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163 FUNDAMENTOS ANTROPO-FILOSÓFICOS DA EDUCAÇÃO Luiz Gonzaga Gonçalves1 Apresentação Você é convidado(a) agora a ingressar no universo da antropologia Þ losóÞ ca da educação. As palavras podem parecer distantes, mas quando falamos da antropologia estamos trazendo para a discussão o ser humano, sua vida e seus modos de ser, pensar e agir em seus contextos vitais. Quando falamos de antropologia Þ losóÞ ca queremos saber como o ser humano vai construindo seus processos de compreensão de si e do mundo e em que bases encontra sustentação para se pronunciar sobre seu saber e conhecimento. Na longa aventura humana sobre a terra temos dado provas de que somos capazes de aprender durante toda a vida, de crescermos em diferentes níveis e em diferentes profundidades de aprendizagem. As disponibilidades abertas de nosso cérebro, os domínios da linguagem e da comunicação, as habilidades de nossas mãos, o andar bípede, nossa longa infância e adolescência, entre outras características, permitiram que criássemos formas de organização grupal e social complexas, supondo uma aprendizagem continuamente aberta. São essas disponibilidades humanas e sociais para aprender a ser e a conviver, que nos levam, como educadores, a indagar pelas visões de mundo que se Þ zeram hegemônicas e pelos caminhos conß ituosos de recepção e de integração ativa na sociedade de todos os seus membros. Como você verá, o convite para o Curso inclui um recuo no tempo, para revermos as heranças Þ losóÞ cas que prevaleceram com suas concepções de mundo, de ser humano, de sociedade e de natureza, capazes de orientar modos de pensar e de agir. As incursões pretendem inspirar as buscas de hoje, quando as tarefas educacionais emergem dos espaços onde nos encontramos, da direção que pretendemos seguir e dos motivos que orientam nossas decisões. Interessa-nos, de modo especial, como latino-americanos, como brasileiros, os vínculos entre educação e política, que demarcam conß itos, e transformam diferenças em grandes desigualdades. No começo do século XX 75% da população brasileira eram analfabetos. Vamos rejeitar os saberes de coisas da vida que temos acumulado ao longo dos séculos ou vamos incorporá-los em nossas propostas pedagógicas? As pedagogias não conformistas se erguem das inquietações em torno dos entendimentos que construímos acerca dos processos através dos quais são construídas as sociedades, e com elas os conhecimentos e saberes hegemônicos. Nem por isso vamos desconsiderar as vias inteligentes de aquisição de saberes, muitas vezes desprezadas. Uma Þ losoÞ a ß exionada a serviço da educação e da vida é de se esperar que corresponda a um pensamento complexo, aberto à inovação e ao diálogo frente aos domínios vários do saber e do conhecimento. Estar na vida é ter a certeza 1 Professor, mestre e doutor em educação, com graduação em Þ losoÞ a e pedagogia; vinculado ao Departamento de Fundamentação da Educação, do Centro de Educação, da Universidade Federal da Paraíba. 164 de poder experimentar crises, superações e busca de alternativas para pensar um mundo onde todos os seres humanos possam encontrar uma morada digna. Os objetivos que pretendemos alcançar Vamos trabalhar a partir de três grandes objetivos. Queremos identiÞ car as heranças Þ losóÞ cas que prevaleceram com suas concepções de mundo, de ser humano, de sociedade e de natureza, capazes de orientar modos de pensar e de agir. Queremos examinar as orientações que dizem respeito aos avanços do conhecimento, predominantes na civilização ocidental, muitas vezes postos a serviço de poucos. Por Þ m, queremos contribuir para a aÞ rmação de uma ação pedagógica voltada para a promoção do ser humano, de modo a fortalecer as buscas e intervenções a serviço de um convívio social onde todos encontrem um lugar digno de habitar. As unidades temáticas Vamos trabalhar com três unidades temáticas. Na primeira vamos nos deter no universo da antropologia Þ losóÞ ca grega, procurando identiÞ car seus pressupostos e preocupações. Vamos mostrar como a Þ losoÞ a grega vai deixando para trás os domínios da sabedoria de vida, que não oferecem bases seguras para o conhecimento. Vamos nos deparar especialmente com as contribuições de Sócrates, Platão e Aristóteles. Na segunda unidade vamos ver como a Þ losoÞ a na modernidade desvenda novas necessidades e horizontes para o pensamento, redimensionando a pergunta sobre a capacidade humana para conhecer. Veremos alguns aspectos da contribuição de Descartes e Bacon e de Comenius. O último procura desenvolver uma pedagogia aberta às novas idéias de seu tempo. Na terceira unidade vamos ver como Rousseau abre caminhos para uma pedagogia da existência, rompendo com a pedagogia da essência, descortinando novas bases para uma educabilidade aberta ao universo da criança e à importância da aprendizagem. Vamos ver como a Escola Nova no século XX aprofunda as idéias apresentadas por Rousseau. Vamos ver também que o século XX vai aos poucos inserindo efetivamente o Brasil nos problemas políticos e pedagógicos de seu tempo. Encerramos a terceira unidade fazendo um balanço das heranças educacionais que nos alcançaram durante nossa formação escolar. Encaminhamentos e processos de avaliação O processo avaliativo incluirá alguns exercícios para que você, aluno(a) possa apropriar-se dos conteúdos e dos problemas levantados pelos textos selecionados. Você fará textos curtos que serão pedidos ao longo do curso, com os quais você trará sua contribuição a partir das leituras propostas. Nessas atividades teremos no seu conjunto uma das três notas Þ nais. A avaliação incluirá um convite para que você tente inventariar a sua experiência discente, desde sua iniciação escolar. Interessará neste inventário, 165 neste memorial discente, que você avalie o alcance daquilo que compôs as dimensões fundamentais do seu processo educativo escolar. Você pode destacar aspectos positivos ou negativos presentes. Por exemplo, inventariar o que Þ cou de marcante dos seus contatos, do seu manuseio dos livros didáticos; o que Þ cou de marcante de sua relação com as bibliotecas das escolas; o que Þ cou de marcante dos recursos didáticos utilizados pelos professores até aquilo que hoje chamamos de ensino fundamental, de ensino médio. Você é convidado a inventariar as opções de avaliação da aprendizagem, inventariar aspectos marcantes do contexto da época, no qual a(as) escola(as) estava(m) inserida(s). Com a produção do inventário escolar, resvalando em saudades e vivências, a meta é a de tentar desvendar, com os olhos de hoje, os Þ ns e objetivos muitas vezes implícitos que eram atingidos, com as orientações pedagógicas e didáticas dominantes vividas por você, até chegar à universidade. A primeira parte do trabalho que corresponde ao inventário dos aspectos relevantes de sua aprendizagem escolar equivale a segunda nota Þ nal. A partir desse inventário discente, você é convidado a fazer uma segunda parte de seu memorial adotando um conceito de educação. Com esse conceito que pode ser seu ou buscado na literatura educacional, você é convidado a identiÞ car as direções, as concepções de mundo que orientaram as opções pedagógicas e didáticas vividas por você como aluno(a) e as que você apontaria como válidas hoje para as novas gerações que chegam aos espaços escolares. Com a segunda parte crítica do seu memorial completaremos as três notas. 167 UNIDADE I A FILOSOFIA GREGA ANTIGA: Pressupostos e Preocupações 1.1 Atividades Introdutórias Que tal “quebrarmos o gelo”, começando por concentrar nossa atenção na etimologia de algumas palavras consagradas, que retratam a vida na escola, nossas conhecidas de longa data? A atividade Þ losóÞ ca desenvolve um cuidado especial com as palavras que utilizamos. Quer saber o alcance que elas têm para descrever e dar signiÞ cado para as coisas que se desdobram no mundo onde nos movemos. As atividades da Þ losoÞ a da educação também nãose descuidam das palavras que podem nos ajudar a demarcar os caminhos, a coerência das respostas perante os desaÞ os educacionais, de ontem e de hoje. Querem nos ajudar a ver os horizontes demarcados, as compreensões acerca do que se espera da disponibilidade do ser humano para se educar. Uma antropologia Þ losóÞ ca a serviço da educação quer saber, portanto, qual compreensão decisiva de ser humano, de sociedade, de vida orienta as buscas, faz surgir os problemas considerados relevantes. A tentativa é a de caminharmos próximos das teorias e práticas, que ontem e hoje disputam o poder de dizer o que deve ser a educação, para que e para quem ela serve. 1.2 Etimologia das Palavras no Espaço da Educação Escolar1 - Aluno – alumnus,.i;criança que se alimenta no peito; aquele que se alimenta dos bocados que provém do magistério. Em decorrência: pupilo, discípulo. - Aprender – a) apprehendere: agarrar, apanhar, segurar, apoderar-se de algo, porque é precioso e não se deve escapar. Em decorrência: tomar conhecimento de, reter na memória. b) discere – aprender, de onde deriva a palavra discípulo. - Educar – a) educare: criar, amamentar. Em decorrência: instruir, preparar para a vida. b) e-ducere: e: para fora; ducere: conduzir; dar à luz; fazer surgir. Em decorrência: ajudar a conduzir de uma situação à outra; ajudar a modiÞ car. - Ensinar: - insignire: assinalar, distinguir, colocar um sinal, mostrar, indicar. Em decorrência: indicar o caminho para aprender. - formação: “fromage”, em francês: provém da ação de dar forma, de conÞ gurar, como os moldes dão forma aos queijos. - Instrução – instructio,.onis: construção, ediÞ cação. - Mestre - magister,.tri: o que sabe mais2 (magis), o que dirige, conduz. - Pedagogo – do grego paidogogós (pais, paidos: “criança! E agogôs: “guia, condutor”): escravo que acompanhava as crianças à escola; depois: mestre, preceptor. 