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Livro 1 1. Refletindo inúmeras vezes e rememorando os tempos antigos, Quinto, meu irmão, costumam parecer-me extremamente ditosos aqueles homens que, no apogeu da República , ao se distinguirem 1 tanto pelas honrarias como pela glória de seus feitos , conseguiram manter o curso de suas vidas de 2 modo a permanecerem ativos sem perigo ou inativos com dignidade . E houve uma época em que 3 acreditava que também eu teria o direito — e que quase todos concordariam — de passar a ter descanso e a voltar novamente minha atenção para aqueles nossos ilustres estudos , uma vez 4 cessados o infinito trabalho nas atividades do fórum e a ocupação com as candidaturas, com o 5 encerramento da carreira pública e o declinar da idade . 2. Tal esperança, nutrida em minhas 6 7 reflexões e em meus planos, foi frustrada não apenas pelas graves desventuras das circunstâncias gerais, mas também pelas diversas outras que se abateram sobre mim. De fato, no exato momento que seria, a julgar pelas aparências, o mais pleno de repouso e tranquilidade, sobrevieram os mais pesados fardos de inquietação e as mais turbulentas tempestades; nem me foi concedido, embora fosse meu desejo e aspiração, desfrutar do ócio para praticar e cultivar novamente, junto contigo, aquelas artes a que eu e tu nos dedicamos desde meninos. 3. Efetivamente, quando jovem, deparei- me com a perturbação da antiga ordem , e, em meu consulado, cheguei ao centro da dissensão e da 8 Merklin 2006: 599, n. 1 aponta o período de tal apogeu como o intervalo entre o início da República, em 510, e as 1 reformas dos irmãos Tibério e Gaio Graco, de 133 a 121. Cf. Ac. 2. 15 e a fala de Cévola, em de Orat. 1. 38: "Quanto a mim, se quisesse me servir de exemplos de nossa cidade ou das demais, poderia mencionar mais prejuízos do que vantagens causados à situação política pelos oradores mais eloquentes. Porém, […] os mais eloquentes que tive oportunidade de ouvir foram Tibério e Gaio Semprônio, cujo pai, homem prudente e austero, nem um pouco eloquente, salvou a República em diversas ocasiões, e sobretudo quando censor. Ora, não foi pela riqueza elaborada do discurso que ele transferiu os libertos para as tribos urbanas, mas por um gesto e uma palavra. Se não o tivesse feito, a República, que hoje em dia mal conseguimos manter, há muito não estaria em nossas mãos. Por outro lado, quando seus filhos, homens expressivos e preparados para discursar por todos os recursos concedidos pela natureza ou pela formação teórica, receberam em mãos a cidade em seu apogeu (fosse pela prudência do pai, fosse pelas armas dos ancestrais), arruinaram a República com sua eloquência […]” (itálico nosso). Honoribus (“honrarias”, mas também “cargos públicos”) diz respeito à carreira política, rerum gestarum (“feitos”), à 2 carreira militar. Embora se tivesse destacado na primeira, Cícero, à época da escrita do De oratore, carecia da segunda (alguns anos depois, quando procônsul da Cilícia, em 51-50, o Arpinate teria sua primeira e única experiência como dux à frente de um exército). Para suprir tal necessidade, tentara construir a persona do dux togatus, “comandante de toga”, para se referir a sua participação no combate à Conjuração de Catilina. Análise e referências em May 1988: 56-58. In otio cum dignitate (“inativos com dignidade”) é combinação que aparece mais de uma vez na obra de Cícero, com 3 sentidos diversos em função da polissemia dos dois termos. Wirszubski 1968 sistematiza de maneira convincente as ocorrências e seus diferentes matizes. No contexto desta passagem, otium refere-se à retirada não forçada da vida pública, e dignitas à posição e ao prestígio do estadista decorrentes de sua carreira. Referência aos estudos de retórica e filosofia, realizados, na juventude dos irmãos Quinto e Marco, em Roma, Atenas, 4 Rodes e na Ásia Menor. Cf. Brut. 306-316. Forensium rerum labor (“trabalho nas atividades do fórum" ou “públicas”) remete à atividade oratória de Cícero, 5 particularmente como defensor. Em 63, 8 anos antes da escrita do De oratore, Cícero já atingira o ápice do cursus honorum, com o consulado. Por 6 iniciativa de Hortênsio, seria cooptado, em 53, para o Colégio dos Áugures. Em 51-50, como apontado acima, governaria a Cilícia como procônsul. Contando 51 anos à época da escrita do De oratore, Cícero já se encaminhava para a velhice, pelos padrões da 7 Antiguidade. Meros 11 anos depois ele retrata a si mesmo, bem como a Ático, como próximos da velhice em Sen. 2. Com a Guerra Social (91—89) e a Guerra Civil (88-82), que cobrem um período que vai dos 15 aos 24 anos do 8 Arpinate. !1 crise reinantes em toda a conjuntura ; e, durante todo esse tempo após o consulado, lancei-me 9 contra os vagalhões que, desviados por mim do que seria a ruína geral, recaíram sobre mim mesmo . No entanto, seja em meio a tais adversidades da situação, seja em meio a tal falta de 10 tempo, ocupar-me-ei de nossos estudos, e o quanto a perfídia dos inimigos, a causa dos amigos ou a República concederem-me de ócio, eu o dedicarei sobretudo a escrever . 11 4. Quanto a ti, meu irmão, não deixarei de atender a tuas exortações e pedidos, pois nem pela autoridade pode alguém ter mais influência sobre mim, nem pela vontade . E devo reavivar uma 12 antiga lembrança, não muito nítida, é certo , mas adequada, segundo penso, àquilo que me solicitas 13 — saber o que os mais eloquentes e ilustres de todos os homens pensavam acerca da doutrina oratória como um todo. 5. Ora, como me disseste várias vezes, pretendes, pelo fato de os escritos que escaparam incompletos e grosseiros de meus apontamentos , quando era menino ou, antes, 14 adolescente, mal serem dignos desta minha idade e desta experiência, granjeada em tantas e tão importantes causas defendidas, que publique algo mais refinado e acabado acerca do mesmo tema . 15 E costumas por vezes discordar de mim sobre o assunto em nossas discussões, porque eu afirmo que a eloquência depende dos conhecimentos teóricos dos homens mais instruídos, ao passo que tu julgas que ela deva ser apartada do refinamento da cultura e confiada a determinado tipo de talento e prática . 16 6. Quanto a mim, atentando inúmeras vezes aos homens eminentes e dotados de eminente talento, pareceu-me apropriado perguntar o motivo de terem existido mais pessoas dignas de admiração em todas as outras artes do que na oratória. De fato, para onde quer que voltes a atenção e o pensamento, verás inúmeros homens excelentes em cada uma das espécies de disciplinas — e não as de pouca monta, mas as que são, de certa maneira, as mais importantes. 7. Realmente, quem não há de preferir o general ao orador, caso queira medir o conhecimento dos homens ilustres pela utilidade ou grandeza de seus feitos? E quem há de pôr em dúvida que, desta única cidade, podemos Alusão à chamada Conjuração de Catilina.9 Durante os dezoito meses de exílio, de março de 58 a setembro de 57. A communi peste (“do que seria a ruína geral”), 10 é um breve aceno a um tópico frequente nos chamados discursos post reditum de Cícero: a ideia de que Cícero não fugira de Roma para o exílio sem mesmo ter aguardo um julgamento, mas deixara deliberadamente a Urbe a fim de evitar o banho de sangue que adviria do enfrentamento de Clódio e seus correligionários. Cícero faz aqui uso, pela primeira vez, daquele que se tornará um lugar-comum dos prefácios de suas obras retóricas 11 e filósoficas: a ideia de que a dedicação à escrita só pode ter lugar quando os deveres de homem público o permitem. Esse ideal também será projetado sobre as personagens do De oratore (cf. 1. 24: ludorum Romanorum diebus, ”nos dias dos jogos romanos") e as circunstâncias e personagens de seus futuros diálogos (cf., por exemplo, Rep. 1. 14 (feriis Latinis, “nos festivais latinos"), de 54, e N. D. 1.15: feriis Latinis; 2.3 (otiosi sumus: “estamos livres”), de 45-44). Referências e sistematização em Levine 1958: 147. Também este se tornará um lugar-comum dos prefácios ciceronianos:o atendimento ao pedido do destinatário. Cf., 12 por exemplo, Orat. 1 e, em variação engenhosa inserida já no diálogo (em lugar de o autor fazer menção aos pedidos do destinatário, como é mais usual, o personagem Ático faz o pedido diretamente ao personagem Cícero, já no diálogo), Brut. 19-20. Com non sane satis explicata [“não muito nítida, é certo”], Cícero faz um aceno lúdico ao caráter fictício do diálogo. 13 Trata-se do De inventione, manual de retórica em dois livros deixado incompleto pelo autor, de datação incerta. 14 Achard 2002: 7, o editor mais recente da obra, estima que a data provável encontre-se no biênio 84-83, quando Cícero contava entre 18 e 19 anos. Em 55, Cícero, em mais de 25 anos de atuação como orador, já havia defendido causas e proferido discursos 15 importantes e de grande repercussão, como a Defesa de Sexto Róscio de Améria, em 80, as Verrinas, em 70, e as Catilinárias, em 63. Este é o primeiro dos vários espelhamentos que se observarão ao longo da obra, uma vez que a experiência e a consagração com orador são traços que o Arpinate divide com os protagonistas do diálogo, Crasso e Antônio. A discordância de posições entre Marco Cícero, mais idealista, e Quinto Cícero, mais pragmático, será de certa forma 16 espelhada ao longo do diálogo, sobretudo no livro 1, respectivamente na postura de Crasso e Antônio. !2 citar um quase sem-número de comandantes de guerra extremamente distintos, mas quase ninguém excelente na oratória? 8. Ademais, houve, em nossa época, muitos homens capazes de governar e conduzir o leme da República com discernimento e sabedoria, muitos mais na de nossos pais e mais ainda na de nossos antepassados, enquanto não se encontrou, durante muito tempo, um único orador bom, e quase nenhum tolerável a cada geração . No entanto, se acaso alguém considerar mais 17 cabível comparar a doutrina oratória a outros estudos, relativos a artes mais abstrusas e a certa multiplicidade de leituras, do que ao mérito de um comandante ou à prudência de um senador honesto, que volte sua atenção precisamente para tais tipos de atividades e repare que homens, e quantos, nela floresceram. Dessa forma, poderá julgar com extrema facilidade quão grande é e sempre foi a escassez de oradores. 