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MARIA DA GLÓRIA DE OLIVEIRA Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu (1853-1927) PORTO ALEGRE 2006 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. MARIA DA GLÓRIA DE OLIVEIRA Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu (1853-1927) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História Banca examinadora: Prof. Dr. Temístocles Cezar/ UFRGS (orientador) Prof. Dr. Ilmar Rohlof de Mattos/PUCRJ Profa. Dra. Sílvia Petersen/UFRGS Prof. Dr. Benito Bisso Schmidt/UFRGS PORTO ALEGRE 2006 À Maria José, minha mãe in memoriam Agradecimentos Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa concedida durante todo o período do curso, o que me possibilitou a dedicação em tempo integral à elaboração desta dissertação. Ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPG/História/UFRGS), particularmente os professores César Guazzelli, Regina Weber e Regina Xavier, pelos seminários nos quais pude discutir e aprofundar questões relacionadas à teoria da história. À Marília Marques Lopes, pela gentileza e atenção com que sempre atendeu às minhas solicitações. Aos professores integrantes da banca examinadora Ilmar Rohloff de Mattos, Sílvia Petersen e Benito Schmidt por disporem generosamente de seu tempo para a leitura e discussão deste trabalho. Aproveito para renovar a minha gratidão pelas críticas e sugestões preciosas que me foram apontadas durante a banca de qualificação pelos professores Benito Schmidt e Sílvia Petersen. Uma menção especial ao professor Temístocles Cezar, a quem credito não apenas a orientação, mas sobretudo uma contribuição inestimável à minha formação acadêmica e profissional. Com ele compartilho os possíveis acertos desta dissertação como resultado do incentivo constante e da autonomia intelectual concedidos em sua elaboração. Os eventuais equívocos que forem aqui detectados devem ser atribuídos à incontrolável obstinação de quem tenta, pela primeira vez, dar forma e sentido a um esforço de reflexão. Sou grata aos amigos Álvaro Klafke, leitor atento dos meus textos e interlocutor paciencioso nos momentos em que manifestei minhas inquietações e Fernando Nicolazzi, pelo brilhantismo e pertinência de seus comentários. Estendo a minha gratidão a todos os colegas do GT de Teoria da História e Historiografia, em especial a Rodrigo Turin, Mara Rodrigues e Evandro dos Santos. Aos meus familiares, agradeço o apoio insubstituível de minhas irmãs Maria Cláudia e Maria Fernanda; a confiança incondicional de meu pai, Henrique Fernando e, por fim, o amor e a cumplicidade de Antônio em todos esses anos. RESUMO A presente dissertação tem por objetivo desenvolver uma reflexão sobre a relação entre método e escrita da história a partir da análise dos escritos de João Capistrano de Abreu. A hipótese que orienta a leitura de sua obra é a de que os dispositivos da crítica documental, praticada pelos historiadores do século XIX, ao mesmo tempo em que conferem as marcas de credibilidade ao texto histórico, também impõem coerções e limites incontornáveis à sua construção. O estudo do caso Capistrano oferece a possibilidade de investigar alguns desdobramentos epistemológicos desta questão, sobretudo em um momento em que a história nacional investiu-se de pretensões científicas, com diretrizes teóricas e temáticas próprias. A história em capítulos do historiador corresponderia à instauração de um novo regime de escrita cujos dispositivos de validação não se encontrariam exclusivamente na explicitação do aparato crítico utilizado, mas na coerência explicativa própria do texto que ele elaborou. ABSTRACT This dissertation aims at reflecting on the relation between the method and the writing of history based on the analysis of João Capistrano de Abreu's writings. The hypothesis to be examined is that the apparatus of documental critique, practiced by 19th century historians, provides credibility to the historical text but also imposes strict coersion and limits to its construction. The study of Capistrano's case makes it possible to investigate some epistemological consequences of such issue, especially in a period in which national history aspires to be scientific with its own theoritical and thematic rules. Capistrano's history in chapters has established a new writing pattern whose validation procedure is not exclusively found in the explicitness of his critique apparatus, but also in the explicative coherence of his text. Sumário Introdução: A escrita da história: indício de uma prática..............................................2 1. Morte e vida de um historiador do Brasil ............................................................14 1.1 Morrer sem escândalo........................................................................................19 1.2 O historiador e seus descobrimentos..................................................................23 1.3 “Um homem que estudou” .................................................................................27 1.4 A rejeição do lugar ............................................................................................35 1.5 Crítica e história................................................................................................42 1.6 O Brasil em evolução ou dissolução?.................................................................52 2. Como deveria ser reescrita a história pátria ........................................................60 2.1 A reescrita da história e os “quadros de ferro” de Varnhagen.............................66 2.1.1 O historiador “bandeirante” ........................................................................68 2.1.2 A massa ciclópica de materiais acumulados................................................71 2.1.3 A história não é a crônica............................................................................76 3. O momento do arquivo .........................................................................................87 3.1 Editar e interpretar.............................................................................................92 3.2 A História do Brasil de Frei Vicente do Salvador..............................................97 3.3 O que é um autor?...........................................................................................109 3.4 Do testemunho à prova documentária..............................................................114 3.4.1 O historiador e o juiz.................................................................................120 4. A história do Brasil entre a anotação e a escrita................................................129 4.1 O “desvio” etnográfico ....................................................................................132 4.1.1 Por que estudar a língua dos índios...........................................................133 4.1.2 Escrita histórica, escrita etnográfica..........................................................140 4.2 A anotação à História Geral do Brasil: conversações ao pé de página.............149 4.3 A história que se escreve em capítulos.............................................................154 4.3.1 O fechamentodo texto..............................................................................157 Considerações finais: Crítica, método e escrita da história.......................................161 Referências Bibliográficas ......................................................................................165 2 Introdução A escrita da história: indício de uma prática “O que fabrica o historiador quando se torna escritor? Seu próprio discurso deve revelá-lo” . Michel de Certeau.1 João Capistrano de Abreu não é um historiador como os outros. Sua obra, em grande parte, publicada na forma de artigos em jornais, não chegou a se consumar em uma história geral do Brasil nos moldes das que se escreviam em meados do século XIX e cuja elaboração lhe fora tão cobrada. No entanto, os seus Capítulos de História Colonial ocupam um espaço único entre os chamados textos “fundadores” da historiografia brasileira, aqueles que a constituíram como tal e para os quais, nas palavras de François Hartog, não cessamos de retornar, seja embalsamando-os ou recusando-os.2 Por não se tratar aqui nem de um gesto nem de outro, uma leitura de seus escritos tampouco se justifica pela demonstração da suposta atualidade ou do provável caráter precursor da sua interpretação do Brasil. Antes de tudo, talvez seja possível lê-lo levando em conta o que Hayden White identifica como a natureza metafórica dos grandes “clássicos” da historiografia que marca, em certos textos, um tipo particular de representação do passado, resguardando- os da invalidação definitiva.3 Neles, poderíamos reconhecer modelos do ofício do historiador muito tempo depois que as suas explicações específicas dos “fatos” perderam a vigência e a relevância.4 No entanto, como proceder à leitura de um autor 1 CERTEAU, M. L’écriture de l’histoire. Paris: Éditions Gallimard, 1975, p. 123. As traduções de textos em língua estrangeira, citados nesta dissertação, são de minha responsabilidade. 