1Quando os vocábulos apresentados não têm origem no latim, serão destacados de onde se originam. Ver Maria Lucia ARANHA. FilosoÞ a da Educação. São Paulo. Moderna. 1989. p. 58. Ver Ernesto Faria. Dicionário Escolar Latino-Português. Revisão de Rute J. de Faria. 6ª ed. Rio de Janeiro. FAE. 1991). Ver também Octavi Fullat. FilosoÞ as da Educação. São Paulo. Vozes. 1994. 2Esclarece Octavi Fullat (1994, p. 35) que o poderio físico, moral e cultural do mestre fundou a concepção educativo-ensinante que prevaleceu durante séculos. A Escola Nova modiÞ cou paulatinamente, e apenas em determinados ambientes, os signiÞ cados desses signiÞ cantes 168 6VOLTAIRE. Zadig ou o destino: história oriental.. Rio de Janeiro. Ediouro. S/d. - Saber – sapere: ter sabor, agradar ao paladar; saber, conhecer, aprender. - Texto – textum,.i: tecido, pano; obra formada por várias partes reunidas. 1.3 Um antigo conto fi losófi co oriental e a sabedoria da atenção Pudemos ver que os vocábulos que giram em torno do universo escolar brotam da vida, muito antes que a sociedade contasse com um espaço especializado para a aquisição dos saberes considerados relevantes. Assim, iniciamos nossa caminhada com um longo recuo no tempo. Por isso, importa a atenção para algumas setas, alguns entalhes3 que apontam para antigas compreensões do que seja exercitar uma Þ losoÞ a de vida. Para realizar isso, você terá ao seu dispor um conto4, sem autoria deÞ nida, que poderia ser escrito em qualquer região do planeta, inclusive em nosso nordeste rural brasileiro. Em seguida, você terá a oportunidade de examinar alguns termos de origem muito antiga, heranças da cultura e da Þ losoÞ a grega, indispensáveis até hoje. Graças à contribuição da professora de Þ losoÞ a da Universidade de São Paulo, Marilena Chauí, os termos Þ losóÞ cos são apresentados com seus vínculos e dependências com as experiências gregas mais humildes. Veremos, de início, apenas seis desses termos Þ losóÞ cos. Meu interesse principal com eles é demarcar as despedidas que a Þ losoÞ a grega faz, de modo consciente e deliberado, do que há de melhor dos saberes do senso comum5. A Þ losoÞ a grega critica os riscos que envolvem tais saberes, seu alcance limitado, e especialmente as diÞ culdades para reproduzir tais habilidades. Feito isso, você será convidado a ler a Alegoria da Caverna, de Platão. Trata-se de uma abordagem memorável acerca da contribuição da Þ losoÞ a para o campo da educação. A alegoria quer ser um sinal de alerta sobre os enganos que podem submeter os humanos dotados de sensibilidade e razão. A alegoria quer ser abrangente o suÞ ciente para oferecer algumas dicas para que não nos percamos nos espaços tateantes das sombras, da incerteza. Quando a narrativa apresenta sua opção pelos caminhos da razão, ela já detém um sentido pedagógico orientador. 1.3.1 A experiência de Zadig, apresentada por Voltaire6 Como já destacamos, trata-se de um texto de origem remota, sem autoria deÞ nida, recuperado por Voltaire (1694-1778). A sugestão é a de que você faça sua leitura, com o compromisso de lembrar de alguma pessoa conhecida, dotado das astúcias e habilidades parecidas com as do personagem principal do texto. Zadig convenceu-se de que o primeiro mês do casamento, como está escrito no livro do Zenda, é a lua-de-mel, e que o segundo é a lua-de-fel. Pouco tempo depois viu-se obrigado a repudiar Azora,que se tornara difícil de aturar, e procurou satisfação no estudo da natureza. “Ninguém é mais feliz – dizia ele, - que um Þ lósofo que lê o grande livro aberto por Deus diante dos nossos olhos. São suas as verdades que descobre: alimenta e educa a alma, vive tranqüilo; nada receia dos homens, e sua meiga esposa não vem cortar-lhe o nariz.” 3Abertura ou corte feito na madeira ao alcance dos olhos para orientar o caminhante em meio a ß orestas onde não há trilhas perfeitamente delimitadas (cf. Arseniev, 1989: 46-49) 4Você verá que o conto é paradigmático, remete às origens longínquas do ser humano caçador, que é capaz de orientar-se e obter êxito servindo- se apenas dos indícios, dos fragmentos de informação. Ver sobre isso Ginzburg (1989: 143- 79) 5É importante que você saiba o que pensa seu professor: defendo e estou evidenciando isso, de que há uma sabedoria de vida reÞ nada e disponível para qualquer pessoa letrada ou não. Para isso a pessoa precisa ser capaz de desenvolver uma capacidade de se concentrar, de desenvolver um senso de atenção e de observação ativa, para não ser surpreendida facilmente pelos eventos futuros. 169 Cheio destas idéias recolheu (sic) a uma casa de campo à beira do Eufrates, onde não se ocupava a calcular quantas polegadas de água correm por segundo sob os arcos de uma ponte, ou se no mês do rato cai uma linha cúbica de chuva a mais do que no mês do carneiro. Não cuidava de fazer seda com teias de aranha, nem porcelana com cacos de vidro, antes estudou sobretudo as propriedades dos animais e das plantas, não tardando a adquirir uma sagacidade que lhe apontava mil diferenças onde os outros homens viam só uniformidade. Certo dia passeando na orla de um bosque, viu aproximar-se um eunuco da rainha seguido de vários oÞ ciais que pareciam tomados da maior inquietação, e corriam de um lado para outro como pessoas extraviadas em busca da maior preciosidade perdida. - Moço – perguntou-lhe o eunuco, - por acaso não viu o cachorro da rainha? Zadig respondeu modestamente: - Creio tratar-se de uma cadela e não de um cachorro. - Tem razão – volveu o eunuco. - É uma cachorrinha de caça que deu cria há pouco tempo; manqueja da pata dianteira esquerda e tem orelhas muito compridas. - Viu-a então? – Tornou o eunuco esbaforido. - Não – respondeu Zadig, - nunca a vi e nem mesmo sabia que a rainha tivesse uma cadela. Justamente nessa ocasião, por um capricho muito comum da sorte, o mais belo cavalo das coudelarias do rei fugira das mãos de um palafreneiro para as campinas da Babilônia. O monteiro-mor e todos os outros oÞ ciais andavam atrás dele comtanta apreensão quanto a do eunuco atrás da cadela. O monteiro-mor dirigiu-se a Zadig e perguntou-lhe se não vira passar o cavalo do rei. - É o cavalo que melhor galopa - respondeu Zadig; - tem cinco pés de altura e os cascos muito pequenos; sua cauda mede três pés de comprimento e as rodelas do seu freio são de ouro de vinte quilates; usa ferraduras de prata de onze denários. - Que caminho tomou ele? Onde está? – perguntou o monteiro-mor. - Não sei – respondeu Zadig; não o vi nem nunca ouvi falar nele O monteiro-mor e o eunuco Þ caram certos de que Zadig tinha roubado o cavalo do rei e a cadela da rainha, e levaram-no à presença do grande Desterham que o condenou ao knut, e a passar o resto do seus dias na Sibéria. Mal havia terminado o julgamento, foram encontrados o cavalo e a cadela. Os juízes viram-se na desagradável contingência de reformar a sentença, mas condenaram Zadig a pagar quatrocentas onças de ouros por dizer que não vira o que tinha visto. Primeiro ele teve que pagar a multa, e só depois lhe permitiram defender a sua causa perante o conselho do grande Desterham onde falou nesses termos: 170 - Estrelas de justiça, abismos da ciência, espelhos da verdade, que tendes o peso do chumbo, a dureza do ferro, o brilho do diamante e muita aÞ nidade com o ouro: já que me é consentido falar diante desta augusta assembléia, juro-vos por Orosmade que nunca vi a respeitável cadela da rainha, nem o sagrado cavalo do rei dos reis. Aqui está o que me sucedeu: andava eu passeando pelo pequeno bosque onde depois encontrei o venerável eunuco e muito ilustre monteiro-mor. Percebi na areia pegadas de um animal, e facilmente concluí serem as de um cão. Leves e longos sulcos, visíveis nas ondulações da areia entre os vestígios das patas, revelaram-me tratar-se de uma cadela com as tetas pendentes, e que, portanto, devia ter dado cria poucos dias antes. Outros traços em sentido diferente, sempre marcando a superfície da areia ao lado das patas dianteiras, acusavam ter ela orelhas muito grandes; e como além disso notei que as impressões de uma das patas eram menos fundas que as das outras três, deduzi que a cadela da nossa augusta rainha manquejava um pouco, se assim posso me exprimir. “Quanto ao cavalo do rei dos reis, sabei que estando a passear pelos carreiros desse bosque, avistei as marcas das ferraduras de um cavalo, todas colocadas a igual distância. ‘Eis aqui – disse comigo, - um cavalo que tem o galope perfeito’. A poeira das árvores. Num caminho não mais de sete pés de largura, mostrava-se um pouco revolvida a direita e a esquerda, a três pés e meio do centro da rota. ‘Este cavalo – tornei a considerar nos seus movimentos para a direita e para a esquerda, varreu essa poeira’. Vi depois sob as árvores, que formavam um docel de cinco pés de altura, alguns ramos cujas folhas tinham caído recentemente, e concluí que o animal as roçara com a cabeça, tendo, portanto cinco pés de altura. Seu freio deve ser de ouro de vinte e três quilates, pois tendo batido numa pedra que veriÞ quei ser uma pedra de toque, pode em seguida identiÞ cá-lo. EnÞ m, pelas marcas das ferraduras deixadas em pedras de outra espécie, deduzi que estava ferrado com prata Þ na.” Todos os juízes admiraram o profundo e sutil discernimento de zadig; a notícia chegou aos ouvidos do rei e da rainha. Só se ouvia falar de Zadig nas antecâmaras, nas salas e gabinetes; e embora alguns magos opinassem que ele devia ser queimado como feiticeiro, o rei ordenou que lhe devolvessem a multa de quatrocentas onças de ouro a que havia sido condenado. O escrivão, os oÞ ciais de justiça e os procuradores foram a sua casa em grande aparato levar-lhe as quatrocentas onças, das quais apenas retiveram trezentas e noventa e oito para as custas do processo, além dos honorários reclamados pelos servidores. Zadig compreendeu que às vezes era perigoso ser demasiado sábio, e prometeu a si mesmo não tornar a dizer o que porventura houvesse visto. A ocasião não tardou a apresentar-se. Um prisioneiro do Estado tendo fugido, passou por baixo das janelas de sua casa. Zadig interrogada nada respondeu, mas provaram-lhe que ele havia olhado pela janela. Por esse crime foi condenado a pagar quinhentas onças de ouro, e ainda agradeceu a benevolência dos juízes, como é costume na Babilônia. – “Santo Deus! – Exclamou para si, - quanto é lastimável ir-se passear a um bosque onde passaram a cadela da rainha e o cavalo do rei! Como é perigoso a gente chegar à janela, e como é difícil ser feliz neste mundo.” 