9. Não ignoras, com efeito, que os mais doutos consideram aquela que os gregos denominam philosophía a procriadora, por assim dizer, e como que a mãe de todas as artes dignas de louvor. Em seu âmbito, é difícil enumerar quantos homens houve de tamanho saber e tamanha variedade e riqueza em seus estudos, que não trabalharam isoladamente sobre um único tema, mas abarcaram todos, quaisquer que fossem, pela investigação científica ou pela dialética. 10. Quem desconhece como são obscuros os temas, como é abstrusa, vasta e precisa a arte a que se dedicam os chamados matemáticos? No entanto, houve tantos homens consumados nesse grupo, que se tem a impressão de que ninguém se dedicou com muito afinco a essa ciência sem conseguir aquilo que pretendia. Quem se dedicou a fundo à música ou a este estudo das letras atualmente em voga, de que os chamados professores de letras fazem profissão, sem abarcar em sua totalidade, por conhecimento 18 e reflexão, a gama quase infinita de matérias de tais artes? 11. Parece-me que estarei correto em dizer que, de todos aqueles que se ocupam dos tão nobres estudos e doutrinas dessas artes, houve um número ínfimo de grandes poetas. Porém, considerando esse número mesmo, em que muito raro surge alguém excelente, ainda que queiramos tomar a grande quantidade de romanos e de gregos para uma comparação cuidadosa, encontraremos muito menos bons oradores do que poetas. 12. Isso deve parecer ainda mais extraordinário pelo fato de os estudos das demais artes beberem de fontes quase sempre recônditas e ocultas, enquanto toda a doutrina oratória, ao alcance de todos, diz respeito a uma prática bastante geral, bem como aos costumes e à linguagem comum dos homens, de modo que, nas demais artes, sobressai-se particularmente aquele que se encontra mais distante do entendimento e da percepção dos leigos, ao passo que, na oratória, o maior dos defeitos é apartar-se da maneira usual de falar e da praxe do senso comum . 13. E nem mesmo é possível encontrar 19 justificativa para afirmar que mais pessoas consagram-se às demais artes, ou que são movidas a dominá-las por um prazer maior, ou por mais ricas esperanças, ou por recompensas mais magníficas. De fato, deixando de lado a Grécia, que sempre pretendeu ser a primeira em eloquência, bem como a ilustre inventora de todas as doutrinas, Atenas, onde o mais elevado poder oratório foi não apenas inventado, como também consumado, é evidente que aqui, nesta cidade mesmo, nenhum estudo jamais floresceu com tamanha força como a eloquência. 14. Depois que se estabeleceu o Como o objetivo do raciocínio desta parte do prefácio é exaltar a grandeza da oratória e a dificuldade de os oradores 17 tornarem-se eloquentes, Cícero adota uma posição mais idealista em relação às exigências para se chegar a tal patamar. No Brutus, em contrapartida, obra mais próxima do gênero histórico, Cícero adotará a posição inversa, valorizando os muitos oradores que aborda de maneira mais relativa e admitindo padrões e exigências diversos para épocas diversas. Assim traduzimos o grammatici do original. O grammaticus não era um gramático como entendemos modernamente, 18 ou seja, um professor especializado em gramática, mas, a um só tempo, um professor de língua, letras e interpretação de textos. Como bem observam Leeman e Pinkster 1981: 47 ad locum, studium litterarum (“estudo das letras”) é a tradução em latim de grammatiké. Em virtude da adequação do orador a seu público e às expectativas deste não apenas em relação ao que diz, mas 19 também ao como diz. !3 domínio sobre todos os povos e o longo período sem guerras consolidou a paz , quase nenhum 20 jovem desejoso de glória deixou de considerar que devesse dedicar-se à oratória com todo o empenho. Num primeiro momento, desconhecedores de qualquer tipo de teoria, aqueles que pensavam não haver qualquer método de exercícios ou qualquer preceito de arte chegavam aonde podiam pelo talento e pela reflexão. Depois, quando ouviram os oradores gregos, conheceram os seus escritos e empregaram os seus mestres, nossos conterrâneos inflamaram-se de um desejo absolutamente incrível de aprender. 15. Incitava-os a magnitude, bem como a variedade e o grande número de causas de toda espécie, de modo que, à teoria alcançada pelo estudo de cada um, somava-se a prática frequente, que superava os preceitos de todos os mestres . Para tal estudo eram 21 oferecidas, como hoje em dia, as maiores recompensas concernentes à influência, às riquezas ou ao prestígio . Quanto ao talento, segundo podemos julgar por muitos indícios, o de nossos 22 conterrâneos superava em muito o dos demais representantes de todos os povos. 16. Isso posto, quem não se há de admirar, e com razão, pelo fato de encontrar-se, em todo o registro de gerações, épocas e cidades, tão exíguo número de oradores? Ora, não há dúvida de que essa é uma atividade mais grandiosa do que as pessoas creem, e composta de várias artes e ramos de estudo . Quem, considerando o número enorme de aprendizes, 23 a extraordinária abundância de mestres, os eminentíssimos talentos dos homens, a infinita variedade das causas, as magníficas recompensas oferecidas à eloquência, há de julgar haver outra causa, senão a incrível magnitude e dificuldade dessa arte? 17. Realmente, é preciso adquirir o conhecimento de inúmeros assuntos, sem o qual o fluxo de palavras é vazio e risível , e o próprio 24 discurso deve ser moldado não apenas pela escolha, como também pelo arranjo das palavras, e todas as emoções que a natureza atribuiu ao gênero humano devem ser minuciosamente conhecidas, porque todo o poder e todo o propósito da oratória devem ser manifestados acalmando-se ou incitando-se as mentes dos ouvintes. É necessárioque se somem a isso certo encanto, alguns gracejos e uma cultura digna de um homem livre, bem como rapidez e concisão tanto ao retrucar como ao atacar, acrescida de refinada graça e urbanidade. 18. Ademais, é preciso ter o domínio de toda a história antiga e de um bom número de precedentes, e não se deve negligenciar o conhecimento das leis e do direito civil. Ora, para que me alongar sobre a própria atuação, que deve ser regulada pelo movimento corporal, pela gesticulação, pela expressão facial, pela inflexão e variação da voz? A importância que ela tem sozinha, por si mesma, é indicada pela insignificante arte dos atores e pelo palco, onde, apesar de todos esforçarem-se por controlar a fisionomia, a voz, os movimentos, quem ignora quão poucos há e houve a que suportemos assistir? O que dizer do repositório de todas as coisas, a memória? Cremos que, a não ser que ela seja usada como guardiã dos temas e palavras descobertos e pensados, todos os demais elementos, ainda que absolutamente esplêndidos num orador, acabarão por se arruinar. 19. Por essa razão, deixemos de nos perguntar com espanto o motivo da escassez de oradores eloquentes, uma vez que a eloquência é constituída O “longo período sem guerras” começou em 146, com o fim da Terceira Guerra Púnica.20 Movimento que se observará encenado no diálogo, em que Crasso e Antônio demonstrarão ter assimilado a teoria de 21 origem grega e tê-la superado pela prática e pela reflexão sobre a prática. Isso fica particularmente evidente no resumo e na resenha que Crasso (1. 137-145) e Antônio (2. 77-83) fazem, respectivamente, dos manuais de retórica. O próprio Cícero é o exemplo por excelência de ascensão social, política e, indiretamente, econômica (já que não era 22 permitido pagar um patrono pelos serviços prestados) decorrente de sua prática oratória. Em sua versão mais completa, as exigências de Cícero (e, espelhadas no diálogo, as de Crasso) para a oratória 23 contemplam o conhecimento de história, direito e filosofia, além, é claro, dos muitos aspectos da doutrina retórica, alguns deles pouco desenvolvidos na tradição, como o estudo das emoções do público e o funcionamento do humor. Introdução do tema fundamental exposto por Crasso no livro 3: a inseparabilidade entre res e verba. Cf. 1. 20, abaixo, 24 e 3. 19. !4 de todos aqueles elementos em que já é bastante notável aperfeiçoar-se isoladamente, e exortemos antes nossos filhos e os demais cuja glória e prestígio nos são caros a tomarem consciência da 25 grandeza da eloquência, e a não confiarem na possibilidade de atingir o que esperam por meio dos preceitos, mestres ou exercícios de que todos se servem, mas por meio de outros recursos . 20. E, 26 pelo menos na minha opinião, nenhum orador poderá ser coberto de toda a glória se não alcançar o conhecimento de todos os grandes temas e artes. Efetivamente, é preciso que o discurso floresça e se torne exuberante pelo conhecimento dos temas. A não ser que, sob a superfície, estejam o entendimento e o conhecimento do tema por parte do orador, ele terá uma elocução vazia e quase pueril. 21. Mas não imporei aos oradores nossos conterrâneos, imersos em tamanha ocupação com a vida na Cidade, o fardo imenso de considerar que não lhes é permitido desconhecer nada, embora o conceito de orador e o próprio fato de que alega discursar bem pareçam uma admissão e uma promessa de que ele é capaz de discursar de maneira ornada e copiosa acerca de todo e qualquer tema proposto. 