2 HARTOG, F. O espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, p. 15. 3 WHITE, H. Teoria literária e escrita da história. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n.13, 1994, p. 28. 4 WHITE, H. Historicismo, História e imaginação figurativa. In: Trópicos do discurso. 2a ed. São Paulo: Edusp, 2001, pp. 135-136. 3 cujo nome e obra, submetidos ao incessante cortejo de intérpretes, comentaristas e críticos, provocaram tantos efeitos e desdobramentos? Em sua condição de cânone historiográfico, como estudá-lo, tomando-o como fonte e objeto de investigação? Em um sentido amplo, convencionou-se chamar de historiografia o estudo crítico dos textos históricos e de seus respectivos autores. Os trabalhos deste gênero, usualmente considerados mais próximos às interrogações dos filósofos da história do que dos historiadores de ofício, caracterizaram-se pela elaboração de balanços bibliográficos com o objetivo de instrumentalizar a pesquisa histórica.5 Sob uma perspectiva diacrônica, grande parte deles configura uma história da história concebida como processo cumulativo do conhecimento acerca do passado, na qual o recenseamento das obras tem em vista o suposto percurso evolutivo de aquisição deste saber. Esta abordagem articula-se à idéia de que os textos dos historiadores somente podem ser explicados e compreendidos a partir dos contextos histórico-sociais de sua produção. Tais concepções marcaram a constituição de um campo de estudos em torno da produção historiográfica no Brasil. Assim, em José Honório Rodrigues (1913-1987), autor de trabalhos pioneiros nesta área, encontra-se a afirmação de que “a historiografia é verdadeiramente um espelho onde se refletem os problemas da própria nação e da humanidade”.6 A metáfora sugere uma estreita e compulsória relação de correspondência entre as produções dos historiadores e as características históricas da sociedade da qual as suas atividades fazem parte.7 Entendida como manifestação da própria história do país, a historiografia brasileira refletiria as condições sócio- econômicas nacionais. Deste modo, a predominância de temas ou a emergência de questões historiográficas são explicadas por suas conexões com o momento histórico que as “produziu” .8 A partir desta perspectiva de interpretação, Capistrano de Abreu aparece como a expressão do Brasil do final do século XIX, historiador com o qual se inicia uma historiografia nova e “ inteiramente nacional” que se afasta do “excessivo apego ao 5 GUIMARÃES, Manoel Salgado. Historiografia e cultura histórica: notas para um debate. Ágora, UNISC/RS, 2005. (artigo no prelo). 6 RODRIGUES, J. H. Teoria da História do Brasil. (Introdução metodológica). 5a ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1978 [1957], p. 28. [grifo meu]. Para uma análise da concepção de historiografia deste autor, ver GUIMARÃES. Manoel Salgado, Historiografia e cultura histórica, op. cit.. 7 RODRIGUES, J. H., Teoria da História do Brasil, op. cit., p. 32. 8 Idem, p. 33. 4 passado português” para centrar o seu interesse na formação das nossas origens como nação autônoma.9 Com José Honório Rodrigues, pode-se afirmar, também foram lançadas as bases para trabalhos na vertente da história das idéias que privilegiam a delimitação de influências ou filiações dos historiadores brasileiros a doutrinas e sistemas do pensamento europeu como cientificismo, positivismo, spencerianismo.10 Com esses estudos, sedimentou-se certo consenso que vincula o nome e a obra de Capistrano à concepção moderna de história.11 A ênfase concedida aqui ao nome de José Honório Rodrigues justifica-se, portanto, não somente por sua centralidade como crítico e editor da obra capistraniana, mas pela contribuição seminal de seus trabalhos na consolidação da historiografia como uma linha de pesquisa específica entre nós. A despeito de ter sido fortemente marcada pela prática sistemática de catalogação das obras dos historiadores e dos seus contextos de produção, em uma espécie de construção da memória da disciplina, a pesquisa historiográfica não deixa de remeter ao conceito ambivalente, expresso na fórmula que postula ser a história “ela mesma seu próprio saber” .12 O que significa dizer que a reflexão sobre o conhecimento histórico não se desvincula da sua elaboração e, tanto quanto este, está submetida às injunções de sua própria historicidade. Por conseguinte, as reflexões acerca das condições de possibilidade do saber histórico impõem-se em razão da especificidade mesma deste saber, ele próprio submetido a regras e 9 Idem, p. 34. 10 Os textos nos quais o autor explora este tipo de abordagem da obra de Capistrano seriam: RODRIGUES, J. H. Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, n. 221, out.-dez. 1953, pp. 120-138; RODRIGUES, J. H. Introdução. In: ABREU, J. C. de. Capítulos de História Colonial (1500-1800) & Caminhos antigos e o povoamento do Brasil. 5a edição revista, prefaciada e anotada por J. H. Rodrigues. Brasília: UnB, 1963, pp. ix-xix. 11 Sem pretender fazer aqui um levantamento exaustivo da bibliografia que faz uso desta orientação analítica, cito alguns trabalhos fundamentais, além dos textos já citados de José Honório Rodrigues: CANABRAVA, Alice. P. Apontamentos sobre Varnhagen e Capistrano de Abreu. Revista de História. São Paulo, n. 88, out./dez., 1971; WEHLING, Arno. Capistrano de Abreu: a fase cientificista. In: A invenção da História. Estudos sobre o historicismo. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Gama Filho; Niterói: Editora da UFF, 1994, pp. 169-215; ODÁLIA, Nilo. As formas do mesmo. Ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo:Unesp, 1997; BOTTMANN, Denise G. Padrões explicativos da historiografia brasileira. Curitiba/PR: Aos Quatro Ventos, 1999; VAINFAS, Ronaldo. Capítulos de história colonial. In: MOTA, Lourenço D. (org.) Introdução ao Brasil: um banquete nos trópicos 1. São Paulo: SENAC, 1999, pp. 171-190; FALCON, Francisco J. C. As idéias e noções de “moderno” e “nação” nos textos de Capistrano de Abreu. Os ensaios e estudos, 4a série – comentários. Acervo, Revista do Arquivo Nacional , vol. 12, n.1/2, jan./dez., 1999; IGLÉSIAS, F. Historiadores do Brasil. Capítulos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Belo Horizonte: Editora UFMG, IPEA, 2000; REIS, José Carlos. Anos de 1900: Capistrano de Abreu. In: As identidades do Brasil. De Varnhagen a FHC. 5a ed. Rio de Janeiro: FGV, 2002, pp. 85-114. 12 DROYSEN, Johann Gustav. Apud KOSELLECK, Reinhart. Le concept d’histoire. In: L’expérience de l’histoire. Paris: Gallimard/ Le Seuil, 1997, p. 27. 