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U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O R I O D E J A N E I R O A Reescrita da Tradição: A invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857). Taíse Tatiana Quadros da Silva 2006 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O R I O D E J A N E I R O A Reescrita da Tradição: A invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857). Taíse Tatiana Quadros da Silva Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História. Orientador: Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães. Rio de Janeiro Abril de 2006. A Reescrita da Tradição: A invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857) Taíse Tatiana Quadros da Silva Prof. Orientador: Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães. Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História. Aprovada por: ____________________________________ Presidente, Prof. Dr. Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães. _____________________________________ Prof. Dr. Temístocles Cezar. _______________________________________ Prof. (a) Dr (a). Norma Cortes. Abril de 2006. Silva, Taíse Tatiana Quadros da. A Reescritura da Tradição: A invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857)/ Taíse Tatiana Quadros da Silva. Rio de Janeiro: UFRJ / IFCS, 2006. xi, 213f. Orientador: Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães. Dissertação (mestrado) – UFRJ / IFCS / Programa de Pós-Graduação em História Social, 2006. Referências bibliográficas: f. 189-213. 1. Historiografia brasileira. 2. Francisco Adolfo de Varnhagen. 3. historiografia. 4. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. I. GUIMARÃES, Manoel. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em História Social. III. Título. RESUMO A Reescritura da Tradição: A invenção historiográfica do documento na História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857). Taíse Tatiana Quadros da Silva Orientador: Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães. Resumo da Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História. O presente trabalho tem por objetivo discutir a constituição moderna da historiografia privilegiando a abordagem sobre sua organização textual e editorial. Ao contemplar o estudo sobre uma obra específica, a primeira edição da História geral do Brasil (1854-1857) de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), pretende-se circunscrever aos métodos da história cultural problemas caros à epistemologia e, inclusive, à teoria da história. Tendo o texto historiográfico como objeto procuramos indagar, além de sua redação e publicação, também os métodos de que se valera para constituir-se como saber ilustrado sobre o passado em um momento de definição da escrita cientificista da história. Como aspecto também relativo a nossa investigação se encontra a pesquisa sobre as condições de possibilidade de emergência da obra historiográfica. A historiografia, como saber, é problematizada enquanto prática, sendo principalmente considerados para a averiguação de sua invenção as instituições e os agentes que, mesmo sem uma participação direta, teriam compartilhado um processo cultural tão descontínuo quanto ressonante. Por fim, nosso trabalho almeja estabelecer uma reflexão sobre as relações culturais lusas e brasileiras, sobre os limiares que definiriam a cultura letrada de ambos entre o XVIII e XIX, período em que o Brasil esteve eminentemente atrelado ao Estado Ibérico. Esta reflexão encaminha-se ainda para a problemática da construção de uma tradição literária que, extravasando os limites da brasilidade, nos conduza aos elos históricos com além mar, questionando assim uma identidade cultural supostamente restrita aos limites nacionais. Palavras-chave: historiografia, cultura letrada, formação do campo historiográfico, tradição e cânone literário. Rio de Janeiro Abril de 2006 ABSTRACT Rewriting the Tradition: The historiographical invention of the document in História geral do Brasil by Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857). Taíse Tatiana Quadros da Silva Orientador: Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães. Abstract da Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História. The present work discusses the constitution of modern historiography, emphasizing its editorial and textual organization. While focusing a particular opus, the first edition of História geral do Brasil (1854-1857), written by Francisco Adolfo de Varnhagen (1816- 1878), this work aims to research the methods of cultural history jointly with problems from epistemology, and even from theory of history. Once having the historiographic text as the main issue, we investigated the methods, writings and publications used as a basis of an enlightened knowledge about the past, amidst the rise of a new concept of writing history, the positive scientificism. Another aspect related to our investigation concerns the analysis of development conditions of a historiographical work. Historiography, as a knowledge, is criticized as a specific practice; thus, taking in consideration the institutions and agents of its own invention, even if not acting directly on this process, we inquired how they would have shared such a discontinuous and tuning cultural process. At last, our work tried to establish a reflection about the cultural relationship between Brazil and Portugal, i. e. a certain threshold characterizing the learned culture in both countries at the 18th and 19th centuries, when the brazilian territory was soundly tied to the past influence of the Iberic State. Also, this reflection followed the paths of the problematic of the construction of a literary tradition that, beyond the bounds of the brazilian identity, is historically linked with the Portuguese, the “overseas”, delivering a critical discussion of a view regarding cultural identity as necessarily restricted by the bonds of national themes. Keywords: historiography, learned culture, formation of historiographic field, tradition, literary canon. Rio de Janeiro Abril de 2006. AGRADECIMENTOS As pessoas a quem gostaria de agradecer, minhas queridas cúmplices deste projeto, companheiras ou mestras inspiradoras deste convívio com a reflexão sobre o tempo. Temístocles Cezar, decisivo nesta etapa da minha vida acadêmica, além de amigo, é e será sempre um mestre instigante. Seu realismo diante dos meandros da tarefa universitária e ao mesmo tempo seu incentivo marcaram fortemente minhas opções e proporcionaram-me segurançae coragem para buscar um percurso pessoal. Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães, meu querido orientador, é um estimado mestre que me ilumina por sua experiência nos caminhos sinuosos da formação não apenas do pesquisador ou historiador, mas sim do homem ético e responsável, do intelectual que por suas escolhas se compromete imediatamente com o mundo. Aprender história com ele é aprender a envolver-se profundamente com o presente. Para Madalena Borba de Quadros, minha mãe, minha mais profunda gratidão. Ela é o anjo maior que zela por mim em todos os caminhos que esta criança aqui deseje atravessar, ela é o grande alento terreno, onde me recolho quando tudo parece impossível. Minha mãe adorada, ninguém conhece melhor a história deste projeto do que você! A minhas amigas amadas a quem deixei sem as deixar: Mariana Flores Thompson Flores e Lílian Beatriz Carlos, amigas dessa casa dos vinte de tantas tarefas e de tantos percalços a caminho da profissionalização e da maturidade: me fortalece imensamente o coração nossa amizade! (Ah, quisera que estivéssemos juntas agora!). Ao meu irmão Rodrigo Barbosa Ramos, esse astuto dos pensamentos e das emoções, tua irmandade, nossa cumplicidade no caráter tem também me fortificado diante da vida acentuando a capacidade de seguir o que sinto diante dos caminhos da vida. Também a Rafael Diehl, outro sonhador, este de quem, com freqüência, eu roubo as sementes das flores que florescem no meu jardim. Juntos, queremos um mundo melhor e todo o resto é supérfluo. Aos meus estimados sonhadores do tempo inatual com quem compartilho o prazer dos desafios que a historiografia nos proporciona: Fernando Nicolazzi e Rodrigo Turin: Gracias, Gracias, Gracias!! A Gustavo Alves do Carmo, meu cuidadoso amigo que se empenhou para que minha estadia no Rio de Janeiro se tornasse absolutamente agradável e inspiradora. Também a Rogério Rosa, companheiro nesta aventura de migrar às terras desconhecidas, por ter sido camarada diante dos infortúnios dessa marinheirinha de primeira viagem...Ao meu caríssimo Henrique Sérgio Batista, este arqueólogo da estética dos jazigos que nos ensina a não temer a morte. Obrigada por sua gentileza docemente cearense e pela atenção tão sua! Aos professores da UFRJ com quem trilhei este percurso de descobertas: Celeste Zenha por sua tocante erudição e amizade, Andréa Daher, com quem descobri uma forma de conceber o objeto histórico que me acompanhará por longo tempo, e a José Murilo de Carvalho, mestre inesquecível das lições sobre o Brasil, o político e o público. Aos professores Ilmar Rohloff de Mattos e Norma Cortes, professores que conheci neste momento tão especial e aos quais agradeço por terem aceitado ao convite feito pelo professor Manoel, participando de minha qualificação e banca, pela generosidade com a qual leram meu capítulo inicial e pelas sugestões que na ocasião me deram. Espero ter a chance de desfrutar com ambos de um longo convívio intelectual. Ao programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ que acolheu meu projeto permitindo que eu iniciasse um percurso para mim inusitado e gratificante na área de estudos a que tenho me dedicado. Ao Cnpq pela bolsa de pesquisa com a qual pude subsidiar minha estadia no Rio de Janeiro, onde efetuei minhas disciplinas e minha pesquisa e, por conseqüência, pela possibilidade de meu crescimento intelectual. Por fim, quero lembrar com apaixonada gratidão a Eduardo Castello Branco, presente inesperado da cidade do Rio de Janeiro, por sua compreensão e companheirismo. Cúmplice no meu projeto intelectual da maneira que somente uma alma irmã pode sê-lo, através de seu amor tenho descoberto muito mais em mim do que poderia acreditar. Duda, crescer ao seu lado é a melhor coisa do mundo! Para Madalena Borda de Quadros, minha mãe. “El regreso del pasado no es siempre un momento liberador del recuerdo, sino un advenimiento, una captura del presente.” (SARLO, Beatriz. Tiempo Pasado. Cultura y giro subjetivo. Una discusión.) SUMÁRIO Introdução ...........................................................................................................................12 Capítulo I : O Passado Sob as Injunções da História : Delimitações e aberturas na ordem historiográfica. 