, como acomodar patronos influentes dos terroristas, a probabilidade de
adoptar atitude favorável à causa terrorista é maior. As respostas ocidentais ao
terrorismo palestiniano internacional são exemplo saído desse processo. Os ataques
terroristas palestinianos na Europa Ocidental começaram em 1968 e atingiram o pico
em 1973. Foram condenados fortemente pela Comunidade Europeia. Em alguns anos,
no entanto, a Organização de Libertação da Palestiniana foi autorizada a abrir missões
em praticamente todos os países europeus e, em 1974, cerca de um ano depois, os
membros árabes da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP)
proclamaram embargo do petróleo contra as nações que apoiassem Israel, com o
aumento posterior dos preços do petróleo, o presidente da OLP, Yasser Arafat, foi
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convidado a dirigir-se à Assembleia Geral das Nações Unidas e a OLP ganhou estatuto
de observador da ONU.
"O problema inicial na avaliação dos resultados do terrorismo é que nunca é o factor
causal exclusivo que leva a resultados identificáveis", observou Martha Crenshaw. "O
intercâmbio de efeitos sociais e políticos com outros eventos e tendências torna o
terrorismo difícil de isolar"71. É certo que é impossível isolar o efeito líquido do
terrorismo e avaliar a contribuição relativa ao processo de legitimação da OLP com
precisão ao lado de outros factores, como as pressões económicas e políticas dos
estados árabes. No entanto, pode haver poucas dúvidas de que, em última análise, o
terrorismo teve efeito benéfico e não deletério sobre a legitimidade da OLP.
O caso da OLP é único na medida onde outros movimentos insurgentes nacionalistas e
separatistas não apreciaram o apoio de patronospoderosos. Os curdos e caxemiras, para
citar apenas dois exemplos de movimentos separatistas têm sido activos nas últimas
décadas, não ganharam tanta legitimidade e apoio internacional, embora as queixas
sejam sem dúvida tão convincentes como as dos palestinianos. Por outro lado, também é
verdade que esses movimentos não recorreram tanto ao terrorismo internacional como
os palestinianos (por si só, pode ser explicado pela falta de patrocínio estatal).
Alguns grupos terroristas que não conseguiram concretizar objectivos políticos
conseguiram, no entanto, conduzir o adversário a fazer concessões significativas.
Exemplo típico é a ETA, ou Euskadi ta Askatasuna, cuja longa e violenta campanha de
separação da Espanha não produziu a independência que aspiravam, mas, sem dúvida,
foi factor importante na decisão da Espanha de conceder às províncias bascas ampla
autonomia. Outro caso em questão é a luta do IRA sobre o Ulster. Embora ainda não
tenham sido tomadas medidas reais para mudar o estatuto do Ulster, houve prontidão
crescente na Grã-Bretanha para se livrar do problema irlandês por qualquer solução que
acabaria com a violência. O acordo britânico-irlandês de 1985 garantiu que o Ulster se
tornaria parte da República da Irlanda se o povo decidisse fazê-lo por voto popular. Por
enquanto, a Irlanda recebeu a declaração sobre Ulster no âmbito de a conferência anglo-
irlandesa. Claramente, as mudanças na política britânica foram motivadas pela luta do
IRA.
FORMAS MISTURADAS DE REVOLTA
Estratégias de levantamento geralmente são tratadas como entidades ou fenómenos
separados. Em análise teórica, essa separação é necessária se quisermos entender o
essencial e características da estratégia. O mundo real, no entanto, é sempre mais
complexo que as classificações académicas. Na realidade, às vezes é difícil distinguir
entre terrorismo e guerra de guerrilha mesmo com a ajuda dos critérios oferecidos
anteriormente. Por esses critérios, a estratégia básica usada pelo IRA, por exemplo,
pertence à categoria de terrorismo: o IRA não tenta aproveitar o território para
estabelecer "zonas libertadas" e as tácticas usadas pela organização são principalmente
bem dentro da marca terrorista típica, a saber, assassinatos e colocação de dispositivos
explosivos em locais públicos. No entanto, algumas das operações deste grupo, como
ataque de morteiro numa esquadra de polícia e explodir pontes, usaram tácticas e armas
geralmente associadas à guerrilha. Os grupos palestinianos que controlam o território no
Líbano (e na Jordânia durante 1967-70) fora do principal teatro de operações são outro
exemplo. Embora usassem áreas que dominavam para os fins clássicos da guerrilha de
recrutar, treinar e estabelecer a força regular, os adeptos foram recrutados da diáspora
palestiniana nesses países, e não da população nos territórios detidos pelos israelitas.
71 Crenshaw, “Introduction”, 5.
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Além disso, com algumas excepções, usaram tácticas terroristas e não guerrilhas. As
operações dentro de Israel e os Territórios Ocupados têm envolvido principalmente
cargas explosivas colocadas em supermercados, edifícios residenciais, estações de
autocarros, e assim por diante. As incursões em Israel geralmente foram feitas por
equipas pequenas enviadas para matar aleatoriamente civis.
Além do facto de às vezes ser difícil distinguir claramente as tácticas de terroristas e de
guerrilha, é ainda mais confuso, em muitos casos, os grupos insurgentes usar
sistematicamente a mistura das duas estratégias. No Peru, Sendero Luminoso usou a
estratégia clássica de guerrilha na região montanhosa de Ayacucho, onde ocupou
cidades, executou ataques em postos de polícia e comboios militares e estabeleceu
controlo sobre grandes áreas. Ao mesmo tempo, no entanto, executou a típica campanha
terrorista nas cidades, no qual cometeu assassinatos, atentados e sequestros. Esta
mistura semelhante é encontrada nas acções de muitos outros grupos latino-americanos,
como o Ejército de libertação Nacional (ELN), M-19 e Fuerzas Armadas
Revolucionarias da Colombia (FARC), a Frente de Libertação Nacional Salvadore
Farabundo Martí e o Exército Guatemalteco de Guerrilha dos Pobres. A estratégia dual
guerrilha-terrorismo também caracterizou grupos noutras partes do Terceiro Mundo. O
Vietmin e, mais tarde, as insurgências do Vietcongue foram casos onde a guerra regular,
a estratégia de guerrilha e o terrorismo floresciam lado a lado. Exemplos análogos,
embora em menor escala, são abundantes na Ásia e África.
Exame mais profuso revela a coexistência de estratégias de guerrilha e terroristas não é
acidental. Aparentemente, todas as organizações insurgentes que adoptaram a guerrilha
como principal estratégia também usaram o terrorismo regularmente. Alguns podem
afirmar que os movimentos de resistência lutaram contra os exércitos de ocupação são
notável excepção a essa generalidade. Esta reserva, no entanto, repousa em terreno
dúbio. Os combatentes contra exército estrangeiro na terra natal, como a resistência
francesa e os partisanos russos, jugoslavos e gregos na IIª GM, apenas atacaram o
aparelho militar e o aparelho oficial do inimigo pela simples razão de membros civis da
nacionalidade inimiga não estavam presentes no palco da batalha. A falta de alvo dos
inimigos não-combatentes não era questão de escolha; reflectiu a disponibilidade. Os
movimentos clandestinos atacaram civis da própria nacionalidade – colaboradores reais
e suspeitos com os ocupantes. Além disso, embora em alguns lugares, como a União
Soviética e Jugoslávia, a estratégia adoptada pelos partisanos fosse, em geral, guerrilha,
usando grandes unidades que operavam a partir de áreas libertadas ou semi-libertadas,
nos países da Europa Ocidental, como a França, a estratégia dos insurgentes pode, na
melhor das hipóteses, ser caracterizada como caindo na zona cinza entre guerrilha e
terrorismo. Nenhum controlo territorial foi criado pela clandestinidade francesa e as
operações consistiram em ataques a membros individuais das forças de ocupação, além
de explodir pontes, minagem e tácticas similares típicas da guerrilha. Presumivelmente,
muitos leitores se sentiriam insultados pela classificação dos combatentes anti-nazis
como terroristas e não como guerrilheiros. Devemos reiterar que os termos "terrorismo"
e "guerra de guerrilha" são usados aqui para denotar distintas estratégias de guerra, que
podem ser usadas ao serviço de diversas causas justas ou injustas e não implicam
qualquer julgamento moral.
A ausência de verdadeira campanha de guerrilha anti-nazi na Europa Ocidental durante
a IIª GM chama a atenção para o facto de que não houve nem uma única organização de
guerrilha na Europa Ocidental entre as muitas organizações insurgentes a operar nesta
região desde 1960. Este facto é particularmente notável contra o pano de fundo da
abundância de tais organizações em países do Terceiro Mundo. Como é que isso pode
ser explicado? É porque os insurgentes ocidentais decidiram gostar mais do terrorismo
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do que a guerrilha, tornando-se a estratégia de eleição? A resposta é, naturalmente, que
na Europa Ocidental e América do Norte, não tiveram escolha. A única opção racional a
curto prazo tem sido o terrorismo. Imaginar o IRA no Ulster ou as Brigadas Vermelhas
na Itália a tentarem lançar uma campanha de guerrilha: estabelecer zonas libertadas e
executar ataques de tamanho de companhia em instalações militares. Se tivessem
tentado essa estratégia, seria, sem dúvida, a guerra de guerrilha mais curta da história.
Para as forças governamentais em exercício, a eliminação da insurreição seria, no
máximo, questão de dias.
Há vários exemplos na história que mostram claramente o que ocorre quando o grupo de
insurgentes tem objectivo muito alto na escolha da estratégia. O mais dramático na
segunda metade do séc. XX é, provavelmente, o empreendimento bolivianode Ernesto
(Che) Guevara. Guevara, líder da campanha de guerrilha de 1956-58 em Cuba, tirou as
lições erradas das circunstâncias bastante peculiares que provocaram lá o sucesso dos
insurgentes. Guevara acreditava que a experiência cubana poderia ser facilmente
aplicada em vários outros países latino-americanos que considerava prontos para a
revolução. No Outono de 1966, levou 15 homens à Bolívia para iniciar a campanha de
guerrilha ao estilo cubano. A insurgência, no entanto, nunca conseguiu descolar.
Embora o terreno fosse favorável à guerrilha, Guevara não conseguiu atrair apoio
popular. Apesar de a eficiência das forças governamentais estar muito abaixo dos
padrões ocidentais, a superioridade em número era suficiente para cercar e destruir a
insurgência dentro de um ano72.
O terrorismo, por outro lado, por mais impossível que possa parecer para a maioria das
pessoas como forma de efectuar a mudança política radical, é pelo menos o modo de
luta que não é imediatamente suicida, mesmo quando as circunstâncias não são
favoráveis aos insurgentes e pode ser sustentado por tempo considerável. Com toda a
probabilidade, os insurgentes da Europa Ocidental gostariam conseguir a guerra de
guerrilha como principal estratégia. Pode-se dizer que todos os grupos terroristas
querem ser guerrilheiros quando crescerem73. São incapazes de fazê-lo por razões
práticas. A guerra de guerrilha requer terreno que favoreça pequenos grupos de
insurgentes e seja desvantajosa para forças governamentais mecanizadas e aéreas. Na
Europa Ocidental, não podem ser encontradas este tipo de selvas densas ou extensas,
montanhas acidentadas inacessíveis ao transporte motorizado. As guerrilhas às vezes
podem comprometer e usar terreno menos do que perfeito, desde que outras condições
sejam atendidas, em particular as forças governamentais ineficientes e mal equipadas,
por um lado, e o apoio popular maciço para os insurgentes, por outro lado. Nos países
ocidentais contemporâneos, nenhuma dessas condições existe, e o terrorismo é a única
opção estratégica para os insurgentes determinados a recorrer à violência para promover
a causa.
Ainda precisa ser explicado por que aqueles que podem realizar a campanha de
guerrilha recorrem ao terrorismo ao mesmo tempo. Novamente, a resposta é encontrada
na diferença entre classificações académicas e vida real. De certa forma, a distinção
entre guerrilha e terrorismo é artificial. Com certeza, é diferenciação válida, mas apenas
como observação externa. Os académicos podem sentar-se em poltronas e categorizar
estratégias de insurgência. O ponto é que os insurgentes em si raramente o fazem
72 Ver Kohn, Dictionary of Wars, 60.
73 Mesmo Carlos Marighella, o mais popular defensor moderno do terrorismo, considerou o terrorismo ("guerrilha
urbana" na sua terminologia) como o estágio necessário para o desenvolvimento da guerrilha rural: "é a técnica que
visa o desenvolvimento de guerrilha rural. Guerra de guerrilha urbana, cuja função será desgastar, desmoralizar e
distrair as forças inimigas, permitindo o surgimento e a sobrevivência da guerrilha rural destinada a desempenhar o
papel decisivo na guerra revolucionária (Marighella, “Minimanual of the Urban Guerrilla,” in Terror and Urban
Guerrillas, ed. Mallin, 83).
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quando ocorrem para seleccionar acções. Embora os rebeldes tenham muitas vezes
delineado conceitos estratégicos, os argumentos quase sempre foram de natureza
prática. A chave foi o que poderia ser realistamente feito para promover a causa política.
Isso não inclui a tentativa de encaixar as acções numa rígida estrutura doutrinária. As
principais considerações são capacidade e utilidade. Como o terrorismo é a forma mais
baixa e menos exigente de insurgência, sempre foi usado simultaneamente com outras
estratégias. A importância relativa do terrorismo na luta global depende das
circunstâncias, mas é sempre parte da disputa. Exemplo disso é a luta palestiniana. Abu
Iyad, um dos principais líderes da OLP, anotou nas memórias:
Não confundo a violência revolucionária, que é acto político, com o terrorismo, que não é. Rejeito
o acto individual cometido fora do contexto da organização ou visão estratégica. Declino o acto
ditado por motivos subjectivos que reivindicam o lugar da luta de massas. A violência
revolucionária, por outro lado, é parte do grande movimento estruturado. Serve como força
suplementar e contribui, durante o período de reagrupamento ou derrota, para dar ao movimento
novo ímpeto. Torna-se supérfluo quando o movimento de base atinge os sucessos políticos no
cenário local ou internacional74.
De facto, o terrorismo tem sido parte perene da luta palestiniana desde o início de 1920.
Abu Iyad refere-se ao período 1971-73, quando al-Fatah, a principal organização da
OLP, envolveu-se em intensa campanha de terrorismo internacional sob o disfarce da
organização Setembro Negro. O próprio Abu Iyad foi, alegadamente, dos principais
chefes do aparelho clandestino do terrorismo internacional que executou a série de
ataques terroristas espectaculares, incluindo a tomada de reféns nos Jogos Olímpicos de
Munique de 1972. A decisão de al-Fatah lançar a campanha espectacular de terrorismo
internacional seguiu-se a expulsão da OLP da Jordânia pelo rei Hussein em Setembro de
1970 (evento após o qual a organização foi chamada Setembro Negro). A onda de
terrorismo internacional foi planeada para aumentar o moral dos membros da OLP após
o desastre na Jordânia, numa época em que perderam a Jordânia como base para as
operações.
O aumento semelhante no terrorismo internacional palestiniano ocorreu na sequência da
guerra de 1982 no sul do Líbano, na qual a OLP perdeu a maior parte das bases. Entre
Israel e os Territórios Ocupados, no entanto, o terrorismo sempre foi considerado pelos
insurgentes palestinianos como parte integrante da luta. As mudanças no número de
ataques terroristas, portanto, reflectem a capacidade e não a motivação. A questão nunca
foi saber se o terrorismo deve continuar, mas o que mais poderia ser feito. Ao longo dos
setenta anos da luta violenta palestiniana, os insurgentes, às vezes, conseguiram fazer
guerrilhas além do terrorismo, como na rebelião árabe de 1936-1939, mas, na maioria
das vezes, o terrorismo foi o único modo de violência à disposição. Os tumultos
ocasionalmente entraram em erupção ao longo deste período e às vezes desenvolveram-
se em levantamentos populares em grande escala, incluindo em simultâneo várias
formas de violência política.
A segunda intifada (literalmente, agitação) é a mais recente dessas rebeliões, embora
não a mais intensa. Como fenómenos semelhantes na Argélia, África do Sul,
Azerbaijão, Arménia soviética e na luta judaica pela independência nas décadas de 30 e
40, a intifada não é forma pura de violência insurgente. Incluiu componentes violentos e
pacíficos. Os elementos violentos da intifada consistiram em tumultos, molotoves e
lançamentos de pedras a veículos militares e civis e ataques comuns tipo terrorista,
como cargas explosivas e assassinatos. Os elementos pacíficos incluíram greves laborais
e comerciais, bloqueios rodoviários e tentativa de boicote a bens e serviços
74 Abu Iyad, My Home, My Land, 98.
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governamentais israelitas75. Poder-se-ia supor que empreender a estratégia mais eficaz
de protesto em massa durante a intifada resultaria em redução de ataques terroristas, que
representou a forma de luta de qualidade inferior e menos efectiva. O contrário é
verdade: a frequência dos incidentes terroristas e o número de vítimas aumentaram
consideravelmente76. Assim, a intifada não tem sido estratégia distinta, mas a mistura de
vários modos de luta, incluindo o terrorismo.
Em 1989, o intercâmbio sem restrições dos países emergentes da Europa parece refutar
a afirmação de que o terrorismo é parte omnipresentedas revoltas. Pelo critério rigoroso
de exame, esta reserva é certamente verdade. No entanto, deve-se lembrar que regimes
satélites soviéticos da Europa Oriental retiraram a força de fonte externa – a URSS.
Uma vez que este anel foi desapertado, a barreira desmoronou. Por outras palavras, as
mudanças na Europa Oriental não foram resultado da verdadeira insurgência interna,
mas a rendição no topo. Se os governos da Checoslováquia, Bulgária e Alemanha
Oriental estivessem mais decididos a resistir ao levantamento pacífico, provavelmente a
luta seria longa campanha, incluindo o terrorismo como ápice da insurgência. Na
verdade, isso aconteceu em várias repúblicas da antiga União Soviética.
Em suma, a forma de insurgência – terrorismo, guerrilha, protesto em massa ou
qualquer combinação destes – é, na realidade, determinada principalmente por
condições objectivas e não por concepções estratégicas dos insurgentes. O factor mais
importante é a aptidão. Normalmente, os insurgentes usam todos os modos possíveis de
luta que podem avançar pela sua causa. Porque o terrorismo é a forma inferior de luta
violenta, é sempre usado em insurgências. Muitas vezes, porque os insurgentes são
poucos, o terreno não é favorável à guerrilha e as forças governamentais são eficientes,
o terrorismo é o único modo de insurgência disponível para insurgentes. Às vezes, os
rebeldes são capazes de fazer guerrilhas, mas continuam a usar em conjunto o
terrorismo. A forma real de confronto é forjada em processo contínuo de fricção contra
a dura realidade, e o terrorismo é praticamente sempre parte dela.
75 Merari et al., “Palestinian Intifada”.
76 Kurz, “Palestinian Terrorism in 1988”.
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PARTE I
A PRÉ-HISTÓRIA DO TERRORISMO
CAPÍTULO III
ZELOTAS E ASSASSINOS
Gérard Chaliand e Arnaud Blin
Os Zelotas
A história regista as primeiras manifestações do terrorismo organizado no Médio
Oriente do primeiro século na Palestina. A seita zelota foi dos primeiros grupos a
praticar o terror sistemático do qual possuímos relato escrito. O nosso conhecimento da
luta dos Zelotas baseia-se na informação de Flavius Josefus nas Antiguidades Judaicas,
publicado em 93-94 EC, e relata-nos no trabalho abreviado, Guerra Judaica, publicado
entre 75 e 79, para a maior glória de Vespasiano e Titus, para quem trabalhou como
conselheiro em assuntos judaicos. Josefo usa a palavra sicarii – termo latino genérico
derivado de sicarius [sicário], "homem do punhal" – para indicar os Zelotas.
A causa imediata da rebelião judaica contra Roma foi o recenseamento das autoridades
romanas em todo o império nos primeiros anos da era comum. Os judeus ressentiram-se
e foram humilhados pelo claro reflexo de submissão à potência estrangeira. A situação
tornou-se inflamada no ano de 6 AEC77, alguns oito anos após a morte de Herodes o
Grande, facto que marcou o ponto de viragem decisivo na história dos judeus, que
desfrutaram de mais de um século de relativa independência e prosperidade desde 129
AEC. Os primeiros rumores de revolta foram ouvidos em 4 AEC, mas foi no ano 6 que
os Zelotas lançaram campanha organizada contra as autoridades imperiais. Sob
Herodes, os judeus tinham-se libertado da sua independência limitada e não tinham a
intenção de passar a oportunidade legítima de ganhar autodeterminação. Em vez disso,
viram-se forçados à situação que representava a antítese das suas aspirações. Surgiram
em toda a região viveiros espontâneos de insurreição. Em termos modernos, podemos
dizer que os judeus foram apanhados na dinâmica anticolonial de guerra de libertação.
Após os primeiros tumultos, Varus, o governador da Síria, enviou duas legiões romanas
em apoio às guarnições sitiadas pela revolta. Varus esmagou os rebeldes e fez deles
exemplo, crucificando 2.000. A ideia era lidar com golpe psicológico forte o suficiente
para dissuadir a população de nova rebelião. Foi o primeiro uso do terror em guerra que
duraria várias décadas. De acordo com Josefo, os Zelotas eram das quatro seitas
"filosóficas" da Judeia a mais popular entre a geração mais nova. A doutrina filosófica
era análoga à dos fariseus, que viveram na mais estrita observância da Torá e são
acusados de dogmatismo e hipocrisia nos Evangelhos. Em comparação com outros
movimentos religiosos judaicos da época, os Zelotas eram reformadores; acreditam que
tinham apenas de explicar a Deus, sede indestrutível de liberdade. Foram animados pela
fé firme admirada tanto por Josefo, o Fariseu como pelos detractores mais violentos.
Enquanto Josefo se refere comummente aos Zelotas ou sicarii como "bandidos", o
relato da guerra retrata claramente a sua luta era fundamentalmente política e religiosa.
Todas as autoridades que enfrentaram a facção terrorista referem-se sistematicamente
como organização criminosa. Julgam estarem a agir além da lei e terem fins
intrinsecamente criminosos e imorais. Essas autoridades procuraram marcar os
terroristas como inimigos da sociedade, resolvidos a destruí-los. Na narração de Flavio
Josefo, a elite judaica adoptou a visão ofuscada das acções dos Zelotas, ameaçando o
seu estatuto e segurança. Por outro lado, os Zelotas gozavam de popularidade
77 ● Antes da Era Comum.
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considerável entre as classes mais baixas e jovens. Parece que os fundadores e líderes
dos Zelotas, de quem muito pouco se conhece, foram educados e, portanto,
provavelmente de origem próspera. Parece também que os Zelotas procuraram recrutar
"militantes" das classes trabalhadoras78.
O fundador da seita era um certo Judá da Galileia, cujas primeiras acções não deram
lugar à repressão romana. Após tão difíceis começos, ressurgiram sinais dos Zelotas nos
anos 60, embora praticamente não se saiba nada deles nos cinquenta anos intermédios.
Uma coisa é certa: conseguiram manter-se à tona após o fracasso inicial. Também
sabemos que os descendentes de Judá mantiveram a liderança do movimento e,
portanto, devem ter certo grau de organização. Os Zelotas tinham anunciado o duplo
objectivo desde o início. Como organização religiosa, procuraram, muitas vezes à força,
impor certo grau de rigor, à prática religiosa. Por exemplo, atacaram outros judeus que
sentiam não terem escrúpulos suficientes em piedade. Assumiram o terror como
instrumento. Como organização política, procuraram arrancar a independência do país a
Roma. Os objectivos religiosos do partido eram inseparáveis dos fins políticos. É aqui
que a ideia de pureza – religiosa e política – começa a emergir. Essa dinâmica será
encontrada em quase todos esses movimentos. Robespierre, por exemplo, foi animado
pelo mesmo conceito. Além disso, a amálgama da religião e política é presente quase
sistematicamente, de forma ou de outra, na maioria dos movimentos que recorrem ao
terror. Nos séculos XIX e XX, a religião secular, ou a ideologia – o marxismo,
trotsquismo, maoismo, fascismo, nacional-socialismo, etc. – era ubíquo muito antes da
religiosidade tradicional ao voltarem no final do séc. XX. Em geral, as organizações
políticas exclusivamente terroristas são raras na história, assim como os grupos de
pressão religiosa sem ambições políticas. Maxime Rodinson resumiu claramente esta
sinergia político-ideológica:
Movimentos ideológicos estão na confluência de duas séries de lutas, conflitos e aspirações.
Existe, por um lado, a dinâmica política, a luta eterna pelo poder a ser encontrado onde há
sociedades humanas... E mesmo em certos tipos de sociedade animal. Por outro lado, encontramos
a aspiração não menos universal de ser guiada na vida pública e privada pelo sistema de padrões e
regras que nos poupa a tarefa sem fim de construir constantemente modelos comportamentais para
cada ocasião, de ter continuamente chamar tudo em questão. Chamamos a tal ideologias de
sistemas79.
Essa aspiração, individualou colectiva, juntamente com o desejo ardente de exercer o
poder – ou impedir que outro exerça o poder sobre si – equivale à mesma coisa –
conduz logicamente ao extremismo político e ao fanatismo corolário, ideológico ou
religioso. Não menos logicamente, o extremismo e o fanatismo muitas vezes resultam
nalgum tipo de violência, organizada em menor ou maior grau.
No caso em apreço, os Zelotas conseguiram canalizar a violência latente nascida da
humilhação generalizada sentida pelo povo judeu. Foram capazes de organizar e, em
seguida, dirigir a violência contra o "invasor" romano, bem como contra os membros da
comunidade judaica que consideravam traidores para a causa nacional. Os Zelotas nesse
sentido podem ser considerados organização genuína. Pois, enquanto o partido pode ter
certo parentesco com as seitas milenaristas contemporâneas, foi distinto pelo projecto
político subjacente às actividades, o que explica o apoio popular que desfrutava e a
determinação demonstrada em adversidade pelos membros.
78 Ver Brandon, Jesus and the Zealots, 56.
79 Maxime Rodinson, prefácio de Bernard Lewis, Les Assassins: Terrorisme et politique dans l’islam medieval
(Brussels: Éditions Complexe, 1984, 2001), 8.
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Num padrão clássico reproduzido inúmeras vezes ao longo dos tempos, desde o início
os Zelotas tiveram que desenvolver a estratégia das operações a partir da posição de
fraqueza. Tinham duas opções: ou poderiam organizar resistência tipo guerrilheiro
visando superar o adversário por acção indirecta (militar); ou poderiam cultivar a
estratégia indirecta visando manter o adversário em equilíbrio ao efectivar a campanha
essencialmente psicológica.
A documentação mostra que os Zelotas, no entanto, adoptaram as técnicas de
terrorismo, como evidenciado pela designação sicarii pelas autoridades romanas. Com
toda a probabilidade, os Zelotas travaram a luta armada sob a forma de guerrilha,
incluindo a luta urbana, ao recorrer à estratégia de psicologia baseada no terror. Dado
que permaneceram activos há décadas, também é provável que as tácticas evoluíram ao
longo do tempo e em resposta às circunstâncias.
Flavius Josefus tem pouco a dizer sobre as tácticas dos Zelotas, preferindo alongar em
detalhes sobre a organização do exército romano organizada contra eles. E, no entanto,
parece que a estratégia era relativamente complexa. No ano 66, por exemplo, os Zelotas
assassinaram figuras políticas e religiosas em sucessão. Também atacaram edifícios
usados para armazenar arquivos, incluindo documentos de empréstimo, com o objectivo
de ganhar o apoio da classe trabalhadora esmagada por dívidas. Sabemos que os sicarii
usavam punhais para cortar a garganta das vítimas e muitas vezes agiam no meio da
multidão, por exemplo, em mercados. Tais operações revelam o desejo de fomentar a
sensação de vulnerabilidade dentro da população em geral, táctica clássica de terroristas
até hoje. Os sicarii podiam agir onde e quando quisessem. Essa foi a força deles.
A outra fonte da força dos Zelotas era a vontade de enfrentar o inimigo com grande
risco para si, ganhando assim o apoio da população. Sobre este ponto, o testemunho,
inclusive o de Josefo, é eloquente. Em várias ocasiões, o exército romano capturou
centenas de rebeldes, torturados antes de morrer das formas mais dolorosas possíveis.
Longe de arrefecer o ardor dos combatentes Zelotas, tais represálias apenas parece
galvanizar homens e mulheres nas fileiras. Após a destruição do templo no ano 70, mil
homens e mulheres, liderados por Eleazar Ben Yair, resistiram três anos na fortaleza de
Masada. Cercados pelas tropas romanas, escolheram matar-se ao invés de cair nas mãos
inimigas.
OS ASSASSINOS
Os Zelotas e os Assassinos são dois exemplos clássicos de organização terrorista. Há
paralelos irrefutáveis entre as duas seitas, embora a falta de informações sobre o grupo
anterior evite qualquer tipo de estudo comparativo rigoroso. Embora tenhamos poucos
textos sobre os Zelotas, a história dos Assassinos está bastante bem documentada. Essa
história abrange dois séculos, desenrolou-se no momento particularmente esplêndido
para a cultura árabe-muçulmana e, portanto, abundante em documentação. A história
dos Assassinos prefigura grau notável pela dinâmica da maioria dos movimentos que
recorreram a tácticas terroristas ao longo dos séculos. Análise minuciosa dos
mecanismos dessa organização temível é, portanto, essencial.
A história das grandes religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo – é
inseparável da ideia de luta. Como qualquer organização social, o partido religioso é, ao
princípio, rival natural do poder político. A luta é ainda mais intensa quando a religião é
de natureza universalista, assim como o cristianismo e o islamismo. As religiões
universalistas, incluindo o budismo, coabitam naturalmente como "comunidades
ideológicas"80. Por outras palavras, incluem todos aqueles que aceitam dogma e
80 Ibid., 11.
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excluem todos aqueles que não o fazem. Fundada num credo, essas comunidades
definem e organizam todos os aspectos da sociedade a que pertencem os membros. Nas
primeiras fases, essas organizações estão mais interessadas em problemas religiosos ou
filosóficos. Conforme crescem em número e confiança, no entanto, estendem a
influência a outras esferas da organização social e, em última análise, estabelecem o
controlo social definitivo através do poder político.
Uma vez que o partido religioso apreende o poder ou se enxerta ao poder político,
podemos falar, como Maxime Rodinson, de um
Estado ideológico, isto é, o Estado que proclama adesão e fidelidade ao credo, juntamente com a
determinação em fazer respeitar as regras da vida comum inferida... Como muitos estados não
ideológicos, procura expandir onde acredita que pode, sem correr riscos indevidos. Nisto, no
entanto, busca não apenas expandir o domínio de determinado grupo de indivíduos, muito menos à
nação inteira, mas também estender à face da Terra a zona onde a Verdade pode exercer efeitos
benéficos de melhor forma81.
Entre as grandes religiões monoteístas-universalistas, o islão tem sido o mais bem
sucedido em integrar questões estritamente teológicas e considerações políticas numa
estrutura comum. Nesse sentido, é mais próximo do espírito às grandes tendências
ideológicas dos séculos XIX e XX. As preocupações prioritárias do cristianismo sempre
foram teológicas, como evidenciado pelas inúmeras disputas que pontuaram a história.
A sinergia evidente no islamismo entre religião e política é o resultado das origens
históricas. No contexto político tribal da península arábica, os primeiros muçulmanos
viam necessário, por razões de pura sobrevivência, organizar-se em grupo semelhante
ao modelo tribal, organização onde o poder religioso e político era mantido nas mesmas
mãos. É este modelo primordial que moldou o Islão.
A dicotomia que separa o cristianismo e o islamismo é fundamental. Isso permite-nos
entender como a seita Assassinos poderia surgir no mundo islâmico, enquanto não
encontramos vestígios de qualquer movimento na história do cristianismo. O exemplo
do islamismo e, em particular, o dos Assassinos, também nos permite compreender a
lógica da violência no contexto moderno das principais ideologias universalistas
contemporâneas. Por maioria de razão, a história dos Assassinos encoraja-nos
logicamente a estabelecer comparações entre eles e as organizações terroristas do
mundo moderno, incluindo os que emergiram e são ideologicamente modelados pelo
mundo islâmico.
No mundo cristão, a instância é claramente mais próxima do exemplo islâmico é a da
Reforma, na qual as fronteiras entre a política e as religiões foram ténues, conforme
atestado pelas guerras religiosas e sobretudo pela Guerra dos Trinta Anos. E, no
entanto, mesmo no caso específico, os limites sofreram,independentemente das muitas
violações. Em última análise, a história da Europa e do cristianismo demonstram
claramente até que ponto os dois poderes, Igreja e Estado, são distintos e compatíveis.
Em resumo, são capazes de coexistir.
No âmbito do islamismo, por outro lado, nenhuma disputa pode ser dita meramente
espiritual ou religiosa. A própria razão de ser de partido desafiante é definida pela
oposição ao poder reinante, isto é, ao poder do Estado. A essência é, portanto, a
necessidade de "partido político". Os Assassinos estão dentro dessa regra, na medida em
que a organização operava dentro da lógica das peças de poder político. A fusão, como
se vê nos Assassinos, de missão religiosa e ambição política leva, como os Zelotas, a
escolhas estratégicas e ao uso da violência. Pegar nas armas do terrorismo foi escolha
lógica para os Assassinos, como foi para os sicarii. A eficácia tornou a arma principal
81 Ibid.
Dell
Realce
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no arsenal estratégico e, eventualmente, definiu a própria essência da seita para a
posteridade. Em contraste com a confusão nascida pela terminologia associada ao nome,
o terrorismo praticado pelos Assassinos era muito mais próximo do terrorismo moderno
do que o tiranicídio, ramo diferente e distinto na genealogia terrorista. Os Assassinos
usaram o terror contra figuras ligadas ao poder precisamente porque eram figuras de
proa e não porque tivessem motivo contra qualquer indivíduo em particular, como no
caso dos assassinatos de líderes políticos como Henrique IV, Lincoln ou Kennedy.
Os Assassinos foram enraizados em duas regiões, Irão e Síria. Agregar o uso do terror
com fins psicológicos e visar, entre outros, o poder estrangeiro e cristão: os cruzados.
Os próprios terroristas foram animados pela fé inabalável que lhes permitiu sacrificar-se
voluntariamente no curso de a missão com a certeza de que iriam subir directamente ao
paraíso. E, ainda assim, algumas dessas analogias são fortuitas. A luta contra os
cruzados, fortemente exaltadas nas narrativas ocidentais, foi, de facto, aspecto muito
menor das acções dos Assassinos. A história da seita abre a janela para certos
mecanismos subjacentes a todas as formas de terrorismo praticadas em nome da
ideologia. Nesse sentido, essa história – ou, mais precisamente, essa proto-história –
fornece a espécie de modelo para o terrorismo praticado por grupos ideológicos. Em
França, em 1889, o fenómeno da ideologia expandiu-se para a nova dimensão que
alteraria o funcionamento interno sem os substituir inteiramente. É por isso que a
história dos Assassinos ainda nos interessa hoje.