5 dispositivos de validação que se modificam segundo o tempo e o lugar a partir dos quais os historiadores exercem as suas operações. Como justificar, contudo, a legitimidade do trabalho reflexivo acerca da historiografia como campo autônomo de investigação dentro da disciplina? Embora introduza uma problemática que ultrapassa o âmbito restrito deste trabalho, um questionamento de tal ordem faz-se necessário para a demarcação da perspectiva de análise em que pretendo situá-lo, qual seja, a de um estudo historiográfico em que a escrita da história assume o estatuto de objeto e problema de pesquisa. Esta opção não induz, necessariamente, a uma ruptura com outros tipos de abordagem, nem se pretende exclusiva ou mais legítima do que outras possibilidades de leitura. É imprescindível, no entanto, que sejam apontados alguns de seus pressupostos teóricos. Desde meados dos anos de 1980, constata-se a emergência de uma “preocupação historiográfica” no interior da disciplina histórica, ao que, por sua vez, atribui-se uma crescente aproximação entre epistemologia e historiografia nos textos dos historiadores.13 Pierre Nora, na introdução à obra coletiva Les Lieux de Mémoire, assinala, para o contexto francês, o advento de uma “consciência historiográfica” com que “a história se coloca no dever de procurar nela mesma aquilo que ela não é, descobrindo-se vítima da memória e fazendo um esforço para dela se livrar” .14 Deste modo, uma história da história, mais do que “reconstituir mitos e suas interpretações” , demandaria que fossem formuladas interrogações acerca dos “meios materiais e conceituais, dos procedimentos de sua própria produção e das intermediações sociais de sua difusão” , introduzindo a disciplina, enfim, em uma “era epistemológica” com a qual se buscasse desfazer a sua identificação com a memória.15 Por outro lado, este movimento reflexivo costuma ser interpretado como uma reação à falência dos grandes paradigmas explicativos dos anos de 1960 e, de modo mais abrangente, como um dos sintomas da crise do regime moderno de historicidade.16 13 NORA, Pierre. Entre Mémoire et Histoire. La problématique des lieux. In: Les Lieux de Mémoire. Paris: Gallimard, 1997 [1984], p. 26; HARTOG, F. O século XIX e a história. O caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003, p. 22. 14 NORA, P., op. cit., p. 26. 15 Idem. 16 HARTOG, F. O século XIX e a história, op. cit., p. 23. A noção de regimes de historicidade, tal como a define Hartog, denota os diferentes modos de articulação das categorias de passado, presente e futuro em uma formulação que “modela nossos modos de dizer e de viver nosso próprio tempo” . “Um regime de historicidade abre e circunscreve um espaço de trabalho e de pensamento. Ele ritma a escritura do tempo, representa uma ‘ordem’ do tempo” . HARTOG, F. O tempo desorientado. Tempo e história. “Como 6 Neste caso, o que estaria em questão seria uma determinada forma de relação com o tempo, precisamente aquela regida pelas categorias de futuro e de progresso que, destituídas de sua força de sentido e de persuasão, cederiam lugar a um regime em que o presente, “cada vez mais inchado, hipertrofiado” , transforma-se em horizonte explicativo suficiente em si mesmo.17 Uma “preocupação historiográfica” , ao sinalizar uma exigência cada vez maior de reflexão acerca dos pressupostos teórico- metodológicos do historiador, vincula-se, então, à “tendência do presente a historiar-se” , sintoma do fenômeno do presentismo.18 Vinte anos após a constatação da entrada da história em uma “etapa epistemológica” , François Hartog indagaria se os historiadores, afinal, teriam cedido à “tentação” sobre a qual Pierre Chaunu afirmava ser necessário se afastar.19 Pois, antes de recusá-la ou defendê-la, conviria delimitar para o emprego da palavra epistemologia, uma postura crítica quanto às categorias explicativas e conceituais utilizadas pela historiografia. Na medida em que estes dois termos – epistemologia e historiografia – aproximam-se em uma espécie de fusão, o resultado não seria “nem uma epistemologia ‘dura’ (muito distante), nem uma história da história ‘banal’ (muito internalista), mas uma abordagem atenta aos conceitos e aos contextos, às noções e aos meios, e mais cuidadosa de suas articulações, preocupações de cognição e de historicização, mais vigilante às sirenes dos reducionismos”.20 O que se vislumbra, então, como perspectiva de análise, é o que Hartog chama de uma epistemologia histórica ou historiografia escrever a história da França?” Anos 90, Porto Alegre, n. 7, julho de 1997, p. 8. Para uma análise mais desenvolvida desta noção, ver HARTOG, F. Regimes d’historicité. Presentisme et expériences du temps. Paris: Édtions du Seuil, 2003, pp. 11-30. 17 HARTOG, F. O tempo desorientado, op. cit., p. 13. 18 Assim, a própria obra Les Lieux de Mémoire é apontada por Hartog como “sintoma” desse regime presentista a que se refere. Os trabalhos incluídos na volumosa coletânea organizada por Nora no início dos anos de 1980, segundo ele, “ testemunham, com efeito, em razão da permanente preocupação historiográfica que os atravessa, esta tendência do presente a historiar-se. Não se trata aqui de egocentrismo, mas de explicitação dos pressupostos do historiador” . Idem, p. 23. 19 HARTOG, F. La tentation de l’épistemologie? In: Le Débat, nº 112, novembre-décembre, 2000, pp. 80- 83. A afirmação de Pierre Chaunu foi feita nos seguintes termos: “A epistemologia é uma tentação que é preciso saber afastar decididamente. A experiência desses últimos anos não parece provar que ela pode ser a solução preguiçosa daqueles que vão perder-se aí com delícia – uma ou duas brilhantes exceções só fazem confirmar a regra –, sinal de uma investigação que se arrasta e se esteriliza? Ao menos é oportuno que alguns líderes consagrem-se a isso – o que em caso algum somos nem pretendemos ser – a fim de preservar melhor os robustos artesãos de um conhecimento em construção – o único título que pretendemos – das tentações perigosas dessa mórbida Máfia” . CHAUNU, P. Histoire quantitative, histoire sérielle. Paris: Armand Colin, 1978. Apud RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa I. Campinas/SP: Papirus, 1994, p. 137 (n.1). 20 HARTOG, F. La tentation de l’épistemologie, op. cit., pp. 81-82. 7 epistemológica que, longe de se constituir em “método” ou subdisciplina, remeteria a um questionamento cuja amplitude ultrapassaria os domínios da história.21 A idéia de uma historiografia epistemológica marca, portanto, uma inflexão relevante para a investigação da produção do conhecimento histórico. A junção destes dois termos aponta para a possibilidade de uma história da história em que obras e autores são tomadoscomo objetos de uma reflexão teórica acerca das condições que presidem a construção do saber historiográfico. Os estudos neste campo assumem a tarefa de propor respostas possíveis à interrogação que, uma vez formulada por Michel de Certeau, permanece incontornável: “O que fabrica o historiador quando faz história?”22 Com a pergunta, introduziu-se a noção de operação historiográfica, definida através de seus três componentes – um lugar social de produção, uma prática e uma escrita – cuja combinação atesta a fabricação de um texto propriamente historiográfico.23 Tomados nesta condição, os textos dos historiadores apresentam-se, por sua vez, como fontes privilegiadas para o exame de questões que dizem respeito à sua construção, ou ainda, nas palavras de Manoel Salgado Guimarães, “deixam de ser meros pretextos para se constituírem em núcleo central da investigação”.24 A centralidade que então se atribui ao problema da escrita não implica, entretanto, “fechar-se” no texto ou reduzir a história à sua dimensão retórico-discursiva. Para tanto, há que se ter em conta o conceito de máxima abrangência para a historiografia tal como o reformulou Paul Ricoeur, tendo por referência a noção introduzida por Michel de Certeau: 21 Idem. A propósito, François Dosse refere-se a uma nova configuração do cenário intelectual, marcada por uma “guinada” pragmática e interpretativa e uma “humanização” do campo das ciências humanas que permitiriam “um questionamento radical do ideal do objetivismo e determinismo” dos modelos científicos. Para um balanço dessas novas abordagens, ver DOSSE, F. O império do sentido. A humanização das ciências humanas. Bauru/SP: Edusc, 2003. 22 CERTEAU, M. de. A operação histórica. In: LE GOFF, J. & NORA, P. História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 17. 23 CERTEAU, M. de. L’écriture de l’histoire, op. cit., pp. 77-142. 