171 1.3.2 Uma suposta versão mais antiga do que a do conto de Zadig Um conto similar, e provavelmente mais antigo, narra a história de três príncipes de Serendip. Eles caminhavam pelo deserto até que chegaram a um oásis. Enquanto descansavam foram abordados por um viajante que havia perdido um camelo e a carga que este conduzia. Os príncipes, quando abordados, perguntaram ao viajante se o camelo era cego do olho direito, se o animal seguia carregado de um tonel de mel, do lado esquerdo e de um tonel de manteiga, do lado direito. O dono do camelo sumido os condenou como ladrões, quando disseram que não o haviam visto. No tribunal, os príncipes alegaram que tiveram ao alcance dos olhos apenas as marcas deixadas pelo animal fujão. No caso da cegueira do olho direito, perceberam que a relva do lado direito era mais abundante, mas o camelo insistia em comer a do lado esquerdo do caminho. Do lado direito do caminho notaram que as moscas pousavam sobre a relva em busca dos restos da manteiga, do lado esquerdo formigas vinham à procura do mel. (cf. Gonçalves, 2003: 92-93) 1.3.3 Considerações sobre a experiência de Zadig Zadig é o Þ lósofo anônimo que aprendeu a ler os sinais sutis inscritos na natureza, cenário onde se manifesta a presença dos seres vivos. Sua missão é a de estar de olhos bem abertos para detectar as particularidades reveladoras que se manifestam no espaço vital onde habita. O conto oriental apresente uma das mais antigas concepções acerca do trabalho do pensamento humano. A Þ losoÞ a de quem estuda a natureza, como Zadig, estará sempre sendo testada em sua capacidade explicativa, uma vez que será sempre confrontada pela prática. Os desaÞ os são consideráveis e arriscados porque é preciso decidir acertadamente através da leitura de indícios incompletos e nem sempre nítidos. A leitura do texto permite identiÞ car o que é considerado como atividade relevante para o estudioso da natureza. Ao mesmo tempo esclarece de que modo Zadig desenvolveu seu método de observação e de atenção. O protagonista nos surpreende, na medida em que se mostra apto para decifrar indícios a respeito de algo que nem mesmo estava à procura. O Þ lósofo que aparece no texto é o mestre da atenção e da capacidade de desvendar sinais sensíveis que desaÞ am a acuidade de nossos olhos, sinais que para ele são deixados por Deus, no livro aberto da natureza. Zadig surpreende os emissários da rainha e o leitor, pela maneira como informou a respeito dos animais que se haviam perdido. Umberto Eco (in: ECO E SEBEOK 1991: 242;236) considera que o conto de Zadig não é de investigação, mas um conto Þ losóÞ co, na medida em que permitiu vislumbrar como é possível alcançar uma coincidência entre aquilo que era apenas suposição na mente daquele homem (a cadela e o cavalo de seu mundo textual) e aquilo que acontecia no mundo exterior, materializado nas buscas dos oÞ ciais a serviço da rainha. Isso se tornou possível porque o protagonista do conto voltou-se para os estudos das propriedades dos animais e plantas não para reduzi-las aos seus esquemas mentais prévios, mas para pensar por alternativas, para arriscar a captar no que entende por livro aberto por Deus, aquilo que a vida mostra e esconde aos olhos humanos. 172 ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A): Você consegue lembrar-se de alguém que domina a arte da atenção, da leitura de pistas, de pensar por alternativas como Zadig? Você sesente próximo/a das habilidades desenvolvidas por Zadig? De que forma? Este endereço da net talvez possa servir de inspiração: h p://www.jangadabrasil.com.br/revista/ julho68/of68007c.asp 1.4 Na mitologia grega há uma deusa poderosa que personifi ca os saberes de Zadig e dos príncipes de Serendip. É a deusa Métis7, personiÞ cação da inteligência prática, do engenho e da astúcia para solucionar diÞ culdades, da prudência, do expediente para enfrentar uma situação complicada, maquinar ardis e armadilhas. Deusa que incorpora uma qualidade psicológica que combina intuição, rapidez, engenho e astúcia. Um dos Þ lhos de Métis é o deus Póros, que é o engenho astucioso que soluciona diÞ culdades encontrando caminhos. Póros encarna o meio ou o expediente para chegar a um Þ m, recurso ou engenho para chegar a um Þ m, para solucionar uma diÞ culdade; ação de passar através de, trajeto. (CHAUÍ, 2002: p.505;509-10). Jean-Pierre Vernant (2000: 40-41) escreve que: Zeus se casa com Métis e esta logo Þ ca grávida de Atena. Zeus teme que algum Þ lho seu, por sua vez, o destrone. Como evitar? (...) Diz que só há uma solução: não basta que Métis esteja ao seu lado como esposa, ele mesmo tem de se tornar Métis. Zeus não precisa de uma sócia, de uma companheira, mas deve ser a métis em pessoa. Como fazer? Métis tem o poder de se metamorfosear, ela assume todas as formas, assim como Tétis e outras divindades marinhas. É capaz de virar animal selvagem, formiga, rochedo, tudo o que quiser. Trava- se então um duelo de astúcias entre a esposa, Métis, e o esposo, Zeus. Quem vai ganhar? Há boas razões para supor que Zeus recorra a um processo que conhecemos também em outros casos. Em que consiste? É claro que, para enfrentar uma feiticeira ou um mago extraordinariamente dotado e poderoso, o ataque direto estaria fadado ao fracasso. Mas, se escolher o caminho da artimanha, talvez haja uma chance de vencer. Zeus interroga Métis: “Podes de fato assumir todas as formas, poderias ser um leão que cospe fogo?” Na mesma hora Métis se torna uma leoa que cospe fogo. Espetáculo aterrador. Zeus lhe pergunta depois: “Poderias também ser uma gota d´água? “Claro que sim”. “Mostra-me.” E, mal ela se transforma em gota d’água, ele a sorve. Pronto! Métis está na barriga de Zeus. Mais uma vez a astúcia funcionou. O soberano não se contenta em engolir seus eventuais sucessores: ele agora encarna, no correr do tempo, antecipadamente os planos de qualquer um que tente surpreendê-lo ou derrotá-lo. Sua esposa Métis, grávida de Atena, está em sua barriga. Assim, Atena não vai sair do regaço da mãe, mas da cabeça do pai, que é agora tão grande quanto o ventre de Métis. Zeus dá uivos de dor. Prometeu e Hefesto são chamados para socorrê-lo. Chegam com um machado 7 Ver sobre Métis em Marilena Chauí (2002: 505; 509-10) 173 duplo, dão uma boa pancada na cabeça de Zeus e, aos gritos, Atena sai da cabeça do deus, jovem donzela já toda armada, com seu capacete, sua lança, seu escudo, e a couraça de bronze. Atena é a deusa inventiva, cheia de astúcias. (grifou meu) 1.4.1 Considerações sobre o texto Na enciclopédia Wikipedia8 encontramos que: a Þ lha mais famosa de Métis é conhecida como Atena ou para outros Palas Atena. Freqüentemente é associada a um escudo de guerra, à coruja da sabedoria ou à oliveira. Ainda, de acordo com a enciclopédia, a deusa Atena, que nasce da cabeça de Zeus, é toda poderosa tanto nas habilidades de caça e pesca, como nas habilidades de guerra, tem seu poder maior na atividade mental. Atena parece personalizar o esforço grego de colocar a atividade racional a serviço de um poder que sabe hierarquizar os esforços humanos, de modo a encontrar equilíbrio e estabilidade. Atena domina as atividades humanas essenciais, desde as mais antigas, como a caça, a pesca, bem como a capacidade técnica, de construir o arco e a ß echa, além de saber costurar. No entanto, seu talento maior reside na atividade mental, herança direta de Zeus, senhor absoluto da arte de governar. Atena parece simbolizar muito mais a atividade mental que é perseguida pelos Þ lósofos do período clássico. Trata-se de um pensamento que domina e delimita o lugar subalterno das habilidades humanas mais antigas como a caça e a pesca, bem como as técnicas e as artes da guerra. O ponto culminante é o da sabedoria de quem exercita o poder a serviço da equidade e da estabilidade. ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A): Quando Zeus, o soberano, consegue sorver Métis, a deusa da astúcia, ele que é encarregado de governar o mundo, qual a expectativa que tem a partir desta conquista? Como entender que a cabeça de Zeus se fez tão grande quanto a barriga ou o útero de Métis? Elabore um texto com o objetivo de tentar interpretar o sentido da frase no contexto da narrativa. 1.5 Um convite: que tal sentarmos à mesa da fi losofi a e saborearmos seis termos gregos antigos? Este encontro em volta da mesa é para alimentar nosso corpo, supondo que a cabeça é o corpo (agora há pouco a cabeça era uma barriga, um útero). Entre o comer e beber dessa refeição, esperamos mostrar porque os Þ lósofos gregos se despedem da sabedoria oriental, daquela que Zadig era o mestre. Neste movimento introdutório aos fundamentos antropo-Þ losóÞ cos da educação vamos analisar seis termos gregos de grande importância para a Þ losoÞ a grega antiga e elucidativos até hoje. Através deles será possível acenar para algumas preocupações básicas que orientavam as formas como os gregos aprendiam a 8 ver h p://pt. wikipedia.org/ wiki/Atena; ver também: h p://greciantiga.org. 174 interrogar o mundo natural, a presença humana no mundo, a organização da sociedade e o papel de destaque que é destinado à atividade Þ losóÞ ca. Vamos apreciar os termos gregos a partir da contribuição de Marilena Chauí, num glossário que ela elaborou no seu livro intitulado: Dos Pré-Socráticos a Aristóteles (2002)9. A autora teve o cuidado de situá-los como parte da herança grega, que é cultivada desde os tempos imemoriais, desde as sociedades ágrafas. 