1.1. Projetos de Passado: Um plano historiográfico para o IHGB........................................21 1.2. Francisco Adolfo de Varnhagen.....................................................................................36 1.3. Um épos e sua pragmática: Friedrich von Martius e a escrita da História do Brasil.... 46 Capítulo II: As Formas da Erudição: A dinâmica das práticas, a conformação do campo e a invenção da autoria. 2.1. Das Belas Letras à História nacional: Passagem a uma erudição ilustrada..................... 59 2.2. O Uso da Tradição: Uma operação historiográfica no Brasil oitocentista........................72 2.3. Ser Erudito: Práticas e um campo...................................................................................106 2.4. O atelier da História e a confecção da autoria...............................................................117 Capítulo III: A Tradição Através da Representação Historiográfica: Breve olhar sobre a invenção varnhageana. 3.1. A História geral: uma narrativa historiadora entre a emancipação simbólica e a consolidação da herança..........................................................................................................131 3.2. A História como um museu de letras e o éthos aristocrático do historiador....................162 3.3. Varnhagen e a difícil representação..................................................................................175 Conclusão...............................................................................................................................185 Bibliografia.............................................................................................................................189 Introdução “Uma das maiores empresas do mundo (dizia o conde da Ericeira, D. Luiz de Meneses) é a resolução de escrever uma história; porque além de inumerável multidão de inconvenientes, que é necessário que se vençam, e de um trabalho excessivo...no mesmo tempo em que se pretende lograr o fruto de tantas diligencias, tendo-se obtido formar o intento, vencer a lição, assentar o estilo, colher as notícias, lançar os borradores, tirá-los em limpo, conferi-los e apurá-los, quando quem escreve se anima na empresa...- então começa a ser réu, e réu julgado com...excessiva tirania.”1 É com este excerto do prefácio da obra Portugal Restaurado, escrita pelo 4º Conde de Ericeira em 1698, que Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) começaria também a prefaciar sua História geral do Brasil (1854-1857). Escolhidas para figurar na abertura do tomo de 1857 da sua História geral, as palavras do historiador português evocariam os efeitos da recepção de seu primeiro volume, publicado três anos antes2. Aquelas palavras, advindas de um historiador célebre, mas já de outrora, tornar-se-iam maleáveis a manipulação do historiador brasileiro que as incluiria no próprio texto como uma ressonância de suas idéias. Entretanto, a facilidade em evocar palavras distantes na defesa dos próprios 1 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de Historia geral do Brasil, isto é, do descobrimento deste Estado, hoje império independente, escrita em presença de muitos documentos autênticos recolhidos nos arquivos do Brasil, de Portugal,da Espanha e da Holanda. Por um sócio do Instituto Histórico do Brasil, Natural de Sorocaba. Madrid, Vol.II (Imprensa de J. Del Rio), MLCCCLVII (1857). Prefácio. p.V. 2 Segundo Clado Lessa, entretanto, o primeiro volume teria vindo a público somente um ano mais tarde em relação ao ano de sua edição. De 1855 a 1857seria então a diferença entre os dois volumes integrais da História e não mais, como se poderia supor, deixando-se guiar pelas datas de impressão dos tomos. LESSA, Clado. Francisco Adolfo de Varnhagen: Correspondência Ativa. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1961. argumentos, solidarizando um ausente com o que este não pode avaliar, configuraria um blefe: estaria,Varnhagen, solitário na concepção de sua obra? A recepção romântica, implacável com os posicionamentos anti-indianistas do historiador poderia justificar a apresentação de tais lamentos no preâmbulo de sua obra. Na queixa velada aos críticos da sua História Varnhagen utilizara-se de Ericeira como se citasse uma autoridade. A relação do historiador com o insigne representante da ilustração portuguesa produziria, na narrativa histórica, uma ponte até a historiografia lusa. Contar ainda com a tradição historiográfica portuguesa para prefaciar sua História do Brasil apontaria também para outra tensa contradição de nosso autor: a de fazer parte de duas nações distintas que, devido a uma muito recente conjuntura política, haveriam se separado. O Brasil, como pátria de nascimento e também como escolha intelectual, nunca atenuaria, em Varnhagen, a presença da erudição lusa que ele adquirira em seus anos de formação e em sua experiência nos meios aristocráticos daquele país. Ocuparia o historiador, assim, uma posição difícil em um tempo de tão severa recusa das heranças lusitanas e de tanta afirmação dos aspectos autóctones. De fato, entre os conflitos latentes na História geral do Brasil, uma obra tão cara aos interesses da monarquia brasileira e composta, ainda, em meio aos debates intelectuais sobre as idéias de nação, estaria uma certa lusofilia inevitável, mesmo que constrangida pelos imperativos da escolha adulta pela brasilidade. Assim, cercar Varnhagen por sua obra é também ter em vista estes dois mundos, observando como, intelectualmente, o historiador expressaria conforme as contingências aspectos de um e outro. Voltemos ao Prefácio da História de nosso autor, marcada pelos respeitos à autoridade de Ericeira. Como afirmaria Varnhagen, tanto para ele quanto para o conde português, não seriam ignorados os meios e as limitações do texto editado. O historiador não seria apenas o autor de um texto, mas ele também estaria presente na fabricação de um objeto.3 Ericeira retomaria, ainda, em seu mesmo prefácio, outro aspecto relacionado aos artifícios de representação do passado. Afirmaria D. Luis de Meneses: 3 Como destaca CHARTIER em sua análise sobre as circunstancias relacionadas ao problema de se ter o “livro” como objeto da História Cultural: “Os autores não escrevem livros: não, eles escrevem textos que outros transformam em objetos impressos. A distância, que é justamente o espaço no qual se constrói o “Julgo por muito errada a opinião comum, que assenta que a história é paralelo da pintura: porque é tanto mais privilegiado o pintor que o Escritor, que teve lugar Apelles [sic], pondo em público uma figura sua que havia pintado, de lhe emendar a roupa, que um artífice delas lhe condenou por imperfeita, e de castigar a ousadia de outro, que não sendo pintor se atreveu a argüir-lhe o perfil da figura. Não é concedido aos escritores tanta liberdade, porque no mesmo ponto que os sinetes do prelo acabarão de selar a história que escreveram, logo perderam toda ação de emendá-la, e na dificuldade de satisfazer a um Mundo de juízos diversos, fica provado o desengano, de que não pode haver história bem avaliada de todos.” 