AS ORIGENS DA SEITA
O Islão experimentou a primeira crise de sucessão após a morte do Profeta Muhammad
(Muhammad) em 632. Após a nomeação de Abu Bakr como califa – isto é, "sucessor" –
alguns muçulmanos contestaram a escolha, preferindo ‘Ali, primo e genro de
Muhammad. Estes formaram o Shi‘atu ‘Ali, o partido de Ali, dando origem ao
movimento xiita. Indicado califa em 656 após a morte violenta do terceiro califa, ‘Ali
foi, por sua vez, assassinado em 661. Graças ao engenhoso Mu‘awiya, alvo dos
assassinos de ‘Ali, os Carijitas – os Omíadas assumiram o poder, que ocuparam por
mais de um século, estabelecendo o sistema hereditário. O filho de Ali, Husayn,
procurou recuperá-lo, com a ajuda da filha de Profeta Fátima, mas a tentativa falhou. A
morte de Husayn, a família e apoiantes nas mãos dos Omíadas – juntamente com a
segunda tentativa abortiva de conquistar o poder em 687 – serviu como mito fundador
do movimento xiita. Gradualmente, o que inicialmente foi a luta clássica pelo poder
ampliou a dimensão ideológica.
O imã tornou-se a figura emblemática do movimento xiita, mandatado para derrubar a
tirania e estabelecer a justiça. No final do séc. VII, os xiitas tinham afirmado o desejo de
apoderar-se do poder do califado, de modo a atribuí-lo ao imã. De modo geral,
procuraram tornar-se mestres do mundo islâmico e restaurar o "verdadeiro" islamismo.
Assim surgiu a questão da legitimidade do imã. Precisava ser descendente de Ali ou,
melhor ainda, de Ali e Fátima e, portanto, do Profeta. O estabelecimento do elo de
filiação directa entre o Profeta e o imã teve influência moderada sobre o movimento
xiita, que, durante a primeira metade do séc. VIII, deu origem a miríade de seitas,
particularmente no Sul do Iraque e ao longo das margens de o Golfo Pérsico. Arraigado
na Pérsia, o movimento foi muito breve e, portanto, permanentemente sujeito ao
conflito essencialmente contínuo entre moderados e extremistas. Essa luta endémica
levou ao primeiro grande cisma. A morte do sexto Imã Ja'far em 765 provocou a crise
de legitimidade, colocando os dois filhos, Ismael e Musa, e os defensores uns contra os
outros em competição pela sucessão. O partido maioritário de Musa finalmente
desenvolveu-se no chamado xiismo duodécimo (depois dos doze imãs na linha de
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Musa), ter sido reconhecido como religião oficial do Irão desde o séc. XVI. Os
ismaelitas, menos moderados do que do xiismo duodécimo, evoluíram para sociedade
secreta baseada na organização, resolução, disciplina e coesão interna. Os Assassinos
surgiram dentro do movimento Ismaelita.
Os ismaelitas eram semelhantes a muitos grupos anti-sistema estabelecido, religiosos ou
não. A seita partilhou muitas das características dos movimentos de reforma europeus,
como o respeito pelo Livro – neste caso, o Alcorão e a tradição. Como os protestantes,
os ismaelitas destacaram aspectos filosóficos e morais da vida comunitária e procuraram
a aprendizagem clássica dos gregos. Mas onde os protestantes foram inspirados pelos
estóicos, os ismaelitas foram baseadas na filosofia neoplatónica. Aproveitaram o ensino
religioso e filosófico para a formidável máquina política que era durável e coesa, capaz
de sustentar o grupo onde cada indivíduo – místico e intelectual, descontente e fanático
– conseguisse encontrar o lugar. Poder religioso, poder intelectual, poder político – tudo
o que faltava era o ramo militar para transformar a organização em verdadeira entidade
política, social e teocrática. Esse ramo militar tornou-se o domínio dos Assassinos, cujas
estratégias e ferramentas foram adaptadas ao carácter secreto e minoritário da seita
ismaelita.
Nos primeiros 50 anos depois da fundação da seita, os ismaelitas viviam em campos
entrincheirados. No séc. IX, o poder e a ossificação do califado Abássida deixaram a
porta aberta para outros movimentos, os melhores organizados de entre os demais –
notavelmente, as duas facções xiitas – entre as quais podiam lucrar com isso. Os
ismaelitas foram retirados pelo zelo missionário de todos os movimentos universalistas,
estabelecendo-se em várias regiões, incluindo o Sul do Iraque, Síria e o Iémen. As
credenciais teológicas e filosóficas, que evoluíram ao longo de décadas, foram
instrumentos altamente efectivos de propaganda e conversão que conquistaram
populações inteiras. Com o apoio do império fatimida do Egipto, os ismaelitas
insinuaram-se por toda a região, incluindo os grandes centros de aprendizagem, como o
Cairo. A influência expandiu-se exponencialmente. Tornaram-se num perigo cada vez
mais presente para o poder de Bagdade. No entanto, certos factores externos finalmente
favoreceram os sunitas, em particular, com a chegada dos turcos, que, uma vez
convertidos se tornaram defensores ferozes da causa sunita. Além disso, a ameaça
emergente do Ocidente obrigou os poderes sunitas a reorganizar-se e a fortalecer-se.
Esses elementos ajudaram os sunitas a inclinar o equilíbrio a seu favor.
Além disso, os sucessos aproveitados pelos ismaelitas com o apoio dos Fatimidas
também foram a causa da sua redução quando o império se desmoronou. No final do
séc. XI, a crise levou à ruptura dentro da seita, criando, por um lado, os Mustalis, que se
agarravam às margens do mundo islâmico e, por outro, os Nizaris, cuja base naPérsia,
passou a desempenhar papel central importante. O avanço dos turcos seljúcidas, que
começaram em 1040 no Irão e continuaram ao longo do séc. XI, e a derrota de Bizâncio
por Alp Arslan em Manzikert, em 1071, desencadeou descontentamento do regime aos
ismaelitas, incluindo as antigas elites marginalizadas pelo novo poder.
O ismaelismo tinha estabelecido raízes teológicas e filosóficas robustas ao longo dos
dois séculos anteriores à crise. A abordagem universalista dos ismaelitas era o activismo
missionário. No entanto, em contexto em que, como já vimos, a missão religiosa não
pode ser diferenciada do poder político, os ismaelitas ainda não estabeleceram a base
política compatível com as aspirações teocráticas. Isso exigiria o surgimento de a figura
providencial para liderar a revolução ismaelita. O mundo muçulmano pode-se dizer,
estava em estado de crise latente que os ismaelitas puderam explorar em causa própria.
Como todas as revoluções, a deles tinha dirigente inspirado. Hasan-i Sabbah era filho do
xiismo duodécimo de origem iemenita que se instalara na Pérsia. Hasan provavelmente
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nasceu em meados do séc. XI. O encontro casual levou-o a adoptar a fé Ismaelita e foi
enviado em missão ao Cairo, onde conheceu Nizam al-Mulk, vizir do imperador
seljúcida e o matemático e poeta Omar Khayyam. Como ele, eram persas, e tornaram-se
amigos. Nizam al-Mulk foi o arquitecto político e burocrático do vasto império que, por
quase 1.000 anos, determinou a organização governamental da maior parte do mundo
muçulmano. Fundador da Universidade de Bagdade, Nizam al-Mulk, juntamente com
os descendentes, unificou os adeptos do islão sunita. Até aparecer a ciência política
ocidental, o Livro do Governo ou Fórmulas para Reis serviu de manual básico para os
administradores e líderes políticos do Irão e os impérios Otomano e Mogul. Dedicou
parte significativa do livro às técnicas de contra-insurreição que queria levar a luta
contra os ismaelitas. Assassinado por estes último em 1092, tornou-se das primeiras
vítimas na longa lista de dignitários aptos assassinados pelos Assassinos.
No Egipto, Hasan teve problemas com as autoridades locais e foi preso antes de ser
deportado. Mais tarde, empreendeu a longa missão que lhe deu a oportunidade de
viagens extensas, especialmente na Pérsia. A jornada colocou-o em contacto com todo
tipo de povos e comunidades numerosas, algumas em áreas remotas. Veio a apreciar a
diversidade dessas comunidades e discernir as áreas na qual a missão provavelmente
encontraria solo fértil. A região em particular atraiu a sua atenção.
A região montanhosa de Daylam, Norte da Pérsia, abriga a população de indivíduos
ásperos, duros e ferozmente independentes que nunca tinham sido conquistados pela
força. A área, pacificada sem derramamento de sangue durante a conquista islâmica, era
centro inicial do xiismo. Foi lá que Hasan escolheu concentrar as energias. As pessoas
eram receptivas à missão Ismaelita e tinham a vantagem de pertencer à cultura
guerreira. Além disso, a topografia do Daylam foi ideal para alguém que procura
refúgio seguro. Hasan alimentou a esperança de o dia virar o poder seljúcida. Para esse
fim, precisava de lugar isolado e naturalmente protegido onde pudesse desenvolver
planos políticos e militares.
Depois de vários anos de prospecção, durante o qual as autoridades se tornaram cada
vez mais preocupadas com as actividades, Hasan escolheu a fortaleza de Alamut, nas
montanhas de Elburz, a Norte do moderno Teerão e não muito longe do Mar Cáspio.
Alamut foi construído em rocha a cerca de 2.000 metros de altura, com vista para o
vale. Era difícil de alcançar e estrategicamente situado para detectar ao longe a
aproximação do inimigo. O castelo pertenceu ao chefe local e Hasan teve primeiro de
preparar o cerco. Com a ajuda de convertidos locais infiltrados no complexo, Hasan
tomou o castelo em 1090. Tornou-o sede e não saiu até à sua morte em 1125.
A ESTRATÉGIA DO TERROR
Da base em Alamut, Hasan começou a ganhar controlo de toda a região. Para esse fim,
procurou primeiro assegurar o apoio das populações. Nesta, a estratégia era idêntica à
praticada pelos vários movimentos revolucionários do séc. XX. Tais populações pobres
e rurais, sob o jugo de pequenos senhores locais, foram preparadas para defender a
causa ismaelita. As acções missionárias eram prioritárias e o trabalho de propaganda era
intensivo. Tendo ganho o apoio popular, Hasan tentaria persuadir a nobreza feudal a
entregar o controlo dos castelos e cidadelas vizinhos. Onde não os conseguia convencer,
era implacável, estabeleceia todos os meios necessários para apossar-se das fortalezas,
incluindo a subversão e força clandestinas. Nesses casos, usou o terror para persuadir os
outros nobres a não oferecerem resistência. Hasan gradualmente ganhou a percepção
com cada posição estratégica na região. As tácticas militares e perspicácia politico-
estratégica ficaram mais velhas com cada vitória.
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Os primeiros sucessos incentivaram-no a prosseguir as acções em territórios mais
distantes. Em 1092, enviou a missão para outra região montanhosa, o Cuistão, perto da
actual fronteira entre o Irão e o Afeganistão. Encontrou aí terreno fértil. A região, uma
vez que foi dos últimos refúgios do zoroastrismo, foi lar do povo que guardava ciosa a
independência religiosa e política das potências centrais e acolhia as minorias políticas
dissidentes como os ismaelitas. Naquela época, eram hostis ao domínio seljúcida e seus
vassalos. O indivíduo de Hasan no Cuistão, Husayn Qa’ini, foi extremamente bem
sucedido na exploração desse descontentamento e assumiu o controlo da região,
incluindo nas cidades. Hasan perseguiu as conquistas noutras regiões, geralmente
montanhosas como Fars e Cuzistão. A partir destas testas de ferro tão estratégicas,
enviou exércitos missionários, que lenta mas seguramente se infiltraram em zonas sob o
governo seljúcida. O confronto entre as autoridades e os agentes de Hasan era
inevitável. O primeiro incidente registado ocorreu na cidade de Sava.
Os ismaelitas tentaram converter o almuadem [ou muezim] da cidade para a causa deles.
Quando este recusou, mataram-no. O vizir, Nizam al-Mulk, respondeu rapidamente. O
líder da missão foi capturado e executado e o cadáver arrastado pelas ruas. Este choque
representou o primeiro assassinato executado pelos ismaelitas e a primeira resposta das
autoridades. Desencadeou o conflito armado entre as forças do sultão e os ismaelitas,
com dupla ofensiva contra Alamut e Cuistão. Ao mesmo tempo, Hasan estava a
preparar a acção ambiciosa visando nenhum outro além do próprio vizir, Nizam al-
Mulk.
Nizam al-Mulk estava a imaginar exactamente esse confronto quando escreveu o Livro
de Governo anos antes, em 1086? Sugere ter pensado na possibilidade de agitação
interna na passagem seguinte:
O soberano tem o poder de prevenir todos os excessos, todos os distúrbios e todas as sedições.
Instila respeito em cada coração e teme diante da sua majestade, manifestado a todos, para que os
súbditos desfrutem de segurança perfeita e desejem que o reinado continue. Mas o espírito de
revolta pode aproveitar o povo, e deve desprezar a lei sagrada, e negligenciar os deveres exigidos
pela fé, se este quebrar os mandamentos divinos, Deus desejará puni-lo e flagelá-lo como merece...
Indubitavelmente, a consequência terrível de tal rebelião será trazer o furor sagrado sobre o povo e
levar Deus a abandoná-los. O bom príncipe morrerá, os sabres desembainhados serão levantados e
o sangue fluirá. O mais forte actuará a próprio prazer e aqueles que se dedicam ao pecado
perecerão na agitação e no derramamento de sangue.
Se, como diz o ditado, homem prevenido vale dois, a estratégia de prevenção do vizir
deveria ter demonstrado que o ataque assassino estava planeado contra ele. No Livro de
Governo, Nizam al-Mulk recomenda as precauções seguintes:
Os espiões devem estar constantementeem movimento pelas estradas das várias províncias,
disfarçadas de comerciantes, viajantes, sufis, boticários, assim por diante, e preparam relatórios
detalhados sobre o que ouvem para que nada possa passar de modo algum despercebido. Se, uma
vez que essa informação colectada, é determina que algo acontecerá, as fases devem ser levadas
imediatamente. Governadores, feudatários, funcionários e líderes militares são muitas vezes
propensos a oposição e revolta valorizam planos nocivos contra o soberano. Mas o espião que
correu para a corte informa logo o príncipe, que então montará no cavalo, voará para o campo,
ordenará as tropas em marcha e, ataca os rebeldes onde os possa encontrar, extirpa a rebelião no
início.
O grande vizir não teria levado a cabo a ofensiva contra Hasan se não tivesse sido
informado sobre as actividades clandestinas. Mesmo assim, Nizam al-Mulk foi incapaz
de se proteger adequadamente da conspiração contra si. Hoje, o nome de Nizam al-
Mulk está intricadamente associado com o dos Assassinos. O assassinato por um dos
agentes de Hasan, um certo Bu Tahir Arrani, em 16 de Outubro de 1092, durante o mês
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do Ramadão, foi dos grandes ataques terroristas de todos os tempos e o impacto
contemporâneo foi pelo menos tão grande quanto o assassinato do Arquiduque Franz
Ferdinand ou os ataques de 11 de Setembro de 2001, nas próprias épocas.
Nizam al-Mulk era figura de renome incomparável no mundo muçulmano do séc. XI. O
lugar na história tinha sido assegurado por tudo o que tinha feito em vida. Na morte,
involuntariamente abriu um dos capítulos decisivos da história do terrorismo. Para
julgamento rápido, Hasan não poderia ter esperado melhor. Ao saber da morte do rival,
exclamou: "O assassinato desse demónio é o início da felicidade". O incidente lançou a
notoriedade de Hasan e da organização, que, através desse acto criador, deu nome à
acção violenta feito contra o vizir, que logo se tornaria marca registada: occídio.
Tal como aconteceu com os ataques de 11 de Setembro, a polícia doméstica e os
serviços de inteligência governamentais foram tomados de surpresa apesar dos esforços
para garantir a eficácia do sector de segurança. O assassino de Nizam al-Mulk,
disfarçado de sufi, obteve com a simples lâmina desferir o golpe de impacto psicológico
sem precedentes para o império governado com mão de ferro. O império seljúcida no
final do séc. XI foi o poder de primeira ordem. O assassinato do grande vizir foi dos
primeiros grandes ataques terroristas a serem identificados como tal. Chegou num
momento propício para Hasan. Na frente militar, tinha repelido com sucesso duas
incursões pelo exército seljúcida naquele ano.
O mais grave dos dois ataques, contra Alamut – e, portanto, contra o próprio Hasan –
devia, sob o ponto de vista militar, ter corrido bem para as forças do sultão. Na verdade,
Hasan encontrou-se enclausurado a fortaleza com apenas sessenta homens. Como é
sempre o caso em situações em que o sitiado é a força mais fraca, a única libertação
possível foi encontrar reforços externos para o ajudar. Nesse sentido, as políticas de
Hasan renderam grandes dividendos. A propaganda ao longo dos anos ganhou-lhe o
apoio das populações vizinhas. Vendo o líder em dificuldade, os missionários surgiram
em acção. Juntaram pequeno exército, que, explorou o elemento de surpresa, arrebatou
o exército sitiante pela retaguarda.
A ascensão de Hasan ao poder certamente contribuiu para a crise de sucessão que entrou
em erupção em 1094, durante o qual os ismaelitas da Pérsia separaram-se da tutela
egípcia. Ao mesmo tempo, o império seljúcida estava a ser abalado pela crise de
autoridade que facilitou a ofensiva de Hasan. Prosseguiu o cerco a castelos e garantiu o
controlo de pontos de vantagem cada vez mais estratégicos. A conquista ismaelita de
Shahdiz, perto de Isfahan, foi a terrível retrocesso militar e psicológico para as
autoridades seljúcidas. Foi por volta desta época que os ismaelitas iniciaram implantar
tácticas de subversão executando campanhas terroristas contra populações urbanas. Em
Isfahan, sob a força da crise política total, os ismaelitas procuram desencadear o caos
através dessas campanhas. No entanto, como noutras cidades, a campanha de Isfahan
virou-se contra os organizadores, vítimas da revolta da população aterrada.
Desde o início, os ismaelitas tiveram o projecto político bem definido e desenvolveram
estratégia proporcional às ambições, procuravam fixar a variedade de meios para
sufocar o poder central. Esses meios incluíram propaganda, conquista militar de
posições estratégicas e campanhas de terror contra o público e contra figuras políticas e
religiosas. A plataforma filosófico-religiosa desenvolvida anteriormente pelos
ismaelitas apoiou a estratégia multidimensional cada vez mais sofisticada. Dentro do
ramo persa dos ismaelitas, o uso do terror tornou-se opção estratégica cada vez mais
popular, primeiro porque se encaixava bem com outras características específicas da
seita, como a inclinação para o segredo e, em segundo lugar, porque, durante os anos de
derramamento de sangue, o terror – especialmente visando a elite – provaram ser bem-
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sucedidos. Aqueles incumbidos de assassinatos, os "devotos" – fida'in ou fedayeen –
formaram a espécie de corpo de elite dentro da seita.
A facção persa do ismaelismo, que em breve se estenderia além do Irão, estava a
caminho de se tornar a seita notoriamente conhecida como Assassinos. O termo
"assassino", significa "matar" em muitas línguas, deriva do nome da seita. A etimologia
da palavra é incerta. Pode derivar da palavra "hashish", que significa erva e, por
extensão, cannabis. Nesta interpretação, os Assassinos são hashishiyyin – tomadores de
hashish – cujo senso pode ter alguma validade, mas não é corroborado por qualquer
evidência de uso de cannabis pelos Assassinos. Pode ser expressão de desprezo e,
portanto, não se baseia em nenhum consumo hipotético de cannabis – foi na Síria que o
nome "Assassino" alcançou o costume para indicar seita cujos primeiros membros eram
todos estrangeiros, isto é, persas.
Com a retrospectiva, é óbvio a seita ismaelita não teve virtualmente nenhuma hipótese
de retirar a dinastia turca seljúcida do poder central. Como acontece, é característica de
muitos movimentos terroristas atacar a entidade política em posição de extrema
fraqueza que nunca poderia permitir a tomada do poder ou os eliminassem como
poderes que eram. No máximo, essas organizações são capazes de fazer campanhas de
assédio, mantendo-se bastante organizadas para resistir às ofensivas militares das
autoridades.
Desse ponto de vista, o caso dos Assassinos não é fundamentalmente diferente da
Alcaida hoje. Do santuário nas montanhas do Afeganistão, Osama bin Laden liderou a
campanha contra o Ocidente comparável à de Hasan contra os seljúcidas, com tácticas
às vezes muito idênticas, incluindo uso de armas brancas. A condução da propaganda e
o recrutamento e treino de terroristas em ambos os casos eram muito parecidos, muitas
vezes feitos entre as mesmas classes sociais e em topografias semelhantes (regiões
rurais ou montanhosas com populações endurecidas pela guerra). Como Hasan, Bin
Laden não poderia esperar derrubar o adversário – no caso dele, o Ocidente ou os
Estados Unidos – com simples ataque terrorista, qualquer que fosse a natureza. No
entanto, como a actual Alcaida, a organização de Hasan sabia explorar o calcanhar de
Aquiles do poder (seljúcida) ligada a disputas de sucessão e lutas de poder para exaurir
o adversário e beneficiar o próprio movimento. Hoje, a Alcaida explora certas
deficiências do sistema democrático ocidental, bem como a mentalidade das massas –
em particular o desejo dos ocidentais de viverem em segurança absoluta – para disputar
a ortodoxia religiosa no mundo muçulmano com a esperança de derrubar determinados
regimes.
A interacção complexa entre objectivos ideológicos inatingíveis e metasrealistas de
menor ambição determinou as acções dos Assassinos ao longo dos dois séculos da
viabilidade como seita. Após as vitórias sobre os sitiadores seljúcidas em 1092 e a
consolidação das fortalezas estratégicas na Pérsia, Hasan decidiu, com a ajuda de
emissários, ampliar as acções na Síria. Por quê a Síria? Afinal, as fronteiras do Iraque
estavam mais próximas e o Egipto era mais importante. Mas Hasan e apoiantes estavam
a pensar estrategicamente. A Síria era país montanhoso que nunca tinha criado coesão
cultural. A variedade de confissões muçulmanas floresceu, incluindo alguns grupos que
estavam perto dos ismaelitas. Por outro lado, os Ismaelitas conseguiram obter pontos de
apoio permanentes em certas regiões. Como no Norte da Pérsia, as populações dessas
regiões eram receptivas aos ensinamentos das pessoas de Hasan. Além disso, os sírios
estavam em conflito com os cruzados. Esta presença europeia e não muçulmana serviu
os interesses dos Assassinos em campanhas de propaganda entre as pessoas e, através
das narrativas trazidas pelos cruzados, apresentou à Europa a seita aumentando, assim a
sua notoriedade.
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Algum tempo na viragem do séc. XII, os indivíduos de Alamut começaram a trabalhar
na Síria. A grande maioria dos missionários era persa e, portanto, culturalmente
estrangeira num mundo de língua árabe. Em primeiro lugar, os esforços dos
missionários eram muito mais árduos do que tinha sido na Pérsia, onde o sucesso adveio
rapidamente. Na Síria, no entanto, as primeiras campanhas foram descobertas falhas
repetidas. E, no entanto, a estratégia era essencialmente idêntica à aplicada na Pérsia. A
missão do povo de Hasan era capturar pontos estratégicos – fortalezas da montanha,
como sempre – e lançar a campanha aberta de terror contra as elites sírias. O trabalho
puramente missionário, também, foi simultaneamente mais intenso.
Em primeiro lugar, a propaganda de Ismaelita teve pouco impacto. Ao dirigir-se a
estrangeiros, turcos e ocidentais, foi orquestrada por outros estrangeiros e sofreu grave
problema de legitimidade. Em última análise, no entanto, os Assassinos conseguiram
aproveitar as rivalidades domésticas para ganhar o apoio de vários líderes políticos
importantes, inclusive entre os turcos, que usaram a seita para eliminar certos
desafiadores. Com o tempo, os Assassinos incorporaram elementos árabes. Obtiveram o
apoio de líderes em Alepo e Damasco e, portanto, conseguiram usar essas duas bases
urbanas como sede. Como sempre, no entanto, foi em campanhas isoladas que
conseguiram mobilizar as tropas.
O primeiro assassinato perpetrado na Síria ocorreu em 1103, onze anos depois daquela
de Nizam al-Mulk. A técnica usada foi a mesma que a aplicada contra o grande vizir – o
uso de armas brancas rapidamente se tornou parte intrínseca do ritual. Os Assassinos
encontraram o cumprimento do sacrifício final, por que a maioria deles morria no
decorrer da execução dos crimes. Ao longo dos séculos, tais voluntários para a morte
tornar-se-iam o elemento integral da história do terrorismo, como ainda pode ser visto
hoje no estatuto desfrutado em certos lugares pelos dezanove terroristas mortos no 11 de
Setembro de 2001 ou por terroristas suicidas palestinianos e tamiles.
Os Assassinos, como os Zelotas, mataram exclusivamente com punhais e orquestraram
assassinatos em mesquitas ou mercados, onde o uso de armas projécteis, por exemplo,
poderia ter sido mais fácil. Para o primeiro assassinato na Síria, os Assassinos
disfarçaram-se de Sufis e, com adagas na mão, atiraram-se ao governante de Homs,
quando falava nas orações. Vários Assassinos morreram no ataque. Como na Pérsia, o
sucesso do ataque levou à perpetração de outros.
Desde o início, os Assassinos gozaram do apoio significativo de o senhor seljúcida
chamado Ridwan. Graças a ele, foram capazes de lançar o ataque contra a fortaleza de
Afamiya, espécie de Alamut siríaco feito por ismaelitas – da facção que não era da
Pérsia, mas do Egipto – conquistara dez anos antes, para desvantagem de Ridwan.
Seguindo o temerário atrevido pelo qual entraram na cidadela disfarçados, os
Assassinos apoderaram-se do lugar. O sucesso foi, no entanto de curta duração.
Explorando a crise, os cruzados liderados por Tancredo, príncipe de Antioquia,
retomam a fortaleza.
A complexidade da situação síria serviu a causa dos Assassinos. Paralisados na frente
militar, precisavam do grande gesto para acabar com o impasse. Em 1113, as
autoridades seljúcidas enviaram a força expedicionária à Síria para liderar a resposta aos
cruzados. A chegada maciça de tropas na Síria não simplificou as coisas para os
Assassinos, impopulares em Alepo. Decidiram eliminar o líder da força expedicionária,
Mawdud. O assassinato foi executado com sucesso em Damasco, mas não teve o efeito
desejado. O aliado Ridwan foi morto e o sucessor foi obrigado a desautorizar os
Assassinos, cujos líderes foram apanhados e executados.
Mesmo assim, obtém proveito com as rivalidades políticas sírias, os Assassinos
conseguiram prosseguir as acções subversivas enquanto se dedicavam às práticas
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políticas usuais daqueles que procuravam revogar o status quo. O tempo estava pronto
para alianças de conveniência, como a forjada entre os Assassinos e os turcos. Em 1126,
até participaram da acção conjunta contra os cruzados, que terminou em fracasso.
Mas os próprios Assassinos, cuja estratégia foi fundamentalmente baseada na
exploração de disputas de sucessão, foram vítimas dessas guerras. Em 1128 e 1129, por
exemplo, após a morte do patrono turco em Damasco, ficaram perplexos com as
represálias populares lideradas por milícias locais. Seis a dez mil membros da seita
foram executados sumariamente constituindo um dos maiores retrocessos. Os
governantes de Alamut responderam ordenando o assassinato do líder do massacre, mas
foram incapazes de restaurar a posição em Damasco. Neutralizados na Síria, os
Assassinos dirigiram-se expeditamente para o Egipto, onde travaram a campanha de
terror contra o califa fatimida, inimigo jurado dos ismaelitas.
Mais uma vez, em 1130, os Assassinos lançaram a série de ataques, dos quais contra o
próprio califa foi um sucesso. O período a seguir está mal documentado, leva-nos a
acreditar que os Assassinos adoptaram perfil discreto, pois tentavam recuperar a posição
na Síria. Desta vez, conseguiram o objectivo de recuperar várias fortalezas
anteriormente ocupadas pelos cruzados.
Na segunda metade do séc. XII, a facção síria dos Assassinos finalmente encontrou o
líder de destino. Rashid al-Din foi para os Assassinos da Síria o que Hasan foi para os
ismaelitas da Pérsia. Nativo de Basra, passou vários anos em Alamut antes de ser
enviado para se encarregar da situação na Síria. Depois de longo interlúdio onde viajou
incógnito, Rashid al-Din chegou à Síria e iniciou vasta consolidação das fortalezas
estratégicas. Conquistou novos territórios e fez excelentes projectos de construção. O
comprimento do domínio – trinta anos – permitiu que alicerçasse raízes profundas pelo
trabalho, casualmente saiu frutuoso. O sucesso foi tal que ofuscou o poder central de
Alamut, que procurou sem sucesso assassiná-lo.
O reinado político de Rashid al-Din coincidiu com a ascensão ao poder de o grande
líder e congregador do Islão: Saladino. Nascido no Iraque, filho de pai curdo, Saladino
tinha sucedido ao tio como vizir no Egipto. Antigo estudante de teologia, dedicou-se a
defender a religião contra cristãos e hereges. Conhecido como o Flagelo do Ocidente
esmagou Guido de Lusinhão e entrou triunfalmente em Jerusalém em 02 de Outubro de
1187, também adversário mais difícil que os Assassinos enfrentaram no séc. XII. Ao
reorganizar o exército e a marinha, Saladino atemorizou o caminho para a unificação
para erradicar os Assassinos. Confrontado com o perigo muito real representado pelas
forças de Saladino, Rashid al-Din decidiu recorrer à fórmula efectiva da seita e
devidamente estabelecidopara orquestrar o assassinato.
A primeira tentativa em 1174, durante o cerco de Saladino a Alepo, foi frustrada quando
os indivíduos de Rashid foram reconhecidos. O segundo ocorreu em 1176, enquanto
Saladino estava em campanha, mas os assassinos não conseguiram terminar o trabalho.
Após essas duas tentativas, Saladino tornou-se extremamente cauteloso e difícil de se
aproximar. Organizou a represália contra os Assassinos, mas, por razões que
permanecem obscuras, Rashid al-Din e ele parecem ter concluído algum tipo de pacto
de não agressão. Saladino provavelmente estava cansado de viver sob a espada de
Demócles e talvez julgasse que os Assassinos não representavam, no todo, ameaça real
para o grande projecto de unificação. No momento em que este pacto foi feito, ainda
não tinha erradicado os exércitos francos e a guerra contra os cruzados era o foco
principal. Por seu lado, Rashid al-Din presumivelmente tinha a inteligência para
entender que Saladino era mais forte e este tinha mais a ganhar, tornando-se "aliado" do
que o tratar como inimigo. Seja como for, o acordo foi selado e Saladino não precisava
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mais se preocupar com os Assassinos, o que não impediu estes últimos de prosseguir
com outros assassinatos contra figuras menores.
Em 1192, os Assassinos voltaram a fazer-se ouvir. Em 28 de Abril daquele ano, um
grupo de Assassinos em Tiro disfarçou-se de monges cristãos. Como costume,
aproximaram-se da vítima e apunhalaram-no no coração. O marquês de Monferrato, rei
de Jerusalém, morreu, numas raras vítimas cristãs dos Assassinos. Era o assassinato
parte da campanha de terror da seita? Era assassino contratado? Em confissão, parece
que os Assassinos juraram ter agido em nome do rei da Inglaterra. Outras fontes
sugerem Saladino como patrocinador. Ambas as teses são credíveis, pois a morte de
Monferrato beneficiou Ricardo Coração de Leão e Saladino.
O comportamento dos Assassinos era, acima de tudo, o de organização política –
incomum, com certeza, até ao pronto de abandonar princípios para alianças de
conveniência. Após a morte de Rashid al-Din, o poder da seita voltou a ser centralizado
em Alamut, recuperou o controlo da célula síria após três décadas de independência
incontestada. Preocupado com o facto de a adesão ter crescido de certa forma, os
mestres de Alamut instituiu a nova política baseada na reconciliação com o califado de
Bagdade. Isso pode explicar por que, no início do séc. XIII, os ataques visavam figuras
ocidentais em vez das muçulmanas, levando a prova de força entre cruzados e
Assassinos que tinham de ser mediados pelo califa. Esta luta confronta os Assassinos
especialmente contra os cavaleiros Hospitalários e S. Luís (Luís IX de França), com
quem provavelmente alcançaram algum tipo de acordo. Foi nessa época os Assassinos
encetaram procurar lucrar com a experiência e conhecimentos terrorista ao exigir
tributos aos muçulmanos e aos cruzados, em troca da promessa de os deixar em paz
(embora, a dado momento, os próprios foram obrigados a homenagear os
Hospitalários).
Tais margens não são incomuns. Situação idêntica existe hoje na Colômbia com as
Forças Armadas Revolucionárias e o Exército de Libertação Nacional da Colômbia.
Altamente ideológicos nos anos 60 e 70 e inspirados pela doutrina de libertação
nacional marxista-leninista, esses grupos evoluíram gradualmente para organizações
essencialmente terroristas, usando o terror – incluindo ameaças, sequestros e
assassinatos – para fins quase exclusivamente económicos. Entre as duas guerras
mundiais, a Organização Revolucionária Macedónia Interna e a Ustaše croata
começaram com objectivos políticos, mas acabaram por se tornarem organizações semi-
criminosas. No caso dos Assassinos, como hoje na Colômbia, parece terem sucumbido a
certo cansaço após décadas de luta infrutífera. Uma vez o objectivo declarado das
organizações terroristas é revogar o status quo, o fracasso nesse contexto tende a
estimular essas sociedades em acções quase criminosas, pelo menos quando os líderes
decidem não baixar as armas.
DECLÍNIO
Pouco a pouco, os Assassinos ganharam certo estatuto social, mas essa normalização
política – baseada no poder exercida através da estratégia de ameaça, chantagem,
persuasão e dissuasão – seria de curta duração. Num único golpe, seriam varridos da
face da Terra por ameaça maior do que alguma vez encontraram em dois séculos de
existência: os mongóis.