24 GUIMARÃES, Manoel S. A cultura histórica oitocentista: a constituição de uma memória disciplinar. In: PESAVENTO, S. J. (org.). História cultural: experiências de pesquisa. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2003, p. 21. Neste sentido, dois trabalhos tiveram uma importância decisiva para que a escrita da história assumisse o centro das interrogações mais recentes acerca do oficio do historiador: Meta-história, publicado em 1973, por Hayden White e o já citado A escrita da história, de Michel de Certeau, surgido em 1975. Segundo Manoel Salgado Guimarães, como parte da mudança de perspectiva introduzida por estas obras, a historiografia entendida como história da história, reorganizou suas práticas e pressupostos iniciais, abandonando definitivamente uma tradição que parecia associar o trabalho neste campo à confecção de minuciosos catálogos de autores e obras, como se a identificação e contextualização de autor e obra assegurassem, por si só, a inteligibilidade da escrita histórica. GUIMARÃES, Manoel S. Historiografia e cultura histórica, op. cit.. 8 “A fim de preservar a amplitude do emprego do termo historiografia, eu não designo escrita da história à terceira fase, mas fase literária ou escritural, na medida em que se trata da exposição, da demonstração, da exibição da intenção da história colocada na unidade de suas fases, a saber, a representação presente das coisas ausentes do passado. A escrita, com efeito, é o limiar de linguagem que o conhecimento histórico desde sempre transpôs ao se afastar da memória para percorrer a tripla aventura do arquivamento, da explicação e da representação. A história é, de ponta a ponta, escrita. A este respeito, os arquivos constituem a primeira escrita com a qual a história é confrontada, antes de terminar ela mesma em escrita sob o modo literário” .25 Embora acentue as especificidades da elaboração do conhecimento pelo historiador, a formulação pode sugerir uma concepção exclusivamente discursiva da história e o conseqüente aprisionamento da análise no nível da escrita.26 Neste caso, é importante considerar, ainda com Ricoeur, que a intencionalidade da história em produzir um discurso verdadeiro sobre determinada realidade não deixa de estar presente em nenhuma das suas fases operatórias, do trabalho documental nos arquivos, passando pela configuração explicativa até a escritura propriamente dita. Disto decorre a referencialidade própria do regime historiográfico, traço distintivo do texto do historiador frente ao texto de ficção, e que, em última instância, estabelece os limites de uma leitura que incida unicamente em seu nível retórico: “[...] essa especificidade não pode ser identificada apenas no plano do funcionamento das figuras [retóricas] do discurso histórico, mas deve transitar através da prova documentária, da explicação causal e da tessitura em forma literária. Este triplo conjunto de fatores permanece sendo o segredo do conhecimento histórico” .27 25 RICOEUR, P. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Édtions du Seuil, 2000, p. 171. 26 Em um artigo dedicado à obra de Michel de Certeau, François Dosse lembra que algumas leituras tenderam a ver nele um dos representantes na França do linguistic turn, atribuindo-lhe uma abordagem puramente retórica do discurso histórico. Dosse assinala, porém, que tanto para Certeau quanto para Ricoeur, a história não se reduz a pura tropologia que a tornaria, como na concepção de Hayden White por exemplo, uma variante da ficção. “Muito pelo contrário, ele [Certeau] insiste na abertura pela história de um espaço inédito em torno da busca de uma verdade que a distingue fundamentalmente do simples ‘efeito de real’ , segundo os termos de Roland Barthes. Tanto o objeto da história quanto a própria operação do historiador remetem a uma prática, a um fazer que ultrapassa os códigos discursivos.” DOSSE, F. Michel de Certeau e a história: entre o dizer e o fazer. In: História e Ciências Sociais. Bauru/SP: Edusc, 2004, p. 221. 27 RICOEUR, P. La mémoire, l’histoire, l’oubli, op. cit., p. 323. Para a crítica de Paul Ricoeur aos argumentos de Hayden White, ver Idem, pp. 324-339. 9 Se, como a concebia Fustel de Coulanges, “a história se faz com textos” , um estudo historiográfico não se faz de modo diverso. E mesmo que se entenda o texto do historiador como resultado das determinações do lugar social em que foi produzido e de certas práticas que o configuraram como tal, algumas indagações mais específicas subsistem acerca da sua constituição. Em primeiro lugar, que operações presidem a sua construção? A partir de que elementos ele pode ser reconhecido e se tornar suscetível de análise? Pode esse texto ser interrogado como “documento”? Ou ainda, tomado nesta condição, ele “documentaria” especificamente o quê? Pois, antes que possa ser decifrado e explicado pelo contexto de sua produção, o texto historiográfico, caracterizado por uma plenitude e coerência próprias, será sempre o efeito da operação que visa a construção de um saber.28 Permanece sendo, portanto, o indício e a base material em que se inscreve a prática de que ele é o resultado. Daí o seu estatuto de fonte primária para a compreensão das maneiras com que a história se constituiu como disciplina, dotada de uma modalidade específica de escrita. Em suma, a explicação dos textos dos historiadores por elementos externos a eles, ou seja, pelo conjunto das relações políticas, econômicas e sociais supostamente dadas no momento da sua elaboração, revela-se insuficiente para a compreensão das especificidades de sua fabricação.29 Tais pressupostos teóricos me permitiram delimitar o objetivo de desenvolver uma reflexão sobre a relação entre método e escrita da história, tomando como objeto de estudo os escritos de Capistrano de Abreu.30 A escolha da obra capistraniana foi motivada pelas possibilidades de leitura que ela permite acerca dosimpasses, mais ou menos visíveis, que atravessam a modernização da historiografia desde, pelo menos, o final do século XVIII. Isto porque tal processo introduziu as exigências da composição de uma narrativa histórica duplicada – que apresenta os resultados de uma investigação e indica o caminho percorrido no processo de pesquisa – como sintoma e materialização 28 PROST, Antoine. Douze leçons sur l’histoire. Paris: Éditions du Seuil, 1996, p. 265. 29 O que está em questão aqui é determinada noção de “contexto” como sinônimo de “real” , composto por relações descritíveis e captáveis pelo historiador que assegurariam a possibilidade de um conhecimento objetivo. Uma crítica pontual a esta noção e aos seus usos pela história intelectual encontra-se em HARLAN, David. A história intelectual e o retorno da literatura. In: RAGO, Margareth e GIMENES, R. A de Oliveira (orgs.). Narrar o passado, repensar a história. Campinas: Unicamp/IFCH, 2000, pp.17-62. 30 Não poderia deixar de reconhecer, na delimitação deste tema de pesquisa, o peso decisivo da leitura do instigante artigo de Ricardo Benzaquen de Araújo sobre a construção da narrativa e suas relações com os procedimentos da crítica histórica nos trabalhos de Capistrano sobre o descobrimento do Brasil. Discutirei este texto no Capítulo 3. ARAÚJO, R. B. de. Ronda noturna. Narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, 1988, pp. 28-54. 