4 Para Ericeira, entre o pintar e o escrever não haveria paralelo, ao menos no que respeitaria à possibilidade de emendar o que se fez. Os modernos “tipos” seriam algozes de idéias e o historiador, uma vítima da polifonia moral. Não sofreria o historiador, segundo Ericeira, de alguns “inconvenientes” da modernidade? De qualquer forma, Ericeira destacaria dois aspectos incontornáveis: nem a História lida apresentar-se-ia manuscrita, nem para escrevê-la poder-se-ia aplicar uma moral absoluta. Varnhagen, um século mais tarde, almejando agradar ao Imperador e ao seu público letrado, não se satisfaria em agradar facilmente. Compreendia que para a Historia, enquanto empresa moral e meio de restauração da justiça, adviria a tarefa da elucidação da verdade, como enuncia nesta passagem de seu preâmbulo: “Por quanto, além de que menos mérito teria qualquer empresa, quando em vez de trabalho e de trabalhos ela só fosse de gozos e de prazeres, recomenda um conhecido moralista que nos previnamos contra os autores de certas obras em que, no momento de aparecerem, o publico só encontra que aplaudir; pois o que isso geralmente prova e que tais autores escreveram menos com o intento de corrigir opiniões erradas, do que de angariarem aplausos, radicando ás vezes ainda mais com a sua autoridade o erro e a injustiça.”5 sentido – ou os sentidos - , foi esquecida com demasiada freqüência, não somente pela história literária clássica, que pensa a obra em si mesma como um texto abstrato, cujas formas tipográficas não importam, mas também pela Rezeptionsästhetik que postula, apesar de seu desejo de historicizar a experiência que os leitores têm das obras, uma relação pura e imediata entre os “sinais” emitidos pelo texto – que jogam com as convenções literárias aceitas – e o “horizonte de expectativa” do público ao qual são endereçadas. Em tal perspectiva; o “efeito produzido” não depende absolutamente das formas materiais que sustentam o texto. No entanto, elas também contribuem plenamente para modelar as antecipações do leitor face ao texto e para atrair novos públicos ou usos inéditos.”CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia. A História entre Certezas e Inquietude. Porto Alegre, Editora da Universidade/ UFRGS, 2002. p. 71. 4 MENEZES, Luis de. (Conde de Ericeira) História de Portugal Restaurado. Lisboa, Oficina de Miguel Deslandes, 1698.s/ n. de página. 5 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de Historia geral do Brasil, isto é, do descobrimento deste Estado, hoje império independente, escrita em presença de muitos documentos autênticos recolhidos nos arquivos do A prerrogativa moral da verdade e da justiça se consolidaria através da relação privilegiada que o historiador manteria na sua aproximação do passado. A Historia, tal como Varnhagen nos apresentaria possibilitaria o esclarecimento e a orientação do juízo. Contudo, a autoridade da historiografia produzida por ele não pretenderia fundamentar-se simplesmente em argumentos apriorísticos. O saber histórico estaria relacionado ao conhecimento, mediado pela técnica, de registros do passado. Por esta via, escreveria o historiador brasileiro, uma história da “civilização” que conciliaria a perspectiva filosófica com os rigores da crítica filológica e paleográfica. Munido desta finalidade, conforme Varnhagen mesmo nos indicaria, no contexto da escrita da História geral, faltaria um projeto bastante definido que conjugasse todas essas questões: “Primeiro que tudo, ponderava em 1838 o ilustre e digno filo-brasílico Ferdinand Denis, é da mais alta importância que os documentos que constituem a história do país sejam ao fim recolhidos. Para que as teorias diárias sejam úteis, é preciso oferecer-lhes uma base, ou para melhor dizer, um ponto de partida.” Quase pelo mesmo tempo se criava no Brasil o Instituto Histórico,e sem conhecimento deste fato existia em nós, então na Europa e ainda freqüentando as aulas, o pensamento atrevido (confessamo-lo) da empresa desta obra: e já os estudos preparatórios para um dia a realizar, começados dois para três anos antes, produziam preliminarmente, não só as reflexões críticas a obra de Soares, concluídas (e apresentadas ao vice-presidente da Academia das Ciências de Lisboa pelo digníssimo bispo conde de S. Luiz, depois cardeal patriarca) em meado de 1858, como a publicação do diário de Pero Lopes efetuada no ano seguinte.” 6 Enumerados por Varnhagen, desde o literato francês Ferdinand Denis até os fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o IHGB, concordariam no fato de que se deveria conhecer o passado através da mediação de seus vestígios. Lembrando-o, o historiador confirmaria em seu prefácio, a pretensão de que sua História geral do Brasil antes de expressar um desejo meramente pessoal, destacar-se-ia pela realização de um anseio Brasil, de Portugal, da Espanha e da Holanda. Por um sócio do Instituto Histórico do Brasil, Natural de Sorocaba. Madrid, Vol.II (Imprensa de J. Del Rio), MLCCCLVII (1857). Prefácio. p.VI. 6 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de Historia geral do Brasil, isto é, do descobrimento deste Estado, hoje império independente, escrita em presença de muitos documentos autênticos recolhidos nos arquivos do Brasil, de Portugal, da Espanha e da Holanda. Por um sócio do Instituto Histórico do Brasil, Natural de Sorocaba. Madrid, Vol.II (Imprensa de J. Del Rio), 1857. Prefácio. p.VI-VII. comum. É com esta intenção que Varnhagen também realizaria suas escolhas, escreveria e, posteriormente, reeditaria sua História do Brasil. O IHGB, fundado em 1838 e do qual Varnhagen tornara-se integrante a partir de 1840, constituíra um espaço de lucubração científico-literária e difusão do interesse nos estudos da “história pátria”. Como apresenta Manoel Salgado Guimarães, a instituição sempre visara à escrita de uma história que pudesse representar o caráter nacional. Segundo o historiador: “A leitura da história empreendida pelo IHGB está, assim, marcada por um duplo projeto: dar conta de uma gênese da Nação brasileira, inserindo-a contudo numa tradição de civilização e progresso, idéias tão caras ao iluminismo. A Nação, cujo retrato o instituto se propõe a traçar, deve, portanto, surgir como um desdobramento nos trópicos, de uma civilização branca e européia. Tarefa sem dúvida a exigir esforços imensos, devido à realidade social brasileira, muito diversa daquela que se tem como modelo.”7 Assim, para a realização de seus objetivos, o IHGB possuiria inúmeras questões indefinidas sobre os aspectos cronológicos e estilísticos para a escrita da história do Brasil. Em 1840, lançariam seus membros, através da revista da instituição, um concurso no qual seria proposta uma premiação ao plano que melhor dissertasse sobre os meios e a forma que deveria ter a História pátria. Neste plano deveriam se apresentar, conjugados, seus aspectos eclesiástico, civil, político e literário. Conduzido sem muita regularidade, o concurso finalizar-se-ia somente em 1847, quando seria premiada uma dissertação redigida pelo naturalista bávaro Friedrich von Martius, então sócio correspondente da instituição. Neste plano, a História nacional vislumbrada como “popular” e “épica”, exprimiria, pelo seu estilo narrativo, os objetivos pedagógicos que lhe inspirariam a confecção. Contudo, não apenas a escrita da história constituiria termo de incerteza e debate no seio da instituição ilustrada. Também as fontes para a averiguação da história, forneceriam tema a memórias e dissertações de seus sócios. Divididos entre a possibilidade de se restringirem a uma cultura filológica, que contemplasse no projeto de construção historiográfica somente documentos escritos e, ao mesmo tempo, envolvidos com a afirmação de uma civilização autóctone representada pelos indígenas, o instituto deveria 7 GUIMARÃES, Manoel L. L. Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, RJ, nº1, 1998. p. 8. definir, entre as questões que lhe ocupavam, uma posição epistemológica em relação aos vestígios do passado. Esta, teria conseqüências significativas na definição de história e na conformação das possibilidades de relação com o passado.8 Sobre este aspecto nos concentraremos em nosso primeiro capítulo intitulado O Passado Sob as Injunções da História – delimitações e aberturas na ordem historiográfica. Membro do IHGB, Varnhagen em sua História, concordaria com as propostas políticas já esboçadas no plano premiado de Martius, sem seguir, entretanto, os conselhos quanto ao estilo e forma sugeridos pelo naturalista. Diversamente, o historiador brasileiro empenhar-se-ia na construção de um trabalho densamente anotado, no qual, o prazer literário deveria aliar-se com a erudição explicitada na História que escreveria. Por concebermos a história como um meio específico de representação do passado, desenvolveremos, no segundo capítulo da presente dissertação intitulado As Formas da Erudição : a dinâmica das práticas, a conformação do campo e a invenção da autoria, o que consideramos, a partir de nossas investigações, como as condições de possibilidades à escrita da História no Brasil oitocentista. A realização da História geral do Brasil, por Varnhagen, expressaria, sem dúvidas, muitas dessas condições, podendo-se través da observação de sua obra apresentar e debater as configurações e normas para a escrita da história no oitocentos. Para a compreensão dos aspectos que conferiram à História varnhageniana a sua peculiaridade, é preciso ainda antever como se consolidaram as alternativas à pesquisa histórica, seu sentido e seus métodos. Além de sócio do IHGB, Varnhagen vincular-se-ia ao império do Brasil, como funcionário direto da burocrática do Estado, sendo admitido nos quadros do ministério das relações estrangeiras como adido de primeira classe à Legação.9 O futuro historiador teria sido encarregado de procurar documentos relativos aos limites do Brasil, devendo ainda, preocupar-se com fontes à história do país de que era representante no estrangeiro. Este encargo, que lhe haveria sido legado em função de seu conhecimento sobre os arquivos portugueses, associaria sua tarefa historiadora a um projeto de Estado bastante claro. A 8 A respeito do debate sobre fontes históricas, cultura filológica e definição de uma história da civilização ver: GUIMARÃES, Manoel Luiz. Reinventando a tradição: sobre Antiquariado e Escrita da História. in Humanas. Historiografia e Tradição Clássica. RIFCH/UFRGS, Vol. 16, nº 1 (jan./jun.1993) Porto Alegre, 1993-2000, v. 23, n.1/2.p 9 GARCIA, Rodolfo. Ensaio Bio-Bibliographico sobre Francisco Adolpho de Varnhagen. in História Geral do Brasil. tomo 2º. 3º edição integral. São Paulo, Melhoramentos, s/data. p. 440. empresa colecionadora de Varnhagen convergiria com as perspectivas de uma monarquia preocupada em legitimar, por meio da historiografia, seu território e sua nação. Varnhagen enquanto enviado da coroa brasileira no exterior estaria assim, exercendo uma tarefa diretamente relacionada à organização simbólica do Estado brasileiro, que dependia, então, da constituição de um patrimônio documental, confundindo-se assim o funcionário público com o erudito, o acadêmico com o diplomata defensor dos interesses nacionais no exterior. Seria no cruzamento destes diversos papéis que emergiria, conjuntamente com sua obra, o historiador. Assim, quando editada com a graça do entãoImperador do Brasil, D. Pedro II, a História varnhageniana estamparia entre suas finalidades, não apenas a meta de insuflar o sentimento nacional entre os ‘brasileiros’, mas também a intenção de representar, em meio às questões de ordem diplomática que enfrentava o Brasil, os próprios direitos do Estado nacional, afirmando-os para o mundo, através da História pátria. Este elemento que sobrecarregaria a narrativa de responsabilidades, também lhe definiria a forma, sendo as notas e documentos citados uma expressão da validade jurídica do discurso histórico apresentado. A ligação de Varnhagen com inúmeras associações eruditas esboçaria também outro elemento decisivo na estruturação da história filosófica e crítica varnhageana. Além do IHGB poderíamos mencionar a Academia Real das Ciências de Lisboa, a Sociedade de Geografia de Paris, o Instituto Histórico de Buenos Aires e a Academia Real de Munique.10 Em todas estas Varnhagen haveria pleiteado o título de sócio o que indica haver, para além das tarefas expressamente profissionais, um interesse particular de Varnhagen no envolvimento com certo ambiente social, bem como com manuscritos e impressos antigos. O prazer antiquário do contato com estes documentos, entretanto, estava, no regime das atividades letradas de que participaria Varnhagen, mediado também pelas intervenções eruditas efetuadas no interior dessas instituições, onde os materiais seriam rearticulados constituindo os seus acervos particulares. Imbricado com uma rede de lugares onde a relação com o passado seria estabelecida por meio da reorganização dos registros ou documentos utilizados Varnhagen, como historiador, distribuir-lhes-ia segundo uma nova ordem, agrupando textos das mais diversas procedências, investigando a sua origem, avaliando as suas possibilidades 10 VIEIRA, Celso. Varnhagen, homem e a obra. s/ local. Anuário do Brasil, 1923. p. 34. interpretativas. A análise sobre o sentido da manipulação de textos advindos do passado na afirmação de um caráter independente e nacional ao Brasil, circunscreveria outro de nossos objetivos e desenvolvê-lo seria a finalidade de nosso terceiro capítulo chamado A Tradição Através da Representação Historiográfica: Breve olhar sobre a invenção varnhageana. Acreditamos que avaliar como se realizaria a reorganização documental na História varnhageniana seja bastante relevante para a compreensão sobre as especificidades do próprio texto que ela articula. Assim, nossa análise tem em vista o duplo aspecto de arquivamento de documentos e construção narrativa que definiriam a escrita varnhageana. Para a investigação sobre os meios de interferência sobre os documentos realizados pelo historiador no século XIX, procuraremos ainda por seus critérios e por suas técnicas. A interpretação crítica da história do Brasil realizada por Varnhagen, conciliaria interesses diversos, mesclando o nacionalismo emergente do século XIX, com o prazer da coleção, o empenho na aquisição de obras raras, o aprendizado de técnicas de intervenção e restituição dos documentos. Procurar pela História geral do Brasil tendo como objetivo as suas possibilidades de escrita nos remeteria ao universo da erudição das práticas ilustradas de intervenção sobre o passado que estariam, no oitocentos, mesmo que transformadas à luz de novos interesses, em operação. Deste modo, disseminada na escrita do presente trabalho, esta o empenho em apresentar alguns dos aspectos característicos dessa cultura letrada, ou seja, a qual Varnhagen estaria vinculado. Pelo que se pode inferir à luz do excerto de Ericeira, a partir do qual Varnhagen comunicara seus próprios tormentos, as idéias sobre a melhor forma de representação do passado brasileiro no oitocentos, seriam mais controversas do que consensuais e, também por isso, suas possibilidades estariam, em certa medida, abertas. É tendo em vista este quadro de instabilidades que pretendemos abordar a História geral do Brasil em sua primeira edição (1854-1857), indagando os aspectos que lhe definiriam como texto historiográfico. Escrita- símbolo, a História geral tornar-se-ia marco, origem, ponte que permitiria a travessia de um estágio onde havia apenas esboços e projetos diversos de uma historiografia sem execução para outro; onde a história nacional se encontraria concretizada.11 Estudar seu sistema de escrita e apresentação é, como gostaríamos de empreender, submetê-la um pouco as contingências que podem mostrá-la menos sólida e assentada. Caberá a nós estranhá-la, lê-la não pelas certezas que expressa, mas através de seus aspectos marginais e descontinuados. 11 Se observarmos como a recepção da obra de Varnhagen é desigual entre seus pares e contemporâneos, teremos de relativizar certa apropriação posterior que ignorou trabalhos diversos, também publicados pela revista do IHGB, que minimizariam as proporções da empresa varnhageana. Capítulo I O Passado Sob as Injunções da História : Delimitações e aberturas na ordem historiográfica. 1.1. Projetos de Passado: Um plano historiográfico para o IHGB. A expectativa de organização de uma história que compreendesse a integridade do Brasil, fora declarada por Januário da Cunha Barbosa, membro fundador e primeiro secretário perpétuo da instituição, já no discurso que proferira por ocasião da solenidade de inauguração dos trabalhos do instituto. Associados e simpatizantes, reunidos, ouviram em coletiva congratulação: “Não se compadecia já com o gênio brasileiro, sempre zeloso da glória da pátria, deixar por mais tempo em esquecimento os fatos notáveis da sua história, acontecidos em diversos pontos do Império, sem dúvida ainda não bem designados. Eis o motivo, Senhores, porque dois membros do conselho da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, e também sócios do Instituto Histórico de Paris, participando dos generosos sentimentos dos nossos literatos, se animaram a propor a fundação de um Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que sob os auspícios de tão útil quanto respeitável sociedade curasse de reunir e organizar os elementos para a historia e geografia do Brasil, espalhados por suas províncias, e por isso mesmo difíceis de se colher por qualquer patriota que tentasse escrever exatamente tão desejada história. Esta proposta, vós o sabeis, Senhores, foi coroada do mais feliz sucesso e de uma geral aprovação, como se esperava do patriotismo e amor das letras que animam os beneméritos membros da Sociedade Auxiliadora.”12 12 BARBOSA, Januário da Cunha. Discurso. RIHGB: 1 (1839) 2º ed. p.9. Em pronunciamento solene iniciava Barbosa, a exposição sobre os objetivos e os meios que os impulsionarIam à associação. Estimulados pelo interesse no “zelo da glória da pátria” e, na familiaridade que já gozavam com uma certa filosofia da história, associar-se-iam no desígnio de “reunir e organizar elementos para a história pátria e geografia do Brasil”. Destes esforços deveria surgir a história geral, estabelecida e escrita por um natural brasileiro que pela realização deste feito exaltaria, mais do que o seu próprio nome, a honra de todos os nacionais: “Nos tempos da passada monarquia os escritos brasileiros, que assim então se publicavam, punham a glória de seus autores em comunhão com a dos Portugueses; e como por tantas dificuldades eram em menor número, ficavam absorvidos pelo crédito literário da metrópole, que bem pouco refletia sobre o Brasil. Quem examina a volumosa Biblioteca Lusitana do abade Barboza, encontra aí os nomes de alguns Brasileiros preclaros, que provaram, por seus escritos em diversos ramos, gêniofecundo e amor das letras. Pertence agora ao nosso Instituto, ou o zelo de cada um de seus ilustres membros, extremar essa herança preciosa que pertence ao Brasil, e que nos pode servir na organização da sua historia geral. De todos esses materiais informes, incompletos, e mesclados dos prejuízos do tempo, poderemos formar um completo regular de fatos, purificados no crisol da crítica. O talento de historiador, diz o barão de Barante, assemelha-se á sagacidade do naturalista, que em pequenos fragmentos de ossos, colhidos de escavações, como que ressuscita um animal, cuja raça desconhecida existia em plagas que sofreram cataclismos. A vida moral tem suas condições e suas leis; compõe-se também de circunstancias ligadas por meio de relações quase necessárias; a filosofia pode reconhecê-las e demonstrá-las; e a imaginação, com mais