22. Porém, por não duvidar que à maioria isso possa parecer uma tarefa gigantesca e infinita, e percebendo que os gregos, ricos não apenas em talento e saber, mas também em ócio e estudo, já realizaram uma partição das artes e não se dedicaram individualmente a todos os gêneros, mas separaram das demais formas de discurso aquela parte da oratória que diz respeito aos debates públicos dos julgamentos ou das deliberações , deixando ao orador apenas aquele domínio, nestes 27 livros, dado que o tema é objeto de estudo e muita discussão, não irei além do que foi atribuído a tal domínio praticamente pelo consenso dos mais eminentes homens; 23. e retomarei, não determinada ordem de preceitos tomada aos rudimentos de nossa antiga doutrina de meninos , mas aquilo que, 28 como fiquei sabendo certa vez, foi examinado numa discussão de nossos conterrâneos mais eloquentes e proeminentes em todo tipo de distinção. Não é que eu despreze o que os mestres e professores de oratória gregos nos legaram, mas, como tais escritos são acessíveis e estão ao alcance de todos, não podendo, por meio de minha tradução, ser explicados com maior ornato ou expressos com maior clareza, acredito que me concederás a licença, meu irmão, de colocar acima dos gregos a autoridade daqueles a quem nossos conterrâneos concederam a suprema excelência na oratória . 29 24. Então, na época em que o cônsul Felipe atacava com bastante violência a causa dos nobres, e o tribunado de Druso, assumido em defesa da autoridade do Senado, já dava mostras de Em famosa carta a Lêntulo Espínter (Fam. 1. 9. 23), de 54, Cícero comenta a recente “publicação" do De oratore, 25 acrescentando que a obra não deixará de ter utilidade ao filho daquele: “ […] escrevi, então, à maneira aristotélica […], três livros Do orador em forma de discussão dialógica. Creio que eles não serão inúteis a seu [filho] Lêntulo, pois afastam-se dos preceitos comuns e contemplam toda a doutrina oratória dos antigos, tanto a de Aristóteles como a de Isócrates.” Tais “outros recursos” (aliis quibusdam), como, por exemplo, a discussão sobre o conhecimento de direito (1. 26 166-203), o uso do caráter (2. 182-184), das emoções (2. 185-211; o caráter e as emoções são tratados conjuntamente em 2. 211-216) e do riso (2. 216-290) configuram, em boa parte, o objeto de discussão do De oratore. Os gêneros de causa em questão são o judicial e o deliberativo. 27 Como acontecera no caso do De inventione. 28 A autoridade das personagens não advém apenas de seu passado glorioso e de sua reputação como grandes oradores 29 do passado, mas dos muitos exemplos de observações técnicas feitas pelas personagens sobre a atuação dos protagonistas em suas causas. Cf., por exemplo, 1.180 (atuação de Crasso na defesa de Mânio Cúrio) e 2.197-203 (atuação de Antônio na célebre defesa de Norbano). !5 instabilidade e enfraquecimento , lembro-me de me relatarem que, nos dias dos jogos romanos , 30 31 Lúcio Crasso, como que para se recobrar, retirou-se para sua vila em Túsculo . Dizia-se que 32 também haviam comparecido Quinto Múcio, que fora seu sogro , e Marco Antônio, aliado de 33 Crasso em seus objetivos políticos e a ele ligado por laços de profunda amizade. 25. Haviam deixado Roma junto com Crasso dois jovens bastante íntimos de Druso e nos quais os mais velhos depositavam grandes esperanças em relação à preservação de seu prestígio: Gaio Cota, então candidato ao tribunado da plebe , e Públio Sulpício, que seria, logo em seguida, candidato a essa 34 magistratura, segundo se pensava . 26. No primeiro dia, eles conversaram durante muito tempo, até 35 anoitecer, acerca da crise e da situação política em geral, motivo de haverem ido para lá . Cota 36 relatava as diversas queixas e evocações daqueles três consulares durante tal conversa, tão divinamente inspiradas que mal algum poderia sobrevir à cidade que já não tivessem há muito 37 tempo percebido pairar sobre ela. 27. Relatava também que, ao fim de toda aquela conversa, tamanha era a gentileza de Crasso que, depois de se banharem e se reclinarem para o jantar, toda a 38 melancolia daquela primeira conversa se dissipara, e tal era a amabilidade daquele homem, e tamanha a sua graça ao falar, que o dia em meio a eles parecia digno do Senado, o banquete, da vila de Túsculo . 28. Contava ainda que, no dia seguinte, depois que os mais velhos, tendo já 39 descansado o suficiente, chegaram para o passeio, Cévola, após duas ou três voltas , disse: 40 — Por que não imitamos,Crasso, o Sócrates do Fedro de Platão ? É que este seu plátano me 41 traz sua lembrança, espalhado que está por vastos ramos para dar sombra a este lugar, tanto quanto aquele cuja sombra Sócrates procurava — a meu ver, ele cresceu não tanto pelo regato O consulado de Lúcio Márcio Felipe estabelece a data dramática do diálogo como 91, ano em que Felipe exerceu o 30 cargo juntamente com Sexto Júlio César. Os ludi Romani realizavam-se no mês de setembro, em honra a Júpiter. 31 A villa é o lugar por excelência dos diálogos ciceronianos. Leeman & Pinkster 1981: 97 ad locum elencam a vila que 32 Cícero possuía em Túsculo como cenário de Discussões Tusculanas, Da adivinhação e Dos fins 3; a vila de Cumas para Dos fins 1 e a de Putéolos para Do destino, apenas o Bruto ambientando-se na casa de Cícero em Roma. Fantham 2004: 72 bem observa o contraste com o modus scribendi de Platão, cujos diálogos ocorrem, à exceção do Fedro, em espaços públicos ou privados de Atenas, e a possível motivação de Cícero em evitar a ambientação urbana: os deveres políticos e as multidões de clientes e dependentes. Podemos acrescentar que o Bruto seria exceção, neste caso, em virtude da Guerra Civil e do ostracismo político de Cícero na ocasião. Cévola já não era mais sogro de Crasso, depreende-se, em virtude da morte da esposa deste, embora não se saiba 33 exatamente a data de seu falecimento. Cota perderia esta eleição.34 Sulpício seria tribuno da plebe em 89-88.35 Cícero confere especial cuidado ao decoro do diálogo: as personagens não se reuniram na vila de Crasso 36 primordialmente para descansar, como acabarão por fazer, mas para discutir política. Para uma interpretação do léxico do divino no De oratore e sua aplicação às personagens, leia-se o excelente artigo 37 de Stull 2011. A conduta de Crasso em particular, como anfitrião, mas também a das demais personagens, ao longo do diálogo, é 38 caracterizada como urbana, refinada, afável e graciosa, como se verifica no uso de vocábulos como urbanitas, comitas, humanitas e cognatos. Cf. 1.35; 1. 106; 2. 227; 2. 362; 3. 1; 3. 29. Leia-se, em particular, Hall 1996. Ainda no que concerne ao esmero de Cícero na construção do decoro do diálogo, é de reparar como as personagens 39 permanecem ativas mesmo no otium. Eco verbal de Platão, Phdr. 229c: duobus spatiis tribusve [“duas ou três voltas”] retoma δύ᾽ ἢ τρία στἀδια [“dois ou 40 três estádios”]. Para uma sistematização do pano de fundo platônico no De oratore, leia-se Görler 1988 (com bibliografia, n. 2). Imitamur [“imitamos”] é metalinguístico: na ficção do diálogo, refere-se à atitude de Sócrates; fora dela, estabelece o 41 Fedro como obra imitada fundamental do diálogo. !6 propriamente dito que ali se descreve, como pelo discurso de Platão . Ora, com certeza é mais do 42 que justo conceder a meus pés o que ele fez com os seus, tão calejados — jogar-se na grama e falar aquilo que, segundo afirmam os filósofos, foi dito com inspiração divina. 29. Dizia que Crasso, então, respondera: — E com mais conforto ainda! — Diziam ainda que pedira almofadas e que todos se haviam acomodado nos assentos que estavam sob o plátano . Cota costumava contar que naquele 43 momento, para que as mentes de todos pudessem relaxar da conversa precedente, Crasso iniciara uma conversa acerca do estudo da oratória . 44 30. Depois de começar observando que não lhe parecia necessário encorajar Sulpício e Cota, mas, antes, cobrir os dois de elogios por já terem atingido tamanha habilidade, conseguindo não apenas estar à frente dos jovens de sua idade, mas ser mesmo comparados aos mais velhos , ele 45 disse: — Na verdade, nada me parece mais notável do que ser capaz, por meio da oratória, de dominar as multidões de homens, conquistar suas mentes, impelir para onde se queira suas vontades, desviá- las igualmente de onde se deseje. Foi sobretudo esta atividade em particular que sempre floresceu e sempre reinou em meio a qualquer povo livre, e sobretudo nas cidades que gozam de paz e tranquilidade . 31. Pois o que é tão admirável quanto, de uma multidão infinita de homens, 46 apresentar-se um único capaz de exercer, sozinho ou com muito poucos, o dom que a natureza concedeu a todos; ou o que é tão prazeroso de conhecer ou ouvir quanto um discurso ornado e limado com pensamentos sábios e palavras solenes; ou o que é tão poderoso e tão magnífico quanto transformarem-se as agitações do povo, os escrúpulos dos jurados, a austeridade do Senado por meio do discurso de um único homem? 32. Além disso, o que é tão digno de um rei, tão nobre, 47 tão generoso quanto prestar auxílio aos suplicantes, animar os aflitos, assegurar sua salvação, livrá- los dos perigos, salvar os cidadãos do exílio? E o que é tão necessário quanto ter sempre em mãos 48 as armas com que se possa, em segurança, desafiar os desonestos ou vingar-se quando provocado? 49 E mais, para não nos atermos sempre ao fórum, às bancadas, à tribunal rostral e à cúria, o que pode ser mais prazeroso, no ócio, ou mais próprio da natureza humana do que uma conversa elegante e Platão, Phdr. 229b.42 Pode-se ler essa diferença na ambientação do Fedro e do De oratore como uma afirmação do maior refinamento dos 43 latinos em relação aos gregos, algumas vezes tratados, em tom de desprezo, como Graeculi ao longo do diálogo. De maneira implausível, Görler 1988: 217 vê na observação de Crasso um reconhecimento de Cícero da menor originalidade e frescor do diálogo em comparação com Sócrates e Platão. Para uma análise aprofundada do significado da mudança de ambientação no De oratore por contraposição ao Fedro, leia-se Zetzel 2003. O diálogo começa e termina com a ideia de relaxamento proposta por Crasso. A ironia reside no fato de que, aqui, o 44 relaxamento consistirá em deixar de lado os assuntos políticos e conversar sobre oratória; em 3. 230, último parágrafo da obra, o relaxamento consistirá em deixar de lado… a conversa sobre oratória! O diálogo também começa e termina com observações complementares de Crasso sobre as personagens mais jovens. 