Sob pressão dos mongóis, os turcos – também originários da Ásia Central – foram
levados para o Oeste. Agora, os mongóis, unidos sob Gengis Cão, alcançaram-nos na
Ásia Menor e estavam no limiar da Europa. No séc. XII, o império seljúcida no Irão
entrou em colapso, enfraquecido pelas disputas políticas internas e a guerra contra os
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cruzados. Os corásmios estabeleceram ali o império82, com capital em Samarqand, nas
ruínas do domínio seljúcida. Os homens de Alamut aproveitaram brevemente os
benefícios dessa agitação política. Entre 1210 e 1221, Jalal al-Din Hasan, o novo líder
da seita, estabeleceu nova direcção para o movimento, cujo programa ideológico foi
endurecido sob o pai, Muhammad II. Tentando maior adesão ao islão ortodoxo,
aumentou o número de embaixadas e até mesmo viajou além de Alamut. Trocou o
terrorismo pela estratégia militar clássica destinada a consolidar as possessões. O fim do
reinado coincidiu com a chegada dos mongóis.
Em 1220, o exército mongol penetrou no império e levou Bukhara, depois Samarqand,
que resistiu apenas dez dias e escravizou todos os varões capazes. Os Assassinos eram
insignificantes em comparação com os mongóis e foram os primeiros a enviar
emissários ao Cão procurando ajuste mútuo. Hulegu, neto de Gengis Cão, subjugou
definitivamente a Pérsia e estabeleceu a dinastia mongol ali em 1256. Desde a entrada
na Pérsia, um dos objectivos foi conquistar os ismaelitas e reduzir as fortalezas. As
relações entre mongóis e ismaelitas foram pontuadas por períodos de calma diplomática
interrompidos por confronto militar. Cara a cara com os mongóis, no entanto, os
ismaelitas tiveram poucas opções além de ganhar tempo. Alamut foi investido pelos
mongóis e a autoridade central foi extinta. De vez em quando, as bolsas de resistência
duravam algum tempo – os ismaelitas puderam recuperar brevemente Alamut em 1275
– mas, em geral, a guerra estava perdida.
Na Síria, também, o mongol avança causando perturbação. O país agora estava sob o
controlo dos mamelucos do Egipto, com quem os Assassinos estavam de boas relações
desde o início. Desde a época de Saladino, os Assassinos tentaram a aproximação com
as autoridades, permitindo-lhes maior liberdade para prosseguir o serviço missionário.
O Sultão mameluco Baibars era o herdeiro espiritual de Saladino. No entanto, não só
tentou erradicar os cruzados, mas também lidar com a ameaça mongol. Tendo
procurado ajuda dos Assassinos para esse fim, decidiu livrar-se daquilo que para si, não
era mais um bando de hereges e algozes que impediam a ambição de unificar o mundo
muçulmano sob a ortodoxia religiosa. Em 1260, enquanto isso os Assassinos foram
consideravelmente prejudicados pela erradicação da seita na Pérsia, Baibars decidiu
agir.
Inicialmente, o sultão exerceu pressões económicas que os Assassinos foram obrigados
a aceitar, o que em si era prova de fraqueza. Baibars trouxe o poder para influenciar o
processo de tomada de decisão dos Assassinos. Arrancou logo o controlo da seita,
designando novo líder depois de eliminar o predecessor em 1271. Mas quando a
discórdia entrou em erupção entre ele e o nomeado, decidiu desmantelar o movimento.
Doravante, os Assassinos deixaram de existir. Durante pouco tempo, Baibars usou-os
para atacar rivais, como Príncipe Eduardo da Inglaterra e Filipe de Monforte, ou
ameaçar outros, incluindo o conde de Tripoli. Não demorou muito, entretanto, antes de
a seita ser conhecida apenas em lenda.
Os Assassinos não foram a primeira sociedade secreta a recorrerao assassinato e ao
terror. No entanto, eram, de longe, o grupo "terrorista" melhor organizado e mais longo
a operar nesse contexto. Embora nunca alcançassem o poder central, os Assassinos, no
entanto, desempenharam papel importante no teatro geoestratégico do Médio Oriente ao
longo de dois séculos, o que em si mesmo foi bastante extraordinário, especialmente
devido ao quadro político onde operavam. Profundamente fixadas em regiões que se
adequavam a tais movimentos, os Assassinos aperfeiçoaram a estratégia efectiva da
posição de fraqueza. Praticaram a estratégia indirecta baseada em ameaças e tácticas de
82 ● O Império oligárquico Corásmico ou Corasmo (1077-1231) foi dinastia muçulmana sunita de influência persa
pelos tircomanos de origem mameluca.
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persuasão, em vez de na guerra clássica, e conseguiram reunir os meios para cumprir as
ameaças. Eram praticamente inigualáveis nas técnicas de assassinato. Este foi a proveito
comparativo com diligência procuraram influenciar, explorando conhecimentos para
ganhar o prestígio e a reputação essenciais para o sucesso político.
A estratégia indirecta é o elemento crítico das estratégias que evoluíram ao longo dos
séculos no mundo árabe, em contraste com as que emergiram no Ocidente. A estratégia
indirecta, permitiu deslumbrantemente regressar no séc. XX após era de guerras
revolucionárias, depende de meios além de militares em lutar contra o inimigo.
Funciona particularmente bem no contexto onde a sinergia foi alcançada entre os fins
políticos e os recursos estratégicos. No Ocidente, onde a fronteira entre o político e o
militar tem tendência a ser impermeável, essa abordagem foi abandonada a favor de a
estratégia que equipara a vitória política com a vitória militar. Não é surpreendente que
a estratégia indirecta se tenha desenvolvido no contexto da cultura árabe muçulmana,
em que tudo, inclusive a religião, tem dimensão política.
Os Assassinos conseguiram estabelecer regime centralizado estável em Alamut capaz de
supervisionar a organização complexa que se estende por dois territórios distintos. O
sistema de sucessão hereditária funcionou relativamente bem, e foi apenas no desfecho,
no momento do colapso final, que os dissidentes contestaram o poder central. A
autonomia desfrutada pela célula síria era suficiente para proteger a autoridade do poder
central em todos, excepto nalguns casos. A dimensão religiosa da seita, em que os
líderes asseguraram sistematicamente o rigor irresistível dos membros, emprestou ao
movimento alto grau de legitimidade, mesmo enquanto mantinha a natureza extremista.
E apesar de tudo, esse movimento milenário, marginal e pouco ortodoxo foi fundado na
política de realismo. Os arquitectos foram capazes de explorar as relações entre as
forças complexas prevalecentes naquela parte do mundo, muitas vezes conseguiram
ultrapassar os adversários. Longe de ser a organização de fanáticos muitas vezes
imaginados, os Assassinos foram capazes de canalizar o fanatismo como instrumento
para garantir a própria sobrevivência. No final, porém, após duzentos anos de
actividade, a seita nunca pode ameaçar a ortodoxia sunita ou chegar além dos territórios
persas e sírios escolhidos na fase inicial militante. O ideal político de instalar o imã à
frente do império muçulmano ismaelita actuou como condutor para a militância que
nunca vacilou.
Os inimigos dos Assassinos, por sua vez, conseguiram contê-los mas sem os eliminar
completamente. O paradigma dos Assassinos demonstra como tal organização, que
gozava de apoio regional popular, pode ter raízes duradouras e se integrar na vida social
da comunidade. Como qualquer organização tradicional, tinha sacerdotes, soldados,
diplomatas e professores. A meticulosa divisão do trabalho e a hierarquia das acções,
combinadas com o zelo fanático provocado pelo activismo teológico dinâmico e a
lealdade incontestável aos líderes, fizeram da seita actor, embora marginal, que sempre
teve de ser levado em consideração. O terror que poderia ser inspirado por ataques
mortais era praticamente ilimitado, pois era capaz de atacar alguém a qualquer
momento. Mesmo na Europa, alguns chefes de Estado que estiveram envolvidos nas
Cruzadas temiam pelas vidas dentro do abrigo dos próprios castelos na Inglaterra e
França. Não há nenhuma evidência que sugira que os Assassinos tentaram tais ataques,
mas é o medo irracional que os terroristas inspiraram, de qualquer proporção com as
suas reais capacidades de danos, o que constituía a sua força. Os Assassinos
sobreviveram por dois séculos graças ao medo, sustentado habilmente, atingiu os
corações dos mais poderosos e melhor protegidos soberanos disso e talvez de qualquer
época. Os objectivos dos terroristas do séc. XXI não são fundamentalmente diferentes,
mesmo ameaçados de medo dos ataques não seja sentido exclusivamente pelos
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poderosos do mundo. Em contexto democrático, por outro lado, o ataque contra civis
pode derruir opções. Hoje em dia, enquanto o terrorismo ainda não entrou na era da alta
tecnologia, o subconsciente colectivo faz-nos acreditar viver num mundo de terrorismo
de destruição maciça. Exemplo desse fenómeno é o facto, desde 2001, a maioria das
medidas anti-terroristas tomadas pelo governo americano foram relacionadas às armas
de destruição maciça, mesmo que os terroristas realmente dependam principalmente de
armas explosivas convencionais. Durante anos, os especialistas alertaram contra o
surgimento do ciberterrorismo, com base nas tecnologias da informação, enquanto até
ao momento foi implicado num incidente sem vítima83.
As histórias dos Zelotas e especialmente dos Assassinos ilustram o facto ignorado na
maioria das análises do terrorismo moderno: o terrorismo não é fenómeno recente.
Embora tenha evoluído e mudado de forma ao longo dos séculos, o terrorismo não
nasceu no séc. XIX, pois os especialistas em terrorismo muitas vezes fazem-nos
acreditar nisso84. Hoje a história dos Assassinos não será estranha a certos fenómenos
contemporâneos do que a experiência dos niilistas e anarquistas do séc. XIX. Isso
também prejudica outra ideia concebida actualmente muito difundida, segundo a qual o
fenómeno terrorista é consequência directa da injustiça social, económica e política em
todo o mundo, reproduzindo a escala global a luta de classes da ideologia marxista.
Depois de 11 de Setembro, muitas vozes foram criadas para acusar os Estados Unidos, o
Ocidente, o sistema capitalista, o liberalismo ou a globalização de ter criado condições
para o desenvolvimento do terrorismo em países desfavorecidos sem outros meios de
resistência ao imperialismo (americano, ocidental, capitalista). Esta análise é claramente
falaz e dá origem a outra ideia igualmente ardilosa, de que a erradicação da injustiça é a
única resposta possível ao terrorismo. A ideia de o terrorismo é consequência da
injustiça social e económica está ligada à associação com raízes europeias no contexto
ideológico das doutrinas políticas modernas – anarquismo, marxismo, niilismo,
fascismo – todas desafiam a ordem "burguesa" encarnada hoje no capitalismo e na
globalização. O fenómeno terrorista não pode ser reduzido só à interpretação moderna e
subjectiva. Embora todo grupo terrorista seja único à sua maneira, certos traços parecem
ser partilhados por todas as organizações terroristas, que têm mais em comum do que a
mera técnica de combate. Somos compelidos a reconhecer que os Zelotas e os
Assassinos tinham muito em comum com os terroristas do séc. XXI.
83 Na Austrália em 2000, um hacker alterou o programa de computador onde se tinha infiltrado, conseguindo que os
resíduos fossem despejados num sistema fluvial, matando peixes. Apesar de ter trabalhado na instalação do programa
infiltrado, teve grande dificuldade em cometer esse acto.
84 Walter Laqueuré a excepção nesta área. Ver a História do Terrorismo.
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CAPÍTULO IV
MANIFESTAÇÕES DE TERROR ATRAVÉS DOS TEMPOS
Gérard Chaliand e Arnaud Blin
TIRANICÍDIO
O assassinato de figuras políticas e religiosas, como vimos, foi a táctica básica dos
Assassinos e dos Zelotas. Nos séculos XIX e XX, o assassinato tornar-se-ia arma no
arsenal estratégico de várias organizações terroristas. O assassinato político não é
monopólio dos terroristas e a organização que comete assassinatos políticos não é
necessariamente perpetrar um crime terrorista. E, no entanto, da perspectiva filosófica, o
assassinato político, dentro ou fora do quadro terrorista, originou-se na antiguidade
grega e romana com a defesa do tiranicídio. Porquê falar de tiranicidas no contexto do
terrorismo? Embora possa ser difícil encontrar qualquer tipo de relação entre a filosofia
de Aristóteles e as organizações dedicadas a semear o terror, tal vínculo existe, primeiro
porque o pensamento político no Ocidente e no mundo árabe tem sido fortemente
influenciado pela herança grega. Além disso, a influência directa e indirecta que os
defensores do tiranicídio exerceram sobre grupos envolvidos em assassinatos políticos
tem sido considerável ao longo dos séculos. O endosso da filosofia (ou teologia) tem
sido muitas vezes considerado fonte significativa de legitimidade por revolucionários
preparados para recorrer à violência – e o tiranicídio foi considerado há muito tempo
como meio legítimo de combater o despotismo.
No contexto não democrático, o assassinato político representa praticamente o único
meio de desafiar a autoridade política. Pode ser meio de protesto, de desestabilizar o
regime político, ou de eliminar o chefe de Estado ou líder político, com a esperança,
talvez, cuja substituição melhore. Seja qual for o caso, quando a revolta popular não é
possível – a norma na maioria das sociedades – o assassinato político é o único caminho
a seguir para enfrentar o poder. O conceito de assassinato político está ligado, em
primeiro lugar, ao despotismo. A maioria dos assassinatos políticos é justificada pelos
perpetradores como golpe contra o despotismo. Isto é verdade também para os
terroristas, quase sistemicamente justificam as acções como ataques à opressão,
qualquer forma que possam assumir e mesmo quando o alvo não é realmente o déspota
(o Ocidente, EUA ou governo espanhol, por exemplo). Os Assassinos justificaram os
assassinatos pelo objectivo declarado de derrubar o domínio despótico dos turcos
seljúcidas. Na análise final, dificilmente importa se a maioria dos grupos terroristas
procura substituir o regime despótico por outro, pois o principal móbil é provocar o
confronto.
Na verdade, qualquer coisa e qualquer um podem ser definidos como "despóticos".
Durante a guerra no Iraque em 2003, às vezes era difícil discernir a diferença entre o
tirano como Saddam Hussein e o presidente americano George W. Bush nas descrições
dos meios de comunicação franceses (seja qual for a reserva que alguém possa ter sobre
este último, está longe de ser qualificado para reivindicar o título de tirano, seja apenas
porque foi obrigado a enfrentar o partido da oposição nas eleições presidenciais). Na
mesma linha, os EUA são muitas vezes entendidos como poder despótico pronto para
impor a vontade sobre o resto do mundo. Os terroristas da Córsega justificam acções
contra o Estado francês de forma semelhante, descrevendo-o como opressivo, quando
uma das suas principais falhas pode ser o próprio desleixo em relação aos próprios
terroristas. No contexto da subjectividade tão desenfreada, qualquer acção iniciada por
regime político pode ser justificada como golpe contra o despotismo ou tirania.
Entre os filósofos, o conceito de despotismo ou tirania é muito mais preciso. Para
Heródoto, a tirania difere da monarquia, na medida em que falta as faculdades de
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Nota
MANIFESTAÇÕES DE TERROR ATRAVÉS DOS TEMPOS
Gérard Chaliand e Arnaud Blin
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cautela e moderação. Para Platão, a tirania é consequência da deriva anárquica de
sistemas democráticos cuja lassidão os obriga a recair sobre o tirano; o último, como
filho do povo, não tem dúvidas em se afastar contra o próprio "pai". Na verdade, de
acordo com os filósofos, a tirania caracteriza-se pela dinâmica idêntica em relação entre
pai e filho. Aristóteles partilha essa interpretação, vendo na tirania a corrupção do
sistema político representado pela monarquia, mas onde a figura do pai é o monarca ou
o tirano, em vez do povo. Esta concepção política é caracterizada pela interpretação
moral do sistema, o que pode ser bom ou nocivo. Agora, a busca de o sistema justo – e a
procura da justiça é o objectivo da política – implica a destruição de o sistema injusto.
No cenário político de três partes de Aristóteles, que dominou por séculos – monarquia /
tirania, aristocracia / oligarquia, democracia / timocracia – a versão corrupta de cada
sistema aliena a sociedade da justiça. Por conseguinte, é dever dos cidadãos restaurar o
sistema correspondente, libertando-o de toda a corrupção; em termos simples, a
eliminação física do tirano é, em certo sentido, dever cívico. Isso dá motivo ao meio
final do pensamento político que aprova e até encoraja a prática classificada tiranicídio
– isto é, o parricídio político.
Na cultura grega, o assassino do tirano é aclamado herói. Aristóteles afirma que aquele
que mata o tirano é herói porque erradicou o excesso do perpetrador. Em contraste,
quem mata o ladrão não é herói porque os crimes deste último são motivados
unicamente por necessidades vitais. Desde o início, Aristóteles dissocia o tiranicídio do
crime simples. Tal distinção filosófica tem pouco valor no direito civil, mas foi
elemento importante da cultura política antiga e das culturas dela decorrente na Europa
e no mundo árabe. Nos romanos, as concepções disparadas pelo exemplo de Bruto,
ficaram fascinados com o conceito. Apiano, Dio Cásio e Plutarco basearam-se no
exemplo para justificar o tiranicídio. Cícero, contemporâneo de Bruto, afirmou,
enquanto o assassinato é o mais hediondo de todos os crimes, o tiranicídio é o mais
nobre das acções, dá misericórdia como se faz a partir "da crueldade da fera selvagem".
No séc. XII, João de Salisbúria, bispo de Chartres, retomou a ideia, analisando o
fenómeno do tiranicídio em termos semelhantes, ao discutir o problema da legitimidade
do acto na perspectiva religiosa. Para Salisbúria, é correcto eliminar os tiranos para
"finalmente libertar as pessoas para que possam servir a Deus". Mesmo assim, o método
usado deve ser moralmente aceitável: "[Como] o uso de veneno, embora veja isso às
vezes indevidamente adoptado pelos infiéis, nunca li alguma vez que é tolerado por
qualquer lei"85.
Esta justificação do tiranicídio, apoiada pelo desejo de tornar o acto em conformidade
com a lei e associá-lo a certas regras morais, é parecido à doutrina da guerra justa, pelo
qual o uso da violência se justifica em casos, embora muito específicos, pode estar
aberto à interpretação. Dos pais da doutrina da guerra justa, São Tomás de Aquino,
aborda o acto de tiranicídio em termos idênticos, ou seja, como justificação exclusiva
pelos requisitos de autodefesa. No início do séc. XV, o XVIº Concílio Ecuménico de
Constança oficialmente proscreveu o tiranicídio. No entanto, os filósofos católicos e
protestantes continuaram a defender o direito de matar o tirano. Isto era particularmente
verdadeiro para o protestante Filipe de Mornay, conhecido como Duplessis-Mornay
(1549-1623), escreveu no Vindiciae contra Tyrannos sob o pseudónimo de Junius
Brutus, no qual, como Salisbúria, usa o Antigo Testamento com casos de apologia ao
tiranicídio. No mesmo ano, 1579, viu a publicação de outro panfleto sobre tiranicídio,
escrito pelo humanista escocês George Buchanan. O trabalho provocou indignação e foi
banido pelo Parlamento. Também no séc. XVI, o jesuíta espanhol Juan de Mariana,no
85 John of Salisbury, Statesman’s Book.
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De rege et Regis institutione (1598), investiga as provas religiosas, morais e políticas
para o tiranicídio. Infelizmente, é desviado por questões acessórias como o uso de
veneno (que condenou) – para nós, o problema pode parecer hoje de importância
questionável mas preocupou profundamente aqueles que escreveram sobre o tiranicídio
naquele momento (o texto foi proscrito pela Sorbonne após o assassinato de Henrique
IV). O trabalho de Mariana prefigurava os tratados políticos de Hobbes, Locke e
Rousseau sobre a ideia do contrato social ao legitimar o tiranicídio com base na análise
da origem e da natureza do Estado fundada no conceito do "estado da natureza" que
prefigurava sociedade humana. Meio século depois, em 1657, o inglês Eduardo Saxby
publicou o panfleto na Holanda intitulado Killing No Murder, com grande sucesso,
incluindo muito mais tarde em França durante o período revolucionário. Pouco antes da
revolução de 1789, o italiano Vittorio Alfieri compôs o documento intitulado Della
tirannide, que seria altamente influente no séc. XIX. De acordo com este escritor e
poeta italiano, apenas a vontade do povo ou da maioria pode manter o tirano no poder
ou destruí-lo. Alfieri expandiu a noção tiranicida para incluir o que chamou de "tiranias
moderadas", muito mais perigosas porque visivelmente menos violentas, mas capazes
de aniquilar o povo pouco a pouco drenando-o de "algumas gotas de sangue" todos os
dias. Alfieri, foi amplamente lido por grupos revolucionários, anunciou paradoxalmente
os sistemas totalitários que alguns desses revolucionários eventualmente instituiriam.
Encontramos na maioria desses documentos sobre o tiranicídio as origens distantes do
conceito que Jean-Jacques Rousseau situaria formalmente no centro da filosofia
política: a vontade popular. É a vontade popular que motiva os indivíduos e dá-lhes o
direito de se levantar contra o tirano resolvido a destruir a nação. Mariana, enquanto
investiu profundamente na questão de como matar o tirano, apoia não só o assassinato
(por força das armas), mas também a desobediência civil, onde é justificada por razões
diferentes das pessoais e executadas pelas entidades competentes, não por indivíduos
mas por grupos isolados. A partir do séc. XVI, o tiranicídio não é mais, como foi na
antiguidade, acto heróico, o indivíduo que se sacrifica para salvar o povo do
despotismo. Cabe às pessoas, ou a um dos representantes, assumir a tarefa. George
Buchanan justifica a tentativa definindo-o como guerra contra o tirano que, tendo
quebrado as leis da sociedade, pode ser considerado inimigo do povo e do país e tratado
em conformidade. Para Saxby, oponente de Cromwell, o assassinato do tirano é feito
em nome da honra pública, segurança e bem-estar. O tiranicídio é dever do indivíduo ou
povo faz em próprio nome,e mesmo em nome da humanidade, com a bênção de Deus.
Para Saxby, em contraste com Mariana, qualquer método para eliminar o tirano é
aceitável, os fins justificam os meios.
Edward Saxby, no entanto, evoluiu em contexto político radicalmente diferente. O
trabalho foi publicado cerca de doze anos após a assinatura do Tratado de Vestefália em
1648, que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos e lançou a nova ordem europeia. Foi o
momento de realismo político – a verdadeira política [realpolitik], como seria chamada
– e de razões de estado onde as considerações morais deixaram de ser relevantes. Essas
mudanças radicais no cenário político europeu foram acompanhadas pelo surgimento de
o princípio fundamental que governaria as relações internacionais até ao final do séc.
XX: a não interferência nos assuntos de outros estados. Este princípio estipula cada
Estado é responsável pela própria gestão política, seja qual for a natureza do regime, e a
liberdade – inclusive a tiranizar sobre o próprio povo – é ilimitada nessa esfera. Não foi
até o final do séc. XX que o princípio da não interferência nos assuntos domésticos de
outro estado foi questionado. Na prática, os estados mais fortes invadem este princípio –
através de guerras coloniais e "preventivas" – em detrimento de estados mais fracos e
marginais, mas sim em nome de interesse maior: segurança nacional e internacional.
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Hoje, o direito ou o dever de interferir é invocado por razões morais que são
praticamente idênticas às encontradas nos escritos filosóficos que justificam o
tiranicídio. Vale ressaltar a guerra do Iraque de 2003, tendo inicialmente sido "vendida"
pelos líderes políticos americanos e britânicos como questão de segurança (destinada a
destruir as armas de destruição maciça do Iraque e a criar a ameaça terrorista), acabou
por acertar com acordo simpático com o público quando a propaganda se concentrou na
eliminação do ditador, teria sido impensável alguns anos antes. Além disso, a criação de
tribunais para julgar crimes cometidos no Ruanda e na ex-Jugoslávia, seguido da
fundação do Tribunal Penal Internacional, forneceu ao direito internacional o
mecanismo permanente e legítimo para levar líderes políticos (destituídos) à justiça por
crimes cometidos contra os próprios povos – isto é, para trazer à justiça antigos tiranos.
Assim, durante séculos e até muito recentemente, o tiranicídio era fenómeno marginal
defendido por alguns teólogos e filósofos em prol da moral que estava dessincronizada
com a prática política. No entanto, essa marginalização provavelmente ajudou a
outorgar a filosofia aos movimentos revolucionários que emergiram em todo o lado no
final do séc. XVIII. Fortalecido pelas teorias de Rousseau sobre a vontade popular, a
doutrina do tiranicídio ressurgiu, inspirada nos textos clássicos e modernos descritos
anteriormente e, particularmente, pelo exemplo da revolução de 1789, marcada pela
execução de Luís XVI e Maria-Antonieta. No séc. XIX, todavia, o tiranicídio tornou-se
mais do que a forma de se livrar dos tiranos e restaurar a liberdade das pessoas. A
execução do tirano era simbólica, porque abriu o caminho para a purificação do sistema
político e a possibilidade de novo começo, com o fim não só de mudar o regime
político, mas também de transformar a sociedade. Esta nova interpretação do tiranicídio,
embora condenada pelos moralistas como Emanuel Kant, marca todo o séc. XIX. Os
populistas russos eram partidários do tiranicídio. Para eles, a própria natureza do regime
despótico exigia a eliminação física do autocrata como o único meio de mudar e
regenerar o sistema político. Lenine deveria implementar este princípio no final da
revolução de 1917, ordenando a execução extrajudicial da família imperial russa. Para
muitos grupos revolucionários e organizações terroristas, o tiranicídio é o elemento-
chave da sua filosofia. Contudo, como veremos adiante, o tiranicídio também serve de
justificação para o terrorismo de Estado – isto é, o terror colocado pelo aparelho estatal
contra o povo, que emergiu na era moderna da Revolução Francesa de 1789, cujo mito
foi fundado precisamente sobre o assassinato do soberano.
OS ORIGENS DO TERRORISMO DE ESTADO:
AS CONQUISTAS MONGÓIS
Devemos lidar com a Revolução Francesa mais tarde, pois também marcou o novo
começo no domínio do terror. Mas aqui novamente, o terrorismo "de cima" – isto é,
praticado pelo estado – não data de 1789.
Ao longo dos séculos anteriores aos grandes movimentos revolucionários do séc. XVIII
ao séc. XX, o terror foi praticado acima de tudo em tempos de guerra e quase sempre
através do recurso ao aparelho militar e não ao da polícia. O exército foi sempre
formidável instrumento do terror estatal. No Ocidente e em sociedades sedentárias em
geral, o exército raramente foi usado como arma terrorista. A única excepção a essa
regra foi no caso particular das guerras civis, onde a população em geral se torna
componente integral da guerra. Na Europa, a horrível Guerra dos Trinta Anos foi
provavelmenteo único conflito onde o terror foi usado sistematicamente. Essa guerra,
no entanto, foi, em parte, gerada pelos conflitos religiosos que agarraram a Europa nos
séculos XVI e XVII, e sempre conservou certas características da guerra civil, ao
mesmo tempo envolveu quase todas as grandes nações europeias da era, excepto
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Inglaterra – depois na agonia da própria guerra civil – e da Rússia. O caso da Guerra dos
Trinta Anos é excepcional na história moderna e prefigura a partir do séc. XVII os
grandes conflitos do séc. XX. A última marcou a era da guerra total e era do tipo com o
totalitarismo que os acompanhava – isto é, com o sistema alimentado pelo terror.
Antes do surgimento dos sistemas totalitários modernos, as sociedades guerreiras
nómadas praticavam o terrorismo em larga escala com eficácia temível. De todas essas
tribos, os mongóis eram os mais bem organizados, os mais aterrorizantes e os mais
destrutivos. No auge do poder, o império mongol era o maior de todos os tempos,
abrangeu praticamente todo o continente euro-asiático.
Os mongóis sob o Gengis Cão tinham à disposição o aparelho militar superior a
qualquer outro exército nesse tempo. Esta superioridade era produto do estilo de vida
espartano, a imersão nas artes militares desde a primeira infância, organização militar,
mobilidade e preeminência indiscutível nos rigores da disciplina. O outro bem
disponível era a prática sistemática do terror contra os povos. No Discursos, Niccolò
Macchiavelli estabeleceu clara distinção entre o tipo de guerra praticada pelas
sociedades sedentárias e a praticada pelos exércitos nómadas:
[Há] aqui estão dois tipos diferentes de guerra. Aquele que surge da ambição de príncipes ou
repúblicas que procuram estender o império; tais foram as guerras de Alexandre o Grande e as dos
romanos, e aquelas onde dois poderes hostis continuam um contra o outro. Essas guerras são
perigosas, mas nunca chegam tão longe quanto expulsar todos os habitantes de uma província,
porque o conquistador está satisfeito com a submissão do povo e, em geral, deixa as casas e bens e
até mesmo o gozo das próprias instituições. O outro tipo de guerra é quando o povo inteiro,
constrangido pela fome ou a guerra, deixa o país com as famílias com o intuito de procurar novo
lar num novo país, não com o objectivo de o submeter ao seu domínio como no primeiro caso, mas
com a intenção de assumir a posse absoluta dele e expulsar ou matar os habitantes autóctones. Esse
tipo de guerra é mais terrível e cruel...
Essas tribos migraram dos próprios países, como dissemos anteriormente, impulsionados pela
fome ou pela guerra, ou algum outro flagelo, que experimentaram em casa e que os obrigam a
procurar novas residências noutros lugares. Às vezes, chegaram em números esmagadores,
fazendo irrupções violentas em outros países, matando os habitantes e tomando posse de bens,
estabeleceram novos reinos e mudaram os próprios nomes dos países86.
Em comparação com a sociedade sedentária, a nómada é demograficamente bastante
fraca. Assim, a superioridade do guerreiro nómada não tinha nada a ver com a
quantidade. Foi através a concentração de forças e o elemento de surpresa que os
nómadas procuraram sobrecarregar os adversários, bem como através do impacto
psicológico dos ataques contra populações mal preparadas para tal flagelo. Portanto,
confiaram no terror inspirando as populações civis e exércitos para evitar levantamentos
na sua esteira. Assim, o terror tornou-se instrumento básico da estratégia nómada de
conquista.
Para os nómadas, o núcleo da estratégia foi a aniquilação física do inimigo. A vitória
militar não foi suficiente; tinha que ter vantagem máxima eliminando o inimigo,
esmagando a vontade de resistir e garantindo a incapacidade de lutar mais uma vez.
O uso sistemático do terror foi institucionalizado por Gengis Cão em paralelo com a
reorganização dos exércitos mongóis. Mas foi refinado para o grau sem precedentes sob
Tamerlão, ou Timur Lenk (Timur o Coxo), que se considerava herdeiro espiritual de
Gengis Cão. Era realmente o sucessor digno do Grande Cão mongol, embora as
conquistas tenham se tornado menos duradouras. Tamerlão era muçulmano de língua
turca imerso na cultura persa que procurou impor o Islão, preservando a herança mongol
e direito consuetudinário (a Yassa). Em termos militares, Tamerlão era o equivalente de
86 Macchiavelli, The Prince and the Discourses, 302–4.
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Gengis, em cada uma das operações desfrutava o sucesso, mesmo que às vezes
conhecesse os mesmos adversários na batalha em várias ocasiões.
A principal característica de estilo de guerra foi os ataques frequentes em grandes
cidades, incluindo Damasco, Bagdade, Alepo, Deli e Ancara. Os adversários não eram
insignificantes. O antigo protegido Toktamysh era formidável soldado, assim como o
sultão otomano Bayezid I.
O uso sistemático do terror contra cidades foi o elemento integral do arsenal estratégico
de Tamerlão. Quando sitiava a cidade, ao primeiro aviso de rendição as vidas eram
poupadas. A resistência, por outro lado, era brutalmente punida pelo massacre de civis,
muitas vezes em circunstâncias atrozes. Quando o saque da cidade estava completo,
Tamerlão arvorava pirâmides de cabeças decapitadas. Na tomada de 1387 de Isfahan,
cidade de cerca de meio milhão de habitantes, os observadores estimaram o número de
mortos em 100.000 a 200.00087. Após o massacre, Tamerlão tinha cerca de cinquenta
pirâmides construídas, cada uma composta por milhares de cabeças. Ao fazê-lo,
Tamerlão esperava persuadir outras cidades cercadas a se renderem ao primeiro aviso.
A táctica nem sempre funcionou e muitas cidades ainda se recusavam a capitular. Após
o estupro de Isfahan, no entanto, Tamerlão seguiu para Shiraz, que não ofereceu
resistência. Pelo julgamento, essa abordagem impediu o derramamento de sangue, pelo
menos entre aqueles o suficiente sensatos para baixarem as armas sem luta. A prática do
terror permaneceu metódica em todos os momentos e esforçou-se em poupar as elites:
teólogos, artistas, poetas, engenheiros, arquitectos e assim por diante.
O uso sistemático do terror contra cidades foi elemento integral do arsenal estratégico
de Tamerlão.
Aqueles que praticam terrorismo em larga escala geralmente invocavam razões de
estado e ética justificada pelo resultado final das acções: a paz. Mas podemos comparar
Harry Truman, quando decide usar bombas atómicas contra o Japão, como o feroz
Tamerlão? O paradoxo do terrorismo é o que pode parecer abominação para uns pode
ser considerado acto de libertação por outros. Isso pode ser porque precisamente o uso
do terror é o instrumento político e não o fim em si mesmo. O terrorismo sempre
procura a justificação, ao contrário do genocídio, que é o próprio objectivo. O exemplo
de Tamerlão é a ilustração contundente de como o conquistador pode usar o terror para
atingir os objectivos. O conquistador não deve apenas vencer os exércitos e destruir o
aparelho de estado do inimigo, mas também subjugar as populações. Sempre que civis
são atirados para a equação, o uso do terror nunca está muito longe.
TERROR NA GUERRA: A GUERRA DOS TRINTA ANOS
Enquanto os mongóis e os turcos implementaram a estratégia de conquista que incluiu o
uso do terror, a Europa ocidental foi amplamente poupada ao fenómeno. A guerra
europeia na Idade Média foi evento altamente ritualizado, no princípio ideal – na
verdade nem sempre alcançado ou respeitado – operava sob código onde a ética gozava
lugar privilegiado. O domínio da Igreja, a importância da cultura cavalheiresca e a
homogeneidade cultural do continente ajudaram a limitar o impacto da guerra.
Os exércitos eram pequenos e caros. Em tempos de conflito, as populações civis não
eram poupadas. Em primeiro lugar, foram os impostos para financiar guerras; além
disso, foram as que sofreram as consequências usuais da guerra: fome, pilhagem,devastação. Mas no mundo onde a vida da pessoa comum não valia praticamente nada,
e em que a população era principalmente rural, não havia motivo para que os militares
visassem civis. A guerra era, portanto, negócio que envolvia principalmente estados e
87 Roux, Tamerlan, 98.
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soberanos, bem como exércitos, que eram muitas vezes entidades privadas. A guerra
começou a evoluir no séc. XIV com a importância da infantaria renovada, exigiu novas
fontes de recrutamento, mas permaneceu assunto limitado e de forma alguma
comparável aos desenvolvimentos na Ásia Central e no Médio Oriente.