10 inequívoca da atividade metódica do historiador.31 Nesse momento e, sobretudo ao longo do século XIX, a história como disciplina “opera explicitamente um retorno sobre si mesma”32, ao mesmo tempo em que a nação aparece como o “horizonte intransponível” de todo o saber produzido pelos historiadores.33 No Brasil, foi em um lugar – o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – que determinado projeto de escrita histórica adquiriu contornos, regras e temáticas próprias, enquanto se investia de pretensões científicas. Nele, ou a partir dele, formulou-se a indagação: “como se deve escrever a história do Brasil” . Antes de aludir à proposição de um modelo, a sentença enunciou o problema em torno do qual se adensaram as diferentes noções que compuseram a historiografia no Brasil oitocentista. Dessas disposições resultou a constituição do que Temístocles Cezar denomina de uma retórica da nacionalidade – modo persuasivo com que o discurso historiográfico apresentou aos brasileiros, a idéia de um passado (e de um presente) em comum.34 Pois, para Capistrano e grande parte de seus contemporâneos, a escrita da história pressupunha a circunscrição de uma ordem de tempo específica, o tempo da nação.35 Um desafio ao qual ele responderia distintamente do modo com que o havia feito, por exemplo, Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878): mesmo escrevendo a partir da sua História Geral, projetou quebrar os seus “quadros de ferro” e, a contrapelo, abriu caminhos, “a grandes traços e largas malhas” , com a sua história em capítulos do Brasil colonial. Sua obra, tanto quanto a do Visconde de Porto Seguro, incita uma releitura precisamente porque sugere questões que dizem respeito aos percursos da própria disciplina que ele praticou. Uma dessas questões relaciona-se aos procedimentos 31 GRAFTON, Anthony. Les origines tragiques de l'érudition. Une histoire de la note en bas de page. Paris: Éditions du Seuil, 1998, pp. 11-37. 32 Idem. 33 HARTOG, F. La France, l'objet historique. Le Monde des Débats, nov.2000, p. 16. 34 CEZAR, T. L’écriture de l’histoire au Brésil au XIXe siècle. Essai sur une rhétorique de la nationalité. Le cas Varnhagen. Paris: EHESS, 2002, p. 571. Tese de Doutorado. 35 Na base da elaboração de uma retórica da nacionalidade, portanto, a idéia de tempo da nação aqui utilizada remete à concepção formulada por Ilmar Mattos do “tempo saquarema” que, para além de uma delimitação cronológica estrita (entre os últimos anos do período regencial e o “renascer liberal” da década de 1860), expressa uma lógica de ordenação do passado nacional comprometida com a construção do Estado imperial e com a manutenção da sociedade senhorial. Para aqueles que se apresentavam como “construtores” do Império, o tempo era pensado e concebido, enfim, como um agente organizador, “de um lado, unindo o passado ao presente; de outro, possibilitando a passagem de um momento anterior, sempre compreendido como desorganizado e bárbaro, não obstante os aspectos positivos que o passado colonial encerrava, a um outro momento, entendido como superior, porque lugar da Ordem e da Civilização” . MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. A formação do estado imperial. 5a ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2004, pp. 296-297. Tratarei desta questão mais especificamente no Capítulo 2. 11 metódicos com que foram sendo delimitadas as condições sob as quais a história deveria ser escrita. Assim, o problema do “método histórico” é o que me proponho examinar neste trabalho e, a este respeito, a indagação que pode ser feita, de imediato, é: desde que se considere possível pensar em um “método” específico da investigação histórica, em que ele consiste?36 E se o pensarmos, na sua acepção mais comum, como designação para todos os procedimentos de pesquisa acionados para a aquisição e produção de conhecimento, qual o seu papel na escrita da história? E se por “ método” designam-se dispositivos que visam transformar experiências singulares em saber – o que, no caso da história “científica” , traduz-se nas operações de heurística, de crítica e de interpretação de testemunhos e fontes documentais – isto implica uma anterioridade necessária e uma sobredeterminação obrigatória da investigação em relação à escrita?37 Até que ponto estas duas tarefas – investigar e escrever – representam problemas e desafios distintos para o historiador? Em que medida é possível determinar a relação exata de interferência ou de pressuposição mútua entre investigação e escrita? 36 A reivindicação sustentada pela história dita “científica” , desde meados do século XIX, de um método especificamente histórico de investigação (como conjunto de regras capazes de assegurar a produção de um conhecimento “verdadeiro” , fundado em evidências empíricas) constituiu-se em alvo crucial das críticas formuladas à disciplina no século XX, a começar pelo célebre ensaio de François Simiand, publicado na Revue de synthèse historique em 1903 e reeditado nos Annales, em 1960. O texto crítico de Simiand dirigia-se à metodologia dos “historiens historisants” da escola metódica (sobretudo à obra de Langlois e Seignobos), definida então pela metáfora dos três “ ídolos da tribo dos historiadores” (a preeminência do político, do individual e do cronológico). SIMIAND, F. Método histórico e ciência social. São Paulo: Edusc, 2003, (sobretudo capítulo 10 da 2a parte). A idéia de que não existe um método específico de investigação histórica serviu de base para os argumentos de alguns autores que, posteriormente, formularam suas críticas à disciplina: LÉVI-STRAUSS, Claude. História e dialética. In: O pensamento selvagem. 2a ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1976 [1962], pp. 280-306; WHITE, Hayden. O fardo da história [1966]. In: Trópicos do discurso. São Paulo: Edusp, 2001, pp.39-63; FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. 6a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002 [1969]; VEYNE, Paul. Como se escreve a história. 4a ed. Brasília: Editora UnB, 1998 [1971]. 37 Neste caso, a noção de método histórico teria um caráter inequívoco, sobretudo para o historismo no século XIX, e abrangeria as operações de heurística, de crítica e de interpretação dos documentos, com o propósito final de produzir o conhecimento histórico. DIEHL, Astor A. Do método histórico. Passo Fundo: Ediupf,1997, pp. 17-27. Importante considerar aqui uma das críticas fundamentais à idéia de que a história “emerge” naturalmente das suas próprias fontes formulada por Henri-Irénée Marrou (1904- 1977) em uma alusão direta à fórmula dos metódicos de que “a história é o uso de documentos” . Nos termos de Marrou, “não é o documento que se encontra no ponto de partida; o historiador não é o simples operário ligado à transformação de uma matéria-prima, nem o método histórico uma máquina-utensílio na qual se introduziria, como que por um funil, o documento bruto, e donde sairia um fino tecido contínuo de conhecimento” . Assim, o processo de investigação histórica “é desencadeado, não pela existência dos documentos, mas por uma diligência original, a ‘questão posta’ , que se inscreve na escolha, na delimitação e na concepção do assunto” por parte do historiador. MARROU, H.-I. Do conhecimento histórico. 3a ed. Porto: Editora Pedagógica Universitária, 1974, p. 53. 12 Evidentemente tais indagações não fizeram parte das preocupações manifestas do autor estudado. Formuladas nestes termos, elas contextualizam a reflexão historiográfica aqui proposta no âmbito dos debates mais recentes acerca da teoria da história. Assim, penso ser possível desenvolver a análise dos escritos de Capistrano de Abreu por meio de uma interlocução com autores contemporâneos cujas proposições incidam sobre questões relacionadas à escrita da história e à epistemologia do conhecimento produzido pelos historiadores. Portanto, para examinar os modos de articulação entre os diferentes níveis da operação historiográfica na obra do historiador, desenvolvo a dissertação em quatro capítulos. No primeiro, exploro aspectos da biografia do historiador que se relacionam mais diretamente com a formulação de sua concepção de história. Aqui também examino como, em torno de seu método de trabalho, construiu-se uma memória consagradora que o colocou no panteon dos grandes historiadores nacionais. No segundo, analiso o projeto historiográfico proposto por Capistrano nos ensaios críticos em que avalia a obra de Francisco Adolfo de Varnhagen, sob a perspectiva de uma reescrita da história do Brasil. Esta análise me levará, no terceiro capítulo, a identificar algumas das operações metódicas do historiador que corresponderão às pré-condições fundamentais para a consecução desse projeto. O que se pode chamar de “momento do arquivo” envolveria as tarefas de edição de documentos, passando pela crítica das fontes até a elaboração argumentativa para a constituição da prova documentária. E, por fim, examino como essas questões de método interferem na operação de escritura, com base na hipótese de que os dispositivos da crítica documental se, por um lado, conferem validade ao texto historiográfico, por outro, impõem limites e condicionamentos precisos à sua construção. Uma observação acerca do material em que concentrarei a minha leitura. Entre os escritos de Capistrano a serem estudados, estão incluídos não somente artigos e textos propriamente historiográficos, mas também a sua correspondência ativa. Tal como os seus ensaios críticos, as cartas do historiador foram organizadas e editadas por José Honório Rodrigues em três volumes.38 A escrita epistolar foi uma atividade assídua, mantida por Capistrano até os últimos dias de vida, o que justifica o seu uso recorrente para o estudo da construção de sua memória e de sua identidade de historiador. Tendo 38 RODRIGUES, J. H. (org.). Correspondência de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. 