45 Aqui, nota que não é necessário encorajá-los, por estarem à frente dos coevos e quase chegar ao patamar dos mais velhos; em 3. 229-230, no entanto, o orador exorta Cota e Sulpício a esforçarem-se para superar Hortênsio, que pertence a uma nova geração e já dá mostras de excelência oratória no que diz respeito à natureza e aos estudos. Cícero faz observações análogas no prólogo do diálogo, em 1. 14. Dez anos depois do De oratore, Cícero proclamará 46 a morte da eloquência, decorrente da perda da liberdade ocasionada pela Guerra Civil e pela subsequente ditadura de César. Cf. Brut. 22: eloquentia obmutuit [“a eloquência emudeceu”]. Crasso alude aqui aos três mais importantes contextos oratórios romanos: a assembleia popular, os tribunais e os 47 debates senatoriais, respectivamente. Objetivos das defesas empreendidas pelos patronos, em tribunal.48 Complementarmente, a alusão agora é à função de acusador, que, mal vista como era entre os romanos, deveria ser 49 assumida apenas em poucas situações, decorosamente, como aqui. !7 nada grosseira? Distinguimo-nos sobremaneira dos animais particularmente por conversarmos uns 50 com os outros e sermos capazes de expressar nossos pensamentos por meio da palavra. 33. Sendo assim, quem não terá motivo para admirá-la, considerando que é preciso dedicar-se ao máximo a superar os homens no único aspecto em que estes se distinguem dos animais? Mas, passando já ao 51 que é mais importante, que outro poder foi capaz de reunir num único lugar os homens até então dispersos, ou conduzi-los de sua vida selvagem e bruta para nosso atual tipo de vida, humano e social, ou, ainda, depois de já constituídas as sociedades, estabelecer leis, tribunais, direitos? 34. 52 Mas, para não entrar em minúcias, que são praticamente inumeráveis, encerrarei de modo breve: afirmo que não apenas a dignidade do orador perfeito, mas também a segurança da maior partedos cidadãos privados e a de toda a República residem sobretudo em sua liderança e sabedoria. Sendo assim, continuem como estão fazendo, meus jovens, aplicando-se ao estudo a que se dedicam, para que possam proporcionar honra para si mesmos, utilidade para os amigos, proveito para a República. 35. Cévola então disse cordialmente, como de costume: — Concordo no mais com Crasso, não diminuindo a arte ou a glória de Gaio Lélio, meu sogro, ou de meu genro aqui presente . Porém, Crasso, receio não poder lhe conceder estes dois pontos : 53 54 em primeiro lugar, ter afirmado não apenas que as cidades foram inicialmente estabelecidas pelos oradores, mas também, muitas vezes, preservadas por eles; em segundo lugar, ter concluído que, à parte o fórum, a assembleia popular, os tribunais, o Senado, o orador é completo em todo tipo de discurso e cultura. 36. Pois quem poderia conceder a você que o gênero humano, de início espalhado por montes e florestas, encerrou-se em cidadelas e muralhas não impelido pelos conselhos dos sábios, mas antes seduzido pelo discurso dos homens expressivos? Ou, ainda, que as demais vantagens de estabelecer ou preservar as cidades foram definidas, não por homens sábios e corajosos, mas por homens expressivos e de fala ornada? 37. Acaso lhe parece que o famoso 55 Rômulo reuniu os pastores e refugiados, estabeleceu o direito de matrimônio com os sabinos, ou mesmo conteve o poderio dos povos vizinhos pela eloquência, não pela prudência e sabedoria Sermo facetus ac nulla in re rudis [“conversa elegante e nada grosseira”] é metalinguístico, explicitando as 50 características primordiais do gênero dialógico para Cícero. Se, dentro da ficção do diálogo, o comentário refere-se às conversas em geral, fora dela podemos entender a caracterização como um ideal do gênero em Cícero. Cf. 1. 27 e nota ad locum. Cícero já explorara este tópos, de origem isocrática (3. 5-6), no prefácio do primeiro livro do De inventione (1. 5). 51 Referências em Leeman & Pinkster 1981: 111 ad locum. Também este tópos isocrático (3. 7; 4. 48) da função civilizatória da eloquência fora desenvolvido mais amplamente 52 no prefácio do primeiro livro do De inventione. Cf. particularmente Inv. 1. 2-3. Referências em Leeman & Pinkster 1981: 110 ad locum. O próprio Crasso.53 Com a réplica de Cévola, começa a primeira disputatio in utramque partem do livro 1. 54 É de notar que, com esta observação, Cévola desconsidera o fato de Crasso ter dito há pouco, em 1. 34, que a 55 liderança e a sabedoria do orador perfeito eram fundamentais para a segurança da comunidade como um todo. Se a questão da relação entre eloquência e sabedoria, fundamental no De oratore, terá uma primeira resposta na tréplica de Crasso, a partir de 1. 45, ganhará um tratamento mais detido e aprofundado apenas no livro 3 (3. 56-73; 3. 126-143) — quando Cévola já terá deixado a discussão, por sinal. !8 singulares? Ora, e o que dizer de Numa Pompílio? E de Sérvio Túlio? E dos demais reis, que 56 tiveram grande papel na constituição da República? Acaso aparece neles algum vestígio de eloquência? Ora, depois da expulsão dos reis, não obstante percebermos que a própria expulsão foi realizada pela inteligência, não pela língua de Lúcio Bruto , acaso não notamos que, a partir de 57 então, havia por toda parte abundância de ideias, vazio de palavras? 38. Quanto a mim, se quisesse me servir de exemplos de nossa cidade ou das demais, poderia mencionar mais prejuízos do que vantagens causados à situação política pelos oradores mais eloquentes. Porém, deixando de lado os demais exemplos, creio que, à exceção de vocês dois, Crasso, os mais eloquentes que tive oportunidade de ouvir foram Tibério e Gaio Semprônio, cujo pai, homem prudente e austero, nem um pouco eloquente, salvou a República em diversas ocasiões, e sobretudo quando censor. Ora, não foi pela riqueza elaborada do discurso que ele transferiu os libertos para as tribos urbanas, mas por um gesto e uma palavra. Se não o tivesse feito, a República, que hoje em dia mal conseguimos manter, há muito não estaria em nossas mãos. Por outro lado, quando seus filhos, homens expressivos e preparados para discursar por todos os recursos concedidos pela natureza ou pela formação teórica, receberam em mãos a cidade em seu apogeu (fosse pela prudência do pai, fosse 58 pelas armas dos ancestrais), arruinaram a República com sua eloquência, essa magnífica governadora das cidades, para usar sua expressão . 39. Ora, o que dizer das antigas leis e da 59 tradição ancestral? E dos auspícios, que nós dois, Crasso, presidimos para grande segurança da República? E dos ritos e cerimônias? E deste direito civil, que já há muito tem abrigo em nossa 60 família sem que tenhamos qualquer mérito na eloquência: acaso foram inventados, conhecidos, ou sequer tratados pelo grupo dos oradores? 40. De minha parte, guardo na memória a pessoa de Sérvio Galba, homem divino na oratória, bem como a de Marco Emílio Porcina e a do próprio Gaio Carbão, que você derrotou quando era ainda bastante jovem: desconhecedores das leis, pouco seguros sobre as instituições dos antepassados, ignorantes em direito civil. E excetuando você, Crasso, que aprendeu conosco o direito civil mais por seu zelo do que por alguma obrigação da parte dos expressivos, esta sua geração desconhece a tal ponto o direito que chega a ser por vezes constrangedor. 41. Quanto a você ter concluído, ao fim de sua fala, como se tivesse o direito, que o orador é capaz de participar de discussões sobre qualquer tópico com extrema eloquência, não fosse o fato de estarmos em seu domínio eu não o toleraria, e ditaria as fórmulas a muita gente, fosse para litigarem com você o edito do pretor ou para o convocarem a uma contestação em tribunal, por ter invadido de maneira tão temerária as propriedades alheias . 42. Tomariam medidas legais contra 61 você, em primeiro lugar, os pitagóricos todos, e os discípulos de Demócrito reivindicariam em Dois dos monarcas do período real, segundo a tradição. Cévola menciona-os porque ambos são considerados 56 fundamentais no desenvolvimento da Urbe. Numa Pompílio, de origem sabina, teria sido o segundo rei de Roma, sucedendo Rômulo. Dele, Cícero faz o personagem Cota observar, em N.D. 3. 5: mihique ita persuasi, Romulum auspiciis, Numa sacris constitutis fundamenta iecisse nostrae civitatis [“e estou convencido de que Rômulo e Numa lançaram as fundações de nossa cidade, o primeiro estabelecendo os auspícios, o segundo, os sacrifícios"]; Sérvio Túlio, de origem latina, teria sido o sexto rei de Roma, sendo também considerado o segundo fundador da Urbe em virtude de suas reformas. Referência em Leeman & Pinkster 1981: 118 ad locum. Lúcio Júnio Bruto teria dado início, segundo a tradição, à era republicana em Roma em 510, com a expulsão de 57 Tarquínio Soberbo. A ideia de “apogeu” (civitatem […] florentissimam) espelha o que Cícero afirmara em própria pessoa no prólogo do 58 diálogo, em 1. 1 (in optima re publica, “no apogeu da República”). Crasso não usara tal expressão para referir-se à eloquência…59 Na qualidade de áugures. Cévola entrara para o Colégio dos Áugures em 129, Crasso, em data incerta.60 Cícero, jocosamente, empresta a Cévola o jargão legal, próprio de sua especialidade. 61 !9 tribunal o que lhes era de direito juntamente com os demais filósofos da natureza , homens de 62 oratória ornada e grave, com os quais não lhe seria permitido disputar o depósito legal. Além disso, viriam em seu encalço as seitas de filósofos já desde sua ilustre fonte e nascente, Sócrates, provando que você não aprendeu nada, não investigou absolutamente nada, não sabe nada sobre o bem na vida, nada sobre o mal, nada sobre as paixões, nada sobre o caráter dos homens, nada sobre as normas de conduta . E, quando todos eles tivessem feito sua investida contra você, cada escola lhe 63 intentaria um processo. 