Conduziu ao evento religioso – Reforma e Contra-Reforma – para mudar a ordem
estratégica. Os civis logo se viram no centro dos conflitos encarniçados entre católicos e
protestantes. Na perspectiva estratégica, a Reforma acrescentou à arte da guerra a
dimensão moral nascida da ética protestante e da cultura humanista que influenciou
fortemente os estrategos protestantes. O rei sueco Gustavo Adolfo, por exemplo, trouxe
o elemento ético à organização dos exércitos. No entanto, a prática da guerra na
primeira metade do séc. XVII revelou-se particularmente cruel.
Guerras religiosas, guerras civis e guerras de "opinião" têm coisa em comum: envolvem
a população civil. As guerras da religião que entraram em erupção na Europa no séc.
XVI diferiram das guerras "cavalheirescas" em violência e, sobretudo, na falta de
"discriminação", faziam alvos favorecidos de não-combatentes, em violação de todos os
preceitos da "guerra justa" estabelecida pela Igreja. As guerras de religião têm duas
características distintivas. Primeiro, os exércitos envolvidos são pequenos; em segundo
lugar, concentram-se principalmente na redução das cidades tomadas pelo inimigo.
Entre 1579 e 1585, o governador-geral da Holanda espanhola, Alexandre Farnésio,
baseou-se na estratégia de "acessórios", constituída pela série de ataques às cidades
rebeldes e a devastação do campo para eliminar a provisão de suprimentos88. Se na
Holanda, França ou Inglaterra, os conflitos religiosos se limitavam principalmente a
operações militares de baixa intensidade; os exércitos eram caros e favoreciam-se os
métodos menos onerosos. Assim, os esforços convergiram nas populações, com
soldados atentos em expulsar o inimigo no campo, queimar colheitas e matar ou roubar
gado. O número de pequenas operações foi inversamente proporcional ao número de
batalhas lançadas. A violência era omnipresente, potencialmente atingia qualquer
pessoa a qualquer momento. Em tais condições, mesmo a trégua sacrossanta não foi
respeitada. O massacre de populações civis tornou-se arma estratégica.
Ao fazer alvos os civis, as guerras da religião também incitaram a sua participação nos
combates. Nas Cévennes, os calvinistas insurgentes atacaram missionários católicos. Na
Baviera, os camponeses organizaram-se em unidades de guerrilha. Na maioria das
vezes, os civis foram vítimas de massacres. Em França, entre 1562 a 1572, ocorreram
dezenas de massacres civis. Cerca de trinta cidades foram atingidas isoladamente em
1562. Em 1572, o ano do massacre do dia de São Bartolomeu de 24 de Agosto, cerca de
10 mil mortes foram registados entre Agosto e Outubro89. Este período também foi
frutífero em tiranicídios, embora nem o massacre de civis nem o assassinato de tiranos
fazia parte da grande campanha organizada de terror. Muitos desses massacres foram
cometidos por civis contra outros. Eram crimes passionários – os perpetradores eram
frequentemente vistos a mutilar vítimas cadáveres. Além disso, os massacres incitaram
mais carnificina. No entanto, o terror também era instrumento de Estado, exercido com
atenção de alguém que confia em actuar dentro dos seus direitos. Quanto aos tiranicidas,
não eram de natureza terrorista daqueles cometidos pelos Assassinos, mas procuraram
preferir eliminar o chefe de Estado específico por razões de paixão ou política.
Em resumo, o uso do terror nas guerras religiosas é meramente fenómeno secundário
dentro do ambiente de violência geral. No início, a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648)
era simplesmente uma na série de guerras religiosas que apenas envolveu assuntos
internos do Sacro Império Romano germânico. Mas a Europa estava a mudar e tais
88 Ver El Kenz and Gantet, Guerres et Paix de Religion, 20.
89 Ibid., 24.
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potências ascendentes como a França e a Suécia procuravam despertar os Habsburgos
dos sonhos de hegemonia imperial. Em última análise, o choque entre os poderes
imperiais e inimigos fundiu-se com a guerra civil envolvendo a Alemanha. Por
conseguinte, era lógico que o barril de pólvora alemão estivesse a explodir. A violência
latente da guerra civil encontrou nova fonte força com os exércitos maciços que vinham
de todos os cantos da Europa. Esses exércitos eram de dois tipos distintos. Os exércitos
privados de mercenários – o mais formidável dos quais foi liderado por Albrecht von
Wallenstein, checo na folha de pagamento do partido imperial – entraram em confronto
com os exércitos nacionais modernos, o mais famoso dos quais era o de Gustavo
Adolfo. Dois mundos, duas eras, duas abordagens para a guerra coexistiram no teatro da
batalha. Ao contrário das guerras religiosas do séc. XVI, a Guerra dos Trinta Anos foi
feita por exércitos enormes de tamanho anteriormente desconhecido na Europa –
inflação que seria mantida após a guerra, especialmente na França de Luís XIV.
Como resultado da combinação de violência desinibida e massa militar, civis
encontraram-se no meio da luta dos quais eram as principais vítimas. A população da
Alemanha, ficou em cerca de vinte milhões no início do conflito, finalmente encolheu
entre 50% e 60% durante as três décadas de guerra. Em primeiro lugar, na maior parte,
os civis foram vítimas do "dano colateral" da guerra, como foi conhecido, isto é, das
epidemias, da fome e das consequências de deslocamentos massivos de população. Em
segundo lugar, eram vítimas directas dos exércitos regulares ou grupos armados
(constituídos por desertores) devastando campos, onde a anarquia reinava por força da
circunstância. Finalmente, os civis também foram vítimas de campanhas terroristas
orquestradas pelos exércitos com fins estratégicos, exactamente como os exércitos de
Tamerlão tinham feito.
Nesta área, todo exército envolvido partilhou a responsabilidade. Após décadas de luta,
os generais, cansados da campanha, esperavam acelerar o processo aterrorizando o
inimigo. Como sempre, as campanhas foram organizadas como ataques às cidades.
Muitos são exemplos de tais campanhas terroristas. O mais conhecido e divulgado na
altura foi o saque de Magdeburgo em 20 de Maio de 1631. O exército imperial liderado
pelo general da Baviera, Tilly, tinha convocado a cidade para se render. As forças
imperiais estavam preocupadas que a resistência da cidade poderia encorajar outras
cidades do Norte da Alemanha a se aliarem à Suécia. Enquanto os cidadãos procuravam
jogar pelo tempo, as forças imperiais cercavam a cidade, o que, mesmo com a ajuda
sueca, não era forte o suficiente para resistir. Uma vez dentro, os soldados de Tilly,
instados pelo segundo em comando, Pappenheim, massacraram toda a população. As
consequências dessa acção foram contraproducentes para os autores. Chocado com o
massacre atirou toda a Europa em tumulto, os protestantes, que tinham sido divididos
até àquele momento, tiraram dela os recursos internos para se unirem e lutarem contra o
exército imperial como força unificada. A reputação esterlina de Tilly foi sempre
manchada e nunca foi capaz de desfazer os danos causados por essa decisão. Em
contraste, a violação de Magdeburgo deu aos suecos a segunda oportunidade.
O partido imperial não era, no entanto, o único lado a recorrer a estas tácticas. O famoso
romance de Grimmelshausen Simplicius Simplicissimus, envolvido durantea Guerra dos
Trinta Anos, cataloga todos os horrores dos soldados de ambos os lados infligiram às
populações civis. A França não foi excepção. Para citar apenas um exemplo entre
muitos, durante a campanha através da Lorena, o marquês de Sourdis, por ordem de
Richelieu, invadiu a pequena cidade fortificada de Châtillon-sur-Saône. Em 04 de
Junho, Sourdis dirigiu a guarnição de 400 soldados de Lorena e croatas confiados na
defesa da cidadela. Uma vez dentro, ordenou aos soldados darem a lição para aterrorizar
toda a região. Os indivíduos executaram sumariamente todos os soldados que tinham
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sobrevivido à luta e criaram tribunal ad hoc antes do qual os habitantes locais foram
convocados, a maioria deles aleatoriamente. Entre os condenados estava o preboste de
95 anos, Pierre Vernisson. Enforcou as vítimas nas árvores na floresta próxima, Sourdis
ordenou pendurar os cadáveres. Isso acreditava, que o efeito de choque seria ainda mais
forte e iria espalhar a notícia mais rapidamente e longe. Pela notável façanha, Sourdis
recebeu a carta de parabéns assinada por Richelieu.
As atrocidades da Guerra dos Trinta Anos levaram aos renomados acordos assinados na
Vestefália em 1648 pondo fim à luta. Enquanto estavam para serem assinados, os
tratados de Münster e Osnabruck deram origem a um dos acordos de paz mais bem
sucedidos de todos os tempos. A guerra não foi destruída na Europa, mas essa não tinha
sido a intenção dos arquitectos da paz da Vestefália, para quem o recurso às armas era
instrumento para manter o equilíbrio geopolítico geral. Longe do idealismo arrogante
que permeou o clima no final da Iª GM – a "guerra para acabar com todas as guerras" –
o espírito orientava os diplomatas em Vestefália concentrados sobretudo naquilo que
hoje seria de "direitos humanos". Os diplomatas, a violência e o terror prevaleceram
durante o conflito foi o flagelo que absolutamente teve de ser extinto. Para esse fim,
recuaram em dois princípios básicos. O princípio do equilíbrio baseou-se na
manutenção do status quo geopolítico, estabelecendo mecanismos complexos e
confiáveis para garantir que nenhum estado seja capaz de dominar todos os outros. O
princípio da não interferência estipulava que nenhum estado poderia interferir nos
assuntos internos de outro país. Como todos os países, de acordo com o tratado de 1648,
deveriam respeitar o princípio de "cujus regio, ejus religio" (a religião do príncipe é a
religião das pessoas) – que se tornou consideravelmente mais flexível desde a desastrosa
Paz de Ausburgo de 1555 – cada religião prosperaria em liberdade dentro do território
designado. Em contraste com a interpretação contemporânea do princípio da não
interferência, considerada contrária ao respeito pelos direitos humanos, a visão do séc.
XVII era o princípio que representava grande avanço nesse domínio. Na verdade, a Paz
da Vestefália colocou o fim total das guerras da religião e das campanhas de terror que
as acompanharam. A recuperada prática do terror tinha de esperar até 1789. No entanto,
nesse momento, o terror assumiu aspecto completamente diferente. Nunca mais o
instrumento menor do aparelho militar, tornou-se no instrumento básico do aparelho do
estado moderno. O terror moderno nasceu com a Revolução Francesa – e com isso a
expressão "terrorismo".
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PARTE II
TERRORISMO DE 1789 A 1968
CAPÍTULO V
A INVENÇÃO DO TERROR MODERNO
Gérard Chaliand e Arnaud Blin
1. O revolucionário é como o condenado. Não tem interesses pessoais, nenhum
negócio, nem emoções, nem dependentes, nem propriedade nem nome. Tudo
nele é inteiramente absorvido no único pensamento e paixão pela revolução.
2. O revolucionário sabe, nas profundezas do ser, não apenas em palavras, mas
também em acções, cortar todos os laços que o amarram à ordem social e ao
mundo civilizado com todas as leis, moralidades e costumes e com todas as
convenções geralmente aceitas. É implacável inimigo e se continua a viver no
seio deles é só para os destruir mais rapidamente.
Sergei Genadievich Nechayev,
O Catecismo Revolucionário (1869)
A Revolução Francesa marcou o ponto de viragem na história do terrorismo. Deu
origem ao termo "terror" – ou o que poderia ser chamado de "terrorismo de estado" –
preconizado pela prática que evoluiu consideravelmente no séc. XX com o advento do
totalitarismo e da violência em grande escala. O termo "terrorismo", obviamente, deriva
da experiência do Terror revolucionário francês assanhado em 1793 e 1794. A Era do
Iluminismo legou à humanidade a ideia de soberania popular e foi em nome dessa
soberania que a Revolução afirmou defender através da implantação do terror do
Estado, no qual os fins justificam os meios, inclusive a extrema violência.
Após o Terror, o séc. XIX marcou longo hiato para o terrorismo de Estado, que não
ressurgiu em nenhuma forma significativa até 1917. Em vez disso, o hiato viu o
desenvolvimento do novo tipo de terrorismo político que sofre até hoje. O terrorismo
dirigido contra o Estado não é fenómeno novo, como vimos nos casos dos Zelotas e dos
Assassinos. Mesmo assim, o terrorismo moderno era diferente. Em primeiro lugar,
deixou de ser religioso; no contexto do terrorismo, a religião não se reafirmou até a
segunda metade do séc. XX. De facto, o terrorismo do séc. XIX e início do séc. XXI
não tinha dimensão religiosa. Em segundo lugar, esse novo terrorismo foi
frequentemente praticado por grupos marginais nem sempre tinham objectivos políticos
claramente definidos, embora estivessem ligados a grande variedade de tendências –
anarquistas, niilistas, populistas, marxistas, fascistas, racistas, etc.
Os terroristas do final do séc. XIX foram influenciados pela tradição romântica, assim
como Robespierre foi herdeiro do Iluminismo. Este novo terrorismo desenvolveu-se em
contexto geopolítico e geoestratégico muito específico. Acima de tudo, o séc. XIX foi o
de reavaliação, varrido por várias ondas de revolução. Foi o século violento, quando a
guerra se tornou fenómeno de massa, envolvendo não apenas chefes de Estado e
exércitos, mas sociedades inteiras. Por fim, a tecnologia e a industrialização deram
formas de violência fenomenalmente destrutivas desarmadas. O progresso alcançado na
tecnologia de explosivos durante a segunda metade do séc. XIX deu impulso
considerável aos movimentos terroristas, que, por definição, se empenharam na luta de
baixo custo com o potencial de produzir lucro inversamente proporcional aos meios
investidos e, muitas vezes, os riscos assumidos.
A nível geopolítico, o séc. XIX foi marcado pelo colapso gradual da ordem baseada na
Paz da Vestefália e no equilíbrio de poderes. Foi também a era do crescente
nacionalismo. Partindo da divisão entre dois impérios em declínio – os austríacos e os
otomanos – os Balcãs tornaram-se em região extremamente precária. Muitos dos
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A INVENÇÃO DO TERROR MODERNO
Gérard Chaliand e Arnaud Blin
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movimentos de independência surgidos no final de 1870, quando o império otomano
perdeu grande parte do território europeu iria persistir até à era da descolonização, quase
um século depois. Foi neste contexto político que o assassinato do Arquiduque austríaco
Franz Ferdinand em 1914 transcendeu o quadro regional, tornando-se a faísca que
inflamou a Iª GM.
Antes disso, o terrorismo era manifesto na França e no Sul da Europa sob a forma de
movimentos anarquistas que promoviam "propaganda pela acção" e na Rússia, onde
anarquistas, niilistas e populistas desafiaram a sociedade em plena crise. Em última
análise, os bolcheviques estavam no topo. Lenine usou o terrorismo de estado para
fortalecer e consolidar o poder uma vez que a Revolução Russa estava em curso. Foram
os primeiros passos para o terrorismo de estado numa escala sem precedentes. O
sucessor na direcção do império soviético, José Estaline, explorou o sistema terrorista
bem instalado,graças ao aparelho político bem oleado e exerceu o poder absoluto
concentrado em si. O modelo soviético seria emulado em todo o mundo, em particular
na China e, até a década de 70, pelo Khmer Vermelho no Camboja.
A Irlanda consagrou outro modelo terrorista, absorvido por numerosos movimentos
nacionalistas em todo o mundo. Ao enfrentar a democracia britânica no meio da Iª GM,
o IRA ganhou a independência para o Estado Livre Irlandês (Éire) nas consequências da
guerra. Os irlandeses foram os primeiros a entender os mecanismos complexos que
definem a desproporção entre o potencial estratégico extremamente fraco e o ganho
político potencialmente enorme. O IRA e o estratego, Michael Collins, conseguiram
desestabilizar o domínio britânico com meios muito exíguos, mas com excelente
organização. A experiência irlandesa trouxe esperança à miríade de movimentos de
independência na Europa e fora dela.
Entre as guerras, o terrorismo foi geralmente associado à independência e aos
movimentos terroristas de extrema-direita, como a organização croata Ustaša de Ante
Pavelić, brevemente chegou ao poder com o apoio da Alemanha de Hitler. Os estados
europeus manipularam vários movimentos para enfraquecer rivais ou adversários. Ao
contrário do período que o precedeu, foi a época onde a política internacional foi
marcada pela vontade comum de revogar o sistema e enfraquecer o status quo. As
organizações terroristas desempenharam papel extraordinariamente disruptivo neste
jogo, como no assassinato do ministro das Finanças da República de Weimar, Walter
Rathenau.
Durante a IIª GM, o terrorismo foi frequentemente implantado no papel de apoio para
certos movimentos de resistência. Após a guerra, vários movimentos de independência
seguiram a pisada acesa pelos irlandeses um quarto de século antes. Desta vez, no
entanto, o contexto histórico era favorável às organizações que pediam a independência,
os impérios coloniais perderam legitimidade como resultado da guerra. Quando levados
a lutar pela independência, os movimentos de libertação, nacionalistas ou marxistas-
leninistas, tendem a confiar na guerrilha, complementada pelo terrorismo.
Juntamente com o sionismo oficial representado por Haganah, dois grupos que
defendem a violência – o Irgun e o seu ramo o Bando Stern – usou o terrorismo não só
para obrigar os britânicos a se retirarem mas contra os palestinianos. Vinte anos depois,
os palestinianos assumiriam o terrorismo contra o Estado de Israel em conflito de
natureza territorial desde o início.
Em 1947, a Grã-Bretanha retirou-se da Índia depois de supervisionar a partição do país.
Foi na Índia que a "filosofia da bomba" tinha sido acometida no início do século – a
abordagem terrorista combinou elementos da cultura indiana e a cultura da violência
ocidental e onde os terroristas indianos se inspiraram na experiência russa na viragem
do século.
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Na década de 50, no Quénia, os britânicos foram confrontados com a rebelião de Mau
Mau, que conseguiram reprimir. Por outro lado, em Chipre e em Aden na Península
Arábica, os britânicos não conseguiram dominar as organizações terroristas que
aprenderam que a luta de descolonização deveria ser desempenhada principalmente no
teatro da política e não no campo de batalha. A França, outro poder colonial, teve
experiência similar na Argélia, onde a FLN explorou o terrorismo para impor-se como o
principal movimento da independência argelina. O general de Gaulle foi bastante astuto
para ver, como fizeram os homólogos britânicos alguns anos antes, que a batalha
política estava condenada desde o início em tal contexto.
O final da década de 50 e início da década de 60 viu a transição das guerras da
libertação nacional para o terrorismo contemporâneo, inspirado tanto pelas lutas
nacionais anteriores quanto pela ideologia marxista-leninista defendida pela maioria dos
movimentos de independência. O terrorismo como impulso propagandista surgiu depois
de 1968, anunciou a chegada da nova era na história do terrorismo.
Como vimos, o uso do terror para fins políticos ou militares não nasceu com a
Revolução Francesa. Havia terroristas muito antes de a expressão ter sido inventada
durante o Terror de 1793-94. As palavras "terrorista" e "terrorismo", no entanto, logo
entraram em uso geral. O dicionário de 1798 da Académie française definiu o fenómeno
do terrorismo como "sistema ou regime de terror". A expressão cruzou o canal inglês
ainda antes; em 1795, Edmund Burke descreveu os revolucionários franceses como
"aqueles cães do inferno chamados terroristas". Todos os movimentos terroristas do séc.
XIX tiveram origem nas ideias proclamadas em 1789, enquanto a Revolução Russa de
1917 lançava o que se tornaria o surgimento aberrante da política moderna de terror.
A guerra total, totalitarismo e terrorismo nasceram ao mesmo tempo da liberdade,
direitos humanos e democracia. Parece difícil conciliar esses dois extremos
aparentemente contraditórios. Considerando que a revolução americana de 1776 se
esforçou pela liberdade e a democracia liberal, a revolução russa foi na direcção oposta,
para o totalitarismo e o terrorismo de Estado. A Revolução Francesa caiu algures no
meio. Ambos lançaram a revolução nos direitos humanos e inventaram o terror do
estado em nome da virtude, da complexidade e a dificuldade de interpretar os diversos
componentes.
De maneira geral, o Terror deve ser entendido como a fase da Revolução Francesa, não
como a "forma de política revolucionária" definida por Patrice Gueniffey como "o uso
da coerção e da violência para fins políticos acaba num vazio lícito"90. Interpretação do
Terror evoluiu junto com as tendências historiográficas e o tratamento por várias escolas
de pensamento, tais como Jean Jaurès e Albert Soboul deixaram marca na interpretação
socioeconómica da Revolução ou, por exemplo, como as raízes antropológicas da
violência foram promovidas sobre a natureza puramente política em estudos recentes
sobre a história cultural da Revolução. A recente biografia psicanalítica de Jean Atarit
do "Incorruptível", Robespierre ou l’impossible filiation (2003), constitui o
aperfeiçoado interessante na nossa compreensão do Terror. Além disso, a análise do
Terror frequentemente polarizou várias interpretações, por exemplo, colocou as análises
"reaccionárias" que a definiram como evidência de irracionalidade revolucionária contra
análises marxistas que a vêem como culminação da guerra de classes, enquanto a
tendência liberal é ver o Terror como "desvio"91.
Tal como acontece com a história do terrorismo em geral, os historiadores
frequentemente procuraram atribuir o Terror revolucionário ao fanatismo de alguns
indivíduos. Esta explicação desafortunadamente generalizada não é mais satisfatória
90 Gueniffey, Politique de la Terreur, 13.
91 Cf. Furet and Richet, Révolution française, 125.
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para o Terror francês do que para os Assassinos ou os actuais terroristas islâmicos.
Tende a minimizar a actividade terrorista como exemplo de distracção psicológica fora
do âmbito da classificação racional. Como Gueniffey diz: "O Terror não foi nem
produto da ideologia nem reacção às circunstâncias. Não é atribuível aos direitos do
homem, nem à conspiração dos emigrantes da Coblença, nem mesmo à utopia jacobina
da virtude. Era o produto da dinâmica revolucionária, como seria, talvez, de todas as
dinâmicas revolucionárias. Por isso, surgiu da própria natureza da Revolução, de toda a
revolução"92.
Na verdade, revoluções tão disparatadas quanto a revolução bolchevique de 1917 e a
revolução iraniana dos aiatolas produziram regimes baseados em políticas de terror. A
revolução iraniana lançou a estratégia terrorista que se estende além fronteiras nacionais
e mistura habilmente a política revolucionária de terror com a prática do terrorismo
religiosoque pode ser seguida até aos Assassinos.
Historicamente, o Terror começou em 05 de Setembro de 1793, sob a Convenção, e
terminada em 27 de Julho de 1794, com a queda de Robespierre em 9 de Termidor,
período de menos de um ano. No entanto, os actos de terror continuaram depois de
Termidor, embora fossem muito menos extremos do que aconteceu antes93. E assim
como o Terror não terminou verdadeiramente com o Termidor, não pode ser realmente
dito que tenha iniciado precisamente em 05 de Setembro de 1793, uma vez que todos os
elementos para a libertação estavam em vigor antes dessa data. Não é fácil traçar as
origens precisas do Terror. Os massacres e os apelos à violência política certamente
ocorreram desde o início da Revolução em 1789. Mas eram verdadeiros actos de
terrorismo? Dá-se o cerne da questão de encontrar a definição satisfatória de terrorismo
e política terrorista. Para simplificar a questão, devemos tratar o terror aqui como o
fenómeno político. Isso, em qualquer caso, é a perspectiva da maioria das definições de
dicionário francês, muitas vezes com base na experiência histórica de 1789.
No dicionário Robert: “(desde 1789). O medo colectivo instilado na população ou grupo
para superar a sua resistência; regime ou processo político baseado nesse medo ou no
uso de medidas emergentes e violentas”. Portanto, a definição do Robert de terrorismo:
“Governar pelo terror”. O Larousse define terrorismo como “o uso sistemático da
violência para fins políticos”.
Dicionários especializados em política e estratégia abrangem relato semelhante. O
dicionário francês do pensamento político, não tem entrada para "terrorismo", oferece a
seguinte definição de terror: "Período em que as medidas são implantadas para
aterrorizar e destruir o inimigo; em geral, medidas para esse fim como o todo"94.
O Dictionnaire de Stratégie também leva a experiência de 1789 como ponto de partida
para a definição do conceito de terrorismo: "O ‘terror’ é o estado emocional de medo
intenso, enquanto o terrorismo é a acção. Os dois conceitos se sobrepõem, no entanto,
na medida em que, desde a Revolução Francesa, o terror também foi equiparado ao
regime político, o processo governamental mesmo, para quebrar os resistentes através
do medo colectivo, enquanto o terrorismo muitas vezes vai além das iniciativas isoladas
para se tornarem ‘estratégia’ postulando o uso sistemático da violência"95.
Um dicionário de pensamento estratégico define o terrorismo antes de tudo como
fenómeno político: "Acção de violência flagrante, mas de curta duração, visando
quebrar a vontade do adversário de lutar... O fenómeno transitório de extensão física
92 Gueniffey, Politique de la Terreur, 14.
93 Ver Baczko, Comment sortir de la Terreur.
94 Colas, Dictionnaire de la pensée politique, 253.
95 Dabezies, “Terrorism,” in Dictionnaire de Stratégie, ed. Montbrial and Klein, 581–82.
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limitada, o terrorismo é o meio para o fim"96. Embora esta seja a única definição não
vinculada a 1789, não obstante estipula a natureza limitada do acto terrorista em termos
de meios, extensão física e tempo.
Mais precisamente, pode-se acrescentar que, se o terrorismo persistir no tempo, deve
necessariamente ser limitado nos meios e resultados. Por outro lado, o terrorismo de
meios ilimitados geralmente permanece por pouco tempo – seja derrotado ou atinja os
objectivos. Mesmo o grande terror estalinista, que durou muito mais do que casos
históricos comparáveis, subiu ao frenesi apenas por períodos breves, como em 1937. Se
o uso do terror for efectivo, o Estado deve "activar" as campanhas terroristas e jogar ao
"bom polícia / mau polícia ", como os torturadores fazem na sessão de tortura, foi
percebido perfeitamente por José Estaline.
O Terror francês serviu tanto como o acto fundador do terror do estado moderno como o
modelo que define e delimita o uso estratégico da violência pelo aparelho estatal. "O
Terror é a ordem do dia", proclamou a Convenção, que procurou "derrubar os inimigos
da Revolução com terror". Deve ser feita distinção entre a violência colectiva que
prevaleceu no início da Revolução, em particular, e o terror "estratégico" que também
tomou posse durante as primeiras revoltas revolucionárias com a criação do Comité de
investigações da cidade de Paris por Jacques-Pierre Brissot em 21 de Outubro de 1789.
Este comité foi incumbido de descobrir conspirações contra-revolucionárias, mas no
processo, inventou todo tipo de enredos fictícios, tornando-se assim o precursor do
Comité de Segurança Geral, criado em 179397. O comité baseou-se em denúncias para
combater conspirações. Por isso, trabalhou para criar a rede funcional de informadores e
exigiu aos membros que "reunissem informações, quando necessário, sobre pessoas
denunciadas, as interrogassem e reunissem documentos e provas"98. Os membros da
comissão tinham acesso a fundos para pagar aos informadores Na proporção da
importância da informação fornecida. Para se preservar – os detractores eram muitos – o
comité agiu da maneira como todas as instituições com este tipo de actuação: imaginou
e inventou conspirações e inimigos em cada classe. Agências como a CIA não se
comportam de forma diferente em contextos muito distintos e sempre invocam a mesma
razão de estado ou revolução: "Os fins justificam os meios". Na sequência da criação
deste comité e do próprio Comité de Investigações da Assembleia Nacional, o Tribunal
revolucionário e o Comité de Segurança Pública foram criados para implementar o
terror. Em 1791, a Assembleia Legislativa adoptou a mesma abordagem para atingir e
vitimizar os emigrantes. No final do Verão de 1792, foi criado o tribunal penal especial
para agilizar as prisões em massa e a execução sumária dos prisioneiros. A maquinaria
terrorista estava a funcionar.
Em 1793 e 1794, foi dado mais um passo para instituir o terror quando foi adoptada
como política revolucionária oficial. A política de terror atingiu o ponto alto quando o
governo iniciou implementar a estratégia de eliminar os "inimigos do povo" – como
testemunhou a campanha da Vendeia – e de tratar os contra-revolucionários como
nacionais de estado inimigo estrangeiro. Em confronto com o estado inimigo, o uso da
força em legítima defesa pode ser moralmente justificada. "Terror" diz François Furet,
"é o governo pelo medo, baseado na teoria do governo de Robespierre pela virtude"99. O
Terror era, portanto, parte integrante da Revolução: "Lançado para exterminar a
aristocracia, o Terror tornou-se o instrumento para esmagar vilões e lutar contra o
96 Géré, Dictionnaire de la pensée stratégique, 269–70.
97 Gueniffey, Politique de la Terreur, 91.
98 Ibid., 87.
99 Como reflectido no comentário de Brissot "aquele que deseja os fins, deseja os meios" (Brissot, À Stanislas
Clermont, 12–13). Gueniffey, Politique de la Terreur, 89.
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crime", observa Gueniffey. "Tornou-se componente integral da Revolução, inseparável,
porque só o terror poderia, em última análise, provocar a República dos cidadãos... Se a
República dos cidadãos livres ainda não é possível, foi porque indivíduos, distorcidos
pela sua história, permaneceram maus; através do Terror, a Revolução – história ainda
não está escrita e corrigida – criaria o novo tipo de pessoa"100.
O Terror francês prefigurava o sistema onde se encontra em todas as grandes
revoluções, especialmente a Revolução bolchevique: a exploração do fanatismo
ideológico, a manipulação das tensões sociais e as campanhas de extermínio contra os
sectores rebeldes (do campesinato)101. Considerando que 2.625 pessoas foram
executadas em Paris e cerca de 16.600 em toda a França, esses números representam
apenas as vítimas oficiais do terror "legal"; havia pelo menos mais de 20 mil. Além
disso, os republicanos colonnes infernales("colunas infernais") mataram dezenas de
milhares na Vendeia – entre 40.000 e 190.000 por algumas estimativas102. No geral, o
Terror reivindicou de 200.000 a 300.000 vítimas, numa população de 28 milhões – o
número modesto em comparação com as campanhas terroristas do séc. XX.
O terrorismo de Estado não deve ser confundido com o genocídio, apesar
ocasionalmente reivindicar muitas vítimas. O terrorismo procura não acumular vítimas,
mas ser selectivo. O genocídio visa o extermínio por atacado.
O próprio Robespierre entendeu que a eficácia do Terror dependia da escolha de
objectivos e não da proliferação de vítimas. Em resposta ao caso apresentado contra os
girondinos pelo Comité de Segurança Geral em 03 de Outubro de 1793, disse que "a
Convenção Nacional não deve buscar grande número de culpados; deve atacar os líderes
das facções. O castigo dos líderes aterrorizará os traidores e salvará a pátria".
A lógica da campanha terrorista é atacar certas áreas, além de poupar os outros, destacar
determinados alvos, evitar outros e ainda não oferecer a razão "racional" ou discernível
para as escolhas. A vítima do terror nunca sabe por que, em vez do outro, foi o alvo. A
Revolução Francesa não foi excepção a essa regra. O Terror foi implementado de
diversas formas. Alguns, como os da Vendeia, foram atacados com toda a força. Outras
regiões, como o Languedoc e os Dauphinois, foram quase totalmente poupadas do
terror. Além disso, foi dispensado de maneira altamente desigual; cerca de 2.000
Lioneses perderam a cabeça na guilhotina, enquanto apenas cinco habitantes de Tarbes
foram executados. De modo geral, o Oeste da França, em cidades como Bordéus e
Nantes, foi, de longe, o pior. E, no entanto, Calvados, por exemplo, viram somente treze
condenados à morte.
A disparidade demonstra, acima de tudo, como o Terror envolveu cada estrato do
aparelho do Estado, das agências centrais às autoridades locais que tinham certa
margem de manobra na aplicação de directrizes superiores. Assim, o terror é injusto; de
facto, essa é das características fundamentais, qualquer forma que possa tomar e em
qualquer época. A ironia desta injustiça inerente ao terrorismo de estado é que o terror
tem sido frequentemente usado por regimes que defendem a igualdade. O Terror francês
também ilustra a medida em que o estado, mesmo autoritário ou totalitário, não
consegue exercer controlo total sobre o mecanismo do terror. Nos vários níveis da
hierarquia do estado, as decisões tomadas por aqueles em cargos de autoridade contam
tanto quanto as tomadas a topo. Esta anomalia encoraja o abuso de poder, especialmente
entre mediocridades cujo zelo compensa outras deficiências e promove a propagação do
terror. Na União Soviética, esse poder aterrorizou mesmo aqueles que estavam
incumbidos de aplicar o terror.
100 Gueniffey, Politique de la Terreur, 89.
101 Cf. Courtois, “Pourquoi?” in id., et al., Livre noir du communisme, 854.
102 Figura citada por Greer in Incidence of the Terror.
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Na esfera da organização terrorista, a França sob o Terror estava longe de dominar a
subtileza encontrada no final do séc. XX. Como Roger Caillois afirma com razão: "Não
é coragem, nem a agressividade, nem a ferocidade que faz a guerra tão intensa. É o grau
de mecanização do estado, as capacidades para controlar e restringir, o número e a
rigidez das estruturas. Ao longo da história, o poder estatal geralmente foi fortalecido
pela guerra. Por sua vez, o crescente poder do estado tem sido responsável pela
mudança gradual na natureza da guerra, empurrando-a constantemente para o que
começou a ser conhecido no início do séc. XIX como manifestação absoluta"103.
A prática moderna do terror é inseparável tanto do totalitarismo quanto do surgimento
do que acabaria por ser conhecido como "guerra total". Toda a revolução grande que
aplicou o terror generalizado tem sido simultaneamente envolvida na guerra e atraída
pela tentação totalitária. Na França, URSS, Alemanha nazi, China ou no Irão.
Existe a tendência persistente de distinguir entre o fenómeno da guerra e o do terror,
como se fossem dois elementos unidos apenas pela coincidência de circunstâncias
históricas. E, no entanto, a guerra está sempre no cerne da acção terrorista empreendida
pelo estado revolucionário ou totalitário. Ambos servem para legitimar a violência do
Estado contra o poder do inimigo estrangeiro e permite substituir habilmente a batalha
contra os inimigos da revolução pela batalha contra o estrangeiro. Em última análise, a
polícia substituiu o exército como aparelho de repressão interna e se tornou o principal
veículo para o terror. A transição é pouco aparente. O estado totalitário depende do
apoio das massas, que manipula com outra arma básica no arsenal totalitário: a
propaganda.