1.5.1 Doxa: Opinião, crença, reputação (Isto é, boa ou má opinião sobre alguém), suposição, conjetura. Esta palavra possui dois sentidos diferentes por ser usada em dois contextos diferentes: o contexto político, no qual foi usada inicialmente, e o contexto Þ losóÞ co, a partir de Parmênides e Platão. Deriva-se do verbo dokéo, que signiÞ ca: 1. tomar o partido que se julga mais adequado para uma situação; 2. conformar-se a uma norma estabelecida pelo grupo; 3. escolher, decidir, deliberar e julgar segundo os dados oferecidos pela situação e segundo a regra ou norma estabelecida pelo grupo. Era este o seu sentido na assembléia dos guerreiros que deu origem à assembléia política, na democracia. Como a escolha e decisão se davam a partir do que era percebido, dito e convencionado pelo grupo, dóxa ganha também o sentido de uma modalidade de conhecimento, e agora, articula- se ao verbo doxázo que signiÞ ca: ter uma opinião sobre algumas coisas, crer, conjeturar, supor, imaginar, adotar opiniões comumente admitidas. É neste segundo sentido que doxa pode ter o sentido pejorativo de conhecimento falso, preconceito, conjetura sem fundamento, sem convenção, arbitrária. Este termo doxa corresponde ao que entre nós relegamos aos domínios do senso comum ou também do bom senso. O termo é decisivo para compreender o que a Þ losoÞ a decide rejeitar para Þ rmar seu corpus de conhecimento e porque decide rejeitar. O problema da doxa é que não oferece conÞ ança, não oferece um conhecimento seguro. Se a palavra doxa deriva-se do verbo dokéo, que signiÞ ca optar diante de uma situação aberta ou de acordo com a norma de um grupo ela está condenada à incerteza, não podendo impor-se a todos, que é a preocupação da Þ losoÞ a que vai Þ rmar-se, sobretudo, a partir de Platão. A doxa ao mover-se no campo da opinião, do risco, da conjetura, não oferece segurança, nem fundamento. Assim, de acordo com as pretensõesda Þ losoÞ a grega, o conto Þ losóÞ co oriental de Zadig é de pouco valor porque está preso à doxa. Da mesma forma que o personagem acertou em suas conjeturas, podia ter errado. Há uma nota importante aqui, a crítica que é feita pelos Þ lósofos aos saberes que são adquiridos nos domínios da doxa, é estendida aos saberes da medicina grega. Na Grécia havia um tenso diálogo entre os Þ lósofos e os médicos. Alguns dos Þ lósofos pré-socráticos eram também médicos, o que inß uenciava em seu trabalho Þ losóÞ co. Os médicos gregos entendiam sua proÞ ssão como Þ lotecnia (amor a um domínio técnico sobre o corpo humano e a restauração da saúde). Isso enfrentava resistência entre os gregos que desprezavam a técnica como coisa não muito digna. Além disso, a medicina não estava livre dos riscos e das incertezas que se apresentavam como obstáculos para sua busca de rigor. A medicina não conseguia desvencilhar-se de seus vínculos com a doxa, uma vez que o médico dependia de sua percepção sensível para fazer o 9 Cf. CHAUÍ, Marilena. Dos pré-socráticos a Aristóteles. Vol. 1. 2ª ed. rev. ampl. São Paulo. Cia das Letras. 2002. p. 493- 512. 175 diagnóstico dos males que aß igiam seus pacientes. O médico estava sujeito a erros. Os médicos/Þ lósofos, por sua vez, criticavam aqueles que partiam de grandes princípios explicativos, sem fundamentar de modo consistente suas aÞ rmações. 1.5.2 Eidos e Idéa: inicialmente, na linguagem comum dos gregos, signiÞ ca o aspecto exterior e visível de uma coisa: a forma de um corpo, a Þ sionomia de uma pessoa. A seguir, na linguagem Þ losóÞ ca (com Platão), passa signiÞ car a forma imaterial de uma coisa, a forma conhecida apenas pelo intelecto ou pelo espírito, a idéia ou a essência puramente inteligível de uma coisa. SigniÞ ca também a forma própria de uma coisa que a distingue de todas as outras, seus caracteres próprios; por exemplo, a doença é um eîdos, uma forma que o médico reconhece. A palavra eîdos vem de uma raiz que aparece sob três formas:*eid-, oid- eid-. De eîd forma-se, além de eîdos, o verbo eídomai, que signiÞ ca: mostrar-se, fazer-se ver. De *oid forma-se oída (inÞ nitivo eidénai) perfeito do verbo ser que signiÞ ca saber (por ter visto), conhecer. De *id- forma-se o aoristo do verbo ver, ideîn e o substantivo idéa, com o mesmo sentido de eîdos: aspecto externo, aspecto visível, forma visível, caracteres próprios de alguma coisa, maneira de ser. Com Platão, idéa passa a signiÞ car: princípio geral de classiÞ cação dos seres, forma ideal concebida pelo pensamento. Com Aristóteles, idéa, signiÞ ca conceito abstrato diferente das coisas concretas. Eídos, a forma inteligível, idéa, o conceito, ideîn, ver, e oîada/ eidénai, saber (por ter visto), conhecer, criam a tradição Þ losóÞ ca do conhecimento como visão intelectual ou visão espiritual, e de verdade como visão plena ou evidência. A idéia é a realidade verdadeira que o pensamento vê. Em oposição a eîdos está eídolon: imagem, reprodução, cópia, ídolo, fantasma, simulacro. Logo de início, na apresentação do termo idéa, em grego, podemos vê-lo como originalmente acessível a qualquer pessoa, letrada ou não, acessível até mesmo a uma criança. Quem não retém o aspecto exterior e visível da Þ sionomia de uma pessoa querida, de um determinado corpo visto todos os dias? A linguagem Þ losóÞ ca cuida de garantir verticalidade ao termo, dotando-o de um signiÞ cado que prioriza a forma imaterial de algo, passível de ser conhecido apenas por um intelecto dotado da capacidade de se pronunciar sobre a essência inteligível das coisas. Para os Þ lósofos gregos, o anseio de se chegar a uma realidade verdadeira concebida pelo pensamento está em oposição nítida ao saber comum, às opiniões, quando não há condições seguras para vencer os domínios da sensibilidade, das falsas idéias representadas pelas imagens, pelos ídolos, pelos simulacros. Mais uma vez podemos ver que a Þ losoÞ a grega quer trabalhar com formas inteligíveis, com conceitos que nos permitem pleitear o acesso a uma realidade verdadeira que o pensamento vê, sem o risco de iludir-se. 1.5.3. Episteme: conhecimento teórico das coisas por meio de raciocínios, provas e demonstrações; conhecimento teórico por meio de conceitos necessários (isto é, daquilo que é impossível que seja diferente do que é; o que não pode ser de outra maneira, ser 176 diferente do que é) e universais (isto é válidos para todos em todos os tempos e lugares). Opõe-se a empeiria. O verbo epistamai, da mesma família de episteme, signiÞ ca: saber, ser apto ou capaz, ser versado em (portanto, inicialmente, este verbo não distinguia nem separava episteme e empeiria, mas referia-se a todo conhecimento obtido pela prática ou pela inteligência, referia-se à habilidade). A seguir, passa a signiÞ car: conhecer pelo pensamento, ter um conhecimento por raciocínio e, com Aristóteles passa signiÞ car investigar cientiÞ camente. O termo episteme, ou epistemologia vem do que é enfatizado pelos gregos, enquanto aquele conhecimento que tem pretensão de universalidade, de verdade, de identidade. Para os gregos, o conhecimento seguro é considerado possível através do domínio teórico das coisas, dos raciocínios, das provas e demonstrações que não se deixam enganar pelos sentidos. Na Modernidade há uma novidade, o pensamento que conhece racionalmente é visto como de natureza distinta das coisas conhecidas, do que nos fornecem os sentidos, pois é imaterial. Então, é preciso explicar como transformamos as coisas materiais em idéias, sob a responsabilidade do sujeito que conhece. Daí em diante aÞ rma-se a necessidade de epistemologias que pleiteiam validade cientíÞ ca. Veja, porém, o que adverte Chauí: o verbo epistemai, em suas origens mais antigas não distinguia ou separava episteme (saber racional) e empeiria (saber sensível), abrangendo a todo conhecimento obtido pela prática, pela inteligência, pela habilidade. Como podemos ver, o termo episteme, com o trabalho da Þ losoÞ a grega vai ganhando um reÞ namento que abandona as preocupações nas quais se sobressaem habilidades práticas e técnicas. Na Modernidade, por sua vez, fala-se em epistemologias porque não há mais a identidade e a harmonia e o lugar previamente dado ao ser humano na ordem do mundo, como queria a Antiguidade. O nosso planeta não é visto mais como lugar de centralidade, ele ocupa um lugar entre outros no universo. Isso obriga o ser humano a se apresentar como sujeito, como quem ordena e organiza o mundo dentro dos limites de seus recursos racionais, tendo um método e uma epistemologia como guia e orientação de pensamento e de ação. 1.5.4. Méthodos: método, busca, investigação, estudo feito segundo um plano. É composta de metá e odós (via, caminho, pista, rota; em sentido Þ gurado signiÞ ca: maneira de fazer, meio para fazer, modo de fazer) Méthodos signiÞ ca, portanto, uma investigação que segue um modo ou maneira planejada e determinada para conhecer alguma coisa; procedimento racional para o conhecimento seguindo um percurso Þ xado. Methodeúo: seguir de perto, seguir uma pista, caminhar de maneira planejada, usar artifícios e astúcias, é um derivado de méthodos10. A visita de Marilena Chauí aos termos gregos é elucidativa para o entendimento dos estudos da Þ losoÞ a e da Þ losoÞ a da educação porque ela cuida de fazer dois movimentos essenciais. No primeiro, a autora apresenta o sentido que ainda hoje adotamos do termo, levando em consideração seu vínculo com o entendimento original da Þ losoÞ a grega antiga. No outro movimento, a autora surpreende o leitor quando remete o termo ao seu sentido experimentado no 10 É provável que Chauí tenha invertido os termos i n v o l u n t a r i a m e n t e , pois parece lógico que methodeuo preceda méthodos. 