3 vols. A obra será referida neste trabalho pela abreviatura CCA. 13 em vista os objetivos da análise a ser desenvolvida, esta fonte será explorada mais especificamente pelas referências abundantes que contém sobre o seu processo e método de trabalho. 1. Morte e vida de um historiador do Brasil “É sempre assim: não curamos do tempo, o tempo tudo escritura e surpreende-nos com suas contas monstruosas” . Capistrano de Abreu.1 Em 1923, Capistrano de Abreu iniciava com esta reflexão, carta a um de seus correspondentes mais assíduos, o colega de ofício João Lúcio de Azevedo (1855-1933).2 O tempo, percebido sob os efeitos de sua passagem voraz, já lhe apresentara algumas “contas” , talvez mais surpreendentes do que propriamente “monstruosas” . Nesse mesmo ano, ao tomar conhecimento dos planos de uma cerimônia alusiva a seu septuagésimo aniversário, reagira veementemente: “Segundo sou informado, trama-se para meu próximo aniversário uma patuléia, poliantéia ou cousa pior e mais ridícula, se for possível. Aos meus amigos previno que considero a tramóia como profundamente inamistosa. Não poderei manter relações com quem assim tentar desmoralizar-me”.3 A despeito da recusa obstinada a tais manifestações, o apreço e a admiração endereçados a ele por seus pares acumularam-se ao longo da vida e multiplicar-se-iam em discursos e homenagens após a sua morte, em 13 de agosto de 1927. Em um soneto do escritor Américo Facó, publicado em 1911, recebera o epíteto de “velho erudito, vivo dicionário da História pátria, mal encadernado...” 4, um retrato tão 1 Carta a João Lúcio Azevedo [20/10/1923], CCA, vol. 2, p. 281. 2 A correspondência de Capistrano a João Lúcio de Azevedo, mantida assiduamente entre 1916 e 1927 constitui-se na parte mais volumosa de suas cartas publicadas. Em 1928, Azevedo doou à Biblioteca Nacional 265 missivas que lhe haviam sido enviadas por Capistrano. Sobre a edição da correspondência do historiador, ver RODRIGUES, J. H. Introdução. In: CCA, vol. 1, pp. ix-xxiii. Para uma análise da correspondência entre Capistrano e Azevedo, ver GONTIJO, Rebeca. A reta e o círculo: amizade, projeto intelectual e construção identitária nas cartas de Capistrano de Abreu a João Lúcio de Azevedo (1916- 1927). Trajetos. Revista de História UFC, vol. 3, n.5, 2004, pp. 101-128. 3 Carta a João Pandiá Calógeras [1923], CCA, vol. 1, pp. 407-408. 4 “Olhos semicerrados de quem poupa/ A luz dos próprios olhos... Indolente!/ Cabelos, barba de esfiapada estopa/ Para trás, para os lados, para frente./ Uns ares filosóficos de gente/ A que a vida vai de vento em popa:/ Liga mais ao passado que ao presente/ E liga à vida como liga à roupa./ Calçado sem tacão, chapéu sem aba./ Pobre, com experiência de usurário/ E, ao mesmo tempo, de morubixaba;/ Tal este é o Capistrano, o bem amado,/ Velho erudito, vivo dicionário/ Da História Pátria, mal encadernado...” . FACÓ, Américo. Apud OCTAVIO FILHO, Rodrigo. A vida de Capistrano de Abreu. Aula inaugural do 15 exato quanto caricatural que dele faziam os seus contemporâneos, o qual referendariam os seus futuros e principais comentadores.5 Pois em torno de sua figura, combinar-se- iam, desde então, os traços da magnitude e rigor de sua erudição com os da modéstia e desleixo de sua aparência. Assim, em elogio fúnebre proferido no IHGB em 1927, Ramiz Galvão (1846-1938) o qualificava como “sábio cultor da História e da Etnologia brasileira” para, em seguida, o descrever como “um filho das selvas transplantado para o seio da civilização, de trajar modestíssimo e quiçá menos cuidado...” .6 Mesmo que, ao final da vida, não tivesse produzido a história do Brasil que, em razão de seus méritos era lícito se esperar, nenhum dos lugares de legitimação do saber recusara, nem tampouco retardara o reconhecimento de sua produção intelectual.7 No Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro fora admitido como sócio correspondente em 1887, elevado a honorário em 1913 e, por fim, à classe dos beneméritos em 1917.8 Eleito para integrar o quadro dos primeiros quarenta imortais da Academia Brasileirade Letras, rejeitaria a proposta de seus fundadores, Machado de Assis, Joaquim Nabuco e Lúcio Mendonça, em 1897.9 Capistrano foi reconhecido, e até mesmo louvado, precisamente em nome do método que praticava, identificado pela preocupação obsessiva em repertoriar fontes e rastrear documentos para suprir as lacunas e retificar as inexatidões da história pátria. Em contrapartida, mostrou-se sempre avesso a títulos, a condecorações ou pompas acadêmicas que a ele pudessem ser dedicadas. Uma atitude refratária que, para muitos, Curso Capistrano de Abreu, proferida em 2 de setembro de 1953. Revista do IHGB, vol. 221, out-dez., 1953, p. 49. 5 Dentre esses, José Honório Rodrigues assim o descreve: “era desalinhado, tosco, míope, afetado com os estranhos, simples com os amigos, e desse feitio não se curava” . RODRIGUES, J. H. Alguns traços de Capistrano de Abreu. In: CCA, vol.1, p. xxix. 6 GALVÃO, Ramiz. Revista do IHGB, tomo 101, vol. 155, 1927, pp. 463-464. 7 Em 1937, o historiador francês Henri Hauser em suas considerações acerca do trabalho histórico no Brasil afirmava sobre Capistrano: “Este historiador, muito pouco conhecido na França, tem contra si o fato de não ter o seu nome ligado a uma grande obra, de aparecer como um ensaísta. Mas se para ser historiador é necessário saber estudar os textos, ter um espírito crítico sempre vigilante, distinguir as épocas e informar o leitor o sentido agudo destas diferenças, enfim, escrever com uma sobriedade elegante e fazer reviver o passado, nós diremos que este erudito foi um grande historiador. Pode-se fornecer a comprovação destas qualidades em simples monografias como em grandes volumes” . HAUSER, Henri. Notes et réflexions sur le travail historique au Brésil. Revue Historique. Paris, tomo CLXXXI, fasc. 1, janeiro-março, 1937, pp. 89-90. 8 GALVÃO, Ramiz, op. cit., p. 463. A proposta de ingresso de Capistrano como sócio correspondente do IHGB consta de ata de 17 de agosto de 1887, assinada por Tristão de Alencar Araripe, Cezar Augusto Marques, Franklin Távora e Augusto Fausto de Souza. Revista do IHGB, tomo L, 1887, pp. 308-309. 9 Sobre a fundação da ABL e a lista prévia dos seus quarenta primeiros sócios efetivos, ver EL FAR, Alessandra. A encenação da imortalidade. Uma análise da Academia Brasileira de Letras nos primeiros anos da República (1897-1924). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, pp. 52-54. 