celeridade e certeza, saberá então delas assenhorear-se.” 13 Assim, se retomariam como brasileiros serviços que antes, mesmo feitos, não seriam considerados de outra nação que não a portuguesa; deveriam naquele momento sobretudo, apropriarem-se do legado, pela brasileira restituição assimilando aos trabalhos seus, tradição que definiriam pelo esforço de catalogação e/ou coleção das literaturas e diplomas perdidos. Mas não só. Também haveria de se apurá-los segundo método adequado, rearticulando o legado segundo o crisol crítico através do qual seria fundamentada a história geral. Nelson Schapochnik, no artigo Como se escreve a história apresenta, a dúplice tarefa historiadora do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro que se dividiria, entre a organização da coleção de elementos para a história e, na atenção filosófica sobre dois 13 Ibid. p.12. (grifos nossos). momentos que emergiriam determinantes e prementes – a descoberta do Brasil e sua independência: “Reunidos em torno do Instituto Histórico, os homens de letras passaram a imprimir um ritmo de trabalho intenso visando satisfazer as prioridades estabelecidas pelo estatuto: a coleta e organização das fontes documentais e o incentivo aos estudos de natureza histórica nas instituições educacionais. No entanto, o exame da RIHGB deixa entrever que essas preocupações iniciais passaram a ser sobrepujadas pela publicação de trabalhos inéditos sobre a história, geografia e etnologia que correspondem à definição e tematização dos problemas que doravante norteariam a produção dos homens de letras. Desta maneira, começa-se a conformar uma perspectiva histórica que girava em torno de dois fatos fatais (o descobrimento e a independência), da tentativa de contribuir para a definição do território nacional através das pesquisas sobre os limites e ocupação do país e, finalmente, dos estudos sobre os diversos grupos indígenas.”14 Schapochnik enfatiza, ainda, a insatisfação dos membros do instituto que, apesar do amplo empenho na constituição do seu acervo, não anteveriam sequer a definição do traço da almejada história geral, como pontuaria Januário da Cunha Barbosa em relatório de 1842: “Muitas penas, aliás ilustres, tem escrito memórias, anais e relatórios das coisas do Brasil...podemos dizer, senhores, que ainda nos falta uma história bem organizada, que apresente ao conhecimento dos nossos e dos estranhos um quadro fiel de pouco mais de três séculos, em que se veja a marcha dos nossos sucessos relacionados entre si desde a descoberta desta parte do novo mundo. É grande este trabalho, sim, mas é necessário; os enfados que arrasta serão vencidos pela perseverança de seus literatos empreendedores, serão continuados sob a valiosa proteção do liberal governo de Sua Majestade Imperial o Senhor D. Pedro II, nosso Augusto e Imediato Protetor. Figurai-vos, Senhores, as peças necessárias á construção de um grande edifício, confusamente derramadas em um vasto campo, não podendo por isso apresentar a admiração do mundo o majestoso espetáculo que lhe oferecem essas obras, que ainda afrontam o poder dos séculos; e vós tereis uma idéia da importante tarefa do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, acompanhando a civilização da pátria, cujos progressos se tornam mais rápidos de dia a dia. Existem, sim, muitos materiais para a nossa história desde a época em que o monte Pascal atraiu ao Brasil as vistas do seu afortunado descobridor, acrescentando um florão á coroa do imortal Rei o Senhor D. Manoel, já tão celebre pelo seu espírito de heróicas conquistas. A História reunirá estes materiais, coadjuvada pela Geografia; a crítica os acolherá, segundo sua proporções; a Cronologia os numerará depois de bem examinados os seus destinos, a fim de serem depois colocados 14 SCHAPOCHNIK, Nelson. Como se escreve a história? Revista Brasileira de História/ SP, v.13, nº 25. set. 92. p.67. regularmente pela filosofia em seus devidos lugares, ligados em um corpo, em que possam ser admirados por sua justeza e compostura.”15 Amparada por vasta pesquisa de materiais, aliada às disciplinas da geografia e da cronologia e em conjunção com a filosofia, a história devia se constituir em um corpo ajustado. Assim, Januário da Cunha Barbosa expressava a idéia sobre a forma adequada da história da nação. O discurso de Barbosa, definiria uma maneira bastante específica de relação com o passado, privilegiando a escrita sobre outros modos de expressão e determinando a investigação metodizada e filosófica como o recurso necessário ao conhecimento da história. A idéia, mesmo que vaga, de uma nação representada através de um corpo narrativo “ajustado” orientava as iniciativas à sistematização da história do Brasil. Contudo, o esboço preciso dessa idéia era desconhecido até mesmo por parte de seus propagadores. Presente no discurso de Barbosa estava a ausência dessa imaginação sobre a disposição das épocas históricas e dos materiais que lhe delineariam os contornos. O projeto historiográfico estabelecido – aquele que tinha como critérios a crítica e a lucubração filosófica - se encontrava ainda indeterminado na forma de sua execução. Segundo Schapochnik, a aspiração compartilhada sobre a proeminência de uma história representativa, por sua ordem, da integridade nacional se deparava com a inexistência de uma escrita que, enquanto arquitetura estruturada, identificasse, mediada por apreciações críticas, a feição da nação do Brasil: “De qualquer maneira, seria importante lembrar que, mesmo os homens de letras ressentindo-se da carência de um modelo orgânico que fosse capaz de dar conta da “marcha dos nossos sucessos relacionados entre si”, já se assinalava a presença de uma pluralidade de formas que assumiria a escrita da história. Sem nenhuma tradição interna a que se filiar e tampouco sem uma definição clara de um padrão explicativo que resultasse em uma “história bem organizada”, os membros do Instituto Histórico experimentaram modalidades distintas de intervenção sob a forma de relatórios, anais e memórias.”16 Estas outras modalidades, entretanto, se efetivariam como provisórias sendo que, a recorrência as mesmas, no âmbito do instituto, não arrefeceria a procura pela matriz da narrativa integradora. Para Schapochnik a indisposição diante das formas menos totalizadoras de representação do nacional derivaria da insuficiência hermenêutica desses 15 BARBOSA, Januário da. Cunha. Relatório dos trabalhos do Instituto durante o quarto ano social. RIHGB: 4 (1842), pp.5-6. (Suplemento) (grifos nossos). 16 SCHAPOCHNIK, Nelson. Como se escreve a história? Revista Brasileira de História/ SP, v.13, nº 25/26. set. 92/ago.93 p.68. gêneros que não propiciariam a produção de uma teleologia asseguradora do sentido do presente, traço fundamental da relação com o passado efetuada no IHGB.17 Essa perspectiva é também a de Manoel Guimarães que, em seumapeamento das concepções de história presentes no instituto, destacou como lugar de encontro entre elas, o objetivo de entrelaçar o presente com o passado, em direção ao futuro: “A Revista do IHGB, penetrada da concepção exemplar da história, abre uma rúbrica em seu interior dedicada às biografias, capazes de fornecerem exemplos às gerações vindouras, contribuindo desta forma também para a construção da galeria dos heróis nacionais. Mas não é apenas uma visão pragmática e exemplar da história que se abriga no projeto historiográfico do IHGB. A concepção de história partilhada pela instituição guarda um nítido sentido teleológico, conferindo ao historiador, através de seu ofício, um papel central na condução dos rumos deste fim último da história.(...) A leitura da história enquanto legitimação do presente, carregada, portanto, de sentido político, é sem dúvida um aspecto importante do projeto historiográfico do IHGB.”18 Assim, no instituto, teriam se aventurado seus sócios na construção desse gênero adequado à simbolização do projeto que os reunia em associação. Neste sentido, José da Cunha Mattos tentara, por sua vez, construir esse “corpo” de “justeza” e “compostura”. Em suas Épocas brasileiras ou Sumário dos acontecimentos mais notáveis do Império do Brasil ele colaborara na tentativa de formulação desta história abrangente: “No Brasil existem impressos alguns escritos laboriosos que nos apresentam a marcha sucessora da civilização da Terra de Santa Cruz; eu tenho-me aproveitado do fruto dos trabalhos destes dignos varões, e por isso desejo ajuntar em um só quadro, posto que imperfeito, aquilo que eles nos oferecem em diversas obras cuja aquisição é em certos casos impossível, e em todos mui dispendiosa.”19 Entretanto, este mesmo Cunha Mattos, haveria escrito, há menos de um ano do discurso entusiasmado de Barbosa, uma Dissertação acerca do sistema de escrever a História antiga e moderna do império do Brasil na qual apontava a série de obstáculos que a tornavam uma tarefa irrealizável .20 Respondendo ao plano proposto 17 Ibid. p. 68. 18 GUIMARÃES, Manoel L. L. Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, RJ, nº1, 1998. pp.15-16. 19 APUD SCHAPOCHNIK, Nelson. Como se escreve a história? Revista Brasileira de História/ SP, v.13, nº 25/26. set. 92/ago.93 p.69. 