177 universo humano do saber comum, especialmente quando neste se identiÞ cam procedimentos bastante desenvolvidos para a elucidação de problemas práticos. O pioneiro da pratica do métodoé o caçador. Este é o primeiro ser humano capaz de garantir a elaboração de planos para conseguir objetivos deÞ nidos. Ele segue com inteligência pistas, detalhes para alcançar o que procura. A palavra método, para Chauí, tem, portanto, sua vinculação primeira ao ofício do caçador, mestre na capacidade de seguir de perto uma pista, de planejar esforços e astúcias para encontrar comida, água e orientação, para escapar de inimigos e predadores. Somente sentidos altamente cultivados permitem em ambientes hostis, lograr êxito e preservar a vida. Zadig, como vimos, é o Þ lósofo da atenção, da observação, que é condição para a elaboração do método. É o Þ lósofo/caçador capaz de encontrar até mesmo o que não está procurando. Devo aqui fazer um alerta: trago de volta Zadig e sua Þ losoÞ a de vida, que a Þ losoÞ a grega vai jogar para um plano secundário. Zadig alcança êxito, mas poderia fracassar porque lida com situações instáveis e não tem como testar previamente suas explicações provisórias. A Þ losoÞ a grega quer trabalhar com explicações seguras e replicáveis, o que nem Zadig, nem os príncipes de Serendip tem condições de garantir. 1.5.5. Logos: Esta palavra sintetiza vários signiÞ cados que, em português, estão separados, mas unidos em grego. Vem do verbo légo (no inÞ nitivo légein) que signiÞ ca: 1. reunir, colher contar, enumerar, calcular; 2. narrar, pronunciar, proferir, falar, dizer, declarar, anunciar, nomear claramente, discutir; 3. pensar, reß etir; ordenar; 4. querer dizer, signiÞ car, falar como orador, contar, escolher; 5. ler em voz alta, recitar, fazer dizer. Lógos é: palavra, o que se diz, sentença, máxima, exemplo, conversa, assunto da discussão; pensar, inteligência, razão, faculdade de raciocinar, fundamento, causa, princípio, motivo, razão de alguma coisa; argumento, exercício da razão, juízo ou julgamento, bom senso, explicação, narrativa, estudos; valor atribuído alguma coisa, razão íntima de uma coisa, justiÞ cação, analogia. Lógos reúne numa só palavra quatro sentidos: linguagem, pensamento ou razão, norma, ou regra, ser um realidade íntima de alguma coisa. No plural, lógoi, signiÞ ca: os argumentos, os discursos, os pensamentos, as signiÞ cações: -logia, que é usado com segundo elemento de vários compostos, indica: conhecimento de, explicação racional de, estudo de, diálogo, dialética, lógica são palavras da mesma família de lógos. O lógos dá a razão, o sentido, o valor, a causa, o fundamento de alguma coisa, o ser da coisa. É também a razão conhecendo as coisas, pensando os seres, a linguagem que diz ou profere as coisas, dizendo o sentido ou o signiÞ cado delas. O verbo légo conduz à idéia de linguagem porque signiÞ ca reunir e contar: falar é reunir sons; ler e escrever é reunir e contar letras; conduz à idéia de pensamento e razão porque pensar é reunir idéias e raciocinar é contar ou calcular sobre as coisas. Esta unidade de sentidos é o que leva os historiadores da Þ losoÞ a a considerar que, na Þ losoÞ a grega, dizer, pensar e ser são a mesma coisa. Há na origem da palavra um entrelaçamento de sentidos que podem ser identiÞ cados nas tarefas da vida prática e também nas tarefas do trabalho intelectual. A Þ losoÞ a grega cuida da verticalidade da compreensão do termo, de modo que se desembarace do universo inferior da doxa, do senso comum, e possa 178 traduzir o esforço da razão humana, que fornece critérios considerados seguros para saber das coisas, em busca de seu sentido e de seu signiÞ cado profundo. Um aspecto importante: vamos ver -logia como segundo elemento de vários compostos. Quais são as disciplinas, nossas conhecidas, com este complemento? Outra coisa importante para a Þ losoÞ a grega é considerar que em seu domínio dizer, pensar e ser constituem a mesma coisa, a mesma realidade. Aqui esta posta a distância do saber do Þ lósofo do saber de quem se move no domínio da doxa. 1.5.6. Télos: Þ m, Þ nalidade, conclusão, acabamento, realização, cumprimento; resultado conseqüência; chegar a um termo previsto, ponto culminante, cume, cimo, alvo; formação e desenvolvimento completos, pleno acabamento; plenitude de poder de alguma coisa, soberania; o que deve ser realizado ou cumprido; o que é completo em si mesmo. (...) O télos é o que permite avaliar ou determinar o valor e a realidade de uma coisa. O télos é muito importante para a Þ losoÞ a porque esta trabalha com método (caminha sempre seguindo um plano previamente pensado). Para a Þ losoÞ a, a Þ nalidade não é conquistada por obra do acaso, mas pela capacidade de planejar, de antecipar racionalmente algo, de ver o alcance do que foi arquitetado na consciência. O télos, como o lugar de chegada projetado é o que pode dar sustentação à atividade Þ losoÞ ca. No entanto, o que dizemos aqui nos faz lembrar do caçador, que foi o primeiro ser humano dotado da capacidade de perseguir um télos, que nada mais era do que o alimento para si mesmo e para a continuidade de sua comunidade. Fica mais fácil agora entender porque a cabeça de Zeus pôde se fazer fecunda, para isso bastou estar impregnada da inteligência e da astúcia da Métis. 1.6. Parmênides(540-450 a.C) e Heráclito(540-480 a.C) Dois Filósofos Pré-Socráticos11 Para nós hoje (ver Chauí op. cit. 103) é muito claro que o pensamento se move de acordo com uma lógica que não é a mesma lógica das coisas do mundo. Entendemos o pensamento como um movimento da nossa consciência, esta que conhece e produz idéias sobre os objetos do conhecimento. Porém, os gregos antigos desconheciam a separação entre o ato de conhecer e o objeto do conhecimento, entre o sujeito e o objeto. Parece estranho isso, mas do modo deles, os gregos mantinham um profundo vínculo com a ordem da natureza e da vida. Assim a linguagem, notadamente a linguagem elaborada, não se distinguia do sentido próprio das coisas. Os Þ lósofos situavam seu pensamento como parte indistinta do cosmos, de um único mundo, de um único lógos (p.102). Sendo assim, passava a ser uma novidade admitir a existência de um pensamento movendo-se com lógica interna apartada da experiência sensível. Abria-se caminho para algo novo que permitia acesso à via da verdade, 11 Os Þ lósofos pré- socráticos são chamados assim não porque necessariamente vieram antes de Sócrates, mas porque se dedicaram a estudar o mundo, a ordem das coisas no mundo, a partir de um ou mais princípios explicativos. Os pré- socráticos não trabalham com o tema socrático central: a vida humana, o auto-conhecimento e o agir moral.(Chauí) 179 contra a via da opinião, da doxa. Esta é a contribuição de Parmênides. Para ele necessidade, destino, justiça passam a ser vistos como conceitos e não forças naturais, são por isso, exigências do ser em sua inteligibilidade, em sua apreensão racional e lógica12. Esta contribuição abre caminhos para a Þ losoÞ a. Não será, todavia um caminho único, uma única maneira de situar o que é essencial para o conhecimento do ser. Chauí (2002: 104;105) esclarece: O que é ser para Parmênides (a identidade estável, imóvel) é ilusão para Heráclito. O que é essencial para Parmênides é o conhecimento do ser; o que é essencial para Heráclito é o auto-conhecimento do ser humano.’ No entanto, ambos inauguram a mesma coisa, isto é, a exigência de fazer a distinção entre a aparência e a realidade e a aÞ rmação que essa diferença só pode ser feita pelo pensamento, pela inteligência e não pela experiência sensível ou sensorial. Os sentidos permanecem prisioneiros da dóxa. [grifo meu] [Para Heráclito] o kósmos é ser vivo. Por isso muda sem cessar. Assim como a polis vive da luta dos contrários, assim também o kósmos, na tensão de seus opostos. Assim como o logos, a polis cria a lei (nómos) que faz existir a harmonia dos contrários, sem excesso, por todo excesso, toda hýbris é punida pela justiça (diké) ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A): Faça um texto apresentando como você entende esta frase: os sentidos permanecem prisioneirosda dóxa?. Faça seu comentário, estabelecendo uma conexão com o conto de Zadig e as novas descobertas que são feitas pelos Þ lósofos pré-socráticos. De preferência, volte ao termo dóxa, anteriormente apresentado. 1.7 O que podemos dizer de Sócrates o medico/educador que examina a alma do aprendiz? É tarefa difícil tratar da contribuição de Sócrates (469/470-399 a.C.), que nada deixou por escrito. O que temos é o legado obtido pelos escritos de discípulos e/ ou pensadores interessados e ilustres como Platão e Aristóteles, Temos ainda o legado de escolas menos conhecidas como a dos megáricos, dos cirenaicos e dos cínicos, por admiradores e críticos de uma fase de sua vida, por estudiosos que vieram em períodos posteriores, como Cícero. Na sua época, Atenas passa a ser o cenário onde os campos de saber estarão sendo diretamente confrontados. No tempo de Sócrates, Atenas, pela sua prosperidade, transforma-se num centro de cultura e de difusão de novas idéias. Concretiza, pela primeira vez, a experiência de um governo democrático sob o controle daqueles que usufruíam dos direitos de cidadania. A cidade atrai pensadores que se dedicam a vários ramos de especialização. Ao seu modo, Sócrates, que se dizia um não especialista, compara seu ofício ao do médico clínico13. Este “clínico geral”, no entanto, não vai buscar seu metrón, sua medida, nos indicadores provenientes dos sentidos, como faz a medicina de seu tempo. A via de acesso aos saberes pelos sentidos como que perde sua 12 Diké: justiça, inicialmente signiÞ cava o modo de ser e de agir, à maneira de, ao modo de, costume, depois o modo de ser ou agir de acordo com uma regra de conduta, de uma norma. Moira: o destino de cada um, a necessidade que rege o curso das coisas (Cf. Chauí, op. cit. 498;506) 13 Para Nie sche, o feito de Sócrates chega à primazia do elemento apolíneo-racional sem uma tensão, de fato, com o dionísico-irracional. Para ele, isso é o mesmo que quebrar a harmonia grega. De resto, corpo e alma passam