A Revolução Francesa destaca todos esses mecanismos característicos do estado
totalitário, mas foi a manifestação incompleta, uma vez que praticamente todo o edifício
se desintegrou com a execução de Robespierre. É por isso que o Terror de 1793-94 pode
ser visto tanto como desvio dentro da Revolução como o prenúncio do fenómeno
totalitário. "O terror total" escreveu Hannah Arendt, "é tão facilmente confundido com o
sintoma do governo tirânico, porque o governo totalitário nos estágios iniciais deve
comportar-se como a tirania e aumentar os limites da lei feita pelo homem"104. Mas o
terror total não pára dissolver as cercas que protegem os humanos uns dos outros e do
estado. Não está aqui para facilitar o exercício de poder pelo déspota, pelo qual qualquer
espaço entre os indivíduos, por mais limitado que seja, representa o espaço para a
liberdade. A missão do terror total é criar a nova humanidade aproveitar a vontade do
governo para acelerar o curso natural da história105. Impõe-se forçosamente sobre o
curso natural da história que busca adaptar e na medida em que difere do terror exercido
pelo estado autoritário como instrumento de repressão para manter-se no poder. No
último caso, assume a forma de campanha para eliminar rivais ou potenciais rivais de
poder. O assassinato "político" e a tortura são os principais instrumentos de repressão.
Este foi o tipo de campanha travada, por exemplo, pelo general Augusto Pinochet no
Chile após o golpe de 1973.
O que aconteceu em 1793 e 1794 foi completamente diferente. A ideia de regenerar o
ser humano baseia-se na filosofia do Iluminismo e, em particular, na de Rousseau. O
conceito de educação, conforme estabelecido em Émile, estabelece as condições
necessárias à criação do novo ser. No Contrato Social, descreve as condições políticas
para essa transformação: "Todos juntos colocamos as pessoas e a força total sob a
orientação suprema da vontade geral, e como o corpo recebemos cada membro como
parte indivisível do todo" A influência das ideias de Rousseau sobre a Revolução
103 Caillois, Bellone, 16.
104 Arendt, Origins of Totalitarianism (1979 ed.), 465.
105 Ibid., 466.
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Francesa é bem conhecida, mas outra corrente de pensamento, a da "filosofia da
história", foi dar origem a duas visões da história, a liberal e a outra hegeliana. Esta
última pesou fortemente com Marx.
Marx levou a filosofia da história à conclusão final, progride em fases, através da luta
de classes à ditadura do proletariado, conduzindo ao desaparecimento do estado. Esta
visão determinista da história foi deixar a marca nos séculos XIX e XX e seria
explorada por regimes totalitários marxistas para legitimar acções, inclusive o uso do
terror. No momento em que o Terror feroz em 1793 e 1794, Condorcet escrevia a obra-
prima, Esquisse d'un tableau historique des progrès de l'esprit humain, inspirado
directamente pelo trabalho de Kant, exemplificado no ensaio deste último "Ideiapara a
História Universal de o Ponto de Vista Cosmopolita".
Mas a filosofia da história, tal como defendida por Kant e Condorcet (ou por Turgot,
que escreveu o excelente trabalho sobre a história universal em 1751), é baseada na
liberdade: através dos vários estágios da história, a humanidade finalmente alcança a
liberdade. Essa libertação foi proclamada por Condorcet, associando-a ao progresso
geral da humanidade. Em Hegel, o progresso da história não estava associado à
liberdade, mas foi definido por outro conceito: o da luta. Marx retomou esta
interpretação e refinou-a no conceito conhecido por luta de classes. A liberdade, na qual
a filosofia da história tinha sido originalmente fundada, foi abandonada por completo.
Com essa purga, a filosofia marxista da história foi colocada em conformidade com a
política marxista defendida pelos revolucionários dos séculos XIX e XX. Sob tais
condições, a implementação oportunista da política de terror não choca, pelo menos
provisoriamente, com as doutrinas defendidas por esses revolucionários.
Filosoficamente, a liberdade foi dos princípios fundadores da revolução em 1793, bem
como a interpretação histórica subjacente às acções dos principais actores, inclusive
Robespierre. Paradoxalmente, no entanto, os poderes vigentes precisam do Terror, pelo
que a Revolução não pode ser efectiva enquanto governarem. Em última análise, o
impasse foi quebrado com a eliminação física de Robespierre, pondo fim à campanha de
terror.
Embora a França tenha aproveitado a oportunidade para encerrar a campanha de terror
orquestrada pelo "Incorruptível", o seu exemplo dá-nos a sensação de como o estado
revolucionário, uma vez apanhado na lógica da violência, acaba com o sistema político
de terror. E, no entanto, o Terror não era apenas período temporário de repressão
destinado a manter a Revolução em curso.
Em 1793, a situação militar da França foi desastrosa, tanto externamente como em casa
na Vendeia. A situação política não era menos precária, com o equilíbrio parlamentar
inclinando-se decisivamente a favor dos radicais. Além disso, a Convenção estava sob
pressão considerável da multidão106. Em 25 de Setembro, Robespierre resumiu a
situação para a Assembleia Nacional: "Onze exércitos para levar, a massa de toda a
Europa, traidores em todos os lugares para desmascarar, emissários corrompidos pelo
ouro de poderes estrangeiros para vencer, administradores desleais para vigiar e
perseguir, resistência e obstáculos infinitos para as medidas mais sábias a serem
superadas, todos os tiranos para lutar, todos os conspiradores para intimidar... esse é o
nosso trabalho".
Vamos resumir brevemente os principais eventos desse ano e do próximo (a mudança
do calendário ocorreu em Outubro de 1793). A 21 de Janeiro de 1793, viu a execução de
Luís XVI (Maria-Antonieta foi guilhotinada em 16 de Outubro). No primeiro trimestre,
a Convenção declarou guerra à Inglaterra, Holanda e Espanha. A guerra na Vendeia
106 Guennifey, Politique de la Terreur, 241.
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começou em 11 de Março, dois dias após a criação do Tribunal Revolucionário, marca o
início do Terror. Os franceses foram derrotados em Neerwinden em 16 de Março e
Dumouriez desertou em 01 de Abril. O Comité de Segurança Pública foi criado em 06
de Abril. O golpe contra a facção de Gironda ocorreu no dia 31 de Maio e outras
manifestações contra a Convenção entraram em erupção em 02 de Junho Foi neste
momento que os deputados girondinos foram expulsos da Convenção. A Convenção
adoptou a constituição em 24 de Junho. O Comité de Segurança Pública foi renovado
em 10 de Julho, Danton foi marginalizado e Marat assassinado três dias depois. Em 01
de Agosto, a Convenção aprovou a violência armada para subjugar a Vendeia. O
levantamento em massa (revolta em massa de tropas) foi decretado em 24 de Agosto –
momento decisivo que mudaria fundamentalmente a prática da guerra e revolucionaria a
estratégia nos próximos 150 anos. Os sem-calções [também referidos como sans-
cullotes] insurgiram-se em 05 de Setembro e o Exército Revolucionário estabelecido em
09 de Setembro.
A adopção da "Lei dos Suspeitos" em 17 de Setembro lançou a segunda fase do reinado
do terror, que incluiu a primeira derrota do exército da Vendeia em Cholet em 17 de
Outubro e a sua destruição final em 23 de Dezembro. Este período é marcado pelo
julgamento e execução dos hebertistas [também referidos como exagerados] em 21 e 24
de Março de 1794 e dos dantonistas em 02 e 05 de Abril.
A terceira fase do Terror começou em 10 de Junho de 1794, com a adopção da Lei de
22 Prairial terminou com a execução de Robespierre (juntamente com Saint-Just e cerca
de vinte outros robespierristas) em 28 de Julho.
A Revolução ameaçou derrubar o augusto equilíbrio de poder estabelecido pela Paz da
Vestefália em 1648, e com todo o Antigo Regime da Europa. Os riscos são altos. A
guerra na Vendeia combinou as paixões da guerra civil com a tecnologia da guerra
clássica. Também, aí, os riscos são enormes. Com a imposição massiva, a cidadania
tornou-se o núcleo do exército, marcou a formação do nacionalismo moderno. Partindo
primeiro da ideia da nação armada e da guerra absoluta – com o ideal da violência
máxima – e, finalmente, da guerra total, em que o principal da guerra absoluta é
implementado no terreno. As coisas ainda não chegaram a esse ponto em 1793, mas o
processo foi iniciado.
Foi neste contexto de insegurança quase total e luta climática pelo poder, que o Tribunal
Revolucionário e o Comité de Segurança Pública foram criados. Robespierre – que a
posteridade viria a ver como encarnação do Terror – foi eleito para o Comité em 27 de
Julho. Como Jean Artarit diz, "esse desenvolvimento, favorecido pelas circunstâncias,
era inevitável. Só poderia ter sido profunda e indescritivelmente sublimado pela
oportunidade de desencadear sobre a Nação, metaforicamente falando, o processo
gigantesco de auto purificação a que sempre se submeteu. Seria bastante inadequado
colocar o início do Terror em data específica. Há muito tempo a fermentar nas mentes, e
não apenas na de Robespierre"107.
Os distúrbios de Setembro obrigaram a Convenção a decretar o Terror como a "ordem
do dia" em 05 de Setembro. A Lei dos Suspeitos, adoptada em 17 de Setembro,
baseava-se na definição de "suspeitos" que iria permitir a eliminação de todos os
oponentes. O decreto emitido em 20 de Setembro deu aos poderes ao Tribunal
Revolucionário elaborar a lista. A maquinaria terrorista tinha sido posta em movimento.
Em 10 de Outubro, Saint-Just colocou o decreto perante a Convenção criando o regime
de emergência: "As leis revolucionárias não podem ser executadas a menos que o
próprio governo tenha sido constituído de forma revolucionária". O primeiro artigo do
107 Artarit, Robespierre, 264.
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decreto afirmou: "o governo provisório da França permanecerá revolucionário até a paz
seja alcançada". O Comité de Segurança Pública foi encarregado de supervisionar todo
o aparelho estatal. Órgãos como o Tribunal Revolucionário, até agora tinham operado
com moderação – 260 acusados e 66 condenados à morte – agora podiam dar vazão
total às tendências repressivas. O Tribunal foi reorganizado em quatro partes. Fouquier-
Tinville tornou-se procurador público. O Comité de Segurança Pública e o Comité de
Segurança Geral elaboraram a lista de jurados para a Convenção, nomeando-os. O
número de processos e condenações aumentou drasticamente, totalizando 371 acusados
e 177 sentenças de morte entre Outubro e Dezembro. Os girondinos foram executados
em 01 de Novembro, enquanto o número de prisões orquestradas pelo Comité de
Segurança Pública aumentava. Robespierre, sucede a Danton, acreditava que o Terror
era o mecanismo restritivo para evitar o derramamento de sangue horrível. Reprimida
ou não, justificada ou não, a prática do Terror deuorigem à política do terror.
Confrontado pelos contra-revolucionários vendeanos, a Convenção escolheu dedicar
todos os meios disponíveis para esmagar a região rebelde, de acordo com o decreto de
01 de Agosto de 1793, que também procurou despovoar a área pela força. O objectivo
desta estratégia de terra queimada era suprimir e prevenir através do terror, na Vendeia
e em outros lugares, qualquer vontade de organizar a rebelião armada contra a
Revolução. O primeiro decreto não tinha provisão, como Barère tinha procurado,
"exterminar essa raça rebelde", mas a implementação de tal estratégia no terreno foi
facilitada e mais tarde encorajada pelo Comité de Segurança Pública em Outubro e
novamente em Fevereiro de 1794, Quando apoiou a estratégia terrorista do general
Turreau de desencadear as "colunas infernais" em todas zonas rurais numa campanha de
extermínio após a derrota do exército vendeano.
Em 05 de Setembro de 1793, Robespierre, como presidente da Assembleia, defendeu a
liberdade em nome do povo: "O povo levantou o braço e a justiça cairá sobre as cabeças
dos traidores e conspiradores, nada permanecerá desta ímpia raça. A terra da liberdade,
muito poluída pela presença desses homens perversos, deve estar livre deles
finalmente".
Mas a mais sangrenta desculpa pelo Terror foi a de Saint-Just, que em 10 de Outubro
em nome do Comité de Segurança Pública disse:
Não podemos ter alento em prosperar, desde que o inimigo da liberdade continue a respirar.
Devemos punir não só os traidores, mas mesmo aqueles que são indiferentes; devemos punir quem
é passivo em relação à República e não faz nada por ela. Pois, agora que o povo francês
manifestou a vontade, todos os que se opõem estão fora do poder soberano; e todos os que estão
fora do poder soberano são inimigos... Aqueles que não serão governados pela justiça devem ser
governados pela espada; os tiranos devem ser oprimidos.
Esta afirmação não era mero exercício retórico. Depois de Saint-Just falar, a Convenção
decretou que o governo da França deve "permanecer revolucionária até que a paz seja
alcançada", que os ministros e generais a partir daí ficaram sob a supervisão do Comité
de Segurança Pública e a Constituição foi suspensa. O Comité de Segurança Pública
tornou-se, de facto, instrumento básico da máquina a ser replicada mais tarde, sob os
regimes totalitários, como os "comités centrais" queridos pelos corações dos regimes
comunistas do séc. XX, que agora trabalham em nome da "ditadura do proletariado".
As campanhas de terror orquestradas por regimes totalitários atribuem papel generoso
ao teatro político, geralmente sob a forma de julgamentos de alto perfil. O Terror de
1793 provou isso no julgamento de Maria-Antonieta. Como mulher, rainha e
estrangeira, incorporou todos os atributos necessários para transformar essa farsa em
sucesso de propaganda espectacular para o Terror. A Maria-Antonieta foi convocada
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para aparecer a 14 de Outubro. Entre as acusações "políticas" do julgamento –
apressadamente organizado, não foi encontrada nenhuma evidência de traição – foram
aqueles que questionavam a virtude da rainha. Hébert acusou-a de ter tido relações
incestuosas com o filho. Não é errado concluir que foi "julgada com base em fantasias
pornográficas da nação inteira"108.
A Lei de 22 Prairial marcou o apogeu do Grande Terror. Por um lado, permitiu alguém
acusado de ser inimigo da revolução; por outro, aboliu todas as garantias legais de
sobreviverem a esse ponto. O governo revolucionário nasceu das ruínas do estado
recentemente desintegrado foi baseado na centralização e autoridade mais absoluta do
que o antigo regime da monarquia. Este, de facto, tornou-se cada vez mais liberal nos
últimos anos (uma das causas da Revolução, de acordo com Tocqueville). A criação do
Comité de Segurança Pública terminou a separação tripartida de 1789 de Montesquieu
dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Desde então, o comité comandou todo
poder. Ao contrário da monarquia, nem sequer se baseou nas reivindicações no direito
divino. A máxima famosa de Lord Acton – o poder corrompe e o poder absoluto
corrompe absolutamente – era perfeitamente adequada às circunstâncias.
Robespierre incorporou esse novo poder. A Assembleia encontrou nele o mestre e não
ousou opor-se, mesmo após a eliminação de Danton. Tendo liquidado qualquer um que
o pudesse desafiar, Robespierre constituiu partidários em pontos-chave, colocando o
irmão Augustin responsável pela censura.
O Terror perdeu a patina de legitimidade uma vez que as situações domésticas e
estrangeiras pareciam controladas. O governo, de facto, alcançou a dupla missão e, pela
lógica de 1793, o Terror perdeu a razão de ser. Enquanto isso, transformou-se em
instrumento provisório da política de "recuperação" em sistema de governo cuja função
principal era, em última instância, alimentar o próprio Terror.
Robespierre foi muito longe para voltar para trás. Em Junho e Julho de 1794, o Terror
condenou 1.400 vítimas à morte, cerca de seis vezes mais do que nos meses anteriores.
Este aumento representa perda de controlo ou política deliberada? A lei de Prairial foi
bastante clara na afirmação de "o Tribunal Revolucionário é instituído para punir os
inimigos do povo". Quanto a Robespierre, até ao fim, as declarações provam
inequivocamente que o Terror era o veículo para o reinado da virtude que tinha
procurado e representado pela oligarquia terrorista, com o próprio a empunhar o poder
absoluto sob seu comando.
Em 8 Termidor (26 de Julho), Robespierre exaltou a virtude em apaixonado discurso:
"Existe a nobre ambição de encontrar na Terra a primeira República do mundo". Foi
através dessa virtude que Robespierre pretendia limpar a sociedade da imundície que a
poluiu assim para recomeçar sob novos princípios. Robespierre deixou de evoluir
politicamente, mas continuou de forma moralmente rápida. A ruptura foi completa com
o universo amoral de Maquiavel, onde razões de estado governavam as relações
políticas sob o Antigo Regime e, em particular, desde a Paz da Vestefália. A política da
virtude não parou com a mera eliminação física dos "inimigos do povo". Assumiu o
zelo missionário incumbido de reverter abertamente para a reforma do ser humano,
purgando a sociedade do vício. O culto do Ser Supremo estabelecido na Primavera foi a
legitimação moral deste vasto empreendimento revolucionário guiado pela Providência
e procurou garantir o sucesso aprovando o Terror que era ver a Revolução até ao fim.
No entanto, o Terror foi encarnado por Robespierre; quando caiu, o Terror caiu com ele
(assim como abrandou em violência, embora muito devagar, com a morte de Estaline).
E, no entanto, Robespierre foi derrubado, não pelos inimigos do Terror, mas por aqueles
108 Thomas, Reine Scélérate, 16.
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que partilhavam a sua aprovação, mas foram directamente ameaçados pelo seu supremo
poder. Para aqueles que consideram o Terror episódico, por mais necessário ou infeliz,
intimamente ligado às especificidades de a Revolução Francesa, a história está repleta
de evidências de que o terror do Estado tem vínculos causais directos com o
totalitarismo sempre que se alinha à ideologia radical da transformação social e
individual. O totalitarismo moderno não inventou o terror do Estado, mas fortaleceu-o,
assim como a tecnologia nuclear transformou a natureza do bombardeamento
estratégico. Foi preciso mais um século para a máquina do totalitarismo dar plena
expressão ao potencial na era dos movimentos de massa.
Enquanto isso, outra forma de terrorismo foi desenvolvido ao longo do séc. XIX.
Indirectamente, também em parte produto da Revelação Francesa. Recuperado pela
essência dos populistas russos influenciados pelas ideias do Iluminismo sobre liberdade
e justiça social, com forte mancha romântica. O terrorismo contemporâneo nasceu em1878 na Rússia. Na relação com vários projectos revolucionários, tem sido associada a
outra revolução – a Revolução Industrial. O terrorismo moderno era explorar meios
técnicos disponibilizados por aquela revolução e logo irá aprender o que a enorme
sociedade industrial ofereceu aos terroristas. Junto com o O Possesso de Dostoyevsky
(dos personagens de quem é modelado em Nechayev), a novela de Joseph Conrad, O
Agente Secreto foi, o primeiro trabalho literário a transformar o terrorismo em algo
específico, vinculando especificamente ao surgimento da sociedade obcecada com o
progresso científico ao do terrorismo visando a celeridade forçada do crescimento
humano.
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CAPÍTULO VI
TERRORISTAS ANARQUISTAS DO SÉC. XIX
Olivier Hubac-Occhipinti
Ah, avança, avança, avança,
Toda os burgueses vão provar a bomba,
Ah, avança, avança, avança,
Todos os burgueses vão estoirar...
Vamos rebentá-los a todos!109
Refrão da música anarquista
“A Ravachola”
A imaginação popular pendeu ver o terrorismo anarquista de forma positiva. Como os
homólogos russos, os terroristas libertários são entendidos como rebeldes idealistas e
românticos. A literatura clássica fornece a explicação parcial para a simpatia concedida
aos perpetradores desses crimes extremamente violentos; de facto, certos autores, apesar
da condenação do anarquismo, no entanto tiveram a espécie de fascínio de tais actos.
Émile Zola, por exemplo, falou sobre a "poesia negra eterna" dos anarquistas e o poeta
Stéphane Mallarmé de "explosão decorativa" da dinamite. A estética, por enquanto, não
nos pode explicar ou ajudar a entender os motivos que levaram os indivíduos a usar
atentados bombistas como meio de propaganda, dando origem ao terrorismo moderno.
Também não é possível entender a maior onda de terrorismo anarquista que varreu a
segunda metade do séc. XIX sem compreender bem as doutrinas subjacentes e sem
colocar o anarquismo no contexto histórico apropriado.
A EMERGÊNCIA DA DOUTRINA ANARQUISTA
A doutrina anarquista primeiro tomou forma durante a segunda metade do séc. XIX –
período propício ao surgimento de doutrinas revolucionárias. Naquela época, a Europa e
os Estados Unidos deleitavam-se com o progresso tecnológico sem precedentes e a
transformação económica. As descobertas da primeira Revolução Industrial foram
exploradas e a segunda Revolução Industrial estava a caminho. Na área de técnicas
metalúrgicas, o processo de Thomas-Gilchrist, descoberto em 1879, possibilitou a
produção de aço a partir do ferro gusa fosfórico110, abrindo caminho para a exploração
dos depósitos de minério de ferro da Lorena, anteriormente não usadas. Também foram
importantes, o progresso da máquina a vapor, turbina hidráulica e electricidade, com a
invenção do dínamo de Gramme em 1869; o telefone de Alexandre Graham Bell em
1877; e do motor de combustão interna e o automóvel. Os progressos efectuados nestas
áreas também beneficiaram a agricultura. A indústria química emergente forneceu
corantes, fertilizantes, produtos farmacêuticos e explosivos. A nitroglicerina e a
nitrocelulose, foram inventadas na década de 1860, possibilitaram novos tipos de
ataques.
Estas novas máquinas e processos técnicos, juntamente com o desenvolvimento do
comércio, impulsionaram a produção para níveis sem precedentes. Como resultado, a
vida económica foi profundamente transformada. Cinquenta anos de avanços em
comunicações e comércio – incluindo ferrovias, automóveis, aviação e navios a vapor –
tornaram o comércio verdadeiramente global. Na verdade, a nova economia estava a
nascer, anunciava o capitalismo moderno. Tanto a prosperidade como a crise financeira
109 ● [Tradução livre para português]
110 ● Ferro fundido bruto: de primeira fundição ainda não purificado, obtido nos altos-fornos.
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TERRORISTAS ANARQUISTAS DO SÉC. XIX
Olivier Hubac-Occhipinti
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caracterizaram esse período. A crise de 1873, provocada pela especulação selvagem,
marcou o início de o período de quase vinte anos de estagnação económica.
A revolução económica e tecnológica desencadeou convulsões que alteraram
profundamente a condição humana. Por um lado, a queda na taxa de mortalidade
resultou em crescimento significativo da população – tendência, no entanto, não
particularmente forte na França. Por outro lado, durante a segunda metade do séc. XIX,
dezenas de milhões de emigrantes europeus dirigiram-se – por razões políticas,
religiosas e, sobretudo, económicas – para o Ocidente americano e para a América
Latina. Muitos emigrantes espanhóis, italianos, belgas e alemães escolheram a França
como destino. Finalmente, as populações urbanas também cresceram bastante. A
mineração do carvão – o carvão é essencial, não apenas como fonte de energia, mas
também como principal absorção para a indústria metalúrgica, exigia força de trabalho
considerável. Atraídos pela perspectiva de vida melhor, os agricultores pobres
começaram a instalar-se em centros urbanos grandes. O desenvolvimento dos meios de
comunicação acelerou o êxodo rural e, em sessenta anos, o número de pessoas a viver
nas principais áreas urbanas duplicou.
Todas essas transformações sociais ajudaram a estabelecer as bases para a formulação
de doutrinas revolucionárias. O surgimento de duas classes principais – a burguesia, ou
aqueles que não faziam nenhum trabalho manual e o proletariado, que integra
trabalhadores industriais modernos – levaram a mudanças sociais radicais. Enquanto a
burguesia como um todo beneficiou do progresso, a classe trabalhadora foi tipificada
por proletariado industrial cuja condição era miserável e altamente precária. Nas
cidades, a questão social estava a tornar-se a questão chave, pois esses dois mundos não
se conheciam e viviam em bairros diferentes. O primeiro temia a agitação social,
enquanto o segundo abrigava profundo ressentimento do sistema capitalista.
O QUE É ANARQUISMO?
Não é tarefa fácil definir e elucidar a doutrina anarquista. Na verdade, como o
propagandista anarquista francês Sébastien Faure (1858-1942) disse: "não pode haver
credo ou dogma libertário". O princípio fundamental do anarquismo – a rejeição de
todas as formas de autoridade – impede também o estabelecimento claro na definição do
termo. Podemos certamente dizer, no entanto, o denominador comum entre os vários
movimentos e indivíduos alegadamente agiram em nome da anarquia é a rejeição do
princípio da autoridade sob qualquer forma – a rejeição violenta do controlo sobre os
indivíduos.
O conceito de anarquismo, no sentido político do termo, apresentado pela primeira vez
por Pierre Joseph Proudhon (1809-1865) durante a primeira metade do séc. XIX. Nessa
altura, no entanto, não defendia ainda a destruição do estado, apenas a sua
reorganização, de forma a assegurar o respeito pelo indivíduo, bem como a associação
livre política e económica. Proudhon propôs o conceito de "mutualismo" – abolição do
sistema de lucro capitalista e a introdução de crédito sem juros, de modo a permitir às
pessoas retomarem os meios de produção e acabem com a injustiça social. Esse foi o
princípio subjacente à criação de cooperativas e sociedades de ajuda mútua. A doutrina
de Proudhon era mais reformista do que revolucionária. Teve influência considerável na
Associação Internacional de Trabalhadores (AIT), ou Primeira Internacional, fundada
em Setembro de 1864111.
111 Durante a Exposição Mundial de Londres de 1862, os trabalhadores franceses e ingleses iniciaram o diálogo com
vista à solidariedade internacional e à criação de organização autónoma do proletariado, levando à fundação da
Associação Internacional de Trabalhadores em reunião de delegações de vários Países em 28 de Setembro de 1864.
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Mikhail Bakunin (1814-1876) defendeu a livreassociação de indivíduos e postulou que
a verdadeira liberdade era condição suficiente para a organização das relações políticas,
sociais e económicas. Crítico acentuado da religião, definiu-a como "escravidão e
aniquilação e servidão da humanidade em benefício da divindade"112. Bakunin
discordou fortemente de Karl Marx sobre a questão da natureza do sistema político, que
deveria surgir das ruínas dos estados burgueses. Embora o objectivo de Bakunin fosse a
destruição de todas as estruturas estatais e a rejeição total de todas as formas de poder,
Marx afirmou que a ditadura do proletariado era pré-requisito para a nova sociedade.
Quando Bakunin foi expulso da AIT no Congresso de Haia de 1872, essa profunda
divergência de pontos de vista resultou em cisma dentro da organização entre
"autoritários" e "anti-autoritários". A divisão marcou o início da autonomia das
doutrinas marxistas e anarquistas.
O teórico anarquista russo Pyotr Kropotkin (1842-1921) foi o primeiro a defender os
actos de violência, embora, a partir de 1891, começou a reconsiderar a eficácia dos
actos terroristas. Juntamente com o geógrafo francês Elisée Reclus, fundou o jornal O
Revoltado, no qual encorajou os preparativos para a revolução e afirmou ser essencial
"despertar a ousadia e o espírito de revolta pregando com o exemplo". Acreditava na
"propaganda pela acção", táctica revolucionária descrita em 1877 como "poderoso meio
de despertar a consciência popular"113. A nível internacional, em 14 de Julho de 1881, o
Congresso de Londres da AIT, contou com a presença das diversas delegações
anarquistas, anunciou que "chegou o tempo... agir e juntar propaganda pela acção e
acções insurreccionais a propaganda oral e escrita, que se mostraram ineficazes". Entre
as resoluções, o Congresso recomendou a “estas organizações e indivíduos...
enfatizaram a importância do estudo e da aplicação das [ciências técnicas e químicas]
como vias de defesa e ataque". Todas as condições prévias foram assim estabelecidas
para o nascimento do novo tipo de terrorismo.
ANARQUISITOS ITALIANOS: "PROPAGANDA PELA ACÇÃO"
A Itália, terreno fecundo particularmente fértil, para a doutrina anarquista. Em 1864, a
Federação Italiana juntou-se à Associação Internacional de Trabalhadores, mas em
Agosto de 1872 rompeu com o Conselho Geral no Congresso de Rimini, opondo-se à
expulsão de Bakunin da AIT no Congresso de Haia. No entanto, foi no Congresso de
Florença de Outubro de 1876 a Federação Italiana desviou-se definitivamente da Iª
Internacional ao falar abertamente a favor da propriedade colectiva dos meios de
produção e os próprios produtos. Os anarquistas Carlo Cafiero (1846-1892) e Errico
Malatesta (1853-1932), autores desta afirmação, defenderam a crença de que os "actos
insurreccionais" eram o "meio de propaganda mais eficaz". Em 1877, efectuaram a
demonstração prática na província de Benevento, embora tenha terminado em fracasso.
Os anarquistas armados ocuparam o prédio municipal na aldeia de Letino "em nome da
revolução social", queimaram todos os títulos e proclamaram o estabelecimento do
comunismo libertário. No entanto, a chegada de mais de 10 mil soldados acabou com a
revolta. Este episódio deu origem à prática de "propaganda pela acção" favorecida pelos
terroristas anarquistas.
A partir de 1880, o movimento anarquista dividiu-se em duas facções: a primeira foi
revolucionária e anarquista-comunista, enquanto a segunda estava intimamente
relacionada com a forma de socialismo que prevaleceu na época. Apesar de a tentativa
de Malatesta e Francesco Merlino (1856-1930), no Congresso de Capolago de Janeiro
de 1891, aproximar as duas facções, a divisão é definitiva em 1892. A partir desse
112 Ver Bakunin, Oeuvres.
113 Brousse, “Propagande par le fait”.
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ponto, o anarquismo italiano mudou entre esses dois modos de acção na disseminação
da doutrina.
Por um lado, os actos de violência dos indivíduos, incluindo tentativas de assassinato –
forma extrema de "propaganda pela acção" – não foram particularmente bem-sucedidos.
O assassinato do presidente da República Francesa, Sadi Carnot, pelo anarquista italiano
Sante Caserio em Junho de 1894 foi exemplo de assassinato político motivado pela
vingança114. Caserio, que gritou: "Viva a revolução!" e "Viva a Anarquia!", como
esfaqueou o presidente, estava acima de tudo à procura de vingança pela condenação do
terrorista francês François Ravachol. No dia seguinte, a esposa de Ravachol recebeu a
fotografia do marido, "Ele foi vingado". Outros anarquistas italianos, seguindo o
exemplo de Caserio, estavam activos fora do país. O assassinato de Agosto de 1897 do
presidente do Conselho de Ministros espanhol, Antonio Canovas, por Michele
Angiolillo, bem como o assassinato da imperatriz Elisabete da Áustria, em 10 de
Setembro de 1898, por Luigi Luccheni, foram ambos trabalho dos imigrantes italianos
que abraçaram as crenças anarquistas revolucionárias115.
Os terroristas italianos também se concentraram em eliminar os líderes dos próprios
países. Em Roma, em 16 de Junho de 1894, Paolo Lega disparou, mas falhou o
presidente do Conselho italiano. Três tentativas foram feitas na vida do rei Umberto I. O
primeiro foi executado por Giovanni Passanante, que tentou esfaquear o rei, e o segundo
pelo anarquista Pietro Acciarito, que também o fez em Roma em 22 de Abril de 1897.
Mas Foi apenas três anos depois que o objectivo foi alcançado: em 29 de Julho de 1900,
numa cerimónia de prémios de competição desportiva, o anarquista Gaetano Brecci
disparou três tiros de pistola contra o rei, matando-o. O objectivo era punir o rei por ter
apoiado e condecorado o general Bava Beccaris, que tinha dado a ordem de abrir fogo
na multidão durante os distúrbios de Janeiro de 1898, por causa dos aumentos sobre os
preços do pão.
Enquanto o assassinato do dignitário líder do regime como meio de propaganda era
muito popular entre revolucionários e anarquistas durante a segunda metade do séc.
XIX, o assassinato do rei ocorreu no momento em que o movimento anarquista estava a
reconsiderar seriamente o recurso a actos violentos de "propaganda pela acção". Várias
publicações anarquistas, embora não condenassem a acção de Brecci, sugeriram ter sido
preferível travar a batalha na arena económica. O movimento anarquista italiano tinha
organizado grandes greves, e por volta de 1900, distanciando-se desse período de terror
de curta duração, optou definitivamente pelo tipo de sindicalismo revolucionário
defendido por Georges Sorel116. O ressurgimento de tentativas de assassinato individual
como técnica veio mais tarde, com o advento do fascismo.
ANARQUISTAS TERRORISTAS ESPANHÓIS:
DA REVOLTA ARMADA AO REGÍDITO
O movimento anarquista teve muito sucesso na Espanha do séc. XIX e até mesmo no
séc. XX117. A característica mais notável foi o uso, ao longo de várias décadas, de todas
as formas possíveis de "propaganda pela acção".
114 Ao longo deste artigo, o assassinato político deve ser entendido como assassinato politicamente motivado – não no
sentido jurídico do termo, que, ao definir o assassinato político, não exige que tal motivo esteja presente.
115 Canovas provavelmente foi assassinado por vingança. Condenou à morte de cinco anarquistas espanhóis em
conexão com o ataque em 07 de Junho de 1896.
116 O teórico francês Georges Sorel (1847-1922) defendeu greves gerais como meio de acção, exemplo de violência
revolucionária.
117 ● Em Portugal, foi fundado em 10 de Janeiro de 1875, o Partido Socialista Portugês (1875-1933) embora em 1878
tenha mudado de nome para Partido Operário Socialista Português, na sequência do Congresso de Haia, da AIT. Os
emissários espanhóis da AIT Anselmo Lorenzo, Gonzaléz Morago e Francisco Mora) que através de contactos
reuniram-se com José Fontana (principal contacto do grupo em Portugal), Antero de Quental e Jaime BatalhaReis.
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Este fenómeno particular pode ser explicado em parte pelo atraso industrial e
económico da Espanha. O país teve sérios problemas sociais, o que afectou a grande
maioria da população. A reforma agrária não levou à criação de grandes propriedades
nem ao surgimento da classe de fazendeiros proprietários de terras. Como resultado, os
trabalhadores agrícolas – incluindo milhões de trabalhadores braceros – trabalhadores
de baixa remuneração, muitas vezes desempregados – viviam em condições de pobreza
extrema. Além disso, houve pouca industrialização e as fábricas existentes eram muitas
vezes de propriedade estrangeira. Apenas a indústria ligeira de fabrico têxtil na
Catalunha ganhou relevo, tornando-se assim a "ocupação nacional". Os problemas
económicos de Espanha foram exacerbados pela existência de movimentos regionalistas
que ameaçavam a unidade espanhola, porque as províncias ricas não queriam prestar
apoio financeiro às mais pobres.