20 MATOS, Raimundo José da Cunha. Dissertação acerca do sistema de escrever a História antiga e moderna do império do Brasil. RIHGB: 26/27 (1863). pp. 121-143. Essa dissertação de Cunha Matos aparece referida como tendo sido apresentada a sessão de 19 de janeiro de 1839. por Barbosa sobre as épocas da história do Brasil, Matos não deixa dúvidas quanto ao fim pelo qual labutariam os sócios do instituto nas letras: “Não podendo eu ser juiz do merecimento das minhas obras literárias, havendo talvez tomado o pior caminho em a disposição e narração dos acontecimentos de que me ocupei; e achando me provavelmente deslumbrado por algum amor próprio que me apresente como bom aquilo mesmo que outras pessoas desprevenidas, sem paixões, e muito a sangue frio reconheçam absolutamente mau; continuarei a sustentar que por ora não convém, nem é possível escrever de um só jato a história geral do império do Brasil, que seja digna dele e faça honra aos membros deste Instituto, que de tal tarefa houverem de ser encarregados. Pela parte que me toca declaro francamente que se a sorte ou votação por escrutínio recair em mim para trabalhar in solidum ou como colaborador em uma empresa tão gigantesca, eu me ostentarei inabilitado, e recusarei aceitar essa honrosa comissão, para não ter de representar um papel desagradável e muito em desabono do Instituto Histórico.”21 Eximindo-se do serviço literário na recusa de um trabalho decidido por meios oficiais e, pelo que se pode crer, compulsório, Matos não estaria só em acautelar-se diante dos tantos requisitos necessárias àquela incumbência, como segue em sua dissertação: “O Sr. Belegarde quando fez o seu último discurso em a sessão do dia 15, sustentou que se deve escrever por épocas distintas a história filosófica do império do Brasil; e consecutivamente apontou algumas dessas eras, ou períodos que lhe pareceram mais próprias para a organização, e arranjo de toda a obra: outros senhores discorreram em o mesmo sentido, indicando todavia maior ou menor numero de épocas; e ultimamente o Exm. Sr. Visconde de S. Leopoldo, ferindo com a mão de mestre o complexo dos argumentos, mostrou, e pareceu- me que mui bem, que por ora não estamos habilitados a escrever a história geral do império do Brasil, por nos faltarem muitos elementos provinciaes para isso necessários. – Felizmente o Exm. Sr. Visconde faz honra a minha opinião, quando quer que indaguemos em primeiro lugar a história particular ou das províncias, para com bons materiais escrevermos a história geral do império brasileiro.” 22 As dificuldades com que se deparariam os literatos engajados na concretização do plano de escrita de uma história filosófica do Brasil seriam as mais diversas. Desde a ordem da narrativa até a sistematização das épocas apareceria referidas como sem princípios acertados. Todavia, se faltava o modelo adequado à idéia que sustentavam de uma história filosófica da nação, também os materiais para sua escrita não se apresentavam idôneos, configurando-se 21 Ibid. p.121-122. 22 MATOS, Raimundo José da Cunha. Dissertação acerca do sistema de escrever a História antiga e moderna do império do Brasil. RIHGB: 26/27 (1863). p.122. (Itálicos do autor) espúrios tanto na forma quanto no conteúdo que lhes constituía. Contundentemente Cunha Matos, lastimaria-se sobre essa precariedade: “Como será possível escrever uma história filosófica do povo do Brasil antes de levar ao cadinho da censura mais severa o imenso fardel de escritos inexatos, insultos, indigestos, absurdos e fabulosos, anteriores ao ano de 1822 em que unicamente se imprimia em Portugal, e raríssimas vezes no Brasil, aquilo que um governo desconfiado, uma inquisição intolerante, um Ordinário sem critério, uma mesa de comissão sobre a censura dos livros permitiam que fosse publicado? Como será possível escrever a história filosófica do Brasil tomando por farol os livros estrangeiros impressos antes da declaração da independência do império?”23 Haveria, deste modo, um problema político determinante também no que seria a rearticulação dos materiais para a escrita da história. A origem dos escritos tornava parcial e sem fundo de verdade o seu conteúdo. Os modos, os usos e os fins da composição dos registros advindos do passado, trairiam a suposta natureza do país que, com a independência, se tornava – aos olhos de seus idealizadores - em tudo prodigioso e soberano. Escrever a história exigia, então, uma competência em retirar dos materiais a qualidade específica que deixaria transparecer um Brasil subordinado, sem contornos próprios e autonomia sobre o seu futuro. É assim que Matos encerra, em uma mesma operação, a crítica e a censura, definindo o teor político de uma prática metodológica que derivaria tanto em uma ideologia, quanto em uma epistemologia, como prossegue em sua explanação: “Entendo que seria uma tarefa mui interessante deste Instituto o encarregar a alguns de seus membros, o exame, e a censura de todos os livros impressos acerca da história do Brasil tanto nacionais como estrangeiros, começando pela carta que Pedro Álvares Cabral remeteu ao rei D. Manoel pelo capitão Gaspar de Lemos, se felizmente chegar a descobrir-se esse monumento precioso e assim mais entrar na averiguação das circunstâncias apontadas na carta de Pero Vaz de Caminha dirigida ao sobredito monarca no dia 1º de Maio de 1500, a qualnão se acha conforme as noticias de outros historiadores, que por diferentes canais recebiam avisos dos sucessos da armada de Cabral, ou seriam delas informados quando este capitão-mór se recolheu a Portugal. Outros documentos estão pedindo o escalpelo da crítica, e são as celebradas cartas de Américo Vespúcio cuja autenticidade é atacada e defendida por escritores mui modernos.”24 23 Ibid. p.123. 24 MATOS, Raimundo José da Cunha. Dissertação acerca do sistema de escrever a História antiga e moderna do império do Brasil. RIHGB: 26/27 (1863). pp. 123-124. Por fim Cunha Matos estabeleceria os elementos que dever-se-ia privilegiar para o conhecimento do passado: “Os melhores materiais para escrever a historia do Brasil (e a de outros lugares), são os monumentos e as inscrições abertas em lâminas de pedra e metálicas; os diplomas legislativos, as cartas imperiais ou régias, os regulamentos ou regimentos, resoluções, avisos, provisões e patentes. Termos de posse de governadores, bispos, magistrados, oficiais municipais, e das outras classes de empregados públicos, e as cartas de sesmarias das terras concedidas aos mais antigos povoadores. Um crítico mui austero deve presidir ao exame destes monumentos; observar o talho da letra, a cor e o estado das tintas, confrontar as eras ou as cousas com pessoas, enfim desempenhar os deveres de bom paleógrafo e bom cronólogo.” 25 São referidos, deste modo, o grupo de materiais específicos que seriam amplamente reconhecidos como adequados na verificação dos assuntos do passado. Dentre estes se pode observar a proeminência dos documentos administrativos que tem como par, apenas, as inscrições em pedra e metal que, como os diplomas, apresentavam caracteres legíveis ou decifráveis pelo emprego das disciplinas filológicas da paleografia e da cronologia. Em contraposição a Cunha Matos, Rodrigo de Souza da Silva Pontes publicaria pela revista do instituto, em 1841, um pequeno texto sobre o programa sorteado na sessão de 24 de novembro do ano de 1840, que indagaria “Quais os meios de que se deve lançar mão para obter o maior numero possível de documentos relativos a História e Geografia do Brasil?”.26 Nele, Silva Pontes não retomaria o tema da viabilidade da história geral, mas proporia algumas estratégias práticas para que o instituto, representado por seus sócios, conseguisse executar parte da empresa de que se comprometera no momento de sua fundação. Ele, então, se dedica à reflexão sobre as formas de procura e intervenção sobre os materiais que permitiriam o conhecimento da história e geografia do Brasil. Inicia Silva Pontes: “A primeira e mais urgente das incumbências do Instituto Histórico e Geográfico consiste, segundo se vê do mesmo artigo 1º dos seus Estatutos, em coligir e preparar os materiais necessários para a história e geografia do Brasil. Esses materiais porém ou se encontram já formados, ou cumpre ainda que sejam organizados. A estes vai dando o Instituto principio e existência, à proporção que discute, e publica memórias, pareceres, e outros quaisquer trabalhos, ou elaborados no seio, ou oferecidos por pessoas, que posto não façam parte da 25 Ibid. p.138. 