a não ser uma e mesma coisa, além de se colocarem em uma ordem hierárquica com o privilégio da alma. 180 primazia na via socrática, interessada pela saúde da alma. Fica dispensada a apreensão sensível da medicina hipocrática, que, dá sustentação à fase diagnóstica e diagnóstico-comunicativa entre médico e paciente, para se chegar à terapêutica considerada adequada. Não se pode esquecer que, para Sócrates, a saúde da alma dependia de uma busca crítico-normativa e de um domínio ético-prático, para quem aspira deixar-se guiar em direção ao que não está contaminado pelas instabilidades e incertezas dos embates cotidianos. O trabalho da consciência não exime ninguém de encontrar sustentação às próprias idéias e assim chegar ao dever ser. Sócrates investe contra o relativismo da linguagem, contra os saberes de ocasião, contra a decadência moral e política da cidade. Ele “indaga se existe um valor essencial de todas as virtudes particulares, como a coragem, a sabedoria, a justiça. (ABRÃO: 1999:44) A medicina do corpo transita pelo campo dos possíveis para apresentar, no máximo, uma via alternativa para a cura, cujo resultado só seria conhecido a posteriori. Sócrates vislumbra para a medicina da alma uma possibilidade muito mais reÞ nada do que uma perícia que encontra uma via alternativa (acrescentar algo que falta ao corpo ou tirar algo que se encontra em excesso). Essa medicina da alma quer transitar pelo campo dos possíveis e ultrapassá-los através da atividade racional e da descoberta dos critérios válidos para absorver cada caso e seus congêneres. Nesse percurso, a razão arranca da avaliação dialogada do que está sendo (o campo dos acontecimentos na vida cotidiana com suas incertezas), costurando os critérios lógicos que mais prontamente superam as zonas de indeÞ nição em direção às noções seguras e desimpedidas dos condicionamentos. Isso explica porque a medicina da alma é alçada a uma posição superior à medicina do corpo. O pensamento que, com Sócrates, redimensiona o alcance da inteligência humana acaba sinalizando para uma posição muito mais conÞ ante e segura da lógica que o alimenta. Nessa perspectiva, a atividade pensante humana não se contenta em se descobrir como parte instável do cenário que compõe a realidade maior da physis. Caberá ao pensamento humano, a uma consciência corretamente cultivada, a possibilidade de julgar de modo mais seguro qual o seu lugar na ordem da vida. Apesar de estabelecer uma dicotomia corpo e alma, Sócrates garante uma concepção de alma (psiqué) que vai trazer grandes inovações no pensamento ocidental. Antes, com Homero, a psiqué era o “duplo” que tinha o poder de vagar provisioriamente durante o sono, ou desprender-se deÞ nitivamente com a morte, mas ainda sem relação com a vida mental ou as “faculdades” da pessoa. Nos órÞ cos, a alma era o princípio superior que poderia reencarnar-se depois de processo de puriÞ cação e de reintegração na harmonia universal. No corpo vivo, projetava-se de modo excepcional, em sonhos, visões, transes. Nos pensadores Jônicos do século VI a.C., a psiquê era parte do todo, porção do pneuma (ar) inÞ nito que habitava o corpo até o último alento, como concebia Anaxímenes de Mileto. Era porção de fogo a aquecer e animar o corpo, até o retorno ao Fogo- Razão, o Logos universal. A partir de Sócrates (PEÇANHA, in SÓCRATES, op. cit. 29-30), ou na literatura referente a ele, surge a concepção de alma como sede da consciência normal e do caráter, a alma que no cotidiano de cada um é aquela 181 realidade interior que se manifesta mediante palavras e ações, podendo ter conhecimento ou ignorância, bondade ou maldade. A descoberta de que a alma é o mesmo que a sede da consciência de cada um, capaz de manifestar conhecimento ou ignorância ou de fazer julgamento sobre o que é verdadeiro ou falso, trouxe profundas alterações sobre como podemos adquirir saberes e conhecimentos. Os órgãos dos sentidos privilegiados acabaram sendo a visão (alçada para além de sua mediação sensível) e a audição (sem ela o diálogo e a persuasão não superam a ignorância). As conseqüências pedagógicas da descoberta da alma racional superior ao corpo abre perspectivas para a excelência do fazer docente; aÞ nal, habilitar-se a ver com os olhos da alma é tarefa elevada, para inspirados, como era o caso de Sócrates. Mas a via do diálogo é uma grande idéia porque favorece um canal concreto através do qual o aprendiz mais limitado, se for bem conduzido, pode orientar-se na arte de elaborar as próprias idéias e de se conduzir pelos caminhos da perfeição. ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A):O que você destaca da contribuição do pensamento de Sócrates para a compreensão do ser humano e da educação? 1.8. Platão: o sábio é o que aponta o caminho para a luz verdadeira Platão (427-347 a.C) vai introduzir uma mudança, ou melhor, um aprofundamento pessoal no que diz respeito ao modelo de investigação herdado de Sócrates. Os textos que surgem a partir do Fédon acrescentam aos diálogos anteriores, preocupados em sondar a consciência dos interlocutores, um método dotado de características teóricas, a serem deÞ nidas pelos próprios problemas e por um repertório argumentativo mais impessoal. Platão, na seqüência dos ensinamentos de Sócrates, procura garantir uma investigação sistemática dos fundamentos da conduta humana, porém ultrapassa a ênfase nos dilemas psicológicos e éticos da prática, abordados conforme as circunstâncias. Com isso, não se alteram apenas os temas da dialógia socrática: a própria trama do modelo dialogal e singularizante, que é desencadeador da ciência ética, vai ser alterada. Já não basta chegar, pelo exame acurado do caso, aos indicadores da ação. É preciso situá-los numa explicação global da realidade, de onde examinar as condutas. Nos seus primeiros livros, Platão partirá para dar inteligibilidade à realidade, apoiando-se no que não depende nem do tempo nemdas mudanças (dialética descendente). Platão entra com uma racionalidade do estático e das formas perfeitas para se sobrepor e dar inteligibilidade ao movimento, à transitoriedade e à precariedade da experiência sensível. Fiel aos costumes gregos, ele está interessado em fundamentar aquilo que de maneira mais coerente permite agir sobre os homens. O Þ lósofo-educador 182 vai dedicar-se ao pensamento sobre a política que, para ter ‘p’ maiúsculo, deve superar o desencadeamento de ações movidas por interesses ambíguos e pouco dignos. O desaÞ o é trazer as bases para uma ação submetida a critérios de verdade, que arraste consigo o cultivo da harmonia, da justiça e da beleza. As referências platônicas aos temas médicos seguem, pelo menos, duas motivações básicas: primeiramente, contribuem para elucidar o inevitável paralelo entre cuidados do corpo e cuidados da alma; em segundo lugar, a medicina, com sua longa experiência de chegar a um pensar normativo, a partir dos casos concretos, não deixa de ser, até mesmo, como recurso didático, um degrau na escalada em busca da ordem das coisas e da norma imutável. Platão, para ser coerente com sua idéia das três almas, defende que temos uma alma inferior ou concupiscível, que reside no baixo-ventre e é responsável pela atividade digestiva. Temos também uma alma afetiva, melhor posicionada, que mora na região que circunda o coração. Num lugar mais elevado, está a inteligência que habita o cérebro e é convocada para comandar as almas inferiores. A atividade educacional consiste em evidenciar a posição de nossas três almas de modo que a inteligência seja desenvolvida para comandar de forma eÞ ciente as almas inferiores. Haverá processos educativos diferenciados. O rei deve saber guiar-se pela inteligência para que seja justo, os guerreiros devem aprender a dominar sua vontade para que possam defender a cidade de seus inimigos os escravos e trabalhadores deveriam garantir os meios da subsistência humana na cidade. Há uma unidade que une as diferentes partes do organismo. Da mesma forma, cada homem e todos os homens fazem unidade com o cosmos, somos parte de um todo. Tais convicções dão sustentação à sua biologia, Þ siologia, patologia e terapêutica. Admite-se que a física matemática garante a idéia de cosmos, como conhecimento possível. A medicina eleva o corpo perecível para a noção do todo, como possibilidade de ser um receptáculo digno para o “bem” que o habita. Vamos ver agora um famoso trecho da obra de Platão (RIBERO,1988) conhecido como A Alegoria da Caverna. O texto é extraído do Livro A República, Livro VII, 514 a -517 e. “– Vamos imaginar- disse Sócrates – que existem pessoas morando numa caverna subterrânea. A abertura dessa caverna se abre em toda a sua largura e por ela entra a luz. Os moradores estão aí desde sua infância, presos por correntes nas pernas e no pescoço. Assim, eles não conseguem mover-se nem virar a cabeça para trás. Só podem ver o que se Þ ca sobre um monte atrás dos prisioneiros, lá fora. Pois bem, entre esse fogo e os moradores da caverna, imagine que existe um caminho situado num nível mais elevado. Ao lado dessa passagem se ergue um pequeno muro, semelhante ao tabique atrás do qual os apresentadores de fantoches costumam se colocar para exibir seus bonecos ao público. - Estou vendo – disse Glauco. - Agora imagine que por esse caminho, ao longo do muro, as pessoas transportam sobre a cabeça objetos de todos os tipos. Levam estatuetas de Þ guras humanas e de animais, feitas de pedra, de madeira, ou de qualquer outro material. Naturalmente, os homens que as carregam vão conversando. 