Contra este difícil panorama, houve grande explosão de violência na Catalunha na
década de 30, embora não estivessem ligados a nenhuma doutrina particular. Em 1835,
os trabalhadores destruíram diversas máquinas e equipamentos. A Espanha teve longa
tradição revolucionária quando os movimentos anarquistas começaram a surgir.
Sempre que a situação política em Espanha ficava tensa, os levantamentos armados ou
as greves multiplicavam-se por todo o país. Foi o caso durante a primeira guerra
Carlista (1833-40), na qual partidários de María Cristina de Borbón-Duas Sicílias –
rainha regente em nome da filha, Isabel II – opuseram-se ao irmão do falecido Rei
Fernando VII, Carlos María Isidro de Borbón, conhecido como Dom Carlos,
proclamado rei pelos apoiantes. Este período de instabilidade viu a primeira tentativa de
assassinato individual e socialmente motivada. Além disso, ao longo do séc. XIX,
vários ataques foram levados a cabo contra conventos, monges e freiras, acusados,
correcta ou indevidamente, de todo mal na face da Terra.
As ideias de Bakunin, introduzidas em Espanha pelo italiano, Giuseppe Fanelli (1827-
1877), foram logo abraçadas pelo povo espanhol. O movimento anarquista cresceu
muito rapidamente na década de 60 e, imediatamente após o Congresso da Haia, a
delegação espanhola juntou-se à AIT "anti-autoritária". Os ramos regionais da
Federação Anarquista Espanhola foram criados em todo o país. A característica saliente
do movimento anarquista da época foi os laços estreitos com operários e trabalhadores
rurais, permitindo, principalmente, manter a influência, mesmo no auge dos períodos de
repressão.
Foi nas regiões muito pobres, principalmente na Andaluzia e Catalunha, que os
anarquistas defendiam recorrer à "propaganda pela acção". Durante o período de 1882 a
1886, grupos anarquistas como a Mão Negra se comprometeram em expropriar e
assassinar mais do que vinte figuras principais. Em 08 de Janeiro de 1892, em resposta à
moção adoptada no Congresso de Londres da AIT de 1881 a exortar recurso para acções
ilegais, a cidade de Jerez, sudeste de Espanha, foi invadida por centenas de agricultores.
Embora tal violência insurreccional tenha sido condenada desde logo pela Federação
Anarquista, os actos terroristas seriam operados com frequência por mais de vinte anos.
O primeiro ataque contra o poder da monarquia ocorreu em Outubro de 1878, quando
Juan Oliva Moncasi, jovem trabalhador, abriu fogo na procissão do rei. Mas foi
principalmente durante o reinado de Afonso XIII em pleno direito, iniciado em 1902,
seguindo o período de regência, cujo número de ataques contra o rei começou a
aumentar. Em Paris, durante a visita oficial do rei da Espanha à França, em Maio de
Ficou acordada a fundação secreta do Núcleo Internacional de Lisboa da AIT, a quem aderem outros. Antero publica
o folheto O Que é a Internacional (1871), foi dos primeiros documentos de referência. Da primeira comissão
directiva fez parte José Fontana, Azedo Gneco, José Correia Nobre e José Tedeschi. Influenciado pelas ideias de
Proudhon de índole moral, opunha-se ao capitalismo que não tinha em conta o valor humano, mas a ânsia do lucro.
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1905, foi lançada uma bomba contra o presidente Émile Loubet e Afonso XIII, que
escaparam ilesos, embora outras pessoas tenham sido feridas. O autor, chamado
Alejandro Farras, nunca foi apanhado. Um ano depois, no casamento do rei com a
princesa Ena de Battenberg em Madri, o anarquista chamado Mateo Morral (1880-1906)
lançou uma bomba, escondida num ramo de flores, de um hotel para a carruagem
nupcial. Nesse ataque matou quinze pessoas e feriu pelo menos mais de cinquenta, mas
o casal real escapou incólume.
Foi principalmente durante a última década do séc. XIX o terrorismo indiscriminado
começou a surgir na Espanha. Em 07 de Novembro de 1893, para se vingar da execução
de Paulino Pallas, que assassinou o general Arsenio Martinez Campos em Setembro, o
anarquista Santiago Salvador lançou duas bombas para a multidão no Liceu Opera em
Barcelona, matando mais de vinte pessoas. Em resposta, as autoridades declararam
estado de sítio na cidade e prenderam anarquistas em massa. Apesar da intensa
supressão do movimento e das inúmeras detenções no forte militar de Montjuich,
aconteceu outro atentado bombista durante a procissão religiosa de Corpus Christi na
rua Cambos Nuevos em Barcelona, matando mais de quarenta pessoas
Ao contrário de outros países europeus, onde a tendência terrorista anarquista era
bastante limitada e de curta duração, em Espanha, os ataques continuaram no séc. XX.
Os actos individuais de violência foram cometidos mesmo depois do sistema
pacificador anarco-sindicalista legal ter sido estabelecido. Os assassinatos políticos na
Espanha visavam representantes de alto nível do sistema político, identificados como
tais por terroristas. O rei é claro, personificava o estado e o regime. No entanto, o
objectivo não era necessariamente desestabilizar a sociedade, como costumava ser o
caso dos terroristas russos, que procuravam forçar o Estado a responder a ataques com
supressão para que pudessem denunciar as medidas do Estado policial. O fim do último
tipo de ataque era vinculá-lo, não só com o perpetrador individual, mas também com a
doutrina em cujo nome tinha sido cometido, obrigando a sociedade a reconhecer a
intensidade da raiva e os sentimentos de revolta que isso tinha motivado.
O ataque do Liceu Opera foi incomum porque, pela primeira vez, a multidão de pessoas
foi direccionada directamente. Tais actos visavam aterrorizar toda a classe social
identificada como inimiga da causa anarquista. A diferença entre esse tipo de ataque e
os métodos mais usados era que o objectivo aqui era matar qualquer pessoa que
colaborasse com os patrões ou com o Estado ou simplesmente trabalhasse dentro do
sistema. Desse ponto de vista, todos os membros da burguesia eram inimigos que
merecessem a morte, mesmo que não lhes fosse atribuída nenhuma responsabilidade em
particular.
TERRORISTAS ANARQUISTAS NORTE-AMERICANOS
Os Estados Unidos nunca foram ambientes particularmente propícios para o
desenvolvimento da ideologia anarquista. Nos grandes centros industriais, a rápida
expansão do capitalismo originou movimentos de oposição dentro da classe
trabalhadora. No entanto, o objectivo não era desafiar o sistema capitalista, mas
principalmente limitar as consequências negativas para o proletariado. Havia vários
motivos para isso. Por um lado, os trabalhadores tiveram dificuldade em unir forças
devido à falta de homogeneidade dentro da classe social, pois a grande maioria delas
eram imigrantes recentes. Além disso, muitos consideravam a sua situação social
temporária e não se sentiam escravizados pelo estatuto proletário. Contra esse pano de
fundo, as organizações trabalhistas, como os Cavaleiros do Trabalhoe a influente
Federação Americana do Trabalho, foram relativamente bem-sucedidas, mas
continuaram permanentemente fora da arena política. Os anarquistas obtiveram certa
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atenção através de publicações e das muitas reuniões feitas em todo o país. As figuras-
chave como a teórica Emma Goldman (1869-1940) e o propagandista Benjamin R.
Tucker (1854-1939), começaram em 1876 a traduzir as obras de Proudhon e Bakunin
para o inglês, ajudaram a introduzir o conceito de anarquia nos EUA. Johann Most
(1846-1906), antigo membro do Reichstag alemão vivia no exílio nos Estados Unidos,
tinha sido influenciado pelas ideias de Kropotkin, tornou-se o porta-voz da "propaganda
pela acção" na América. Publicou, entre outras obras, o pequeno guia de instruções para
fazer bombas, embora mais tarde mudou da defesa da violência para o sindicalismo.
Vários anarquistas americanos, como os terroristas europeus, recorreram a assassinatos
"direccionados" ou a actos de vingança armados. No entanto, os eventos notórios
ocorridos em Chicago em 1886 tiveram mais a ver com a legítima defesa do que acção
terrorista. A cadeia de acontecimentos nasceu com as numerosas greves que estavam a
ser feitas em apoio ao dia de trabalho de oito horas, levando 12 mil fábricas a
paralisarem. Em Chicago, o movimento intensificou-se e a reunião de trabalhadores foi
violentamente reprimida pela polícia. Numa segunda reunião de massas, feita na Praça
Haymarket em 04 de Maio de 1886, agentes da polícia carregaram sob a multidão. Uma
bomba foi lançada contra eles e estes retribuíram abrindo fogo. Uma dezena de pessoas
foi morta, incluindo sete polícias118. Nesse caso, a bomba foi lançada no contexto do
choque entre grevistas e polícias. Isso teve mais em comum com a insurreição armada
do que com ataque terrorista.
A tentativa de assassinato do presidente Henry Clay Frick, da Carnegie Steel Company,
pelo anarquista Alexandre Berkman (1870-1936) em 1892 dá a percepção clara da
mentalidade dos defensores americanos da "propaganda pela acção". O objectivo era
atingir a pessoa específica – símbolo da burguesia e da repressão do movimento
proletário. Em Maio de 1892, os trabalhadores da Carnegie Steel Company Homestead
Works entraram em conflito com a empresa pela nova tabela de salários, exigindo
aumento devido aos preços altos do mercado e ao aumento dos lucros da empresa. Frick
recusou-se a negociar e suspendeu todos os trabalhadores, a fim de rever cada pedido de
trabalho individualmente. As oficinas foram fechadas temporariamente e as famílias dos
trabalhadores foram expulsas da habitação, propriedade da empresa. Poucos dias depois,
contratados de Frick armados dispararam contra a multidão de trabalhadores sitiados
nas oficinas; muitos foram mortos ou feridos. Berkman decidiu matar Frick porque
"deve ser feito para sofrer as consequências"119. O móbil do assassinato era matar
alguém que os anarquistas odiavam profundamente e considerado responsável pela
tragédia, enquanto poupavam vítimas inocentes. Emma Goldman recusou-se a acreditar
que Berkman poderia ferir intencionalmente a secretária de Frick no ataque. Ao
contrário de certos terroristas anarquistas franceses, não estenderam o conceito de
inimigo burguês a todos aqueles que colaboravam, directa ou indirectamente, com o
sistema capitalista dominante.
No entanto, as motivações dos terroristas anarquistas americanos eram diferentes.
Berkman tinha esperado que o seu acto promovesse a causa anarquista, mas o principal
propósito era vingar a morte dos trabalhadores da Homestead. Leon Czolgosz,
assassinou o presidente dos EUA, William McKinley, em 1901, afirmou da cadeira
eléctrica que o móbil era libertar o povo americano120. Ao atacar o presidente, disse que
estava a atacar o "inimigo das boas pessoas trabalhadoras". Enquanto Berkman tinha
118 Após os eventos de Haymarket, a polícia prendeu oito anarquistas conhecidos, cujo julgamento foi muito
controverso. Os anarquistas viram isso como o julgamento do movimento anarquista e socialista proclamando então
um dia de comemoração, o 1º de Maio passou a ser assim o Dia Internacional dos Trabalhadores.
119 Goldman, Living My Life.
120 O presidente McKinley foi assassinado em 1901 na Buffalo Exposition no Estado de Nova Iorque, durante o
circuito de discursos.
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agido por vontade de vingança, a acção de Czolgosz é politicamente motivada. A táctica
de assassinato do mais alto cargo do estado é reminiscência dos ataques levados a cabo
pelos socialistas revolucionários russos, cujo objectivo era destruir o sistema político e
libertar as massas oprimidas, visando o mais alto nível dos líderes políticos do regime.
O assassinato de McKinley marcou o fim do fenómeno da "propaganda pela acção" nos
Estados Unidos. Vários estados, e mais tarde o Congresso, promulgaram leis anti-
anarquismo importantes atingindo o ânimo do movimento. As medidas principais
proibiram as actividades anarquistas e qualquer pessoa hostil ao governo dos Estados
Unidos de entrar no país121. Não só o movimento apenas sobrevivia do ponto de vista
intelectual, mas a grande maioria dos anarquistas americanos condenou o uso da
violência. Por isso, era difícil para Emma Goldman endossar esses actos publicamente.
Embora as doutrinas anarquistas tenham sido bem recebidas pelas classes trabalhadoras
nos EUA, não houve casos reais de terrorismo anarquista. Os casos ocorridos foram
idênticos às revoltas armadas ou assassinatos políticos – até o regicídio – do que ao
terrorismo.
TERRORISTAS DO ANARQUISTO FRANCÊS: O USO DO DINAMITE
A evolução da doutrina anarquista na França está intimamente ligada à Comuna de Paris
(Março-Maio de 1871). Muitos dos discípulos de Proudhon participaram da Comuna e
nunca perdoaram nem aos republicanos nem aos realistas pela repressão a que foram
submetidos. A maioria deles foi deportada para Nova Caledónia. Como consequência, a
Comuna estava sempre presente nas mentes dos anarquistas franceses durante a década
de 80 como símbolo do sacrifício feito pelos mártires revolucionários.
O anarquismo francês foi influenciado pelas ideias de Kropotkin, que propusera o
comunismo libertário como a última forma do anarquismo, isto é, a aplicação do
princípio de "a cada um segundo a sua necessidade". O regresso dos Comunardos
deportados em 1880, entre eles, a firme e doutrinária Louise Michel (1830-1905) deu
nova vida ao movimento anarquista. A amnistia tinha sido solicitada, em vão, por
Victor Hugo e François Raspail em 1876. No entanto, em paralelo com o Congresso de
1884 de Chaux-de-Fonds da AIT, figuras-chave do movimento anarquista francês122
apressaram-se a especificar as tácticas que deveriam ser usados para desencadear a
revolução social. Defenderam "sair da esfera da legalidade para agir em caso de
ilegalidade". Esse foi o primeiro endosso ao recurso às "ciências técnicas e químicas",
reiterado e ampliado no Congresso de Londres em 14 de Julho, 1881.
A adopção do princípio da "propaganda pela acção" como meio exclusivo de acção
caracterizou o movimento francês até ao final da década 80. Os anarquistas preferiram
organizar-se em grupos, unidades capazes de se comunicarem livremente com outras
unidades. Permitiram, no entanto, o grau considerável de autonomia individual. Em
ambiente de expectativa geral de a grande Revolução estava próxima, os grupos deram-
se nomes belicosos sonantes que não deixaram dúvidas sobre as intenções de executar
"acções directas". Exemplos incluem "Revolver à la Main" (Arma na Mão) de
Montceau-les-Mines e a "Pantera de Batignolles", com sede em Paris.
Uma vez que os métodos escolhidos foram anunciados, a imprensa anarquista francesa
desenvolveu-os publicando guias práticos para o fabrico de bombas. Começaram a
aparecer títulos como "Produtos anti-burgueses" e "Estudos científicos",
complementadas por sugestões de que as áreas rurais e as casas dos proprietáriosconservadores sejam incendiadas. Em 1887, o manual faça-você-mesmo L'Indicateur
Anarchiste, para usar a dinamite, foi publicado e traduzido para inglês, italiano,
121 A primeira lei que visou os anarquistas foi a Lei da Anarquia Criminal do Estado de Nova Iorque.
122 O relatório policial contemporâneo denomina Kropotkin, Elisée Reclus e P. Martin de Vienne.
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espanhol e alemão. O folheto explicava, em termos simples, como fazer nitroglicerina e
transformá-la em dinamite. Toda essa informação poderia ser fruída por 10 francos. No
entanto, olhar mais atento sobre a composição de bombas terroristas mostra, apesar da
ampla disponibilidade de informações sobre o fabrico, essas técnicas não eram
frequentemente usadas. Claro, o manuseio de explosivos, para não falar da montagem, é
tarefa bastante perigosa, que requer cautela e experiência e a nitroglicerina é a
substância particularmente instável. É muito imprudente fazer de pirotécnico. Muitas
das bombas não explodiram quando era destinado ou explodiram sem matar ninguém.
Por essa razão, os terroristas optaram usar outras armas mais directas, como armas de
mão ou facas.
Antes dessa onda de ataques, a França testemunhou várias revoltas populares,
orquestradas ou simplesmente retidas por anarquistas. Outra manifestação do princípio
da “propaganda pela acção” apresentava-se cada vez mais prodigiosa nos actos cada vez
mais violentos. Tais ocorrências geralmente começavam com a greve, acompanhada
pela ameaça de potencial insurreição ou assassinato. O primeiro evento expressivo foi a
tentativa de assassínio do industrial pelo jovem trabalhador após a greve de Roanne de
Fevereiro de 1882. A imprensa anarquista saudou o acto como trabalho revolucionário.
Mas, para os anarquistas, o autêntico espírito revolucionário veio a ser simbolizado
pelos eventos ocorridos em Decazeville em 1886. No dia 26 de Janeiro, a gerve não
planeada começou na Société Nouvelle des Houillères et Fonderies, em Aveyron.
Naquela tarde, o grupo de 150 a 200 mineiros tomou os edifícios administrativos da
empresa. Depois de o director adjunto da empresa, o engenheiro chamado Watrin,
recusar aceitar as contestações dos grevistas, os manifestantes atiraram-no pela janela.
Noutra frente, durante a crise económica de 1883-1877, os anarquistas pediram aos
desempregados a fazer justiça com as mãos e se ajudassem com o que fosse preciso. Em
09 de Março de 1883, por iniciativa do sindicato de madeireiros, os desempregados
agruparam-se na esplanada dos Invalides em Paris. Depois de a polícia dispersar a
multidão, o pequeno grupo, liderado pela anarquista Louise Michel, dirigiu-se à avenida
Saint-Germain, onde saquearam três padarias a gritar "Pão, Trabalho ou Chumbo".
No Verão de 1882, a sociedade secreta, a Faixa Negra, irrompe galopante na área de
Montceau-les-Mines e Creusot. Era grupo pequeno – não verdadeiramente anarquista –
e os intuitos estavam mal definidos. Descreveu a série de muitos encontros de estradas
da região, e em meados de Agosto atacaram casas de culto. O governo temeu a
propagação do espírito revolucionário e reprimiu o movimento. No entanto, em 1884, a
Faixa Negra ressurgiu e executou ataques de dinamite. Nesse ponto, declarou-se
explicitamente anarquista e defende a "propaganda pela acção".
A onda de ataques individuais ocorridos entre 1892 e 1894, iniciada pelo anarquista
Ravachol, caracterizou-se por grande número de actos terroristas espectaculares e no
seguimento, pelos seus perpetradores, da doutrina de acção directa. No entanto, o
recurso a atentados bombistas ou a assassinatos políticos não foi nada novo, tendo
ocorrido imensos previamente na década de 80. Duas tentativas de assassinato contra
personalidades eminentes – Léon Gambetta em Outubro de 1881 e Jules Ferry em
Janeiro de 1884 – falharam porque os possíveis perpetradores não conseguiram
aproximar-se o suficiente das vítimas desejadas. Os assassinos principiantes, mesmo
aqueles que afirmam ser anarquistas, foram claramente motivados mais pelo desespero
do que por qualquer crença política particular. O homicídio de 1884 da madre-superiora
do convento da área de Marselha pelo notório anarquista Louis Chaves, jardineiro
despedido recentemente, aproximou-se mais do conceito da "propaganda pela acção".
Na carta-testamento, convocou todos os anarquistas para seguirem o exemplo, que
considerou o único meio efectivo de disseminar ideias revolucionárias.
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Mas foi o ataque de 1886 contra a Bolsa de Valores de Paris que verdadeiramente
anunciou ocorrências futuras. O agressor, antigo funcionário notarial chamado Charles
Gallo (1859-1887), tinha sido condenado por falsificação e adoptou depois as crenças
libertárias. Em 1886, decidiu executar o ataque, pelo qual se preparou. Esquadrinhou
duas vezes a área, mais tarde pediu a arma emprestada a um amigo e arranjou um frasco
de vitriol123. Em 05 de Março, atirou a garrafa para o chão do Bolsa de uma das galerias
e disparou sob vários funcionários. Ninguém foi morto, para grande desapontamento de
Gallo, disse no julgamento: "Lamentavelmente, não matei ninguém". No entanto,
aproveitou a oportunidade para expor as teorias sobre a necessidade de recorrer à
"propaganda pela acção". Gallo foi condenado a vinte anos em colónia penal, onde
morreu a seguir.
De 1892 a 1894, o uso da dinamite em França atingiu o ápice. Cerca de dez ataques
ocorreram, nem todos bem-sucedidos e a opinião pública viu diferentes graus de
anuição. Em 1893, o atentado bombista em Marselha, cujo alvo era o general
Voulgrenant, e em 1894, o dispositivo explosivo foi colocado na frente dos armazéns
Printemps, em Paris. Os jornais lançaram nova rubrica intitulada "Dinamite". Como as
ameaças falsas de bomba não eram incomuns, como reflectem os desenhos humorísticos
de Michelet em L'Illustration. As pessoas viviam em estado de medo abjeto de novos
ataques.
Em 11 de Março de 1892, a explosão abalou a casa do juiz Benoît, localizado no 136
Boulevard Saint-Germain. Apesar do facto de ninguém ter sido morto, o ataque passou
a ser visto como primeiro grande acto de terrorismo. O agressor, preso em 30 de Março,
tornou-se o símbolo do terrorismo anarquista francês do séc. XIX. François-Claudius
Koenigstein (1859-1892), também conhecido como Ravachol, tinha sido prisioneiro não
político que posteriormente tentou justificar as ações com base em teorias anarquistas.
Na verdade, em 1891 Ravachol tinha tentado profanar o túmulo da baronesa de
Rochetaillé, para achar jóias valiosas e o assassínio de recluso idoso em Junho de 1891,
a quem também roubou. Com a polícia no encalço, fugiu para a Espanha, procurou
refúgio com outro exilado, Paul Bernard. Provavelmente foi em Barcelona que aprendeu
a fazer bombas.
Em Agosto de 1891, entrou em Paris, assumiu outro nome e encontrou-se com outros
anarquistas parisienses. Conheceu aqui a esposa de Henri Louis Descamps, militante
preso na manifestação do 1º de Maio em Clichy. Durante essa manifestação, a polícia
tentou apoderar-se da bandeira vermelha dos anarquistas e seguiu-se violenta altercação.
Três dos rebeldes foram espancados pela polícia, em 28 de Agosto de 1891, condenados
a longas penas de prisão. Irritado pelo resultado do julgamento, Ravachol decidiu
vingar-se contra Benoît, o juiz presidente e contra Bulot do Ministério Público. Roubou
dinamite da pedreira com o juiz Benoît em mente como vítima, montou a primeira
"máquina infernal" – também conhecida como "caldeirão infernal"124, usou detonador
feito de fulminante e cheio de projécteis.
A segunda bomba foi feita por 120 gramas de nitroglicerina, juntamente com salitre e
carvão pulverizado, misturado com ácido nítrico e sulfúrico. Explodiu em 27 de Março
de 1891, a casa de Bulot, na rua de Clichy, ferindo cinco pessoas e causou danos
materiais significativos.
Enquanto jantava no restaurante Véry, Ravachol falou soltamente com o empregado,Jules Lhérot, que o entregou poucos dias depois. Recebeu prisão perpétua pelos
atentados e condenado à morte pelo assassinato do idoso. Guilhotinado em 11 de Julho
123 ● Também conhecido por Ácido sulfúrico
124 O nome "caldeirão infernal" ocorreu porque era panela de cozer comum usada para fazer esse tipo de bomba.
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de 1892, em Montbrison, aos 33 anos. Alguns anarquistas viam-no como tipo de "Cristo
violento" – o prenúncio da nova era125.
De acordo com a tradição anarquista, Ravachol foi vingado um mês depois da prisão
por Théodule Meunier, que explodiu o restaurante onde Ravachol tinha sido traído.
Duas pessoas, incluindo o dono, foram mortas na explosão. No julgamento, Meunier
também foi considerado culpado por ligação ao atentado de 15 de Março de 1892 contra
o quartel de Lobau – local infame dos massacres dos comunardos.
No entanto, as acções de Ravachol foram imitadas, servindo de inspiração para o
anarquista Léon-Jules Léauthier. Em 13 de Novembro de 1893, armado com faca,
Léauthier foi ao restaurante Bouillon Duval determinado a matar "o primeiro burguês
que visse", acabou por ser o ministro da Sérvia Georgevitch.
A onda de ataques criou ambiente de insegurança generalizada e a percepção de ameaça
iminente e houve resposta forte ao atentado bombista do Palais-Bourbon por Auguste
Vaillant (1861-1894). Vaillant, por muito tempo anarquista comprometido, por algum
tempo adoptou as crenças socialistas e depois juntou-se ao grupo Os Revoltados. Tentou
deitar mão a várias profissões, mas nunca conseguiu obter vida decente. Partiu para a
Argentina a sonhar com vida melhor, mas voltou a Paris três anos depois, em Março de
1893. Casou-se e teve um filho. Mas não conseguia sustentar a família – situação que
achou insuportável. Considerou o suicídio como saída da miséria, mas, como disse no
julgamento, queria morrer com fim útil, iria simbolizar "o choro da classe inteira que
exigia direitos e logo juntou os actos às palavras". Depois de montar a bomba no quarto
de hotel na rua Daguerre, em 09 de Dezembro de 1893, foi à Câmara dos Deputados e
atirou-se da galeria para a própria Câmara. A bomba não foi muito poderosa e feriu
apenas um deputado, mas o objectivo foi alcançado: a partir desse momento, o governo
entendeu que estava a ser alvo directo dos anarquistas.
Durante o julgamento em Dezembro de 1893, Vaillant efectivamente transmitiu o ódio
dos anarquistas à injustiça social: "Devo ter pelo menos a satisfação de ter ferido a
sociedade existente, essa sociedade amaldiçoada na qual se pode ver o único homem
gastar, inutilmente, o suficiente para alimentar milhares de famílias; sociedade infame
que permite que alguns indivíduos monopolizem a riqueza social... Cansado de levar
essa vida de sofrimento e cobardia, carreguei esta bomba para aqueles que são os
principais responsáveis pela miséria social".
Duas semanas após a execução, em 5 de Fevereiro de 1894, a polícia foi notificada por
correio do suicídio de homem chamado Rabardy. Foram especificados dois locais
diferentes: dois hotéis, um no bairro Saint-Jacques e outro na rua Saint-Martin. Mas era
uma armadilha; as portas do quarto do hotel estavam ligadas a bombas, prontas, e
mataram os polícias que iam investigar. Ambos os atentados bombistas foram atribuídos
a Amédée Pauwels (1864-1894), anarquista belga muito activo nos grupos anarquistas
de Saint-Denis. Mas nunca teve a oportunidade de confessar; em 15 de Março de 1895,
quando entrou na Igreja de La Madeleine em Paris, a bomba que levava explodiu,
matando-o.
Mas enquanto todos os terroristas acima mencionados afirmaram ter agido em nome do
anarquismo, nenhum deles reflectiu a enorme revolta causada pelo terrorismo no final
do séc. XIX tão claramente quanto Émile Henry.
ÉMILE HENRY: ADVOGADO DO TERRORISMO MASSIVO
Embora tenha sido admitido na Escola Politécnica de Paris, Émile Henry (1872-1894)
abandonou os estudos, decidindo, em vez disso, dedicar-se à propaganda anarquista. No
125 A edição de Maio de 1894 de Père Peinard, publicação anarquista escrita em calão de rua, exibiu a ilustração que o
descrevia como tal.
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início, opôs-se ao uso da dinamite, condenando os atentados de Ravachol porque
mataram pessoas inocentes. "O verdadeiro anarquista mata o inimigo; não explode casas
onde há mulheres, crianças, trabalhadores e criados". Mas a greve dos mineiros de
Agosto de 1892 em Carmaux foi provavelmente o factor decisivo na mudança de Henry
em usar o terrorismo. Quando a empresa de mineração se recusou a negociar, decidiu
que era dever vingar-se dos mineiros, para provar "apenas os anarquistas eram capazes
de se sacrificar".
Henry avaliou a área e, em 08 de Novembro de 1892, colocou a bomba relógio nos
escritórios da empresa mineira Carmaux, na Avenida de l'Opéra, 11, em Paris. A bomba
foi descoberta e levada por um agente para a delegacia localizada na rua des Bons-
Enfants, onde explodiu, matando cinco pessoas. Embora o acto de Henry, apontasse
para a empresa capitalista, pode ser classificado de terrorismo "direccionado", é claro
que, quando a bomba explodiu no prédio, poderia ter ferido ou morto transeuntes.
Considerou essa possibilidade antes de agir – ao contrário de Ravachol, que mais tarde
se arrependeu de ter liquidado pessoas inocentes. No julgamento, Émile Henry disse: "o
prédio era habitado apenas por burgueses; daí não haver vítimas inocentes. A burguesia
como o todo vive pela exploração do infeliz e a burguesia como todo deve expiar os
seus crimes".
A segunda tentativa de Henry foi, de facto, direccionada directamente à burguesia como
todo. Em 12 de Fevereiro de 1894, o atentado bombista o Café Terminus na Gare Saint-
Lazare em Paris mata uma pessoa e feriu mais de vinte, além de causar danos materiais
consideráveis. O atentado bombista foi a resposta às medidas tomadas pelo governo
contra os anarquistas após a explosão do Palais-Bourbon. Henry explicou por que
executou o ataque em massa: "A burguesia não distingue entre os anarquistas... a
perseguição eram massivos... e como é responsável por acções de o único homem,
atacar indiscriminadamente, nós, também, atacamos indiscriminadamente".
Émile Henry foi preso alguns dias depois e executado em 21 de Maio de 1894. A
opinião pública considerou que os crimes eram de louco e os intelectuais anarquistas
condenaram as acções. Maurice Barrès, testemunhou a execução de Henry por
guilhotina, resumiu o problema proposto por acções desse tipo e os meios para os
combater: "Foi erro psicológico executar Émile Henry. Criou nele o destino a que
aspirava... A luta contra as ideias, deve ser travada a nível psicológico e não através de
medidas apenas secundárias [do político e do executor].
O fim da era dos ataques contra os indivíduos foi marcado pelo assassinato de Sadi
Carnot em Junho de 1894. O movimento anarquista foi severamente suprimido sob os
chamados lois scélérates (leis iníquas) passados em 1893-94 e, em 1894, a quantidade
de supostos anarquistas responderam por acusações de conspiração criminosa, entre
figuras-chave do movimento126. A maioria dos doutrinários libertários condenou os
principais ataques da época. À medida que o séc. XIX se aproximava do fim, o
anarquista Émile Pouget (1860-1931) pedia o fim da "propaganda pela acção" por
métodos menos violentos.
Os actos terroristas anarquistas no séc. XIX tinham características muito específicas.
Foram levadas a nível individual e os requisitos logísticos, em termos de financiamento
e treino, eram mínimos. Não existiam redes para elaborar a estratégia de terror a nível
nacional ou internacional, deste modo os terroristas actuavam com base em sentimentos
pessoais. A supressão do movimento de trabalhadores pode motivar um, enquanto outro
pode querer vingar o camarada.
126 A primeira lei iníqua,promulgada em 11 de Dezembro de 1893, visou a imprensa anarquista. O segundo, também
promulgado em 1893, visou grupos libertários. O terceiro (Julho de 1894) considerou o anarquismo, crime.
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O recurso à "propaganda pela acção" começou a assumir dimensões internacionais.
Além dos numerosos atentados à bomba na França, Espanha e Itália, o "idioma das
bombas" espalhou-se para partes do mundo com movimentos anarquistas activos, como
Alemanha, Bélgica e Argentina. A imprensa, pela primeira vez, dedicou ampla
cobertura ao terrorismo anarquista. Daí a discrepância entre o número de vítimas – onze
pessoas foram mortas em França entre 1892 e 1894 – e a extensão da publicidade
resultante.
Com a chegada do novo século, os pensadores libertários no seu todo encetaram a
reconsiderar a eficácia de tais actos de violência. Na Europa e nas Américas, a rebelião
anarquista evoluiu a partir da "propaganda pela acção", com breve incursão na prática
de "repossessão" por parte dos indivíduos – isto é, roubar usando o anarquismo como
justificação – à adopção definitiva da doutrina anarco-sindicalista pelas várias
federações libertárias.
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CAPÍTULO VII
TERRORISMO RUSSO, 1878-1908
Yves Ternon
O terrorismo foi retardatário para o movimento revolucionário na Rússia no final do
séc. XIX início do séc. XX. Os defensores estavam convencidos ser necessário e
incluíram-no no arsenal que variava de propaganda à insurreição armada. Alguns viram
isso como táctico e outros como estratégia mas na opinião geral era simultaneamente de
natureza ideológica, política e ética. O uso raramente foi resultado da decisão pessoal;
foi o resultado de esforço de equipa, que pressupõe conspiração, tomada de decisão e
preparação prolongada. O homem ou mulher que o grupo revolucionário designado para
atacar era meramente a pessoa na melhor posição para o fazer. Todos os que
participavam sabiam da acção terrorista e assumiam grande risco e a morte era o
resultado provável. E a polícia czarista formidavelmente eficaz: as tentativas falhavam
com mais frequência do que aquelas que conseguiam. Em última análise, o efeito
desejado – aumentar a consciência do povo russo – não foi alcançado. Os assassinatos
políticos não inflamaram a faísca que abrasou a Rússia e fizeram pouco para fazer com
que os que estão no poder promulgassem reformas. Pelo contrário, conduziam a
represálias cada vez mais severas. No entanto, ao mesmo tempo, o governo czarista foi
abalado pelas repetidas greves terroristas; embora estes não fossem a causa directa do
colapso súbito em 1917, certamente contribuiu.