43. Viria persegui-lo a Academia, obrigando-o a negar o que quer que tivesseafirmado . Os nossos estoicos, por sua vez, o manteriam enredado nas tramas de suas 64 discussões e argumentações . Já os peripatéticos provariam que é preciso buscar junto a eles aquilo 65 mesmo que você julga serem os recursos e ornamentos do discurso próprios dos oradores, e mostrariam que Aristóteles e Teofrasto escreveram não apenas melhor, mas muito mais sobre tais temas do que todos os mestres de oratória . 44. Deixo de lado os matemáticos, os gramáticos, os 66 músicos, com cujas artes essa sua faculdade oratória não se liga sequer pela mais tênue relação. É por isso, Crasso, que não considero que ela tenha tanto valor e traga tantos benefícios. Já é bastante grandioso você poder afiançar que, nos julgamentos, a causa que defende, qualquer que seja, pareça melhor e mais plausível; que o seu discurso tenha grande poder de persuasão nas assembleias populares e nos pareceres do Senado; enfim, que aos sábios pareça discursar expressivamente, aos tolos, também com propriedade. Se você puder mais do que isso, considerarei que não é um orador quem o pode, mas Crasso, com a capacidade que lhe é própria, não com a que é comum aos oradores. 45. Disse então Crasso, em resposta: — Não ignoro, Cévola, que é costume entre os gregos falar e debater acerca de tais questões. De fato, tive a oportunidade de ouvir homens importantes ao ir, quando questor , da Macedônia para 67 Atenas no auge da Academia, segundo se dizia na época, quando esta era dirigida por Cármadas, Clitômaco e Ésquines . Havia ainda Metrodoro, que, juntamente com eles, fora zeloso discípulo do 68 ilustre Carnéades, o mais arguto e fértil de todos os homens, segundo se dizia, na oratória, e eram influentes Mnesarco, discípulo de seu caro Panécio, e Diodoro, discípulo do peripatético Critolau . 69 46. Havia, além disso, muitos outros filósofos ilustres e famosos, e eu via todos eles, quase a uma só voz, afastarem o orador do leme das cidades, excluí-lo de qualquer espécie de doutrina e conhecimento dos temas mais elevados, relegá-lo e confiná-lo apenas aos tribunais e às assembléias Referência à física ou filosofia da natureza, um dos três ramos da filosofia antiga.62 Referência ao ramo ético, ou moral, da filosofia antiga. 63 Referência ao ceticismo da Nova Academia, que advogava a impossibilidade de se alcançar a verdade e a adoção do 64 verossímil em cada situação como o mais próximo desta. Referência ao ramo lógico da filosofia antiga: Cévola alude à dialética estoica. 65 Cévola alude às obras retóricas de Aristóteles e Teofrasto. Aristóteles, além de sua célebre Retórica, também 66 escrevera um diálogo de juventude sobre o tema, o Grylo, e a Coletânea das artes, compilação dos manuais de retórica até sua época. Teofrasto desenvolvera aspectos pontuais da doutrina, como a atuação e a doutrina das virtudes do discurso. A data da questura de Crasso é incerta, variando os prosopógrafos entre 111-110 (Sumner 1973: 97) e 109 (Broughton 67 1951: 546). Embora Crasso refira-se aqui à Macedônia, em outras passagens fala-se da Ásia como a província em que Crasso fora questor (2. 360; 2. 365; 3. 75). Referências em Leeman & Pinkster 1981: 137 ad locum. Cármadas (c. 165-91), Clitômaco (187/6-110/109), Ésquines (d. i.), Metrodoro (c. 170-?), filósofos acadêmicos 68 discípulos de Carnéades (214/3-129/8). Mnesarco (d. i.) e Panécio (c. 185-109), filósofos estoicos; Diodoro (d. i.) e Critolau (d. i.), peripatéticos. 69 !10 populares de pouca monta, tal como se faz com os escravos nos moinhos . 47. Mas eu mesmo não 70 concordava com eles nem com o inventor e originador de tais discussões, de longe o mais solene e eloquente de todos na oratória, Platão, cujo Górgias li então muito atentamente com Cármadas, em Atenas. Nesse livro, admirava Platão sobretudo pelo fato de, ao zombar dos oradores, parecer ele próprio um exímio orador. De fato, já há muito a controvérsia em torno de uma palavra atormenta esses greguinhos, mais ávidos de disputa do que da verdade . 48. Ora, ainda que alguém tenha 71 estabelecido que orador é aquele que é capaz de falar copiosamente apenas perante o pretor ou nos 72 tribunais, ou ainda perante o povo ou no Senado, é preciso que atribua e conceda muitos conhecimentos ao orador assim definido: é que sem o estudo aprofundado de todos os assuntos públicos, ou sem o conhecimento das leis, da tradição, do direito, e sem conhecer a natureza e o caráter dos homens, não é possível que fale desses próprios temas com habilidade e perícia . Já 73 quanto àquele que tomou conhecimento de tais coisas, sem as quais ninguém é capaz de defender apropriadamente sequer as questões mais elementares, que conhecimento das mais importantes poderá lhe faltar? Mas, se você pretende que não cabe ao orador senão falar de maneira ordenada, ornada, copiosa, eu me pergunto: como pode ele conseguir precisamente isso sem o conhecimento que vocês não lhe concedem? Pois não pode haver mérito no discurso a não ser que aquele que virá a falar tenha apreendido também o assunto de que falará. 49. Sendo assim, se, tal como se diz e me parece correto, o ilustre filósofo da natureza, Demócrito, falava ornadamente, a matéria de que tratava deve ser considerada própria do filósofo da natureza, mas o ornato das palavras propriamente dito, do orador. E se Platão falava de modo divino acerca de temas bastante distantes das controvérsias civis, como concedo, e se, do mesmo modo, Aristóteles, Teofrasto, Carnéades eram eloquentes nos temas que discutiam, bem como agradáveis e ornados em sua fala, mesmo que os temas que discutem residam em outras disciplinas, o discurso em si é próprio apenas desta doutrina acerca da qual falamos e investigamos . 50. Efetivamente, observamos que alguns 74 filósofos discutiram os mesmos temas de modo árido e seco, tal como fez aquele que afirmam ser agudíssimo, Crisipo, que não deixou de fazer jus à filosofia por não apresentar essa capacidade oratória provinda de uma arte alheia. Logo, que diferença há, ou como se discernirão a riqueza e a abundância oratórias daqueles que citei, da aridez daqueles que não se servem dessa variedade e refinamento oratórios? Haverá claramente um elemento que aqueles que discursam bem devem apresentar como característico: um discurso ordenado, ornado e distinto por algum artifício e embelezamento. Quanto a esse discurso, se não há em sua base um tema apreendido e conhecido pelo orador, é forçoso que não seja coisa alguma ou que seja ridicularizado pelo escárnio geral. 51. De fato, o que há de tão insano quanto o som vazio das palavras, mesmo as melhores e mais A ideia de restringir o campo do orador é jocosamente comparada por Crasso aos moinhos, que eram empurrados em 70 movimento circular e repetitivo por escravos ou mulas. A desqualificação de Platão, neste contexto, em nítido contraste com a admiração e a solenidade com que Cévola o 71 mencionara em 1. 29, parece relacionada à obra aludida em cada passo — aqui, o Górgias, lá, o Fedro — e a maneira como a retórica é apresentada em cada uma. Referência ao procedimento preliminar dos processos, no qual o caso era submetido à aprovação do pretor segundo a 72 lei concernente à acusação. Mesmo que se adote a posição mais circunscrita do papel do orador, como aqui, o princípio de que falar bem 73 demanda o entendimento do assunto faz Crasso insistir na necessidade de experiência política e de conhecimentos variados de sua parte. Crasso estabelece a oratio [“discurso”, mas também “maneira de falar”] como o domínio do orador, ficando os 74 conhecimentos específicos como território das demais artes. A base para se atingir o correto modo de falar, porém, são justamente os conhecimentos específicos, segundo Crasso (1. 50, abaixo). O raciocínio de Crasso responde não apenas às objeções de Cévola, mas também, e talvez principalmente, à tradição antirretórica platônica iniciada com o Górgias, há pouco mencionado pelo personagem, segundo a qual a retórica seria uma arte sem objeto. Repare-seno plural utilizado por Crasso em 1. 48 e 1. 59, “conceditis”. !11 distintas, sem um pensamento ou conhecimento subjacente? Portanto, do que quer que se trate, qualquer que seja a arte de que provenha, qualquer que seja a situação, se o orador instruir-se tal como na causa de um cliente, discursará melhor e com mais distinção do que o próprio inventor e especialista no assunto. 52. Se houver alguém que afirme que há certos pareceres e causas próprios dos oradores, bem como um conhecimento de determinadas questões circunscrito aos limites do fórum, eu admitirei, de minha parte, que nosso discurso versa com maior frequência sobre elas. No entanto, dentre essas próprias questões, há inúmeras que esses mestres a que chamam rétores não ensinam nem dominam . 53. Pois quem desconhece que o poder do orador manifesta-se sobretudo 75 quando incita as mentes dos homens à ira, ao ódio ou à indignação, ou quando as reconduz dessas mesmas paixões à brandura e à misericórdia? Por isso, a não ser que tenha um conhecimento aprofundado dos temperamentos dos homens, bem como de toda a natureza humana e das causas pelas quais se incitam ou apaziguam as mentes, o orador não será capaz de realizar o que deseja pelo discurso . 54. Ora, todo este terreno é considerado domínio dos filósofos, e jamais consentirei 76 que um orador se oponha a isso. Porém, mesmo que lhes conceda o conhecimento dos temas, uma vez que pretendem dedicar-se exclusivamente a ele, o orador tomará para si o tratamento do discurso, que, sem aquele conhecimento, é inexistente. É que é próprio do orador, como já disse muitas vezes, um discurso grave, ornado e adequado às concepções e às mentes dos homens. 55. Admito que Aristóteles e Teofrasto escreveram sobre tais temas. Mas repare, Cévola, se isso não está inteiramente a meu favor, pois não lhes tomo emprestado os elementos que têm em comum com o orador: eles concedem que os temas que discutem são domínio dos oradores. Dessa forma, intitulam e designam seus outros livros de acordo com o nome de sua arte, a estes denominam “retóricos”. 