183 - Acho tudo isso muito esquisito. Esses prisioneiros que você inventou são muito estranhos – disse Glauco. - Pois eles se parecem conosco – comentou Sócrates – Agora me diga: numa situação como está, é possível que as pessoas tenham observado, a seu próprio respeito e dos companheiros, outra coisa diferente das sombras que o fogo projeta na parede à sua frente? - De fato – disse Glauco -, com a cabeça imobilizada por toda a vida só podem mesmo ver as sombras! - O que você acha? – perguntou Sócrates – que aconteceria a respeito dos objetos que passam acima da altura do muro, do lado de fora? - A mesma coisa, ora! Os prisioneiros só conseguem conhecer suas sombras! - Se eles pudessem conversar entre si, iriam concordar que eram objetos reais as sombras que estavam vendo, não é? Além do mais, quando alguém falasse lá em cima, os prisioneiros iriam pensar que os sons, fazendo eco dentro da caverna eram emitidos pelas sombras projetadas. Portanto – prosseguiu Sócrates – os moradores daquele lugar só podem achar que são verdadeiras as sombras dos projeteis fabricados. - È claro. - Pense agora no que aconteceria se os homens fossem libertados das cadeias da ilusão em que vivem envolvidos. Se libertassem, um dos presos e o forçassem imediatamente a se levantar e olhar para trás, a caminhar dentro da caverna e a olhar para a luz. Ofuscado, ele sofreria, não conseguindo perceber os objetos dos quais só conhecera as sombras. Que comentário você acha que ele faria, se lhe fosse dito que tudo o que observara até aquele momento não passava de falsa aparência e que, a partir de agora, mais perto da realidade e dos objetos reais, poderia ver com a maior perfeição? Não lhe parece que Þ caria confuso se, depois de lhe apontarem cada uma das coisas que assam ao longo do muro, insistissem em que respondesse o que vem a ser cada um daqueles objetos? Você não acha que ele diria que são verdadeiras as visões de antes do que as de agora? - Sim – disse Glauco - , o que ele vira antes lhe parecera muito mais verdadeiro. - E se forçassem nosso libertado a encarar a própria luz? Você não acha que seus olhos doeriam e que, voltando as costas, ele fugiria para junto daquelas coisas que era capaz de olhar, pensando que elas são mais reais do que os objetos que lhe estavam mostrando? - Exata mente – concordou Glauco. -Suponho então – continuou Sócrates – que o homem só fosse solto quando chegasse ao ar livre. Ele Þ caria aß ito e irritado porque o arrastaram daquela maneira, não é mesmo? Ali em cima, ofuscado pela luz do sol, você acha que ele conseguiria distinguir uma das coisas que agora nós chamamos de verdadeiras? - Não conseguiria, pelo menos de imediato. 184 - Penso que ele precisaria habituar-se para começar a olhar as coisas que existem na região superior. A princípio, veria melhor as sombras. Em seguida, reß etida nas águas perceberia a imagem dos homens e dos outros seres. Só mais tarde é que conseguiria distinguir os próprios seres. Depois de passar por esta experiência, durante a noite ele teria condições de contemplar o céu, a luz dos corpos celestes e a lua, com muito mais facilidade do que o sol e a luz do dia. - Não poderia ser de outro jeito. - Acredito que, Þ nalmente, ele seria capaz de olhar para o sol diretamente, e não mais reß etido na superfície da água ou seus raios iluminando coisas distantes do próprio astro. Ele passaria a ver o sol, lá no céu, tal como ele é. - Também acho – Disse Glauco. - A partir daí, raciocinando, o homem libertado tiraria conclusão de que é o sol que produz as estações e os anos, que governa todas as coisas visíveis. Ele perceberia que, num certo sentido, o sol é a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna. Você também não acha que, lembrando-se da morada antiga, dos companheiros de prisão, ele lamentaria a situação destes e se alegraria com a mudança? - Decerto que sim. - Suponhamos que os prisioneiros concedessem honras e elogios entre si. Eles atribuiriam recompensas para o mais esperto, aquele que fosse capaz de prever a passagem da sombras, lembrando-se da seqüência em que elas costumam aparecer. Você acha, Glauco, que o homem libertado sentiria ciúme dessas distinções e teria inveja dos prisioneiros que fossem mais honrados e poderosos? Pelo contrário, como o personagemde Homero, ele não preferiria “ser apenas um peão de arado a serviço de um pobre lavrador”, ou sofrer no mundo, a pensar como pensava antes e voltar a viver como vivera antes? - Da mesma forma que você, ele preferira sofrer tudo a viver desta maneira. - Imagine então que o homem liberto voltasse à caverna e se sentasse em seu antigo lugar. Ao retornar do sol, ele não Þ caria temporariamente cego em meio às trevas? - Sem dúvidas. - Enquanto ainda estivesse com a vida confusa, ele não provocaria risos dos companheiros que permaneceram presos na caverna se tivesse que entrar em competição com eles acerca da avaliação das sombras? Os prisioneiros não diriam que a subida para o mundo exterior lhe prejudicara a vista e que, portanto, não valia a pena chegar até lá? Você não acha que, se pudessem, eles matariam quem tentasse liberta-los e conduzi-los até o alto? - Toda essa história, caro Glauco, é uma comparação entre o que a vista nos revela normalmente e o que se vê na caverna; entre a luz do fogo que ilumina o interior da prisão e a ação do sol; entre a subida para o lado de fora da caverna, junto com a contemplação do que lá existe, e entre o caminho da alma em sua ascensão ao inteligível, eis a explicação da alegoria: no Mundo das Idéias, a idéia do bem é aquela que se vê por ultimo e a muito custo. Mas, uma vez contemplada, esta idéia se apresenta ao raciocínio como sendo, em deÞ nitivo, 185 a causa de toda a retidão e de toda a beleza. No mundo visível, ela é geradora da luz e do soberano da luz. No mundo das idéias, a própria idéia do bem é que dá origem à verdade e à inteligência. Considero que é necessário contemplá-la, caso se queira agir com sabedoria, tanto na vida particular como na política.” Veja agora o comentário de Heinz von Foerster (In Schnitman, 1996:67) Gostaria agora de ilustrar algumas de minhas aÞ rmações com uns poucos exemplos. O primeiro refere-se às explicações, e o retirei de um relato de Carlos Castañeda. Como vocês recordarão, Castañeda foi ao povoado de Sonora, no México, para conhecer um bruxo chamado Don Juan, a quem pediu que o ensinasse a ver. Assim Don Juan interna-se com Castañeda no meio da selva mexicana. Caminham uma ou duas horas e, de repente, Don Juan exclama: “olha, olha o que há aí! Viste?” Castañeda lhe responde: “Não... não vi.” Continuam caminhando e, uns dez minutos mais tarde Don Juan volta a deter-se e exclama: “olha, olha ali! Viste?” Castañeda olha e responde: “Não, não vi nada”. “Ah”, é a lacônica resposta de Don Juan. Seguem sua marcha e volta a acontecer a mesma coisa duas ou três vezes, mas Castañeda nunca vê nada; até que, enÞ m, Don Juan encontra a solução: “Agora entendo qual é teu problema!” – lhe disse: “Tu não podes ver o que não podes explicar. Trata de esquecer de tuas explicações e começarás a ver”. ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A) 1. A partir da leitura da alegoria da caverna e deste comentário de Von Foerster faça um pequeno texto, tentando atualizar a discussão levantada pela alegoria de Platão. 2. Assista o primeiro Þ lme da série sobre Matrix e avalie se há ali alguma inspiração na alegoria da caverna de Platão. Caso haja, em que parte do Þ lme a inspiração pode se fazer presente de forma mais palpável.. 1.9 Aristóteles: a lógica evidencia a ordem das coisas Aristóteles (384-322, a.C.) saiu da Macedônia, por volta dos seus dezoito anos, rumo a Atenas14. Vinha atraído pelo que podia oferecer o grande centro geográÞ co, político, intelectual e cultural do mundo grego. Trazia duas heranças, a ascendência jônica e a tradição médica da família, inclusive a serviço do reino da Macedônia. Seu pai, Nicômacos, era médico e amigo da família real, mas faleceu quando ele ainda era jovem, motivo pelo qual deve ter interrompido a tradição que naturalmente o levava à direção da carreira do pai. Freqüentou, por cerca de vinte anos, a academia de Platão. Mesmo convivendo com o matematismo da Academia, não perdeu o espírito proveniente da herança familiar. Demonstrava interesses pelas pesquisas biológicas e pelo senso de observação e de classiÞ cação, inerentes à cultura médica. 14 Estagira, a cidade onde Aristóteles nasceu Þ cava na Calcídica. A cidade estava sob domínio da Macedônia, mas era uma cidade grega, inclusive a língua ali falada era o grego. 186 Depois que saiu da Academia, Aristóteles elaborou sua objeção à teoria platônica das idéias. Contrapõe-se à concepção cosmológica de Platão, no Timeo, na qual o universo é concebido como resultado da ação de um artesão divino ou demiurgo. Aristóteles no seu livro intitulado Sobre a FilosoÞ a, propõe uma cosmovisão, na qual apresenta um organismo capaz de desenvolver algo que é engendrado de dentro de si, que seria próprio de sua natureza ou physis. Aristóteles vê o universo em dois grandes espaços: o mundo acima da lua e o mundo sob a lua. No mundo supralunar, o movimento é perfeito e eterno. No mundo sublunar, como queria Empédocles, encontra a composição dos quatro elementos: água, ar, terra e fogo. Esses elementos se combinam para formar a causa material de tudo o que existe e a forma multivariada que os distinguem. O mundo sublunar é o reino da imperfeição, pois ali as coisas estão submetidas à geração, à decadência e à morte. Para Aristóteles, os movimentos físicos são sempre, de alguma forma, uma violência contra seu ‘lugar natural’. Aquilo que é pesado se é lançado para o alto, tende a voltar para o chão, seu lugar natural, pois retornar é sua causa Þ nal. No caso humano, a causa Þ nal é chegar à felicidade, que não deve ser atingida nem pelo excesso nem pela falta. O ideal é chegar ao “meio termo”, o que só se consegue pelo hábito, pela atividade intelectual e pela distância das perturbações diárias. O mundo se explica pela sua causa Þ nal, é como se em tudo que existisse no mundo tivesse um propósito. Como se a madeira tivesse, de alguma forma, por destino virar mesa, cadeira, armário para servir aos seres humanos, como se os animais e plantas existentes