Precisamos ter cuidado ao interpretar a história desse período. Ao procurar escrever a
história linear do movimento revolucionário russo e retratar os bolcheviques como
únicos herdeiros legítimos, os historiadores soviéticos distorceram fotografias apagando
qualquer coisa que não reflectisse a doutrina. No início, o movimento social-democrata
opunha-se ao terrorismo, enquanto o principal adversário político, o Partido Socialista
Revolucionário, muitas vezes apoiou o seu uso. De facto, o terrorismo como meio de
luta foi usado em apenas em dois momentos no movimento revolucionário russo, e
depois por dois grupos que faziam parte da mesma sequência: Narodnaya Volya (A
Vontade Popular) e o Partido Socialista Revolucionário, ambos surgiram por causa do
movimento revolucionário russo dividido em duas facções (o segundo do qual deu
origem ao Partido Social-Democrata). Quanto aos assuntos de doutrina, o primeiro era
que o Partido Socialista Revolucionário deve ser visto como grupo de terroristas. A
segunda era que a oposição pré-social-democrata ao czarismo deve ser reduzida ao mero
terrorismo, embora, de facto, adoptasse muitas formas. Os niilistas; os propagandistas
que "foram ao povo"; os primeiros anarquistas russos: estes não eram terroristas. Os
camponeses revoltosos; trabalhadores insurgentes; soldados e marinheiros rebeldes: não
eram terroristas. Os teóricos do socialismo e da revolução russos raramente defendiam o
terrorismo como melhor maneira de derrubar o Czar – e quando, como Mikhail
Bakunin, o fizeram, as palavras não correspondiam aos actos. E os terroristas russos
eram ateus: sacrificaram as suas vidas pelos outros, sem expectativa de qualquer
recompensa no próximo mundo.
O movimento revolucionário russo foi a vasta agregação, onde diferentes teorias e
ideias levaram a caminhos distintos, por sua vez rapidamente bifurcaram-se, depois de
seguirem às vezes vias sinuosas. Esses caminhos estavam alinhados com grupos,
associações e círculos cujos membros se movimentavam facilmente de uma para outra
organização, estimulados por crenças do momento. Algumas dessas pessoas ficaram
longe do terrorismo; outros aplicaram-no ou largaram-no, às vezes condenavam o seu
uso. A carreira de o terrorista pode acabar facilmente com a morte, a deportação ou
exílio. Muitos revolucionários nunca participaram em acções terroristas. Vera
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Zasulich127 – iniciou o período do terrorismo russo com acto espontâneo, não ordenado
pelo grupo – antiga camarada de Sergei Nechayev mais tarde tornou-se propagandista
populista. Após o ataque de 1876 contra Dmitry Trepov, governador-geral de São
Petersburgo, opôs-se ao terrorismo de Cherny Peredel (Divisão Negra), precursor do
Partido Social-Democrata, do qual foi filiada fundadora. Permaneceu inimiga
determinada do terrorismo, depois juntou-se à facção menchevique do partido.
Em contraste, a carreira de Sofia Perovskaya deu exemplo de evolução em direcção ao
terrorismo. Perovskaya jovem aristocrata tornou-se na primeira propagandista, depois
terrorista; permaneceu firme nas crenças até à morte no cadafalso por fazer parte no
assassinato do Czar Alexandre II em 1881.
A orbitar à volta dos terroristas havia espiões, provocadores e traidores, pagos ou
controlados pela polícia e muitos ideólogos – incluindo niilistas e os primeiros
anarquistas – que pediam o uso do terror, mas não o praticavam. O historiador do
terrorismo russo tem o mundo complexo para entender. Essa complexidade reflecte a
mentalidade dos protagonistas tanto quanto os próprios eventos.
Ainda assim, o tema central do terrorismo russo persiste ser a luta contra o despotismo
czarista; as convicções eram as mesmas daqueles que mais tarde os terroristas
defenderam no séc. XX. Em oposição ao terrorismo de estado que gozava total
impunidade, ofereceram justiça autêntica e imanente, propondo-se desdobrar contra
aqueles que incorporaram esse terrorismo, a quem o condenaram como o carrasco do
povo. Perguntas legítimas podem ser levantadas sobre o direito moral de adoptar tais
acções, mas não podem ser condenados como assassinos indiscriminados.
Este relato do terrorismo russo não procura justificar os crimes nem reabilitar aqueles
que os cometeram. Pretende-se relacionar o que ocorreu durante esse período na Rússia
e analisar o movimento revolucionário nesse país – movimento marcado pela
diversidade – e o papel que o terrorismo desempenhou nela.
OS POPULISTAS
Com a historiografia ordenada por Estaline quebrou a continuidade do movimento
revolucionário russo. Dividiu em revolucionários "positivos" (os precursores do Partido
Social-Democrata) e revolucionários "negativos" (colocou-os no cesto que incluiu todos
os terroristas). No Ocidente, por outro lado, alguns historiadores visavam criar a
tradição liberal que se opunha à tradição revolucionária populista – acusada de ter
perdido a Rússia para a possibilidade de democracia. Tais pontos de vista contraditórios
não podem ofuscar o facto de, entre 1848 e 1881, o socialismo russo era de natureza
populista e esse populismo apoiava-se no campesinato russo. A principal prioridade
para os vários grupos revolucionários russos foi a comunidade camponesa: a obshchina
ou mir. A comuna camponesa era o legado de antigasestruturas eslavas. Havia dois
lados – a ambivalência que nenhum movimento revolucionário jamais conseguiu
superar. Por um lado, o mir estava enraizado na servidão e este estado feudal foi
impresso na mentalidade camponesa. Por outro lado, era igualitário e continha as
sementes do socialismo campesino.
A Revolução Russa de 1917 foi a culminação lógica de movimento cuja primeira
manifestação pública foi o levantamento dezembrista de 14 de Dezembro de 1825, que,
em certa medida, foi resultado das guerras napoleónicas: jovens oficiais russos em Paris
durante a ocupação aliada de 1814 entraram em contacto com as ideias da Revolução
Francesa. Um deles, Pavel Ivanovich Pestel, foi o primeiro revolucionário a propor a
mudança radical no sistema czarista – de base republicana, socialista e fundada na
127 Ver Quatre Femmes Terroristes Contre le Tsar: Vera Zassoulitch, Olga Loubatovitch, Élisabeth Kovalskaïa, Vera
Figner.
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solidariedade dentro da comuna camponesa. Pestel era radical na escolha de meios para
esse fim: a favor da eliminação da família imperial. Quando a insurreição dezembrista
falhou foi condenado à morte, Pestel expressou apenas um arrependimento: "queria
colher antes de ter semeado".
Este primeiro golpe contra o despotismo despertou a elite intelectual [intelligentsia]
russa. Apesar disso, o reinado de trinta anos do Czar Nicolau I (1825-55), que seguiu o
levantamento dezembrista, foi notável pela repressão implacável. O discurso – falado e
escrito – examinado pela temida e formidável polícia política da Terceira Secção; as
ideias de liberdade raramente podiam ser expressas, excepto fora do país. Com Nicolau,
houve apenas julgamento político, em 1849: o dos Petrashevtsy, cuja inspiração era
eslavófilo e utópico fourierista. A "semeadura" foi feita por emigrantes. O juramento
feito por Alexandre Herzen e Nikolai Ogarev em 1840 para dedicarem as vidas à causa
da liberdade podem ter sido ajuramentados nas Colinas do Pardal de Moscovo, mas
seria cumprido no exterior.
Herzen foi o fundador do populismo russo. Misturou o pensamento do Iluminismo com
os princípios dos Dezembristas. Colocou diante dos intelectuais russos [intelligentsia] a
questão que permaneceria central às reflexões: os servos deveriam ser libertados com ou
sem a terra? Aqui distanciou-se dos eslavófilos e utopistas franceses, que representavam
as duas tendências originais no socialismo russo anterior a 1848. Herzen pensou que, na
Rússia, através da obshchina, seria possível desenvolver a marca do socialismo
especificamente russa e ignorar a fase da revolução burguesa para a qual os
levantamentos europeus de 1848 deveriam ser a preparação. Para Herzen, a única
solução era a liberdade, juntamente com a terra: a terra e liberdade. Este foi o tema, com
a ajuda de Ogarev, desenvolveria no periódico Kolokol (O Sino), que desde 1857 foi
impresso em Londres e amplamente distribuído na Rússia. A Guerra da Crimeia de
1853-56, na qual a Rússia enfrentou a coligação anglo-franco-otomana, terminou em
derrota para a Rússia. A reforma da sociedade era questão de urgência: essa foi a
conclusão retirada dessa derrota do novo Czar, Alexandre II (Nicolau I, pai, morreu em
1855). A servidão foi abolida pelo Édito de Emancipação de 19 de Fevereiro de 1861128.
Os camponeses podiam comprar a terra onde trabalhavam. Herzen convidou a
intelligentsia a explicar às pessoas do país, mesmo se essas aquisições falissem os
camponeses, o custo seria menor do que a sublevação. Exortou estudantes universitários
a "irem ao povo" para mostrar que não era suficiente ganhar terra e liberdade: também
tinham de ter instrução. Mas Herzen tinha perdido contacto com a realidade: no campo,
as primeiras pessoas que podiam despertar eram aquelas que sabiam ler, e essas pessoas
eram membros de seitas.
As duas abordagens – intelectuais e seitas – eram antagónicas. As raízes do campesinato
russo foram mergulhadas no espírito da Rússia Velha: nacionalista, religiosa,
reaccionária, xenófoba, anti-semita e bárbara. Como Herzen não entendia esse conflito,
a influência diminuiu. Continuou a dar prioridade à reforma social e não à profunda
reforma política exigida pelo movimento populista que tinha iniciado.
Nikolai Gavrilovich Chernyshevsky delineou a acção que os populistas aproveitariam.
Foi o primeiro contribuinte, então editor do Sovremennik (Contemporâneo), antigo
jornal fundado por Pushkin em 1836; na década de 1860, era espaço para o liberalismo.
Chernyshevsky abreviou a plataforma numa única pergunta: o socialismo poderia ter
sucesso na Rússia antes do desenvolvimento do capitalismo? Dito de outro modo, foi
possível evitar destruir a tradição colectivista da comunidade camponesa russa? Alegou
128 As datas neste capítulo são as do calendário juliano, que está por trás o calendário gregoriano por doze dias no séc.
XIX e por treze dias no séc. XX. As datas dadas no estilo do calendário gregoriano são indicadas pela notação "(novo
estilo)".
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ser inútil eliminar a obshchina apenas para a reconstruir após a vitória do socialismo.
Em 1859, Chernyshevsky sabia que esse curso pacífico não levaria a nenhum lugar. A
"Carta das Províncias" dirigida a Herzen – anónima, mas provavelmente escrita por
Nikolai Dobroliubov – concluiu: "Fez todo o possível para ajudar a resolver a solução
pacífica do problema. Agora mude de tom! Não deixe o Sino chamar para a oração!
Deixe-o ser o toque de rebate! Chama a Rússia a pegar nos machados!"129 A série de
pequenos grupos clandestinos unidos à volta de Sovremennik opuseram-se à tendência
reformista emergente entre a nobreza. Ao declarar o desejo de democracia, esses
primeiros populistas procuraram criar a organização revolucionária forte e defenderam o
uso da violência. O romance de Chernyshevsky, o Chto Dyelat? (O que é preciso
fazer?) – escrito em 1862 na Fortaleza de Pedro e Paulo, onde o escritor estava preso –
tornar-se-ia a bíblia da jovem intelectualidade populista. O herói da novela é
determinado inimigo do absolutismo e propõe a criação de cooperativas.
Dobroliubov, morreu em 1861 aos vinte e cinco anos, tinha declarado anteriormente as
opiniões expostas na visão profética de Chernyshevsky. Sublinhou a importância de
reformar a mentalidade política e a necessidade de se deslocar do mundo dos sonhos
exemplificados na novela Oblomov de Ivan Alexandrovich Goncharov, de 1859, para o
mundo da acção, bem como a necessidade de pensar antes de actuar. Ao efectivar a
ruptura entre gerações – entre pais e filhos – Dobroliubov e Chernyshevsky permitiram
aos intelectuais tomassem o caminho das pessoas.
Os primeiros activistas populistas vieram das universidades. Em 1853, os estudantes
não eram mais de três mil ao longo do império russo, mas o mundo académico foi
transformado após a morte de Nicolau I. Os portões das universidades foram abertos e
as primeiras mulheres admitidas. Os estudantes fizeram reuniões e publicaram jornais.
A consciência partilhada surgiu e foram discutidos assuntos políticos. A realização da
primeira manifestação, em 1861, levou ao fecho de várias universidades vistas como
viveiros de subversão. Estas foram reabertas logo depois, no entanto, a calma
prevaleceu até 1869. A primeira organização Zemlya i Volya (Terra e Liberdade),
fundada em 1861 pelo jovem nobre, N. A. Serno-Solovyevich, foi o primeiro elo da
cadeia da tradição populista. O lema ecoou a frase de Ogarev, cuja resposta à pergunta
"O que as pessoas precisam?" Era "Terra e Liberdade". O manifesto da Zemlya i Volya
foi publicado em 1862 em Molodaya Rossiya (Jovem Rússia). Agora, a Rússia estava
no período revolucionário. A Zemlya i Volya, a primeira organização clandestina na
Rússia desde os Dezembristas, foi o ajuntamento de pequenos grupos que surgiram nas
províncias pela primeira vez. Vários desses grupos afastaram-se da tradiçãopopulista e
adoptaram posições anarquistas ou libertárias. Em Março de 1863, a associação de
estudantes de Kazan em Moscovo pediu aos membros que fossem em marcha para o
povo. No decorrer da peregrinação, os jovens deram folhetos, mas não estabeleceram
nenhum contacto com as pessoas. Ainda assim, o comité progressista para provocar a
revolta camponesa na Rússia dependia desse grupo. Os conspiradores foram
denunciados à Terceira Secção e foram detidos. O esmagamento do exército russo pela
insurreição progressista destruiu as esperanças despertadas pelo Édito de Emancipação
de 1862. O desejo de mudança do Czar foi gasto com as reformas administrativas (a
criação do sistema zemstvo – assembleia local) e as reformas judiciais empreendidas em
1864 e as autoridades envolveram-se em russificar o império.
A organização de Nikolai Ishutin, que durou de 1864 a 1866, estava mais directamente
ligada à perspectiva revolucionária O que se faz? de Chernyshevsky, "O terrorismo
[russo] aprofundou as raízes nessa amálgama do maquiavelismo revolucionário e do
129 Venturi, Les intellectuels, Le peuple et la Révolution, 2: 341.
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populismo em pleno desenvolvimento"130. O maquiavelismo dos seguidores estudantis
de Ishutin defendeu que o movimento revolucionário não era suficientemente maduro
para substituir o estado e apenas a execução do Czar autocrático desencadearia a
revolução social. Formaram a sociedade secreta conhecida como A Organização. No
centro havia a célula chamada Inferno, cujo objectivo era levar a cabo o terrorismo
contra o governo e os proprietários. Os membros do Inferno eram ascéticos que
quebraram todos os laços com o mundo exterior e viviam em refúgio profundo – ao
mesmo tempo vigiavam atentamente o resto da Organização. A noção de ataque ao
Czar estava a ganhar terreno. O primo de Ishutin Dmitry Karakozov anunciou aos
amigos que tinha decidido matar Alexandre II. Os amigos exortaram-no a mudar de
ideia, argumentam que o povo não estava pronto: viam o Czar como figura mítica e,
seguiam o Édito de Emancipação, viram-no como libertador. Karakozov ignorou-os e,
em 04 de Abril de 1866, disparou contra Alexandre II quando entrava na carruagem. A
pistola foi desviada por um camponês bêbado que estava a passar. Este foi o primeiro
ataque de homem do povo contra o imperador de todas as Rússias. A reacção,
desencadeada pelo "carrasco" de Varsóvia, General M. N. Muraviev, foi violenta: o
Terror Branco rasgou as raízes ainda frágeis do movimento revolucionário do solo da
intelligentsia russa. Assim, de 1855 a 1875, os primeiros vinte anos do reinado de
Alexandre II, o movimento revolucionário, rico em ideias, proclamações e planos, ainda
estava a tentar encontrar o caminho e não teve sucesso em permear o campesinato. Este
período viu o crescimento do niilismo e do movimento anarquista – duas tendências
distintas dentro do populismo – bem como a aparência de Nechayev.
NIILISMO E ANARQUISMO
O niilismo é movimento filosófico e literário desenvolvido na década de 60 através do
jornal de Dimitri Pisarev, Russkoe Slovo (A Palavra Russa). A ideia por trás disso é o
individualismo absoluto: "a negação, em nome da liberdade individual, de todas as
obrigações impostas ao indivíduo pela sociedade, família e religião"131. O niilismo
atacou tudo o que faltava base na razão pura. Turgenev cunhou o termo "niilista", com
intenção polémica, no romance de 1862, Pais e Filhos, cujo herói Bazarov condena o
preconceito e acredita apenas na razão e na ciência. Os populistas não eram irmãos nem
descendentes de Bazarov, que desprezavam o povo. Os niilistas não acreditavam em
nada; não reconheceram nenhuma autoridade e rejeitaram todos os valores aceitos. Os
revolucionários, por outro lado, acreditavam nas pessoas e lutaram pelos direitos
humanos. O niilismo levou ao radicalismo político; estava entre as fontes do
anarquismo russo e do jacobinismo do populista Pyotr Tkachev.
Como o liberalismo e o socialismo, o anarquismo era a resposta à centralização imposta
pelo desenvolvimento do capitalismo, mas oferecia uma terceira via. Os seguidores
pediram a revolução que abolisse toda autoridade e criasse a sociedade baseada na
cooperação voluntária entre indivíduos livres. O anarquismo foi inspirado por Bakunin;
a doutrina influenciada por Proudhon: supressão do estado, colectivização dos meios de
produção e preservação da liberdade individual. Bakunin viu a revolução total como
enorme insurreição – tanto nas cidades como no campo – de todos os oprimidos, que
não tinham nada a perder senão dos grilhões. Na Rússia, o anarquismo era produto do
despotismo de Nicolau I, mas os antecedentes estvanas seitas religiosas. As ideias que
se aproximavam do anarquismo também eram espalhadas pelos eslavófilos, contra o
estado burocrático e a centralização, bem como através do socialismo de Herzen, que se
recusava a sacrificar a liberdade individual por causa das teorias abstractas. Apesar
130 Ibid., 592.
131 Kravchinsky, Stepniak, 16.
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desta rica tradição camponesa russa, no entanto, nenhum movimento revolucionário
anarquista se desenvolveu na Rússia até o séc. XX132. Foi o episódio de
"Nechayevismo" que causou o mal-entendido levando-o à associação do populismo com
o niilismo e o anarquismo.
"A importância de Nechayev não deve ser avaliada pela influência – breve, esporádica e
de curta duração – mas pela visão aguçada e profética da luta revolucionária"133.
Posicionado na confluência do populismo, anarquismo e niilismo, Nechayev proclamou
a Ditadura de o pequeno círculo de revolucionários. Era figura importante na revolução
russa, abrindo o capítulo de acção na revolução e faz do terrorismo a via adoptada
destas medidas. Na forma extrema, o "Catecismo Revolucionário" (ver epígrafe do
Capítulo V) Nechayev escreveu com Bakunin em 1869 onde expressam as ideias que se
desenvolveram no círculo de Ishutin. Exige acção e ridiculariza a poltrona dos
doutrinários e produtos da corrupção universitária que pressionaram a revolução, mas
não conseguiram executá-la134.
Foi Nechayev quem induziu Bakunin a aceitar o terrorismo nos Princípios da
Revolução como forma de preparar o terreno para a revolução. Quando Nechayev
voltou a Moscovo em 1869, formou o pequeno grupo conhecido como O Machado, cujo
único gesto simples foi o assassinato de um dos próprios membros: o estudante
chamado Ivanov, sem prova foi acusado de ser informador. Para escapar da justiça na
sequência desse crime, Nechayev fugiu para a Europa. Extraditado em 1872 e preso
perpetuamente, permaneceu em contacto com membros do movimento revolucionário
populista. Após o assassinato de Ivanov, Bakunin percebeu que tinha sido enganado por
Nechayev, a quem acusava de ser vigarista e chantagista e o considerava extremamente
perigoso. E perigoso era – como Shigalov em Demónios de Dostoyevsky (também
traduzido como Os Possuídos), que poderia defender todos e quaisquer métodos em
nome da liberdade irrestrita. Nechayev não foi o precursor dos terroristas russos. A
doutrina de que tudo é permitido deu origem às revoluções totalitárias do séc. XX, nas
quais certos indivíduos iriam introduzir o terrorismo de estado e usar ideias para
justificar milhões de crimes. Por sua vez, os terroristas russos pagavam logo pelos
crimes. Nechayev anunciou a ditadura defendida por Pyotr Tkachev. Tkachev foi o
primeiro a tornar conhecido o materialismo histórico de Marx na Rússia e a introduzir
no debate em curso nos círculos populistas. Como discípulo de Chernyshevsky,
considerou ser o pai fundador do Partido Social Revolucionário na Rússia, estava em
contacto com membros dos grupos que actuavam em São Petersburgo na década de 60,
incluindo Karakozov e Nechayev. Formou a visão política centrada na ideia de que a
revolução social seria possível na Rússia apenas se o desenvolvimento docapitalismo
fosse interrompido. Ao derrubar aqueles no poder, seria possível impedir a Rússia de
seguir os passos dos países ocidentais. A revolução ocorreria em duas fases; a primeira,
com certeza, iria destruir, mas a segunda iria construir. Esses duas fases poderiam ser
feitas apenas por organização hierárquica homogénea, disciplinada, agindo de acordo
com o plano predeterminado; apenas essa organização poderia levar as pessoas com ela.
Aqui, a visão de Tkachev era contrária ao individualismo de Bakunin. Mas o
movimento populista, assombrado pelos excessos de Nechayev, não aceitaria mais o seu
jacobinismo como o anarquismo de Bakunin. Os populistas queriam "ir ao povo". E as
correntes os levariam para lá.
132 Ver Avrich, Russian Anarchists.
133 Cannac, Netchaïev, 169.
134 Venturi, Les Intellectuels, le Peuple et la Révolution, 636.
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OS PROPAGANDISTAS
Quando o movimento populista, gravemente afectado pelo Terror Branco, ressurgiu no
início da década de 70, inspirou-se noutro ideólogo: Pyotr Lavrov (1823-1900). A
Cartas Históricas, escritas sob o pseudónimo Mirtov, explicavam aos estudantes que
deveriam ir às aldeias; misturar-se com as pessoas para ensinar-lhes o socialismo. Mas
não devem esquecer os trabalhadores, porque a solidariedade dos trabalhadores era
fundamental. Lavrov também defendeu a revolução social realizada por fases. A
primeira fase seria treinar activistas socialistas revolucionários entre a intelligentsia, que
então iria ao campo para reunir as melhores forças entre as pessoas. Expôs este
programa no periódico Vperyod (Avante), cuja primeira edição foi publicada em
Zurique em Agosto de 1873.
Assim, o movimento revolucionário russo reviveu na década de 70. A Comuna de Paris
levou os socialistas russos a deixar os estudos e grupos de discussão e viajar para as
oficinas e aldeias – por outras palavras, deslocarem-se para a acção. Os populistas
podem ter quebrado com Bakunin e Tkachev, mas não foram, de forma alguma,
discípulos intransigentes de Lavrov. Eram jovens e impacientes e ansiosos para começar
a trabalhar imediatamente em nome de pessoas. O grupo inicial foi formado por Mark
Natanson na Academia de Medicina e Cirurgia de São Petersburgo. Quando Natanson
foi preso em Novembro de 1871, o lugar foi ocupado pelo Nikolai Chaikovsky, de vinte
anos, (1851-1926). Os chaikovtistas, como eram chamados, tinham como único
objectivo divulgar entre os camponeses e os trabalhadores. Foram os primeiros a tornar
a ética prioridade na acção revolucionária: queriam viver os ideais; aspiravam à pureza
e estavam prontos para o sacrifício final. Chaikovsky pediu-lhes para serem "tão limpos
e claros como o espelho".
Os chaikovtistas espalharam-se nas províncias, bem como em Moscovo, Odessa e Kiev.
Trinta e sete províncias foram "contaminadas" pela propaganda revolucionária. O grupo
assumiu a forma final em 1871 com a chegada de Sofia Perovskaya, que se encarregou
da livraria e da propaganda; Dimitri Klements lidava com distribuição de livros; e as
irmãs Kornilov. Marcado pelo papel que as mulheres exerceram. A luta pela
emancipação das mulheres tinha começado em Zurique, onde centenas de estudantes
vítimas de repressão chegavam como refugiados – particularmente mulheres jovens,
impedidas pelas universidades russas. Para interromper essa emigração, o governo russo
emitiu o ukaze [decreto] em 1873 a declarar que qualquer sujeito russo que não deixasse
imediatamente Zurique era fora da lei. Os estudantes regressaram em massa,
proporcionando o movimento revolucionário com corpo de activistas. No "Verão
Louco" de 1874, centenas, talvez milhares de jovens, sozinhos ou em pequenos grupos,
deixaram as cidades e viajaram de aldeia em aldeia, especialmente nas áreas onde as
grandes revoltas lideradas por Stenka Razin e por Pugachev, em 1670 e 1773,
respectivamente, começaram, dirigindo-se para Sul e seguindo os grandes rios. Queriam
ensinar as pessoas, mas também para ver como viviam e aprender com elas; queriam
aprender o negócio e colocá-lo numa aldeia. Esta cruzada entre as pessoas ocorreu
abertamente; na verdade, não poderia ser clandestino em ambiente onde nenhum
segredo poderia ser mantido. O governo poderia ter facilmente destruído através de
prisões em massa. Deste modo, nasceu a geração inteira de revolucionários.
A SEGUNDA ZEMLYA I VOLYA (Terra e Liberdade)
A cruzada dos propagandistas entre os camponeses estava condenada ao fracasso. Não
tinham percebido que a cultura era contrária à do campo e a única coisa que tinham em
comum com o povo era a língua. O romance Solo Virgem de Turgenev em 1877
explicou-lhes isso. Tal era a ambiguidade de "ir ao povo". O carácter colectivista e
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igualitário do mir tinha desviado os populistas; embelezaram-no com toda a gama de
virtudes libertárias. Na verdade, foi infiltrada pelas seitas do Antigo Crente; era um
mundo fechado, centrado na fé e superstições; e o mito do Czar como Redentor estava
tão vivo como tinha sido no tempo de Pugachev.
Só uma vez tiveram sucesso: em Chigirin, perto de Kiev. Três activistas tiveram a ideia
de criar o manifesto espúrio em nome do Czar para os camponeses acreditarem que o
imperador tinha acedido às suas exigências e incentivá-los a formar a organização para
lutar contra os proprietários e sitiar as suas propriedades135. A "legião secreta" que
formaram ganhou cerca de 2.000 recrutas antes de ser exposta em 1877.
Entre os trabalhadores, por outro lado, a propaganda difundida na década de 60
floresceu na década de 1870. Este sucesso foi antes de mais o resultado da mudança
causada pela transformação do corporativismo (legado do camponês artel [artesão])
para abordagem baseada em sindicatos; aqui, os propagandistas ajudaram os
trabalhadores a propagar a mentalidade rural. O primeiro sindicato de trabalhadores de
Kiev foi destruído, mas reconstituído em Zurique como a Organização Revolucionária
Social de Toda a Rússia, cuja acção foi focada em propaganda e agitação entre os
trabalhadores e cujo objectivo era criar a estrutura que pudesse unir movimentos
espontâneos. Os membros foram presos quando voltaram a Moscovo em 1875.
O fracasso da propaganda entre os camponeses e a destruição das organizações de
trabalhadores fizeram com que os populistas repensassem a metodologia e se tornassem
em partido que operasse em segredo rigoroso. Em São Petersburgo, o grupo inicial de
chaikovtistas sobrevivente organizou-se em torno de Mark Natanson, fugido do exílio
interno, a esposa, Olga e Alexei Oboleshev. Juntou-se-lhes Alexandr Mikhailov, de
geração diferente, jovem demais para "ir ao povo". Para enfatizar a natureza
clandestina, os conspiradores autodnominaram-se Trogloditas. Reuniram-se com grupos
com base nas províncias e ficou claro arquitectar o partido genuíno. A plataforma do
Partido Social Revolucionário, tomou o nome do antigo Zemlya i Volya, demorou a ser
formulado. Os Trogloditas retomaram as ideias do movimento da Rússia Antiga do
raskol, ou cisma, e uma vez que entraram em contacto com as seitas, começaram a pesar
as possibilidades do terrorismo agrário. Imaginavam revoltas camponesas inflamadas. A
plataforma foi amiúde revista antes da versão final na Primavera de 1878. O partido
defendeu o uso do terror político para perturbar o governo. O facto é, porém, no período
1876-78, Zemlya i Volya não contou com mais de trinta e cinco membros.
Em 1875, tomaram medidas para libertar camaradas presos, incluindo o futuro
anarquista Pyotr Kropotkin (1842-1921). E em 1875-77, havia centenas para serem
libertados. Algumas dessas operações foram organizadas por Sofia Perovskaya. No
Vperyod, Lavrov publicava coluna regular a detalhar as fugas. Embora as operações de
fuga fossem sucesso, as manifestações tiveram de ser rapidamente descartadas após a
prisão em massa de manifestantes na Praça Kazan em São Petersburgo em Dezembro de
1876. Os manifestantesforam julgados e condenados em Janeiro de 1877. Como
aqueles processos, o julgamento de 193 membros do partido, decorreu de Outubro de
1877 a Janeiro de 1878, ajudou a informar o público sobre a coragem e o altruísmo
desses filhos e filhas do povo russo. Embora tenham sido mantidos à porta fechada, as
audiências melhoraram o prestígio dos revolucionários na sociedade russa.
135 ● Sucintamente este feito que se pode enquadrar na acção psicológica porque destinou-se a influenciar as atitudes
e o comportamento dos indivíduos, por artifício ou decepção. Quando esta acção é usada pelo estado serve também
para obter apoio da população para desmoralizar e captar o inimigo e fortalecer o moral das próprias forças. Também
pode se incluir aqui o panfleto, Protocolos dos Sábios de Sião, foi uma falsificação criada pela polícia secreta do Czar
Nicolau II, para reforçar a sua posição onde eram apresentados alguns oponentes como aliados de gigantesca uma
conspiração mundial.
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Ao mesmo tempo, o governo organizava o julgamento dos propagandistas. O primeiro,
de cinquenta membros da Sociedade de Moscovo presos em 1874, ocorreu em
Fevereiro-Março de 1877. Ao contrário dos julgamentos anteriores, este foi público, o
que permitiu assistência russa ver esses jovens estarem preparados a fazer sacrifícios.
"Os propagandistas não queriam nada para si. Personificaram a mais pura auto-
abnegação... Se não pudesse mudar [a sociedade], deveria morrer. E outro já lhe tinha
tomado o seu lugar"136, escreveu Steve Sergei Mikhailovich Kravchinsky, também
conhecido como Stepniak.
A imprensa russa clandestina também manteve o público informado sobre a condição
dos detidos na prisão e sobre a violência policial; a primeira dessas gráficas foi criada
em São Petersburgo por Aron Zundelevich. Um incidente na prisão desencadeou o
movimento de protesto: o manifestante da Praça Kazan, Alexei Bogoliubov, foi
espancado sob ordens do governador-geral de São Petersburgo, Trepov, porque não o
tinha saudado quando visitou a prisão. A Organização considerava acção contra
Trepov, mas, sem contar a ninguém, a rapariga, Vera Zasulich, foi ao palácio, juntou-se
à multidão de peticionários e disparou ferindo-o. Rapidamente julgada em tribunal
criminal. A sala estava lotada de ministros do governo, generais e escritores, entre
outros espectadores. O advogado de defesa de Zasulich, Piotr Alexandrov, procurou
julgar o governo: denunciou a crueldade de Trepov e justificou a acção da cliente: "O
atormentador de Bogoliubov não se queixa dos gemidos de dores físicas, mas as do
espírito humano ultrajado. Foi cometido sacrilégio. O sacrifício vergonhoso foi
praticado. Solenemente preservado, foi organizado o martírio russo [de Bogoliubov]137".
Vera Zasulich foi absolvida por unanimidade. Os espectadores aplaudiram o veredicto.
E uma vez libertada, a jovem conseguiu esquivar-se dos polícias que estavam sob as
ordens do Czar para a prender quando saísse do tribunal.
Toda a Europa, não apenas na Rússia, seria abalada pelo tiro disparado da pistola de
Zasulich. A "temporada de ataques" foi desencadeada pela acção. "As tentativas de
assassinato na Rússia foram algo entre guerra partidária e acção anarquista; foram a
tentativa – pelo menos parcialmente bem-sucedida – de desencadear a luta política e
abrir o caminho para a revolução; era a manifestação de "propaganda pela acção" e não
através de actos de protesto isolados. Em suma, o "terrorismo" russo não era senão o
aspecto da formação de o partido socialista-revolucionário e do início da crise
generalizada na sociedade russa"138.
Os ventos do terrorismo sopraram do Sul: o terrorismo russo tomou forma organizada
na Ucrânia. Kiev viu o estabelecimento do primeiro Comité Executivo do Partido
Social Revolucionário, criado por Valery Ossinsky em Fevereiro de 1878, decidiu
perturbar o governo ao eliminar os meios de opressão e traidores. O manifesto foi
distribuído em várias cidades russas; por baixo, tinha a chancela – um machado, um
punhal e um revólver entrelaçados – e por cima, a inscrição: Comité Executivo do
Partido Social Revolucionário. O comité ordenou a execução de Alexei Matveyev,
reitor da universidade e Baron Hegking, subchefe da polícia. Em Agosto do mesmo ano,
em São Petersburgo, Stepniak esfaqueou o general Mezentsev, chefe da Terceira
Secção, enquanto o cúmplice Alexandr Barannikov disparou contra o ajudante de
campo de Mezentsev; os dois fugiram na carruagem conduzida por Adrian Mikahilov.
O ataque ocorreu dois dias após a execução do terrorista Kovalsky em Odessa. "Uma
morte por outra morte" escreveu Stepniak, que conseguiu escapar numa carruagem
rápida. Stepniak era antigo membro dos chaikovtistas; procurou refúgio na Europa,
136 Kravchinsky, Stepniak, 50–51.
137 Bienstock, Histoire du Movement Révolutionnaire en Russie, 1: 204–5.
138 Venturi, Les Intellectuels, le Peuple et la Révolution, 966.
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onde em 1876 participou do levantamento na Herzegovina e depois na revolta na
província de Benevento, Itália, liderada pelos anarquistas Carlo Cafiero e Errico
Malatesta (ver capítulo VI). Depois regressou à Rússia e fez contacto com o partido
Zemlya i Volya. O governo emitiu o comunicado deste "grupo de indivíduos perversos"
e criou a comissão especial composta pelo ministro da justiça, ministro do interior e
chefes da Terceira Secção e da polícia. A ukaze de 8 de Agosto de 1878 autorizou a
polícia a prender quem quisesse.