56. Efetivamente, quando aparecerem no discurso aqueles lugares-comuns — porque inúmeras vezes temos de falar dos deuses imortais, da devoção, da concórdia, da amizade, do direito comum dos cidadãos, do direito dos homens e do direito dos povos, da equidade, da temperança, da magnanimidade, de todo tipo de virtude —, clamarão, creio eu, todos os ginásios e todas as escolas dos filósofos que todos esses temas lhes são próprios, de seu domínio, de forma alguma concernentes ao orador. 57. Embora lhes conceda que discutam sobre tais temas no recôndito das salas de aula para passar o tempo livre, atribuirei e confiarei ao orador a tarefa de desenvolver com todo o encanto e gravidade os mesmos temas sobre os quais eles debatem numa linguagem simples e sem vigor. Eu discutia pessoalmente tais temas com os filósofos em Atenas, naquela ocasião. De fato, obrigava-me a tal o nosso caro Marco Marcelo, que agora é edil curul e com certeza participaria desta nossa conversa, caso não estivesse promovendo os jogos; e já naquela época, ainda muito jovem, era admiravelmente dedicado a tais estudos. 58. Já quanto ao estabelecimento das leis, da guerra, da paz, dos aliados, dos tributos, do direito dos cidadãos dividido por categorias, de acordo com a ordem e a idade, que os gregos afirmem, se quiserem, que Licurgo e Sólon — apesar de pensarmos que devem ser enumerados entre os eloquentes — tinham, a respeito, melhor conhecimento do que Hipérides ou Demóstenes, homens já completos e refinados na oratória, ou que nossos conterrâneos prefiram, neste ramo, os decênviros que escreveram as doze tábuas, que eram forçosamente sábios, a Sérvio Galba e seu sogro Gaio Lélio, homens de reconhecida distinção pelo renome na oratória. 59. Jamais negarei a existência de determinadas artes próprias daqueles que depositaram todo o seu empenho no aprendizado e tratamento de tais temas, mas direi que o orador completo e perfeito é aquele capaz de falar sobre todos os assuntos de maneira abundante e variada. Efetivamente, não raro surge, naquelas causas que todos reconhecem como próprias dos oradores, algum elemento que é preciso tomar, não à Tendo se afastado dos filósofos, Crasso toma agora distância dos rétores, na disputa entre os dois campos.75 Em resposta a Cévola (1. 42) e espelhando uma observação do próprio Cícero, no prólogo (1. 17), Crasso aponta a 76 necessidade do conhecimento e uso das emoções por parte do orador para que atinja seus objetivos. Crasso insiste nesse ponto em 1. 60. !12 prática pública, única que vocês concedem ao orador, mas a alguma ciência mais obscura. 60. Realmente, eu me pergunto se é possível discursar contra ou a favor de um comandante sem que se tenha experiência militar ou, muitas vezes até, o conhecimento das regiões terrestres e marítimas ; 77 se é possível discursar perante o povo acerca da aprovação ou do veto das leis, ou, no Senado, acerca de qualquer aspecto da política, sem um enorme conhecimento e discernimento das questões civis; se é possível empregar o discurso para inflamar ou mesmo apaziguar os sentimentos e emoções, por excelência o fator de maior importância num orador, sem uma investigação extremamente cuidadosa e completa de todas as doutrinas desenvolvidas pelos filósofos acerca da natureza e do caráter do gênero humano. 61. Talvez eu não seja muito convincente para vocês, mas, de minha parte, não hesitarei em dizer o que penso: a própria filosofia da natureza e o que você considerou há pouco como próprio da matemática e das demais artes, fazem parte da ciência dos que delas fazem profissão. Porém, se alguém quiser que essas mesmas artes ganhem lustro pelo discurso, terá de recorrer à faculdade do orador. 62. E se é sabido que Fílon, o célebre arquiteto que construiu o arsenal para os atenienses, prestou contas de sua obra ao povo de maneira extremamente expressiva, nem por isso se deve considerar que sua expressividade era devida antes à arte do arquiteto que à do orador. E se coubesse a este Marco Antônio, aqui presente, discursar em favor de Hermódoro acerca da construção dos estaleiros, depois de estudar a causa com ele, discursaria ornada e ricamente acerca de uma arte alheia. Já Asclepíades, aquele de quem nos valíamos como médico e amigo, quando superava os demais médicos pela eloquência, não usava a faculdade da medicina ao empregar a fala ornada em si, mas a da eloquência. 63. Mais plausível, embora não seja verdade, é o que Sócrates costumava dizer: todos são eloquentes o bastante naquilo que conhecem. Mais verdadeiro, porém, é que ninguém pode ser expressivo naquilo que desconhece, e ninguém é capaz de falar com expressividade sobre aquilo que conhece, se, tendo um grande conhecimento, ignorar como se compõe e lima um discurso. 64. Por isso, se quisermos definir e delimitar a essência completa e própria do orador, será, na minha opinião, um orador digno de tão importante nome aquele que, qualquer tema que surja passível de desenvolvimento pela palavra, discursar com discernimento, ordem, elegância, boa memória, bem como, ainda, com certa imponência em sua atuação. 65. Mas, se alguém considerar a expressão proposta, “qualquer que seja o assunto”, irrestrita demais, cada um tem o direito de suprimir e cortar o quanto lhe parecer bem. No entanto, continuarei sustentando que, ainda que o orador ignore o que se encontra nas demais artes e ramos de estudo e domine apenas o que pertence às discussões e à prática públicas, se lhe couber discursar acerca daqueles temas, aprenderá o que concerne a cada tema com aqueles que o dominam, e discursará melhor, enquanto orador, do que aqueles a quem tais artes dizem propriamente respeito. 66. Assim, se Sulpício, aqui presente, tiver de discursar sobre um tema militar, interrogará Gaio Mário, meu parente por afinidade, e, depois de se instruir, fará uma exposição tal, que até ao próprio Mário quase parecerá entendermais do tema do que ele mesmo. Mas, se tiver de discursar sobre o direito civil, entrará em contato com você e, pela arte oratória, irá superá-lo, embora você seja bem mais sábio e experiente, exatamente naquilo que aprender com você. 67. Mas, se deparar com um caso em que se veja obrigado a discursar acerca da natureza, dos vícios dos homens, dos desejos, da justa medida, da moderação, da dor, da morte, entrará talvez em contato, se lhe parecer bem — embora o orador deva conhecer mesmo tais temas —, com Sexto Pompeu, homem de instrução filosófica. Isso sem dúvida fará que discurse acerca de qualquer tema que tenha aprendido com cada um com mais elegância do que aquele mesmo com quem aprendeu. 68. Ora, se ele me der ouvidos, uma vez que a filosofia se divide em três partes, os segredos da natureza, a sutileza da dialética, a vida e os costumes, deixemos de lado as duas primeiras, relegando-as a nossa indolência. Quanto à Como notam os comentadores, este fora exatamente o caso do De lege Manilia, discurso que Cícero pronunciara 11 77 anos antes da escrita do De oratore, em 66, defendendo a transferência do comando da guerra contra o rei Mitridates do Ponto de Luculo para Pompeu. !13 terceira, que sempre foi própria do orador, se não a dominarmos, não lhe deixaremos nada em que possa ser grandioso. 69. É por isso que todo esse tópico da vida e dos costumes deve ser estudado a fundo pelo orador. Ainda que não estude os demais, poderá, caso necessário, orná-los pelo discurso, contanto que lhe sejam dados a conhecer e transmitidos. E, realmente, se é sabido entre os doutos que um desconhecedor da astronomia, Arato, falou do céu e dos astros em versos elegantíssimos e excelentes; que um homem totalmente alheio ao campo, Nicandro de Colofon, escreveu de maneira primorosa sobre agricultura devido a uma capacidade poética, não de agricultor; por que motivo o orador não poderá discursar com extrema eloquência acerca dos temas de que se inteirou para determinada causa e circunstância? 70. De fato, o poeta está muito próximo do orador, sendo um pouco mais limitado pelo metro, mais livre, porém, pela licença no uso das palavras, colega e quase igual em muitos tipos de ornamento. Certamente são quase idênticos num ponto: não circunscrever ou restringir o seu direito por qualquer limite que os impeça de vagar por onde quiserem com a mesma capacidade e riqueza. 71. E na verdade, quanto ao que você afirmou que não toleraria caso não estivesse em meu domínio — eu ter falado que todo orador deve ser perfeito em toda espécie de discurso, em todos os aspectos da cultura —, eu seguramente nunca o diria se julgasse ser eu mesmo o orador que concebo. 72. Ora, concordo com o que Gaio Lucílio, um homem um tanto agastado contra você — e, por isso mesmo, menos próximo de mim do que desejava —, porém culto e extremamente refinado, costumava repetir: ninguém que não seja cultivado em todas as artes dignas de um homem livre deve ser contado entre os oradores. Ainda que não as usemos ao discursar, torna-se claro e manifesto se as conhecemos ou não. 73. É como os que jogam a pela: não empregam, durante o jogo em si, a técnica própria da palestra, mas o próprio movimento indica se têm ou não conhecimento desta; e como os que fazem uma escultura: ainda que não se sirvam de uma pintura, não é difícil perceber se sabem ou não pintar. Desse modo, nesses mesmos discursos dos tribunais, das assembleias populares, do Senado, ainda que não se empreguem propriamente as demais artes, logo fica claro se aquele que discursa esteve apenas a se debater nesta atividade declamatória ou se passou a discursar instruído em todas as artes liberais. 74. Disse então Cévola, sorrindo: — Não lutarei mais com você, Crasso, pois aquilo que falou contra mim, você o fez com uma habilidade tal, que concordou comigo em relação ao que não era, a meu ver, domínio do orador, para, em seguida, não sei como, o distorcer e atribuir ao orador como próprio . 