tivessem como Þ m servirem de alimentos para nós, que ocupamos um lugar destacado na ordem da vida. Aliás, a causa Þ nal aponta para uma pré-destinação inscrita nas coisas do mundo. Pensando assim, vai defender que o corpo e a alma são partes de um mesmo ser e que esta visão integrada é necessária para mútuo esclarecimento. A existência particular não se dá sem a forma (a alma) e sem a matéria (o corpo). Como decorrência a alma só existe no corpo e não pode ser imortal, no máximo é uma forma comum a uma espécie. Esta interpenetração entre o corpo e alma vai estar presente em seus trabalhos sobre a física, a metafísica e a lógica e particularmente sobre a medicina e a ética. Para ele, tudo leva em direção à idéia de ser, para tratar das coisas existentes. Sem o conhecimento do ser, faltariam bases sólidas às ciências (Física, Astronomia, Biologia e outras) que estudam os aspectos particulares da realidade. Sem a idéia do ser, não haveria ciência porque só haveria explicações particulares para coisas particulares. Em sua idéia do ser, recusa a solução platônica das idéias perfeitas e eternas, pela desnecessária duplicação da realidade sensível. O que existe são seres singulares, com sua concretude e existência empírica. A ciência vai recolher pelo conhecimento empírico o que vem da realidade, até chegar a deÞ nições essenciais e atingir o universal, que é seu objeto próprio. O caminho aristotélico é o de quem se apropria dos dados sensíveis que acenam para o individual e o concreto, de modo a chegar à ciência das coisas, identiÞ cando o que é universal e necessário. O grande projeto de Aristóteles, discípulo e depois crítico de seu antigo mestre, Platão, era o de constituir uma ciência com critérios seguros. Isso o levou a considerar a dialética, a conversação do mestre e discípulo em busca do 187 conhecimento como uma via imprópria para atingir a verdade. Ele a entendia, no máximo, como um exercício mental capazde expor a opinião das pessoas sobre as coisas, sem, todavia, oferecer garantia contra o relativismo e o jogo das probabilidades. Entendia que a dialética tem valor como uma preparação para o conhecimento e aponta para a história do pensamento Þ losóÞ co. A história testemunha o debate entre as opiniões precedentes que permitem o acesso à verdade que seria alcançada pela síntese aristotélica. Para realizar este projeto ambicioso de rigor cientíÞ co e conhecimentos seguros, o Þ lósofo vai elaborar normas, procedimentos para guiar o pensamento. Vai concentrar-se na lógica e nas regras do raciocínio e também na análise da linguagem para superar os equívocos que nela se fazem presentes. As ciências voltadas para o mundo físico faziam sua parte encontrando suporte na especulação metafísica. Encontrariam nesta a garantia de chegar à estrutura dos próprios objetos. Sendo que a lógica, aquela que trabalha com a utilização cientíÞ ca dos conceitos, teria seu fundamento na própria realidade, encontrando legitimidade para seu operar.15 ATIVIDADE DO(A) ALUNO(A) Faça um pequeno texto, destacando o que considera de mais interessante no projeto Aristotélico voltado para a busca de rigor cientíÞ co e de procedimentos seguros para guiar o pensamento. 15 Ver Aristóteles (1999:22). 189 UNIDADE II A FILOSOFIA NA MODERNIDADE: NECESSIDADES E HORIZONTES Platão com sua Þ losoÞ a aÞ rmava uma concepção de mundo através da qual era possível pela razão seguir em direção ao real (a via da episteme) ultrapassando os domínios do aparente (a via da doxa). Aristóteles, por sua vez, concebia um mundo, possível de ser entendido identiÞ cando a causa Þ nal, como se todo o existente pudesse ser explicado a partir de um propósito, de uma predestinação inscrita na ordem do mundo. As Þ losoÞ as modernas passaram a não se contentar com as explicações que se moviam na separação entre real e aparente, no Þ nalismo pré-existente na ordenação do mundo. Experimentaram a exigência de discutir a relação interioridade e exterioridade, quer dizer, o que era atribuição do sujeito (daquele que conhece) e o que era da ordem do objeto (do que é conhecido). Experimentaram a exigência de rediscutir as bases teórico-metodológicas que os levavam a examinar o lugar onde habitavam, quem é o ser humano e o que este podia conhecer. O que aconteceu para que isso se impusesse na Modernidade? As discussões sobre o problema do ser humano e do conhecimento, no desenrolar da Idade Média vão incorporar discussões não valorizadas entre os gregos. Na Idade Média a herança judaico-cristã apresenta o que Cassirer (cf. Ivan Domingues 1991: 26-28) chama de antropologia do homem pecador. Para esta antropologia é insuÞ ciente tentar esclarecer o lugar do humano na ordem do universo, utilizando-se apenas dos recursos da razão. Os recursos da razão podem ser aceitos desde que a serviço de uma antropologia de quem se coloca diante dos mistérios da fé e dos ensinamentos das sagradas escrituras (criação do mundo, queda de Adão, resgate através da vinda de Cristo). A reß exão sobre o problema do ser humano na Idade Média vai cultivar características próprias. Uma Þ losoÞ a secular, como a dos gregos, da autonomia da razão humana, de um Þ nalismo que não nos aproxima do Ser todo poderoso, responsável por tudo o que existe, vai dar lugar a uma Þ losoÞ a de tipo religioso (pensar a partir de Deus). O ser humano não é mais aquele que detém a iniciativa para ser senhor de si. Apresenta-se agora como uma criatura que se explica no mundo a partir da graça de Deus e não a partir de si mesmo. A Þ losoÞ a passa a ser servidora da teologia. Como ressalta Cassirer, citado por Domingues (op. cit.: 27), o grande princípio grego do “conhece-te a ti mesmo” ganha na Idade Média novas implicações. Quando este princípio vem subordinado à doutrina da criação deixa de pautar-se unicamente por preocupações e orientações teóricas ou especulativas. Por se tratar de um preceito religioso, é um imperativo de salvação e não um imperativo de conhecimento; o “conhece-te a ti mesmo” é uma forma de questionar a auto-suÞ ciência humana, sendo que cabe a cada pessoa reconhecer sua dependência diante de Deus e de sua graça. Santo Agostinho (354-430), fundador da Þ losoÞ a medieval e da dogmática cristã e Santo Tomás de Aquino (1221-1274), considerado o maior representante 190 do pensamento medieval, que concede maior poder a razão humana, ambos organizam seu pensamento a partir da ótica da criação, da doutrina do pecado e da graça divina. (ibidem: 28) As Þ losoÞ as modernas, devido a toda esta elaboração cristã, da auto- crítica, da acusação das fraquezas interiores, passaram a não se contentar com as explicações que se moviam na separação entre real e aparente, a não aceitar a percepção dos sentidos como orientação para o ordenamento racional. Experimentaram a exigência de discutir a relação interioridade e exterioridade, demarcando o que é da ordem dos limites e das possibilidades do sujeito (daquele que conhece) e o que é da ordem do objeto (do que é conhecido). O que aconteceu para que isso se impusesse na Modernidade? PARA RECORDAR: No mundo grego a realidade é a natureza, onde tudo se origina e nela estão inscritos os seres, entre eles os humanos e tudo o que elaboram e constroem. Como estão inscritos na natureza, os seres humanos podem conhecê-la diretamente, uma vez que contém os elementos comuns que dela se originam e também da mesma inteligência que é inerente a ela e que a orienta. A ordem da natureza é garantida por um ser superior, perfeito, distante, o que é possível de admitir com o uso da razão. 2.1. A fi losofi a moderna: novas exigências para o pensamento. Vamos agora discutir um pouco mais os problemas gerados no universo do pensamento cristão, que levaram as Þ losoÞ as modernas a se distanciarem da Þ losoÞ a grega antiga quanto ao acesso ao real. Distância que está relacionada ao modo de perguntar sobre o mundo e de dar sustentação ao conhecimento produzido pelo ser humano. As preocupações cristãs, conforme esclarece Chauí (1997:113) exigiram dos modernos algumas distinções que provocaram uma ruptura com a idéia grega de uma vinculação direta entre o trabalho de nosso intelecto e da sensibilidade para o acesso à verdade e ao mundo. O cristianismo ao fazer a distinção entre fé e razão, verdades reveladas por Deus e verdades racionais, matéria e espírito, corpo e alma; considerou que o erro e a ilusão faziam parte da natureza humana decaída, do caráter pervertido de nossa vontade, após o pecado original. Chauí (op.cit.: 114) lembra que, durante a Idade Média, a fé era central para a Þ losoÞ a. Acreditava-se que com o auxílio da graça divina, a fé ilumina o intelecto e guia a vontade permitindo à razão chegar ao conhecimento que está ao seu alcance, do mesmo modo a alma recebe os mistérios da Revelação. A fé permitia saber (mesmo que não pudéssemos compreender como isso era possível) que pela vontade soberana de Deus era concedido à nossa alma imaterial conhecer as coisas materiais. A Þ losoÞ a emergente, incorporando questões que vinham sendo elaboradas inclusive durante a Idade Média, não via mais como se submeter às respostas 191 tradicionais. Para essa Þ losoÞ a era absolutamente necessário rediscutir as possibilidades do conhecimento humano. Diante disso a Þ losoÞ a moderna precisava esclarecer pelo menos três problemas: 1. Se somos seres decaídos, pervertidos, como podemos conhecer a verdade? 2. Se nossa natureza é dupla (matéria e espírito) como a inteligência pode conhecer algo que é diferente dela? Ou seja, como seres corporais podem conhecer o incorporal (Deus) e como seres dotados de alma incorpórea podemos conhecer o corpóreo (mundo)? (ibidem, 113) 3. Os Þ lósofos antigos partiam do princípio de que éramos entes participantes de toda a forma de realidade: graças ao corpo estávamos inseridos na natureza, graças a nossa alma participávamos, mesmo
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