26 PONTES, Rodrigo de Souza da Silva. Quais são os meios de que se deve lançar mão para obter o maior número possível de documentos relativos á História e Geografia do Brasil? RIHGB: 3 (1841).pp. 149-157. nossa associação, tomam contudo a peito o progresso dos acontecimentos históricos e geográficos.”27 Como se pode ler, seria na organização mediada pelo debate entre os membros da instituição, que se estabeleceriam os documentos para o estudo histórico. Para tanto, antes se deveriam organizar comissões que visitassem os “cofres” e “depósitos” em que se achavam as fontes para a história do Brasil. Estas comissões exporiam por meio de relatórios sobre a autenticidade e relevância dos documentos encontrados, bem como o valor necessário a sua aquisição em caso da possibilidade de compra dos mesmos. Aliada a esta primeira tática, Silva Pontes proporia também que se realizassem viagens científicas. Estas, poderiam colaborar de duas maneiras: primeiro, no levantamento de fontes arqueológicas e, segundo, através da investigação das possibilidades naturais dos sítios, levando a conclusão sobre temas controversos decorrentes de opiniões desiguais contidas nas fontes inventariadas. Como explica o historiador: “Pontos há de História e Geografia referidos, ou indicados pelos diversos escritores de maneira oposta e contraditória. Alguma vez sucede que se não possa ajuizar da sua maior ou menor exatidão, sem exame e conhecimento dos lugares em que se passam as cenas relatadas, ou sem determinar, segundo os princípios da ciência, a posição geográfica desses lugares. Oferecerei por exemplo o que parece achar-se de contraditório nos escritos de Brito Freire, Barleu, e Rocha Pitta acerca da famosa história da povoação ou povoações que deram nome á guerra dos Palmares. Barleu e Brito Freire fazem distinção entre Palmares Maiores e menores. Rocha Pitta não faz essa distinção. Segundo o historiador estrangeiro os Palmares Menores tinham mais aspecto de povoação do que os Palmares Maiores. Segundo Brito Freire uns e outros constavam de pequenas povoações. Segundo Rocha Pitta uma grande povoação, e outras muito pequenas. (...) Havia pois uma, duas, ou mais povoações nos Palmares? Qual era precisamente o local em que se achavam essas povoações? Que espaço de terreno ocupavam os negros ali homisiados? O número deles não é exagerado pelos escritores, ou pelas tradições que os elevam a vinte ou a trinta mil almas? O longo espaço de tempo que durou o conto dos Palmares é suficiente para explicar-se um tal crescimento de população, apesar da destruição dos Palmares Maiores pelos anos de 1644, e apesar do vastíssimo terreno que seria necessário para ocultar e sustentar um tão grande numero de homens, vivendo de agricultura e caça? (...) Não tomo sobre mim a solução dessas questões, que na verdade apenas podem ser decididas sendo estudadas nos lugares onde os acontecimentos passaram, estudados esses mesmos lugares, determinada a sua extensão e a sua posição geográfica, ouvidas e averiguadas as tradições, e examinados documentos, uma 27 Ibid. p.149. boa parte dos quais será difícil examinar fora das mãos de seus possuidores, pois que consistem em títulos de propriedade.”28 Com Silva Pontes a pesquisa histórica adquiriria a possibilidade de uma série bastante complexa de etapas que, apresentar-se-iam diversas pela espécie de competências que exigiriam do historiador. Este, não se restringindo à consulta de fontes escritas seria viajante, geógrafo, naturalista, etnógrafo. E Silva Pontes iria mais longe em suas proposições. Ao refletir sobre o horizonte de suas propostas ele reavalia as dimensões do universo que se poderia explorar enquanto historiador e geógrafo, concluindo: “Mas não se limitam ao círculo, que tenho traçado, as importantes funções dos que preparam e organizam documentos e materiais para a história, para a geografia do país. Se o vocábulo história compreende não só os fatos e acontecimentos relativos ao estado político de uma nação, mas abrange também as variações e alternativas porque sucessivamente passa o espírito humano, o horizonte da história é amplo e vasto como todo o horizonte das artes e das ciências. Se a Geografia, não contente em descrever a superfície do globo, nos fez conhecer as diversas raças que o habitam, e nos indica os lugares onde a natureza colocou as suas variadas e excelentes produções, nada há sobre a terra que possa fugir ao exame, que possa evitar as narrações do geógrafo.”29 Retomando as perspectivas de Cunha Matos e Silva Pontes, podemos tambémconcluir que, se para a escrita da história geral faltava um modelo satisfatório, também no campo das pesquisas não estava definido os materiais para intervenção do historiador. Conforme se pode perceber dos textos acima apresentados, é seguro que a história mediada por artefatos do passado, escritos ou não, se apresentava como uma condição irrevogável o que circunscreveria, com firmeza, as condições distintivas e constitutivas dos estudos estabelecidos no IHGB. Contudo, uma perspectiva ampla da história, que não se restringisse ao político, como a apresentada por Silva Pontes, não se constituiu em uma das formas de história mais experimentas, sendo a história geral do Brasil aquela que mais representava as expectativas em relação ao nacional que inspiravam o estudo do passado. 28 PONTES, Rodrigo de Souza da Silva. Quais são os meios de que se deve lançar mão para obter o maior número possível de documentos relativos à História e Geografia do Brasil? RIHGB: 3 (1841). pp.151, 152,153,154. 29 PONTES, Rodrigo de Souza da Silva. Quais são os meios de que se deve lançar mão para obter o maior número possível de documentos relativos á História e Geografia do Brasil? RIHGB: 3 (1841). pp.154-155. Deste modo, a construção crítica sobre a tradição (na organização das fontes) e a circunscrição do passado à história geral constituiriam as condições que delimitariam a relação com o passado, conformando este a escrita baseada na análise crítica. As demandas específicas dos sócios do IHGB, formariam critérios na avaliação dos projetos experimentais de escrita que se realizariam e estas como um horizonte de expectativas, delimitariam as possibilidades criativas em relação ao passado. Finalizando, Silva Pontes faria a seguinte observação: “Tudo o que tenho ponderado é principalmente relativo aos documentos existentes, ou que se podem organizar dentro do Império. Pelo que diz respeito aos documentos, informações, e notícias que se podem haver de países estrangeiros, importa seguir (geralmente falando) o caminho já trilhado, chamando a coadjuvarmos os sábios de outros países, abrindo correspondência com as sociedades científicas, solicitando o auxílio nunca recusado do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e aceitando agradecidos a zelosa cooperação de nossos diplomatas. Apontarei por ultimo a distribuição de prêmios, pois estes chamam pelo amor da glória nacionais e estrangeiros: e não terminarei sem lembrar a urgente necessidade que temos de pessoa instruída nos segredos da paleografia, para que nos ponha em vulgar documentos de suma importância, mas totalmente ininteligíveis aos olhos do profano.”30 Um paleógrafo. A pouca habilidade dos sócios do IHGB para lidarem com os materiais que se deveria estudar já fora mencionada, anteriormente, por Cunha Matos. Neste último excerto de Silva Pontes outros são os elementos que configurariam as possibilidades da pesquisa naqueles primeiros anos da instituição. O IHGB, de forma geral, tinha entre os seus projetos, como podemos inferir de seu estatuto, a investigação e a coleção sobre documentos dispersos pelo território brasileiro.31 A pesquisa em arquivos do exterior, sem que fosse uma realização de menor importância, não encontrava a mesma ressonância entre os associados. Entretanto, a investigação em arquivos portugueses e espanhóis não seria menos almejada pelos mesmos. De acordo com José Honório Rodrigues, a possibilidade de se empreender a procura de documentos no estrangeiro daria-se já na segunda sessão de encontros entre os associados e expressar-se-ia na solicitação de Rocha Cabral para que o instituto “empregasse todos os seus esforços para mandar vir de Portugal importantes 30 Ibid. p. 157. 31 “Art. 1º: O Instituto Histórico e Geográfico tem por fim coligir, metodisar, publicar ou arquivar os documentos necessários para a história e geografia do Império do Brasil; e assim também promover os conhecimentos destes dois ramos filológicos por meio do ensino público, logo que o seu cofre proporcione esta despesa.” Extratos dos Estatutos do IHGB. RIHGB:1 (1839) p.22. manuscritos que lá deviam existir sobre o Brasil.”32 Entretanto, a iniciativa solicitada por rocha Cabral se tornaria uma possibilidade a partir do pronunciamento de outro sócio, José Silvestre Rebelo, como se pode saber à luz da ata referente à sessão de 7 de junho de 1839: “O Sr. José Silvestre Rebelo fez a seguinte proposta: “Que se peça ao corpo legislativo, que autorize o ministro dos negócios estrangeiros para mandar um adido á Espanha e outros países, afim de copiar os manuscritos importantes que alí existam, relativos ao Brasil.” Foi apoiada a proposta, e remetida à supramencionada comissão, afim de dar o seu parecer sobre ela; bem como remeteu-se igualmente o seguinte aditamento do Sr. Pantoja: - “Que se peça ao governo, que expeça ordem aos presidentes das províncias para ministrar os documentos que nelas existem.”33 A proposta foi bem acolhida pelo ministério sendo aceitas as solicitações e lida a sua aprovação já na sessão de 24 de agosto daquele mesmo ano, como consta em tomo da Revista do instituto referente ao período: “O Sr. Bento da Silva Lisboa informou ao Instituto que o governo imperial tinha anuido ao requerimento em que se pedia que enviasse um adido às legações brasileiras em Espanha e Portugal, afim de alí copiar os manuscritos que existiam relativos aos Brasil. O Instituto recebeu com nímio prazer esta notícia, e nomeou uma comissão especial composta dos Srs. Bento da Silva Lisboa e Athaide Moncorvo, para apresentarem em sessão as instruções que se devem dar ao adido.”34 Em dez de setembro, Bento da Silva Lisboa leria as instruções ao adido. Estas apresentariam sobretudo uma relação de manuscritos que deveriam ser procurados nas bibliotecas portuguesas e espanholas.35 Conforme Honório Rodrigues, tal seria o desdobramento da iniciativa que visava a ampliação das investigações sobre o passado brasileiro: 32 A Pesquisa Histórica no Brasil. Sua Evolução e Problemas Atuais. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro/ Departamento de Imprensa Nacional, 1952. p. 29. “2º Sessão em dia 15 de dezembro de 1838. Presidência do Ex. Sr. Visconde de São Leopoldo. Ordem do dia – Quais são as verdadeiras épocas da história do Brasil? Os Ill. Srs. Cunha Matos, Lino de Moura, José Silvestre Rebelo, leram trabalhos sobre este projeto; e falaram por diversas vezes sobre ele os Srs. Pedro Bellegarde, Cunha Barboza, Cunha Matos, Dr. Maia, Visconde de São Leopoldo e Rocha Cabral: este último terminou seu discurso pedindo ao Instituto que empregasse todos os seus esforços para mandar vir de Portugal importantes manuscritos, que lá devem existir, sobre o Brasil; o que foi unanimamente aprovado. Esta discussão, sendo encerrada pela hora, ficou adiada para a sessão seguinte, e os trabalhos escritos remetidos à commissão de história.” Extratos das atas das sessões dos meses de Outubro, Novembro e Dezembro. RIHGB: 1 (1839) p. 355. 33 Extratos das atas das sessões dos meses de Abril, Maio e Junho. RIHGB: 1 (1839) p. 151. 34 Extratos das atas das sessões dos meses de Junho, Julho, Agosto e Setembro. RIHGB: 1(1839) p. 257. 35 Ibid. p. 259. “Januário da Cunha Barbosa, no discurso do primeiro aniversário do Instituto, agradece ao Imperador o amparo que dera à iniciativa deste e louva a nomeação do primeiro pesquisador público brasileiro, José Maria do Amaral, o qual, por decreto de 23 de agosto de 1839, foi removido da Legação de Washington para as de Madrid e Lisboa, a fim de coligir documentos que pudessem interessar à história do Brasil, na conformidade das instruções que lhe enviara o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com o qual deveria manter-se em constante e direta correspondência.Em carta de 11 de Setembro recebia Amaral as instruções de Januário da Cunha Barbosa. Mas só a 11 de junho de 1840 pode chegar a Lisboa e tratar de obter a indispensável permissão oficial para trabalhar nos Arquivos.”36 Deste modo haveria no horizonte dos estudiosos brasileiros a esperança de mais dia, menos dia, se enfronharem em pontos inéditos da história pátria esboçados em materiais que encontrados perdidos nos arquivos de “além mar”, entre documentação dedicada a temas alheios. Ainda na mesma comemoração aniversária que nos relata Rodrigues o presidente do instituto,visconde de São Leopoldo, exultante, abordaria os esforços para a concretização do arquivo de fontes à história do Brasil com as seguintes palavras: “Senhores, se forte e perseverante é vossa vontade, se dispondes de copiosos recursos de talentos e luzes, cumpre não dissimular, que também é mui árdua a empresa, a que fitais de coligir, metodizar, publicar ou arquivar os documentos necessários para a história e geografia do Brasil (2): arcanos jazem reservados, e aferroados pela mão do tempo, que só na sua marcha lenta e insensível os vai alargando, e entrega à sagacidade e estudo do sábio os vestígios dos povos que já passaram; estão ainda em começo, e quem, apesar dos séculos que tem decorrido, será capaz de prever e marcar as raias de seus vastíssimos domínios? No ramo histórico há pouco ainda era um problema: - Quando e como foi povoada a América de homens e animais? – A sociedade Real dos Antiquários do Norte, em Copenhagen (3), superando montes de dificuldades na infatigável investigação de inscrições de monumentos evocando os mares de gerações, que já não existem, e forçando-os a revelar fatos que derramam clarões de luz inesperada sobre uma época que parecia para sempre submergida em noite profunda, há demonstrado a ponto de – evidencia que remonta ao décimo século a descoberta da América; que à afouteza dos Escandinavos se deve este feliz sucesso; e que Colombo, discípulo da escola portuguesa de marinhagem na Madeira, visitando em 1477 a Islândia, instruiu-se ali desse notável acontecimento, o qual serviu de poderoso incentivo para suas futuras expedições. (...) 36 RODRIGUES, José Honório. A Pesquisa Histórica no Brasil. Sua Evolução e Problemas Atuais. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro/ Departamento de Imprensa Nacional, 1952. p. 30. Nosso Instituto, emulando aquela assembléia de sábios, pesquisa já em toda a vastidão do império, pelos seus sócios correspondentes, essas testemunhas mudas, os hieróglifos, as inscrições, os vestígios da passagem ou do assento dos povos, e a memória dos acontecimentos; entretanto que favoneando generosamente por um governo ilustrado, agentes instruídos esmerilham manuscritos e documentos concernentes a este país, que sepultados se achem nos arquivos principais da Europa. D’Além mar partiram sem dúvida os primeiros navegantes; conquistadores, nos primitivos tempos foram os primeiros viajantes; mercadores audazes os primeiros exploradores; úteis cruzadas, aqueles com a espada, estes com o caduceu em punho, trouxeram melhoramento social: assim a civilização brotou do comércio e da guerra.”37 Retomava, o presidente da instituição, os termos dispostos no estatuto, comparando, ainda, os trabalhos de pesquisa e elucidação do passado que deveriam ser executados com as realizações da exitosa Sociedade Real dos Antiquários do Norte. De fato, a reflexão sobre as investigações históricas, decorrentes do debate entre o IHGB e a sociedade dinamarquesa, traria à tona questões que envolveriam a definição sobre a origem do Brasil. Em sua influência sobre a instituição brasileira, a sociedade nórdica, reconhecida por desenvolver um trabalho bastante promissor na área da arqueologia, sugeriria um novo quadro de possibilidades à investigação científica sobre o passado, no qual, sobre as fontes escritas, estariam os objetos materiais de uma forma geral. Essa perspectiva metodológica, por sua vez, tinha como uma de suas conseqüências o alargamento da cronologia da história do Brasil que, teria suas origens, antes da suposta descoberta portuguesa, nas civilizações indígenas autóctones. Isto, de acordo com as análises de Manoel Guimarães, configuraria uma outra possibilidade para a relação com o passado, que em sua expansão para além dos limites da cultura escrita expressava uma percepção também mais abrangente da própria concepção de história: “É preciso ter claro que a perspectiva esposada por Nyerup [membro da sociedade dinamarquesa] em relação à imagem partilha de uma outra perspectiva de que seria possível por meios distintos do texto escrito se ter acesso a esse passado, pressupondo, portanto, que o caminho oferecido pela imagem dos restos desse passado não partilha dos mesmos princípios de decifração do texto escrito. Procedimento que será responsável pela autonomia do trabalho arqueológico em relação à cultura filológica. Seu trabalho caminha no sentido de libertar o passado de uma cronologia estreita limitada à supremacia das fontes escritas, e para essa tarefa a recolha sistemática de restos arqueológicos desse passado, submetidos a uma leitura meticulosa a partir de princípios que deveriam inclusive 37 Discurso de abertura recitado pelo Presidente. RHIGB: 1(1839). pp. 268-269. recorrer às ciências naturais, como a geologia, seriam capazes desse esforço de ampliação da cronologia, fundando assim uma antigüidade do homem para além mesmo do registro textual escrito. Longe de ter sido facilmente aceita, essa foi uma batalha difícil de ser ganha, pois significava a superação de tradições fortemente assentadas, sobretudo a partir do texto bíblico, para a datação da história da humanidade.”38 E, referindo-se ao interesse da Sociedade Real dos Antiquários em estabelecer contatos com o IHGB, Guimarães concluiria: “Neste sentido, voltar-se para uma associação de letrados cujo o interesse primordial é pelo passado do Império, que possui entre seus habitantes um grande número de populações “primitivas” não é puro exotismo, mas parte de um projeto intelectual que vê nesses contatos possibilidades de validação de uma rede científica. Sua metodologia de trabalho, ao pensar a questão da temporalidade a partir de análises de natureza técnica e tipológica dos restos encontrados entre sociedades que não dispunham de escrita, ou cujos registros não puderam chegar até nós pelo menos, enfatiza necessidade de libertar a cronologia das amarras de uma cultura filológica, podendo, assim, constituí-la a partir de pressupostos mais universais.” 39 Portanto, se a história do Brasil consistia no objetivo primeiro do IHGB, as possibilidades de desenvolvimento da mesma se confundiriam com o estabelecimento de suas fontes e métodos. Assim, a disputa sobre a verdade do passado brasileiro permeava também os meios de investigação o que tornava tanto as fontes, quanto os métodos em termos centrais de um embate cultural e político que se expressaria como científico. 38 GUIMARÃES, Manoel L. L. Salgado. Reinventando a tradição: sobre Antiquariado e Escrita da História. in Humanas. Historiografia e Tradição Clássica. RIFCH/UFRGS, Vol. 16, nº 1 (jan./jun.1993) Porto Alegre, 1993-2000, v. 23, n.1/2 p. 130. 39 GUIMARÃES, Manoel L. L. Salgado. Reinventando a tradição: sobre Antiquariado e Escrita da História. in Humanas. Historiografia e Tradição Clássica. RIFCH/UFRGS, Vol. 16, nº 1 (jan./jun.1993) Porto Alegre, 1993-2000, v. 23, n.1/2. p. 132. 1.2. Francisco Adolfo de Varnhagen Concomitante a este momento de especulação investigativa e expectativas, em 1839, seria recebida pelos membros do instituto, uma correspondência que, pelo tema e abordagem, tornar-se-ia
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