75. Quando me 78 dirigi a Rodes, como pretor , e conversei com o excelente mestre dessa sua disciplina, Apolônio, 79 sobre o que eu aprendera com Panécio, ele zombou da filosofia, como de costume, e a condenou, fazendo diversas observações mais jocosas do que sérias. O seu discurso, por outro lado, foi de tal natureza, que você não desprezou qualquer arte ou doutrina, mas afirmou que todas elas são companheiras e servidoras do orador . 76. Se alguém tiver, sozinho, o domínio de todas elas, e se 80 essa mesma pessoa acrescentar-lhes essa faculdade do discurso minuciosamente ornado, não posso negar que será absolutamente ilustre e admirável. Mas tal pessoa, se existisse, ou ainda se tivesse alguma vez existido, ou mesmo se pudesse existir, com certeza seria apenas você, que não somente em minha opinião, mas na de todos, quase não deixou motivo de louvor para os demais oradores — sem ofensa para os presentes. 77. Porém, se a você mesmo nada falta saber que diga respeito às Efetivamente, Crasso, num primeiro movimento, restringe o domínio do orador ao discurso, deixando aos 78 representantes das demais artes o domínio de seus conhecimentos específicos. Num segundo movimento, porém, ao afirmar que o discurso só é possível quando subjaz o conhecimento do assunto tratado pelo orador, o personagem dá a entender, embora isso não seja explicitado, que os conhecimentos específicos fazem, de uma forma ou de outra, parte do domínio do orador. Em 98 (?).79 Cévola chama a atenção para a posição intermediária entre filósofos e rétores adotada por Crasso. Cf. 1. 52 e nota ad 80 locum. !14 questões públicas e civis, e se tem o domínio daquele conhecimento que acrescenta ao orador, cuidemos para não atribuir a ele mais do que os fatos e a própria realidade o permitem. 78. Nesse momento Crasso observou : — Lembre-se que não estava me referindo à minha capacidade, mas à do orador. Ora, o que 81 aprendemos ou pudemos conhecer, nós, que passamos a atuar antes de estudar? Nós, a quem no fórum, na carreira, na política, na defesa dos interesses dos amigos, a própria prática preparou antes mesmo que pudéssemos suspeitar de questões tão importantes? 79. Porque, se você considera que há tamanho valor em nós, a quem, mesmo que não tenha de todo faltado o engenho, como você pensa, sem dúvida faltaram a formação teórica, o tempo livre e, é certo, mesmo aquele desejo tão ardente de aprender: de que natureza e magnitude pensa você que seria o orador, se a um engenho maior se somassem aqueles elementos a que não tive acesso ? 82 80. Disse então Antônio: — Você é convincente naquilo que diz, Crasso, e não duvido que alguém venha a ser muito mais opulento ao discursar se compreender o princípio e a natureza de todas as coisas e artes. 81. Mas, em primeiro lugar, isso é difícil de conseguir, sobretudo considerando esta vida que levamos e nossas ocupações. Além disso, é de recear que nos afastemos desta nossa prática oratória popular e pública . É que me parece ser completamente diferente o modo de discursar dos homens que 83 mencionou há pouco , ainda que falem de maneira ornada e grave acerca da natureza ou das 84 questões humanas. Trata-se de um tipo de palavras extremamente brilhante, florido e mais apropriado ao ginásio e ao óleo dos atletas que a esta massa de cidadãos do fórum. 82. De fato, mesmo eu, que tive contato com as letras gregas apenas tardia e superficialmente, quando parti para a Cilícia como procônsul e estive em Atenas , demorei-me vários dias por lá devido às dificuldades 85 de navegação. Ora, como tinha diariamente em minha companhia homens eruditíssimos — praticamente os mesmos que acaba de mencionar — e, não sei por que razão, difundira-se entre 86 eles que, tal como você, eu costumava me ocupar das causas mais importantes, cada um deles discorria, na medida de suas possibilidades, acerca do ofício e da natureza do orador. 83. Alguns Crasso responde à observação feita por Cévola em 1. 77: “Porém, se a você mesmo nada faltasaber que diga respeito 81 às questões públicas e civis, e se tem o domínio daquele conhecimento que acrescenta ao orador, cuidemos para não atribuir a ele mais do que os fatos e a própria realidade permitem.” Antônio retomará esta observação adiante, em 1. 95. Em ambos os casos, temos a prefiguração da figura de Cícero, a 82 que o leitor contemporâneo, é de supor, associaria as observações. Para a importância que o próprio Arpinate conferia a sua formação teórica, cf. Brut. 305-316. As palavras de Antônio espelham as de Cícero no prólogo, em 1. 12, passagem na qual o Arpinate apontara o 83 afastamento da linguagem comum como o maior defeito de um orador (“[…] nas demais artes, sobressai-se particularmente aquele que se encontra mais distante do entendimento e da percepção dos leigos, ao passo que, na oratória, o maior dos defeitos é apartar-se da maneira usual de falar e da praxe do senso comum"). No presente caso, tal afastamento se daria pela elevação da maneira de falar dos filósofos, inadequada à massa do fórum, segundo o personagem. Em 1. 49, Crasso mencionara a elocução ornada dos filósofos Demócrito, Platão, Aristóteles, Teofrasto e Carnéades.84 Antônio fora procônsul no biênio 101-100.85 Em 1. 45, Crasso, em situação análoga à de Antônio (o personagem dirigia-se então da Macedônia, onde fora questor, 86 para Atenas), menciona as discussões filosóficas a que assistira, citando os nomes de Cármadas, Clitômaco, Ésquines e Metrodoro (acadêmicos), Mnesarco (estoico) e Diodoro (peripatético). !15 deles, tal como o mencionado Mnesarco , afirmavam que aqueles a quem denominamos oradores 87 não passavam de operários de língua ágil e treinada; que ninguém seria um orador sem ser sábio; que a própria eloquência, que consistiria na ciência do dizer bem, seria uma virtude; que aquele que tivesse uma única virtude teria todas; e que elas seriam iguais e equivalentes entre si. Desse modo, aquele que fosse eloquente teria todas as virtudes e seria um sábio. Mas essa era uma maneira de falar bem espinhosa e seca, e bastante afastada de nossas concepções . 84. Cármadas , por sua 88 89 vez, falava com muito mais riqueza acerca dos mesmos assuntos, embora não para revelar o que pensava, pois era um costume tradicional da Academia opor-se sempre a todos nas discussões. Contudo, naquele momento em particular, dava a entender que aqueles que são denominados rétores e que ensinam os preceitos da oratória não têm perfeito domínio de nada, nem podem alcançar habilidade oratória alguma se não estudarem as descobertas dos filósofos. 85. Adotavam a posição contrária atenienses expressivos e versados em política e em causas, entre os quais estava aquele que há pouco tempo esteve em Roma como meu hóspede, Menedemo . Como este afirmava haver 90 uma ciência que consiste na investigação dos princípios do estabelecimento e do governo das repúblicas, inflamava-se Cármadas, homem resoluto e provido de todo tipo de formação teórica e de uma incrível variedade e abundância de conhecimentos. De fato, ele mostrava que era preciso buscar todos os elementos daquela ciência na filosofia, e que não se encontra em parte alguma dos manuais dos rétores aquilo que se determina, numa república, acerca dos deuses imortais, da formação da juventude, da justiça, da firmeza, da temperança, da medida em todas as coisas , e 91 tudo o mais sem o que as cidades não podem existir ou ter uma tradição moral consolidada. 86. É que, perguntava ele, se aqueles mestres de retórica englobavam em sua arte tamanha quantidade de temas de suma importância, por que motivo seus livros estavam repletos de proêmios, epílogos e bobagens desse tipo — pois tal era a palavra que usava —, enquanto neles não se encontrava uma 92 letra sequer acerca da organização das cidades, da escrita das leis, da equidade, da justiça, da boa-fé, do domínio dos desejos, da formação do caráter dos homens? 87. Costumava zombar dos próprios preceitos , mostrando, assim, que tais mestres não apenas eram desprovidos daquela ciência que 93 reclamavam para si, mas sequer conheciam esta doutrina e método oratórios: julgava que o Mnesarco, filósofo estoico de época helenística. Não se sabem as datas exatas de sua vida. 87 Ao longo do diálogo, a maneira de falar dos estoicos é apresentada como inadequada ao orador em virtude de sua 88 aridez. Cf. 2. 159 (fala de Antônio): “Nesse aspecto, portanto, esse estoico não nos ajuda em nada, uma vez que não nos ensina como descobrir o que falar. Além disso, ele chega mesmo a nos atrapalhar, porque encontra muitos raciocínios que afirma serem impossíveis de desenredar e utiliza, não um tipo de linguagem límpido, solto e fluente, mas seco, árido, fragmentado e entrecortado. Se alguém aprovar essa maneira de discursar, aprovará admitindo, porém, que ela não é adequada ao orador.”; 3. 66 (fala de Crasso): "Soma-se a isso o fato de [sc. os estoicos] apresentarem uma maneira de discursar que é acurada, talvez, e certamente profunda, mas que, para um orador, é árida, desusada, desagradável aos ouvidos do público, obscura, ineficaz, seca e de uma natureza tal, que é simplesmente impossível empregá-la perante o público”. Cármadas (c. 165-91), filósofo acadêmico, discípulo de Carnéades. 89 Menedemo (datação incerta), orador ateniense. 90 Tópicos tradicionais da filosofia moral antiga.91 As observações de Cármadas inserem-se numa longa tradição de críticas aos escritores dos manuais de retórica e a 92 sua apresentação da doutrina das partes do discurso. Observamos tal crítica, de início, no Fedro de Platão; sendo retomada em seguida por Aristóteles, em sua Retórica, e pelos filósofos helenísticos, como se depreende deste passo do De oratore. Também Crasso e, com mais contundência, Antônio, retomarão esta crítica. Para referências e uma análise da postura crítica dos manuais apresentada no De oratore, cf. Scatolin 2009. Como também farão Crasso e, com mais veemência, Antônio, ao longo do diálogo, contrapondo-se, assim, à posição 93 mais diplomática de Cícero, no prólogo do livro 1. Cf. Scatolin 2009. !16 principal, num orador, era parecer, àqueles perante os quais atuava, tal como desejasse, e que isso se dava por meio de sua reputação, acerca da qual esses mestres de retórica nada haviam transmitido em seus preceitos, e influenciar os ânimos dos ouvintes segundo sua vontade — o que, do mesmo modo, de forma alguma poderia acontecer, se o orador não soubesse por quantos e quais modos, bem como com que gênero de discurso, se movem as mentes dos homens em todas as direções . 