Desde o início, o Partido Social Revolucionário foi dividido sobre a questão do
terrorismo. No jornal clandestino, Zemlya i Volya, Klements expressou preocupação em
ver que os terroristas forçavam a mão do partido, apesar de terem sido caracterizados
como equipa de protecção. Mas a maioria dos activistas partidários sentiu que a
repressão do governo lhes deixou a única opção: espalhar o terrorismo. O partido
passou da conspiração para a revolução e o assassinato político parecia o único meio de
autodefesa. No início de 1879, o Comité Executivo do Sul foi dissolvido: Ossinsky e o
seu grupo foram presos e, em Maio, os que foram encontrados na posse de armas foram
enforcados após julgamento sumário. Essas prisões não acabaram com as tentativas de
assassinato: em 09 de Fevereiro de 1879, Grigory Goldenberg matou o governador de
Kharkov, Evgeny Kropotkin (primo do príncipe anarquista do mesmo nome); em
Março, o Coronel da polícia Knoop foi morto em Odessa; o espião Reinstein foi
executado em Moscovo; e em 13 de Março em São Petersburgo, Leonid Mirsky
disparou contra o novo chefe da Terceira Secção, o general Boris Drenteln, mas falhou
e fugiu. O partido criou edições clandestinas e decidiu recorrer ao assalto à mão armada
para financiar as actividades; estas foram as primeiras "expropriações".
Após a tentativa fracassada de Mirsky, Alexandr Soloviev decidiu assassinar o Czar.
Deveria agir por conta própria, mas pediu o conselho de dois líderes do partido,
Kviatkovsky e Alexandr Mikhailov, hesitaram antes de ceder à determinação do jovem.
Em 02 de Abril de 1879, quando Alexandre II saiu para a caminhada matinal, Soloviev
disparou seis tiros de revólver no Czar, mas falhou e foi preso. Na prisão, tentou
suicidar-se com veneno; rapidamente tratado sobreviveu para ser julgado. Durante o
julgamento fez longa declaração onde esboçou a sua carreira: "Nós, os socialistas
revolucionários, declaramos guerra ao governo". Em 28 de Maio, Soloviev foi
enforcado diante da multidão, incluindo a imprensa internacional. Num breve trabalho
publicado anonimamente em Genebra, Pyotr Kropotkin descreveu o dia da execução:
"As cidades murmuraram. E lá fora, nas vastas planícies regadas pelo suor do
trabalhador ainda escravizado, nessas aldeias sombrias onde a pobreza extrema sufoca
toda a esperança, os tiros de revólver de Soloviev tornaram-se a causa de agitação
abafada: osestrondos de insurreição – o precursor da revolução – já deveriam ser
ouvidos"139.
Na verdade, nada disso ocorreu; como de costume, o governo respondeu a este acto de
terrorismo ao instituir o reino de terror. Em seis regiões onde o movimento
revolucionário tinha crescido – São Petersburgo, Moscovo, Kharkov, Kiev, Odessa e
Varsóvia – o poder foi colocado nas mãos de ditadores militares, que praticaram justiça
sumária. As penas de morte proliferaram, especialmente em Odessa, onde como
governador o conde Eduard Totleben dominou.
Após o ataque de Soloviev, o partido de Zemlya i Volya discutiu a adaptação do
terrorismo com maior sentido de mister e o conflito interno anteriormente suprimido
saiu à luz do dia. Tinha que haver reunião dos grupos do Norte e Sul do partido. Vinte e
cinco revolucionários, maioria membros do Comité Executivo de Zemlya i Volya,
139 Ibid., 1015 nº 2.
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reuniram-se no congresso de Lipetsk, em segredo de 15 a 17 de Junho. Nikolai
Morozov justificou o terrorismo; Georgi Plekhanov declarou desaprovação; Mikhailov
desencadeou acusação violenta do Czar. Foi formado novo Comité Executivo. Então, os
membros do partido foram para as proximidades Voronezh, onde se encontraram com
antigos populistas. O grupo dos dezanove anos ouviu Andrei Zhelyabov a argumentar a
favor do terror. Zhelyabov estabeleceu o objectivo urgente: o derrube do absolutismo
através do assassinato do Czar. Naquele momento, Plekhanov saiu da reunião. A
plataforma Zemlya i Volya leu e adoptou-a sem alteração. O plano para assassinar o
Czar foi posto à votação e aprovado por maioria. Até 26 de Agosto, o Comité Executivo
condenou Alexandre II à morte. Mas, a seguir ao congresso de Voronezh, vários
membros do partido voltaram atrás nas cedências feitas ao terrorismo. Alexandr Popov
e Vera Zasulich seguiram Plekhanov. Com a ruptura esse foi o fim de Zemlya i Volya. O
partido dividiu-se em duas facções: Cherny Peredel (Divisão Negra) e Narodnaya
Volya (Vontade Popular). Os dois grupos dividiram os activos do partido; Cherny
Peredel manteve a imprensa clandestina. Cherny Peredel estava na tradição populista; o
credo era a distribuição igual de terra entre os servos – os "negros". Ao mesmo tempo,
foi ponte entre a propaganda socialista da década de 70 e o movimento social-democrata
que Plekhanov mais tarde estabeleceria. A posição de Plekhanov era inequívoca:
acreditava que a situação não era favorável à insurreição e nem os revolucionários nem
as pessoas estavam prontos também. Essa visão foi partilhada por Pavel Axelrod e Osip
Aptekman: no caso de revolta, as massas camponesas não apoiariam o movimento
revolucionário. Se a revolta fosse vitoriosa, só teria substituído uma ordem por outra; os
revolucionários trabalhavam para a burguesia.
NARODNAYA VOLYA
Em 1880, os terroristas deixaram de ser figuras solitárias, mas sim membros de
organização que os incluía em operações clandestinas planeadas conjuntamente e
atribuía-lhes tarefas específicas. O terrorista da Narodnaya Volya sabia que estava
destinado à morte e aceitava esse destino como parte do preço a ser pago pela libertação
da humanidade. Stepniak definiu o terrorista – a quem idealizava – como "socialista
convicto" cujo único objectivo era "derrubar esse despotismo terrível e dar ao país a
condição de todos os povos civilizados: a liberdade política. Então poderia trabalhar em
perfeita segurança para o programa de redenção"140. Para o Narodnaya Volya, o estado
russo era o monstro que ocupava mais de metade do território do império como
propriedade privada. Mais de metade dos camponeses cultivavam por causa disso. O
Narodnaya Volya iria combater o monstro para impedir que o poder fosse transferido
para a burguesia. A luta teve de começar imediatamente. "Agora ou nunca" era a ordem
do dia. Os narodnovoltsistas estavam convencidos, com o golpe no coração – o
assassinato do Czar – que as pessoas iriam assumir o controlo do estado. Permaneceram
populistas e ainda conceberam a revolução como a conquista da terra pela obshchina
[comuna] e das fábricas pelos trabalhadores. Não perceberam que os meios escolhidos
para atingir o fim – terrorismo executado por punhado de operários clandestinos –
limitou a propagação dos ideais entre os intelectuais e as pessoas sem isso nunca
entenderiam as acções.
Durante o Outono e Inverno de 1879-80, o Narodnaya Volya concentrou todos os
esforços no assassinato de Alexandre II. Modificou a abordagem: abandonou ataques
individuais de revólver ou faca e optou pela dinamite. N. I. Kibalchich inventou a
bomba que poderia ser atirada ao alvo. Também sugeriu a abertura de túneis em
140 Kravchinsky, Stepniak, 66.
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edifícios adjacentes sob as ruas que seriam percorridas pelo transporte imperial e onde
os túneis seriam enchidos com explosivos. O primeiro túnel foi cavado em Maio de
1879, sob o banco de Kherson em São Petersburgo, para financiar a operação. Em
Novembro daquele ano, o Comité Executivo organizou vários ataques na linha
ferroviária a ser percorrida no regresso pelo trem imperial do Czar a São Petersburgo de
férias na Crimeia. Três linhas foram armadilhadas. O primeiro ataque, planeado por
Kibalchich, Kviatkovsky e Vera Figner, estava na passagem de nível perto de Odessa;
Mas o Czar viajou para Odessa por mar e não usou essa linha ferroviária. O segundo,
pela equipa liderada por Zhelyabov, estava em Alexandrovsk, perto de Moscovo; mas
os dispositivos não explodiram. O terceiro, pelo grupo de nove membros liderado por
Alexandr Mikhailov e incluindo Sofia Perovskaya, estava mais próximo de Moscovo; o
segundo trem no comboio explodiu, mas o Czar estava no primeiro. Stepan Khalturin,
carpinteiro que trabalhou no Palácio de Inverno, ofereceu serviços ao Comité
Executivo, que aceitou a oferta. Em 05 de Fevereiro de 1880, explodiu a sala no palácio,
matando onze e ferindo cinquenta e seis, mas o Czar não estava lá.
O Czar estava assustado e não conseguia decidir entre duas respostas, a liberal e a
repressiva. No final, escolheu os dois: dissolveu a Terceira Secção e nomeou a
Comissão Suprema Executiva presidida pelo liberal, M. T. Loris-Melikov. Este novo
"ditador" controlava a polícia e o mecanismo de segurança, mas trouxe a maioria liberal
para a comissão e procurou apoio público para as reformas que pretendia decretar. Mas
o Comité Executivo da Narodnaya Volya não mudou de rumo. A força foi minada com
a prisão de muitos membros, mas continuou a recrutar não só entre estudantes, mas
também entre trabalhadores e militares. Oficiais e soldados, bem como marinheiros da
base naval de Kronshtadt, estavam preparados para ajudar o comité; isso equivalia ao
regresso às fontes do movimento Dezembrista. Todo o mundo clandestino se
materializou à volta dos terroristas, que andaram toda a vida totalmente furtiva. A
engrenagem essencial nesta máquina clandestina era o ukryvatel – literalmente,
"correctivo" – que poderia ser qualquer coisa desde o aristocrata ou burguês ao
funcionário público ou polícia. O trabalho desses companheiros de viagem era esconder
coisas e pessoas. A maioria dos porteiros – dvorniki – eram informadores da polícia,
mas os que trabalhavam para os revolucionários eram especialmente efectivos, porque
conheciam o ordenamento da cidade e as casas tinham várias saídas. A resposta da
polícia foi infiltrar a organização com informadores – raramente eram descobertos. Dos
primeiros, Oklatsky, passou informações à polícia de 1880 a 1917 e foi identificado
apenas em 1924.
O Comité Executivo permaneceu determinado em matar o Czar. Rejeitou a sugestão de
Mlodetsky de seleccionar novo alvo e assassinar Loris-Melikov. Mlodetsky ignorou o
comité, no entanto, em 20 de Fevereiro de 1881, disparou contra o "ditador" à queima-
roupa, mas falhou.
Foi julgado no dia seguinte, condenado à morte e enforcado em22 de Fevereiro, apesar
do pedido de Loris-Melikov de que o Czar comutasse a sentença. Em Abril de 1880,
Loris-Melikov apresentou o relatório preliminar sobre a situação na Rússia ao
imperador, no qual propôs medidas para o melhorar. Alexandre II aceitou esse relatório,
bem como os subsequentes, apresentados em Agosto de 1880 e Janeiro de 1881,
respectivamente. Em 01 de Março de 1881, duas horas antes de ser morto, o Czar
assinou a ordem de convocar a comissão especial mandatada para elaborar a
constituição para o império russo.
Loris-Melikov pode ter preparado reformas liberais, mas, no entanto, intensificou a
repressão. As condições dos deportados detidos na colónia penal em Kara, Sibéria,
ficaram pior. Uns após outro, os activistas da Narodnaya Volya caíram. Alexandr
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Mikhailov foi preso em Novembro de 1880. Mas os preparativos para a tentativa de
assassinato continuaram. Em Agosto de 1880, Konstantin Zhelyabov e Teterka
escavaram o túnel sob a ponte Kamenny em São Petersburgo. Naquele Inverno, os
narodnovoltsistas trabalharam como queijaria que compraram para cavar o túnel sob a
rua Malaya Sadovaya, ao longo do qual o Czar viajaria. O rumor sobre o ataque
espalhou-se; falava-se sobre isso na imprensa e a polícia aumentou a vigilância.
Zhelyabov foi preso em 27 de Fevereiro e no dia 28, os membros do Comité Executivo
evadidos da prisão decidiram o ataque no dia seguinte que estava em preparação há
meses. O plano final combinava a explosão do túnel da rua Malaya Sadovaya e com o
arremesso de bombas. Ao meio-dia, no dia 01 de Março, o imperador viajava para a
escola de equitação através da rua Malaya Sadovaya. Os lançadores das bombas seriam
colocados ao longo da via provável do transporte caso o túnel sob a rua falhasse. A
conselho da segunda esposa, morganática141, princesa Ekaterina, Alexandre alterou a
rota, no entanto. Sofia Perovskaya, que dirigia a operação, enviou os lançadores de
bombas ao canal Catarina (agora Griboyedov), onde aguardavam o regresso do
imperador da escola de equitação. Ao sinal acordado, Nikolai Rysakov lançou a
primeira bomba. A escolta de Alexandre parou; o Czar estava ileso. Então, o segundo
atirador bombista, Ignacy Hryniewiecki, deu o passo à frente e explodiu a bomba entre
ele e o imperador; ambos foram mortalmente feridos.
A maioria dos conspiradores foi presa nos dias seguintes, com base em denúncias: para
salvar a pele, Rysakov – que tinha sido preso como lançador de bombas – revelou todos
os detalhes do enredo e outro terrorista "arrependido", Merkulov, levou a polícia num
passeio pelas ruas de São Petersburgo, apontando todos os revolucionários que via.
Zhelyabov anunciou ter participado nos preparativos para o ataque e estava entre os que
foram julgados em audiência pública. Embora defendidos pelos melhores advogados da
cidade, os seis acusados – Zhelyabov, Perovskaya, Kibalchich, Rysakov, Mikhailov e
Gesya Gelfman – foram condenados à morte por regicídio. Os liberais como o conde
Leão Tolstoi e o poeta e filósofo Vladimir Soloviev tentaram influenciar o novo Czar,
Alexandre III e, em 12 de Março, o Comité Executivo da Narodnaya Volya publicou a
carta aberta escrita por Lev Tikhomirov e Mikaïl Mikhailovsky, na qual pediam ao Czar
amnistia geral e convocar a Assembleia constituinte. Alexandre III não cedeu, e em 03
de Abril de 1881, cinco dos condenados foram enforcados na Praça Semyonovsky,
incluindo Sofia Perovskaya, a primeira mulher a ser executada na Rússia moderna.
Apenas uma sentença foi comutada: a de Gesya Gelfman, por estar grávida de oito
meses.
A declaração de Zhelyabov durante o julgamento resumiu a história do movimento
revolucionário russo. Disse ele, os sonhadores tornaram-se positivistas; passaram da
propaganda para a acção, das palavras à luta; o ataque do 1º de Março foi parte da
sequência com os acontecimentos de 1878, o ano de transição, durante o qual a doutrina
de uma morte por outra morte veio à tona. Concluiu: "O objectivo – o propósito da
minha vida – era trabalhar para o bem comum. Segui há muito tempo o caminho
pacífico. De acordo com minhas convicções, teria aprendido sobre a solução final do
terrorismo se tivesse havido a menor oportunidade de ter sucesso através da luta
pacífica"142. Para Albert Camus, Zhelyabov era o símbolo do terrorista redimido:
"Aquele que mata é culpado somente se ainda está disposto a viver ou se, para continuar
a viver, trai os irmãos. A morte, por outro lado, anula a culpa e o próprio crime"143. Karl
141 ● Casamento entre nobres e plebeus.
142 Bienstock, Histoire du Movement Révolutionnaire, 270.
143 Camus, Homme Révolté, 214.
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Marx não condenou os atacantes; pelo contrário. Em carta de 11 de Abril de 1881,
escreveu à filha Jenny Longuet:
Estás a seguir o julgamento das pessoas que praticaram o ataque? São pessoas solidamente
honestas, não lançam poses melodramáticas, despretensiosas, realistas, heróicas. Gritar e fazer são
irreconciliáveis e contraditórios. O Comité Executivo de Petersburgo, actuou tão vigorosamente,
que publicou manifestos de moderação refinada... Procuram explicar à Europa o modus operandi
do método especificamente russo e historicamente inevitável; não há mais motivos para moralizar
sobre isso do que sobre o terramoto [1881] de Chios [Grécia].
OS SOCIALISTAS REVOLUCIONÁRIOS
O Comité Executivo da Narodnaya Volya falhou. Apostou tudo num único acto: o
regicídio. Mas assassinar o Czar não conseguiu desencadear a insurreição entre o povo
da Rússia, nem nas cidades nem no campo. O filho do Czar assassinado, Alexandre III,
sucedeu-o, de acordo com o sistema imperial, imediatamente respondeu ao assassinato
ao desencadear o terror do estado. Isto – como a resposta de Nicolau I ao levantamento
Dezembrista de 1825 – esmagou o movimento revolucionário. O reinado de terror de
treze anos começou com a onda de pogroms144: de 05 de Abril a 25 de Dezembro de
1881, a Zona de Assentamento, ao qual os judeus há muito tempo eram circunscritos
por legislação, foi flagelado. Os pogroms foram orquestrados pelo grupo de aristocratas:
a Brigada Sagrada (Svyashchennaya Druzhina), precursora da União do Povo Russo de
extrema-direita. Os judeus foram acusados de serem responsáveis pela morte do Czar.
Ao escolher o bode expiatório, as autoridades desviam o ressentimento popular para os
judeus. Inicialmente, Alexandre III ficou surpreendido com esse conflito; atribuiu isso
aos revolucionários. Mas concluiu mais tarde que o movimento popular era espontâneo
– embora os distúrbios anti-semitas tivessem sido cuidadosamente planeados pela
Brigada Sagrada. Alexandre promulgou então leis de emergência que tornaram a
situação dos judeus ainda pior. Esses pogroms desencadearam a emigração maciça de
judeus russos, especialmente para os Estados Unidos. O principal resultado do
assassinato de Alexandre II foi o ressurgimento do anti-semitismo na Rússia.
A repressão instituída durante o reinado de Alexandre III continha o movimento
revolucionário. Durante o mesmo período, o desenvolvimento económico na Rússia,
resultou especialmente da industrialização, contribuiu para despertar o proletariado. Os
sindicatos foram formados em fábricas e as primeiras greves começaram a surgir. A
sociedade secreta, o Partido Proletário, fundado na Polónia em 1882, adoptou a
plataforma que incluía o uso do terror político. Mas as greves pareciam ser mais
eficazes do que a violência; forçaram o governo a adoptar legislação para reduzir o
horário laboral e regular o trabalho de mulheres e crianças. Este movimento dos
trabalhadores foi prelúdio para a fundação do Partido Social-Democrata, planeado em
1883 por membros emigrados de Cherny Peredel. Nem o campo permaneceu
quiescente: a terrível fome de 1891-92 afectou trinta milhões de russos e tirou a vida de
cem mil. Na sequência veio a epidemia de cólera, originária na Pérsia, atravessou o MarCáspio e seguiu o curso do rio Volga. A fome e a epidemia provocavam levantamentos
rurais, impiedosamente extintos. Então as seitas foram objecto de perseguição; isso
aproximou-os do movimento revolucionário – algo que os populistas nunca
conseguiram alcançar.
144 ● Movimento violento contra pessoas geralmente contra judeus. Tomou esta designação neste período de
Alexandre III, onde o nacionalismo crescente e o proselitismo ortodoxo, apoiados pela propaganda deste Czar russo e
do filho Nicolau II. O primeiro pogrom aconteceu entre 1881-84 após o assassinato de Alexandre II. O sucessor
[Alexandre III] promove igualmente a discriminação em termos de direitos políticos económico e socialmente.
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Alexandre III estava determinado a destruir o que restava das reformas liberais do pai.
Voltou-se para o K. P. Pobedonostsev, procurador-superior145 do Sínodo da Igreja
Ortodoxa Russa e o conde Dimitri Tolstoy, ex-ministro da instrução pública, para
formular a política reaccionária. A visão de Tolstoi era que a educação foi a causa
directa do movimento revolucionário e promulgou leis que eliminavam crianças pobres
das escolas secundárias e limitavam a autonomia universitária. Em 30 de Maio de 1882,
o reaccionário mais firme do império tornou-se ministro do Interior.
FORMAÇÃO DO PARTIDO SOCIALISTA REVOLUCIONÁRIO
Não obstante a resposta violenta das autoridades, o terrorismo não cessou durante o
reinado de Alexandre III. Certamente, Narodnaya Volya nunca se recuperou das prisões
que a tinham destruído desde 1881: até Maio desse ano, toda a sua liderança tinha sido
presa ou estava fora do país, com excepção de Vera Figner, que reuniu os demais
membros e deslocou a organização para Moscovo. Apesar dos esforços, Narodnaya
Volya gradualmente decaiu, e em 1887, deixou de existir como partido. Vários grupos
pequenos surgiram durante esse período. Em 1885, em São Petersburgo, a "secção
terrorista de Narodnaya Volya" elaborou o plano para assassinar Alexandre III. Os
conspiradores foram presos antes de agirem. Quarenta e dois foram julgados; quinze
foram condenados à morte e cinco foram enforcados, incluindo Alexandr Ulyanov, filho
de o membro do Conselho de Estado e irmão mais velho de Vladimir Ulyanov, mais
tarde conhecido como Lenine. Em 1888, o grupo de oficiais que estiveram em
comunicação com o círculo terrorista com sede em Zurique fez preparativos para atacar
o Czar. A estudante de São Petersburgo, Sofia Ginsburg, estava encarregada pela
ligação. Mas os planos foram descobertos e o chamado círculo militarista foi dividido.
Loris-Melikov deixou o Ministério do Interior em Maio de 1881 e substituído pelo
conde N. P. Ignatiev, que concentrou as actividades da polícia e da polícia militar, criou
unidades especiais para investigar crimes políticos em São Petersburgo, Moscovo e
Varsóvia. Conhecidos como "secções de protecção" – okhrannye otdeleniya – e foi com
a criação dessas unidades em 1881 a palavra Okhrana foi usada pela primeira vez para
significar todo o serviço da polícia russa dos dois últimos Czares. Quando Dimitri
Tolstoy se tornou ministro do Interior em 1882, confiou no director do Departamento de
Assuntos da Polícia, Vyacheslav Plehve, que em 1884 foi promovido ao cargo de
ministro assistente do interior. Plehve manteve o cargo sob Tolstoy e o sucessor, P. N.
Durnovo, que serviu de 1889 a 1895. A Okhrana foi mandatada para efectuar
"inquéritos políticos". Essas investigações dependeram da existência de colaboradores
secretos que informariam sobre os círculos onde se tinham Infiltrado. Havia centenas
deles na folha de pagamento mensal. Sempre que possibilitariam frustrar algum enredo
ou descobrir uma gráfica ou fábrica de bombas clandestinas, recebiam um prémio
especial146. A Okhrana também instituiu o método clandestino de contra-terrorismo
com treino de agentes provocadores. O general A. V. Gerasimov, liderou a Secção de
São Petersburgo da Okhrana de 1905 a 1909, definiu o "provocador" desta maneira: "o
provocador é aquele que começa por incitar as pessoas a cometer actos revolucionários
e acaba por entregá-los à polícia"147. Juntos, os revolucionários e a polícia teceram a
rede fortemente interligada, onde cada um esperava apanhar o outro. Por exemplo,
Sergei Zubatov, ex-revolucionário recrutado pela polícia secreta, tornou-se o chefe da
145 ● Cargo oficial estabelecido por Pedro o Grande, primeiro imperador da Rússia. Equivalente ao Procurador-geral.
Pobedonostsev jurista e estadista e conselheiro de três Czares, desempenhou como éminence grise (fr) [eminência
parda] – era poderoso decisor ou conselheiro que actua na retaguarda ou em habilidades não públicas ou não oficiais
– no reinado de Alexandre III, com este cargo não clerical oficial que supervisionava a Igreja Ortodoxa Russa.
146 Poliakov, Causalité Diabolique, 152.
147 Zavarzin, Souvenirs, 13–25.
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Okhrana de Moscovo, e Pyotr Rachkovsky, ex-estudante comprometido com os
revolucionários, tornou-se o melhor polícia da Rússia e recrutou uma das figuras mais
enigmáticas na história do terrorismo, Evgeny Filipovich (Yevno) Azev. Essa técnica –
tornou-se revolucionária – por vezes, transforma-se em bumerangue: o tenente-coronel
Grigory Sudeikin, primeiro chefe da Secção de São Petersburgo da Okhrana, foi
assassinado em 16 de Dezembro de 1883, graças a informações fornecidas por Sergei
Dagaev – o próprio que o tinha recrutado. Degaev tinha sido enviado a Genebra para
entrar em contacto com Tikhomirov e atraí-lo de volta à Rússia, mas disse à vítima,
sugerindo que se redimia se matasse Sudeikin. Fez isso, conseguindo escapar para os
Estados Unidos, onde se tornou professor (de matemática na Universidade de Dacota do
Sul, sob o nome de Alexandre Pell).
Sob o auspício de Alexandre III, cresceram as pessoas deportadas para acampamentos
na Sibéria, onde a vida era insuportável. Em 1889, houve represálias pela revolta em
Yakutsk que assumiu a forma de massacre. No mesmo ano, no acampamento de Kara,
inaugurado em 1875, os deportados cometiam suicídios em massa após a revolta; o
campo foi encerrado em 1890. Embora afectados pela repressão, os populistas
sobreviventes gradualmente organizados, tanto nas províncias como em São
Petersburgo. Foram montadas gráficas clandestinas, mas estas periodicamente foram
confiscadas. Folhetos e manifestos foram publicados noutros lugares e a propaganda
populista foi espalhada em fábricas – apesar dos ataques dos sociais-democratas, que
consideravam o proletariado industrial como esfera privada. A divisão do movimento
revolucionário russo que seguiu o congresso de Voronezh foi completada no exterior,
entre os emigrantes. Em 1881, Plekhanov fundou o primeiro grupo marxista russo, o
movimento Emancipação Trabalhista, mas somente em 1892 o Partido Social-
Democrata foi estabelecido. O partido glorificava o papel do proletariado, que
contrastava com os muzhiks (camponeses) conservadores. Desde logo, os sociais-
democratas condenaram as acções dos populistas, enquanto falavam de si mesmos como
socialistas e revolucionários. Acusaram esses populistas de ter tentado conquistar o
poder desconsiderando a vontade do povo. Antigos populistas também se submeteram à
autocrítica e questionaram o uso do terrorismo. Em 1888, Lev Tikhomirov publicou o
folheto no qual explicou por que deixou de ser revolucionário e denunciou o uso do
terror:
[O terror] tem por baixo efeitos negativos, nos próprios revolucionários e em todos os lugares onde
a sua influência é sentida. O terror ensina desprezo pela sociedade, pelo povo e pelo país; ensina a
arbitrariedade incompatível com qualquer sistema social. Do ponto de vista estritamente moral,
qual o poder pode ser pior do que o do indivíduo tem sobre a vida do outro? Muitas pessoas – e de
modo algum o fazem – recusam-se a conceder esse poder à sociedade. Eassim um punhado de
pessoas aproveita esse poder. Então, quais são esses assassinatos? São porque o governo legítimo,
reconhecido pelo povo, se recusa a atender às causas desse punhado de pessoas que são minoria
tão insignificante que nem tentam lutar contra esse governo... O terrorista leva uma vida
antagónica. É a vida de o lobo caçado... Pode-se também lembrar as personalidades de Zhelyabov,
Mikhailov e Perovskaya não foram forjadas pelo terrorismo e morreram muito cedo para poder ver
a influência da luta que tinham começado, luta que, para eles, era infinitamente mais vasta que era
para os seus herdeiros insignificantes148.
Após a morte de Alexandre III e a entronização de Nicolau II em 1894, surgiu o
movimento entre antigos populistas, iniciado por Viktor Chernov, exigindo o direito à
autodeterminação individual e o estabelecimento do estado federal descentralizado e
auto-administrado. Em 1895, os antigos revolucionários voltaram da Sibéria, as
convicções ainda estavam intactas. Os jovens foram exaltados pelo que ouviam deles.
148 Guerchouni, Dans les Cachots de Nicolas II, 223.
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De Londres, Vladimir Burtsev emitiu o ultimato ao novo Czar: os revolucionários
recorreriam ao terror se não concordasse com a Constituição. Entre 1895 e 1900,
pequenos grupos gerados pela Narodnaya Volya retomaram as palavras dos populistas e
referiram-se como socialistas e revolucionários. Em 1897-1999, tentam juntar-se como
partido, realizaram conferências em Voronezh, Poltava e Kiev. Desde o início, havia
dois lados para este novo partido: o objectivo das políticas era criar o regime
democrático; ao mesmo tempo, instituíam a máquina de guerra, que entre 1900 e 1908
desencadeou a segunda onda de terrorismo. Os socialistas revolucionários, ou SR,
estavam determinados a continuar a propaganda entre os trabalhadores – cujo número
passou de 700 mil em 1870 para 2,8 milhões em 1900 – e intelectuais. Aqui, os SR
ignoraram o campesinato – ao contrário das reivindicações posteriores de historiadores
soviéticos, reduzindo o seu papel a essa mesma esfera. De todos os teóricos SR, apenas
Chernov viu os camponeses como questão prioritária; estava convencido de que o
partido precisava do apoio da cidade e do campo. Visão confirmada pelos eventos:
foram os camponeses que sentiram os efeitos da crise industrial que atingiu a Rússia em
1900-1903, e houve agitação no campo. Em 1900, a Liga Socialista Agrária foi fundada
em Paris. A rebaptizada União Camponesa juntou-se ao Partido Socialista
Revolucionário em 1902. Nesse ponto, a questão do terrorismo agrário surgiu, mas foi
imediatamente rejeitada. Os sociais-democratas e os socialistas revolucionários
discordaram da questão dos trabalhadores; o último não desejava controlar o movimento
operário mais do que o movimento agrário. Viram os conselhos dos trabalhadores –
sovietes – como a verdadeira encarnação do proletariado e favoreceu a expansão dos
sindicatos. Temeram os efeitos da centralização do poder do Estado. Após anos de
planeamento, o Partido Socialista Revolucionário foi finalmente estabelecido em 1900
através da fusão do grupo sulista, que iniciou o movimento revolucionário, o grupo
nortista e os círculos de emigrados liderados por Chernov. Esse período de consolidação
num único partido viu a formação do grupo terrorista conhecido como Organização de
Combate do Partido Socialista Revolucionário.
O ATAQUE SOBRE PLEHVE
Durante 1902 e 1903, a estrutura do Partido Socialista Revolucionário foi
implementada. O Comité Central controlou as comissões locais (que cresceram em
número de dez ou mais em 1902 para mais de trinta e cinco no ano seguinte), definindo
as acções do partido e materiais de propaganda publicados e distribuídos. O Comité
Central estava no controlo de propaganda e agitação – reuniões e manifestações – entre
trabalhadores, estudantes universitários, camponeses e militares (oficiais e praças). A
populista Yekaterina Breshko-Breshkovskaya, regressada da Sibéria, distribuiu folhetos
revolucionários e folhetos nas aldeias do país.
A turbulência dos estudantes começou em 1899 que foi duramente suprimida pela
polícia. Em 15 de Março de 1901, o antigo estudante chamado Pyotr Karpovich
assassinou Nikolai Bogolepov, ministro da educação pública. Quando preso, declarou-
se revolucionário socialista. Logo depois disso, Vassili Lagusky, membro do Comité de
Samara de Zemstvos, disparou pelas janelas do apartamento do procurador-superior
Pobiedonostsev. Lagusky também declarou apoiar a plataforma revolucionária socialista
e achava necessário usar o terror contra os principais representantes do poder do Estado.
Eram actos individuais, mas tiveram o mesmo efeito sobre o Partido Socialista
Revolucionário que o ataque de Vera Zasulich contra Trepov teve no Partido Populista.
No Outono de 1901, por iniciativa de Grigory Gershuni, o Comité Central decidiu criar
a Organização de Combate, com Mikhail Gotz encarregado da ligação entre a
organização e o comité. O Comité Central emitiu instruções para a Organização de
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Combate e definiu objectivos, mas a organização manteve autonomia na selecção de
membros e métodos. O número de doze a quinze membros eram recrutados por
Breshko-Breshkovskaya, que manteve fidelidade sob escrutínio. O primeiro alvo que o
Comité Central nomeou para a acção da Organização de Combate foi o ministro do
Interior, D. S. Sipyagin, que o Comité condenou à morte pela responsabilidade que
apoiou o massacre de 1901 em São Petersburgo. A sentença foi executada em 15 de
Abril de 1902, por Stepan Balmashev, filho de o activista de Narodnaya Volya.
Balmashev infiltrou-se no Palácio Mariinsky de São Petersburgo com o uniforme de
ajudante de campo e disparou contra Sipyagin à queima-roupa, matando-o. Após este
assassinato, o Comité Central fugiu para Kiev para preparar a próxima operação: o
ataque ao príncipe Obolensky, governador-geral de Kharkov. Aqui, o desejo dos
terroristas era vingar as vítimas de atrocidades perpetradas quando Obolensky ordenou a
repressão das revoltas camponesas. Em 29 de Julho de 1902, o agente escolhido de
Gershuni, Tomas Kachura, disparou o revólver, carregado de munições adulteradas com
estricnina, em Obolensky. Os dois primeiros tiros falharam, mas o terceiro feriu
ligeiramente o governador. A Organização de Combate ataca novamente em 06 de
Maio de 1903, no jardim público em Ufa. Aqui, Yegor Dulebov matou o governador,
Boris Bogdanovich, que em Março deu a ordem para disparar sob os trabalhadores em
Zlatoustov. Pouco tempo depois, Gershuni foi preso em Kiev e condenado à morte. A
sentença, no entanto, foi comutada e transferido para a fortaleza de Schlusselburg na
pequena ilha onde o rio Neva se encontra com o lago Ladoga, prisão reservada para os
terroristas mais perigosos. Entre 1884 e 1905, foram executadas sessenta e oito pessoas;
Destas, treze fuziladas ou enforcadas, quatro suicidaram-se e quinze, incluindo
Nechayev, morreram sob custódia149.
Yevno Azev, o segundo comandante do Gershuni, sucedeu-o à frente da Organização
de Combate. Dois homens dominam a história do terrorismo russo: Nechayev e Azev. O
primeiro estava na periferia, mas incorporava a opção extrema: o fanatismo e a total
ausência de limites morais na escolha dos meios. Azev, por outro lado, elevou o
terrorismo à condição estratégica. Era informador da polícia e revolucionário. Fazia
jogo duplo, mas não era realmente agente duplo. Recrutado em Paris por Pyotr
Rachkovsky, chefe da Secção Estrangeira da Okhrana de 1884 e 1902 e ex-membro da
Svyashchennaya Druzhina, que foi basilar na criação do livro falsificado anti-semita
Protocolos dos Sábios de Sião150. Rachkovsky enviou a Azev para se infiltrar no
Partido Socialista Revolucionário onde se tornou ligado a Mikhail Gotz, que o levou ao
Comité Central do Partido, enquanto Gershuni o envolveu na Organização de Combate.
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