94 Tais conhecimentos estariam totalmente encobertos e ocultos no cerne da filosofia, sem que os rétores tivessem tomado contato com eles mesmo superficialmente. 88. Menedemo procurava refutar tais ideias antes com exemplos que com argumentos . De fato, recitando de memória 95 diversas passagens admiráveis dos discursos de Demóstenes, mostrava que este não ignorava os meios de influenciar os ânimos dos juízes ou do povo em todas as direções por meio do discurso, o que Cármadas afirmava não ser possível alguém saber sem a filosofia. 89. Este lhe respondia não negar que Demóstenes tivesse grande competência e grande capacidade oratória, mas, quer tal capacidade se devesse a seu talento, quer, como era sabido, ao fato de ter sido zeloso discípulo de Platão, não cabia discutir as capacidades de Demóstenes, mas o que ensinavam os rétores . 90. 96 Muitas vezes, chegava a ser levado pelo discurso a argumentar que simplesmente não existe uma arte oratória , o que mostrara não apenas com argumentos — por nascermos capazes de lisonjear 97 humildemente aqueles a quem é preciso fazer algum pedido, atemorizar em tom de ameaça nossos adversários, narrar um acontecimento, provar o que sustentamos, refutar o que se diz contra nós, enfim, implorar por algo ou deplorá-lo, elementos de que se ocupa toda a faculdade dos oradores ; 98 e pelo fato de o costume e a prática aguçarem a habilidade de raciocínio e estimularem a facilidadede expressão —, mas sustentava ainda com um grande número de exemplos. 91. De fato, afirmava, em primeiro lugar, remontando a uns tais de Córax e Tísias, que eram sabidamente, dizia, os inventores e originadores de tal arte , que nenhum autor de manuais, como se o fizesse de 99 propósito, era sequer medianamente expressivo, enquanto mencionava inúmeros homens extremamente eloquentes que não apenas desconheciam tais questões, mas sequer haviam tido a preocupação de tomar conhecimento delas. Entre eles ainda, quer o fizesse por zombaria, quer assim pensasse, ou antes por ter ouvido falar, citava a mim, que, segundo ele próprio afirmava, não Trata-se dos elemento tradicionalmente denominados “ético" e “patético” na tradição retórica, embora tal 94 terminologia, técnica e, ademais, grega, seja evitada no diálogo. É revelador o fato de Menedemo, o único orador da discussão, fazer uso apenas de exemplos, não de argumentos, em 95 sua exposição: este seria um irônico exemplo da falta de formação teórica do orador. É de reparar, ainda, que Cármadas, em seguida (1. 90), replicará com exemplos e argumentos. Este argumento de Cármadas espelha, mutatis mutandis, a observação de Cévola de que é preciso atentar antes à 96 realidade dos oradores do que à capacidade de Crasso, em 1. 76-77: "Se alguém tiver, sozinho, o domínio de todas elas [sc. artes], e se essa mesma pessoa acrescentar-lhes essa faculdade do discurso minuciosamente ornado, não posso negar que será absolutamente ilustre e admirável. Mas tal pessoa, se existisse, ou ainda se tivesse alguma vez existido, ou mesmo se pudesse existir, com certeza seria apenas você [sc. Crasso], que não somente em minha opinião, mas na de todos, quase não deixou motivo de louvor para os demais oradores — sem ofensa para os presentes. Porém, se a você mesmo nada falta saber que diga respeito às questões públicas e civis, e se tem o domínio daquele conhecimento que acrescenta ao orador, cuidemos para não atribuir a ele mais do que os fatos e a própria realidade permitem." Desde o Górgias platônico, esta observação é um dos pilares da crítica dos filósofos contra os rétores. Nem Cícero, 97 no prólogo, porém, nem as personagem, ao longo do diálogo, parecem considerar a questão muito relevante. Cf. May & Wisse 2001: 20-26. Alusão às partes do discurso, por meio de suas funções. Assim, temos, respectivamente, o exórdio (para as duas 98 primeiras, do ponto de vista, respectivamente, do defensor e do acusador), a a narração, a confirmação, a refutação e a peroração. A tradição antiga considerava Córax e Tísias como os inventores da arte oratória, na Sicília do século V. Cole 1991 99 argumenta que se trataria, historicamente, de uma única pessoa, Tísias, apodado de “corvo" (córax em grego). !17 as estudara e, ainda assim, tinha alguma habilidade ao discursar . Num dos pontos eu concordava 100 prontamente com ele: o fato de não ter estudado . Quanto ao outro, julgava que estava zombando 101 de mim, ou então que se enganava. 92. Negava ainda a existência de qualquer arte que não fosse constituída de elementos conhecidos, totalmente compreendidos, voltados a um único fim e nunca enganosos, ao passo que todos os temas tratados pelos oradores seriam duvidosos e incertos, uma vez que são expostos por aqueles que não os dominam totalmente, e são ouvidos por aqueles a quem se deve transmitir, não um conhecimento exato, mas uma opinião de momento, falsa ou, ao menos, obscura. 93. Por que me alongar? Dessa maneira, ele parecia me convencer, naquele momento, de que não existe uma arte do discurso e que, sem o conhecimento do que dizem os filósofos mais eruditos, ninguém é capaz de discursar de modo hábil e copioso. A isso Cármadas costumava acrescentar, expressando uma enorme admiração por seu talento, Crasso, que eu lhe parecia um ouvinte dócil, você, um debatedor obstinado. 94. Foi assim que eu, num livrinho que, sem saber ou consentir, escapou-me das mãos, chegando ao alcance do público , escrevi, 102 influenciado por tal opinião, ter conhecido algumas pessoas expressivas, mas ainda nenhuma eloquente , pois estabelecia que expressivo é aquele que é capaz de discursar com argúcia e 103 clareza diante de um público mediano, em conformidade com a opinião comum das pessoas, ao passo que eloquente é aquele capaz de ampliar e ornar de modo absolutamente admirável e grandioso o que deseja, e que retém na mente e na memória todas as fontes de todos os conhecimentos que se relacionam ao discurso. Ainda que tal coisa seja difícil para nós, que, antes de começar a estudar, ficamos sobrecarregados pelas disputas eleitorais e pelo fórum , consideremos 104 que ela reside na realidade e na natureza. 95. De fato, pelo que posso conjeturar, e pelo talento que observo em nossos conterrâneos, não deixo de ter esperanças de que um dia surja alguém que, com um estudo mais profundo do que temos ou tivemos, com tempo livre, com uma capacidade de aprendizado maior e mais madura, com esforço e aplicação superiores, depois de se dedicar a ouvir seus mestres, a ler e a escrever, venha a se tornar um orador tal qual procuramos, que possa com justiça ser denominado não apenas expressivo, mas também eloquente. No entanto, na minha opinião, ou nosso Crasso aqui já é tal orador, ou, se houver alguém de igual talento, porém com mais estudo, leituras e escritos, pouco terá a lhe acrescentar . 105 Para a questão do conhecimento teórico e de sua dissimulação por parte dos protagonistas do De oratore, leia-se o 100 prólogo do livro 2, particularmente a síntese feita por Cícero em 2. 4: "Ora, as coisas se passavam para os dois da seguinte forma: Crasso desejava não tanto que julgassem que não estudara, quanto que desprezava tais estudos, colocando acima dos gregos a prudência de nossos conterrâneos em todo tipo de assunto; Antônio, por outro lado, considerava que seu discurso resultaria mais aceitável a este nosso povo se pensassem que não tinha absolutamente nenhuma instrução. Assim, ambos aparentariam maior seriedade se um parecesse desprezar, o outro, sequer conhecer os gregos.” A dissimulatio scientiae é característica que Crasso e Antônio compartilham com Sócrates. Cf. Zoll 1962: 114 ss; 101 Leeman & Pinkster 1981: 80-84; Hall 1994: 214. Tal como o De inventione, no caso de Cícero, também o libellus de Antônio teria escapado das mãos de seu autor 102 contra a sua vontade. Cf. 1. 5 (Cícero escreve a seu irmão Quinto): “Ora, como me disseste várias vezes, pretendes, pelo fato de os escritos que escaparam incompletos e grosseiros de meus apontamentos, quando era menino ou, antes, adolescente, mal serem dignos desta minha idade e desta experiência, granjeada em tantas e tão importantes causas defendidas, que publique algo mais refinado e acabado acerca do mesmo tema.” Tal como fará na sequência, em 1. 95, também em 3. 189, depois da longa exposição de Crasso, Antônio observa, 103 em tom gracioso e urbano, que encontrou nele o orador eloquente que procurava: “Quanto a mim […], já encontrei o eloquente que, naquele pequeno livro que escrevi, afirmara não ter encontrado”. Antônio retoma o argumento apresentado por Crasso em 1. 78.104 Cf. 1. 81, acima, e nota ad locum.105 !18 96. Nesse momento, Sulpício interveio: — Sem que Cota e eu esperássemos, embora o desejássemos muito, Crasso, você acabou enveredando por essa conversa. Ora, quando vínhamos para cá, pensávamos que já seria bastante prazeroso se, ainda que você falasse de outros assuntos, pudéssemos obter de sua conversa algo digno de memória. Porém, que vocês penetrassem quase no âmago da discussão sobre esta atividade, arte ou faculdade , parecia-nos quase inimaginável. 97. Na verdade, mesmo eu, que me 106 inflamara de apreço por vocês dois desde bem jovem — e por Crasso, mesmo de devoção, uma vez que não me afastava dele em ocasião alguma — jamais consegui arrancar dele uma única palavra 107 acerca da natureza e dos princípios da oratória, embora eu mesmo o tivesse instigado
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