16 poderia indicar certa propensão à misantropia, mas que, inadvertidamente, era justificada por seu modo de exercer o ofício de historiador. Em 1915, após pelos menos 35 anos de estudos, saudava a publicação do catálogo de manuscritos do Conselho Ultramarino, fato que para ele atestava o quanto ainda era prematuro escrever a história do Brasil.10 Cinco anos depois, a propósito da História da Colonização Portuguesa do Brasil de Carlos Malheiro Dias comentaria: “Agouro mal dela: no Brasil, nós não precisamos de história, precisamos de documentos [...]” .11 Se seguirmos as datas de seu registro civil, em seus 74 anos de existência, é inevitável que nos deparemos com inúmeras referências a obras que, retrospectivamente, conformariam um corpus da historiografia brasileira. A primeira delas: a História Geral do Brasil, de Francisco Adolfo de Varnhagen, concluída no ano em que Capistrano nasceu, 1853, e cuja primeira edição seria publicada em Madrid entre 1854 (1o tomo) e 1857 (2o tomo). Três anos após a sua migração para a Corte, em 1878, Capistrano, então com 25 anos, incumbir-se-ia da escrita do Necrológio do Visconde de Porto Seguro, dando início a um diálogo crítico e tenso que, ao longo de sua vida, manteria com a sua obra, uma interlocução que não deixaria de se estender a outros autores, sobretudo aos membros do IHGB. Havia sido dessa forma que, um ano antes, nas páginas do jornal O Globo, não hesitara em detratar a reputação consolidada de João Manuel Pereira da Silva (1817-1898) e a sua História da Fundação do Império Brasileiro, publicada entre 1864 e 1868 e reeditada em 1877.12 Menos do que recompor em etapas a vida do historiador, tomando por datas limites aquelas de seu nascimento e morte (1853-1927), proponho iniciar este capítulo pela exploração do percurso de tempo final e posterior à sua existência, com o objetivo de assinalar alguns aspectos que julgo importantes para a leitura e a compreensão de sua obra. O primeiro deles pode ser detectado em sua escrita epistolar. Em seus derradeiros anos, através da inflexão confessional de sua correspondência, enquanto expressa o desejo de “morrer sem escândalo” , Capistrano esboça os traços de uma construção autobiográfica em que são estabelecidos os marcos itinerantes de uma “trajetória” de 10 Carta a Mário de Alencar [15/09/1915], CCA, vol. 1, p. 243. 11 Carta a João Lúcio de Azevedo [09/07/1920], CCA, vol. 2, p. 165. 12 ABREU, J. C. de. Biografia. História da Fundação do Império Brasileiro. In: Ensaios e Estudos. 4a série. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1976, pp. 37-41. Abordarei mais detidamente essa crítica no item 1.5 deste capítulo. 17 vida que, após a sua morte, seguirá referenciada por seus biógrafos e comentadores.13 E é como uma reafirmação e atualização desse “pacto” de cumplicidade biográfica14 que podem ser interpretadas as comemorações do seu centenário de nascimento pelo IHGB em 1953 – momento fértil para se investigar os procedimentos de consagração e de canonização de sua obra, através dos quais também se remodela a história-memória da historiografia brasileira. Uma tal análise dos modos de memorização da figura do historiador remete à abordagem da sua interlocução problemática e, por vezes, ambígua com o próprio Instituto Histórico e Geográfico – instância, por excelência, de legitimação do saber historiográfico no Brasil ao longo do século XIX. Se, por um lado, sempre foi notória a sua atitude de rejeição a este lugar (mesmo que a ele se mantivesse vinculado como sócio), por outro, há que se analisar o que essa postura suscita, ou ainda, o que revela acerca das suas concepções de história do Brasil. Sobre este ponto, conforme já foi indicado anteriormente, o entendimento do que, para Capistrano, seria o melhor meio de estudar a história pátria não se formula senão na crítica à produção historiográfica de seus pares, exercida em ensaios e artigos de jornal.15 É preciso lembrar que, nesse exercício crítico, concentraram-se muitas das atividades dos letrados brasileiros de meados do século XIX – a “nova geração” sobre a qual escrevia Machado de Assis, em 1879, reconhecendo, em sua produção, a expressão de “alguma coisa que, se ainda não é o futuro, não é já o passado”.16 Pois, nesse terço final do oitocentos, a profusão de obras de temáticas simultaneamente literárias, 13 Os principais trabalhos biobibliográficos sobre Capistrano, afora os textos já citados de José Honório Rodrigues que serviram de introdução às reedições de suas obras, foram publicados em 1953 (ou em torno desta data), ano do primeiro centenário de nascimento do historiador. Em geral, essas obras repetem-se umas as outras, na medida em que se apóiam essencialmente na correspondência de Capistrano para a reconstituição de sua história de vida. VIANNA, Hélio. Ensaio Biobibliográfico [1953]. In: ABREU, J. Capistrano de. O descobrimento do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. vii-lxx; MATOS, Pedro Gomes de. Capistrano de Abreu. Vida e obra do grande historiador. Fortaleza: A. Batista Fontenele Editora, 1953; MENEZES, Raimundo de. Capistrano de Abreu, um homem que estudou. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1956; REBELLO, Edgar de Castro. Capistrano de Abreu ea síntese histórica. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1956; CÂMARA, J. A. Saraiva. Capistrano de Abreu. Tentativa biobibliográfica. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1969. 14 BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. e AMADO, J. (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2002, pp. 184-185. 15 Os artigos de jornal e prefácios escritos por Capistrano foram compilados e reunidos em volume, pela primeira vez, em 1931, sob o título Ensaios e Estudos (Crítica e História), em edição da Sociedade Capistrano de Abreu. Em 1932 e 1938, seriam publicadas, respectivamente, a 2a e 3a série destes Ensaios. Em 1953, ano do centenário de nascimento do historiador, estes trabalhos seriam reeditados, acrescidos de uma 4a série de Ensaios, coligidos e organizados por José Honório Rodrigues. 16 ASSIS, Joaquim Maria Machado de. A nova geração. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997, vol. III, p. 809. 18 históricas e etnográficas sinalizava um momento de incipientes delimitações disciplinares em que a crítica, longe de se constituir em especialização, representava uma perspectiva de abertura reflexiva para questões instituídas como “nacionais” .17 No caso de Capistrano, o que interessa observar é como o tratamento desses temas articula- se à elaboração de sua concepção de história. Na condição de historiador na transição dos séculos XIX e XX, há que se assinalar ainda a sua vinculação específica a uma geração de intelectuais que partilhava da experiência de que “um bando de idéias novas” estava em movimento desde o início dos anos de 1870.18 A inserção de sua figura nesse contexto histórico particular não implica considerá-lo como “representante” de uma época, nem tampouco deve ser tomada aqui como única chave explicativa a conferir sentido à sua obra. Como a maior parte dos letrados atuantes nesse tempo, vasculhando o passado e o seu próprio presente em busca de indícios do futuro, Capistrano foi testemunha da crise do Segundo Império, do advento concatenado da Abolição em 1888 ao da República em 1889. Esta, paradoxalmente, revelar-se-ia como o fardo mais traumático e desagregador para grande parte dos homens de letras da belle époque brasileira – bem sucedidos em sua “cruzada modernizadora” , mas relegados à margem ao final, pela nova ordem política.19 Como, 17 João Alexandre Barbosa, em comentário aos “estudos brasileiros” de José Veríssimo, publicados entre 1877 e 1885, afirma: “À época em que foram escritas as páginas então reunidas (1877-1885) explica, em grande parte, o aparecimento simultâneo de ensaios literários, históricos e etnográficos: por aquele tempo, dizer crítica era indicar não uma especialização, mas uma abertura para tudo o que, em termos nacionais, pudesse oferecer interesse imediato. A História, a Etnografia e a Literatura não se apresentavam como ramos do conhecimento, distintos por seus objetivos e métodos, a uma geração de estudiosos impelida pela necessidade de criar uma espécie de novum organun para a reflexão nacional” . BARBOSA, J. A. Introdução. VERÍSSIMO, José. Teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro: LTC; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1977, pp. xx-xxi. 18 Em 1910, Sílvio Romero escrevia que, na década de 1870, “um bando de idéias novas esvoaçava sobre nós de todos os pontos do horizonte. Positivismo, evolucionismo, darwinismo, crítica religiosa, naturalismo, cientificismo na poesia e no romance, folclore, novos processos de crítica e de história literária, tudo então se agitou...” . ROMERO, S. Provocações e debates contribuição para o estudo do Brasil social. Porto: Chardron, 1910. Apud ABREU, Martha. Geração de 1870. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva 2002, p. 309. Antes de Romero, em conferência realizada em 1883, José Veríssimo avaliara o movimento intelectual brasileiro a partir dessa década: “ [...] em 1873, uma evolução salutar, e inesperada porque seria difícil encontrar-lhe antecedentes no país, dá-se na mentalidade brasileira” . Dentre os representantes das “modernas tendências do intelecto brasileiro” , Veríssimo destacava os nomes de Tobias Barreto, Machado de Assis, Escragnolle Taunay, Araripe Júnior, Sílvio Romero e Capistrano de Abreu. VERÍSSIMO, José. O movimento intelectual brasileiro nos últimos dez anos (1883). In: Teoria, crítica e história literária, op. cit., (citações p. 237 e 245). 19 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2a edição revista e ampliada. São Paulo: Cia das Letras, 2003, pp. 106-107. Embora sem a mesma qualidade de análise deste autor, as transformações culturais na belle époque do Rio de Janeiro 19 então, escrever a história da nação sob o impacto das frustrações e expectativas suscitadas por essa experiência histórica específica? Uma interrogação freqüente acompanhava Capistrano ao fim da vida e pode ser entendida como expressão do desconcerto – seu e de seus contemporâneos – diante do processo prolongado de mudanças e de tensões históricas desencadeadas nesse período: “[...] o brasileiro é povo em formação ou em dissolução? Vale a pena ocupar-se de um povo dissoluto?” .20 1.1 Morrer sem escândalo “Minhas aspirações, depois de cinqüenta anos de Rio – cheguei aqui a 25 de abril de 1875 – reduzem-se a morrer sem escândalo, sair do mundo silenciosamente como nele entrei” . Capistrano de Abreu.21 “[...] ainda estão intactos, como os deixou Capistrano, os livros poeirentos e usados pelo contínuo manuseio, as pilhas de velhos jornais e revistas, a rede cearense e, na parede a folhinha com a data fatídica do seu falecimento – 13 de agosto” . Paulo Prado.22 Travessa Honorina, 45, Botafogo, Rio de Janeiro: endereço de João Capistrano de Abreu de dezembro de 1923 até o dia de sua morte, em 1927, aos 74 anos. Vitimado por uma broncopneumonia, o historiador morreria em um sábado de agosto, cercado de amigos e discípulos. Entre estes, Pandiá Calógeras descreveria o cortejo que acompanhou as suas “pobres e mesquinhas exéquias” : “[...] grandes nomes nacionais, humildes índios a que tinha servido e abrigado [...]. Centenas de pessoas de todas as gerações, unidas na mesma mágoa e no mesmo luto e no mesmo respeito, foram também são abordadas por NEEDELL, Jeffrey D. Belle époque tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1993 [1987]. 20 Carta a Guilherme Studart [19/09/1909], CCA, vol. 1, p. 182. 21 Carta a João Lúcio de Azevedo [15/04/1925], CCA, vol. 2, p. 326. Para o uso da expressão “morrer sem escândalo” , ver no mesmo volume, Carta a João Lúcio [26/03/1919], p. 117; e Carta a Paulo Prado [01/01/1923], p. 433. 22 PRADO, Paulo. Capistrano. O Estado de S. Paulo, 26 setembro de 1928. Apud GONTIJO, Rebeca. “Paulo amigo” : amizade, mecenato e ofício do historiador nas cartas de Capistrano de Abreu. In: GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 178. 20 carregando à mão, revezando-se, o esquife de pobre em que repousava o grande brasileiro” .23 Desde que aportara à Corte, emigrado da província do Ceará, as trocas de residência foram inúmeras e constantes.24 Em 1881, iniciara sua vida de casado à Rua Paula Matos, 59; no mesmo ano, mudara-se para a Rua do Lavradio, 78; em 1882, para a Rua Pedreira Candelária, 32; de 1883 a 1887, morou na Rua Dona Luíza, 13; em 1888, foi para a Rua Marquês do Paraná, 10, aí residindo até 1892; em 1893, viúvo, viveu na Ladeira da Glória, 2; em 1894, transferiu-se para a Rua São Januário 88, até 1895; entre 1896 e 1898 esteve na Rua das Laranjeiras; em 1902, no Campo de Santana, 25; em 1906, escreveuos Capítulos de História Colonial na Rua Almirante Tamandaré; na rua Dona Luíza, 67, desde 1908, permaneceria como inquilino por quatorze anos.25 A venda da casa seria recebida como um “golpe terrível” , um “cataclismo”, tanto material (“a mudança dos livros é um horror” ), quanto moral (“é a extinção dos últimos vestígios de quatorze anos vividos com os meus”);26 enfim, a nova moradia – a que ele se referia como “um cômodo provisório” - era a sua “douloureuse no 1” .27 Talvez em razão dessa experiência, descrita como algo semelhante a um via crucis, o nome e o número do domicílio recente suscitavam-lhe reminiscências, por vezes, remotas: “Honorina é o nome da freira e o irmão, que já reside aqui há um par de anos, escolheu-a em lembrança dela. Nossa família, no pequeno recanto do Ceará em que se fundou, chama-se dos Honórios. [...] Quarenta e cinco reporta-me a muitos anos atrás: era meu no colégio em que há sessenta anos ou quase, labutava com as primeiras letras” .28 A escolha nada tinha de fortuita, pois, com a mudança, Capistrano atendia à 23 CALÓGERAS, J. Pandiá. Apud CÂMARA, J. A. Saraiva, op. cit., p. 182. 24 Ao chegar do Ceará, Capistrano foi recebido na Corte por alguns amigos da família e conterrâneos como Tristão de Alencar Araripe e José de Alencar. A primeira oportunidade de trabalho remunerado foi na Livraria Garnier, onde ficou encarregado de enviar à imprensa notas sobre os livros que aquela livraria estava editando. Em 1876, assumiu o posto de professor de português e francês no tradicional Colégio Aquino, onde, segundo ele próprio, além do salário, “ tinha casa e comida” . A partir de 1879, passou a integrar o grupo de redatores da Gazeta de Notícias e também passou a publicar artigos no Jornal do Comércio. Ao casar com Maria José de Castro Fonseca, em 1881, já havia assumido, há dois anos, como oficial concursado da Biblioteca Nacional. CÂMARA, J. A. Saraiva, op. cit., pp. 97 et passim. 25 RODRIGUES, J. H. Introdução. In: CCA, vol. 1. pp. xxxii-xxxiii. 26 Carta a Paulo Prado [01/04/1923], CCA, vol. 2, p. 445. 27 “Segunda-feira, 10, transpus irrevogavelmente a casa em que residia desde 1909... Tomei um cômodo provisório na Travessa Honorina, em Botafogo, junto de meu filho, com quem tomarei as refeições. Não pretendo demorar muito: estou enxergando tão pouco que não distingo os bondes e só posso morar antes do Largo do Machado para onde todos passam” . Carta a João Lúcio de Azevedo [17/12/1923], CCA, vol. 2, p. 280; Carta a Paulo Prado [29/06/1923], CCA, vol. 2, p. 450. 28 Carta João Lúcio de Azevedo [1923], CCA, vol. 2, pp. 283-284. 21 súplica da filha Honorina, freira carmelita do Convento de Santa Teresa, para que fosse morar perto do irmão Adriano.29 A respeito do cômodo, no andar térreo do prédio, escrevia ele, chegavam “atenuados os barulhos dos bondes e automóveis” e a novidade era a sensação de “andarem por cima” de sua cabeça.30 Na correspondência com os amigos mais próximos, passa a se referir ao seu “tugúrio” , precedendo a data e a assinatura de “João Ninguém”.31 Ainda nessa fase, Capistrano queixa-se de insônia, associando-a à preocupação de concluir a contento as suas obrigações intelectuais. É desse modo que, ocupado com a edição dos documentos relativos à primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil, relata a Paulo Prado em 1923: “Calculo as Denunciações [da Bahia] em 500 páginas, sem índice nem prólogo. Neste, na douloureuse, estou pensando. Noite passada reli cento e tantas páginas de Gabriel Soares. Resultado: insônia intermitente, que não quis combater com adalina ou luminal; pela madrugada, sonhos desagradáveis de que ainda não estou desinfetado. A leitura não se perderá: entrevejo algumas luzes. [...] Mudança de casa, douloureuse no 1, não deu um fiasco: continua o carro no toco e os bois na lama”.32 Para o amigo João Lúcio de Azevedo escreve, à mesma época, esperançoso de realizar o trabalho que ainda o prendia ao mundo: a publicação do livro sobre os bacairis.33 Capistrano não chegaria ao termo de suas investigações sobre o vocabulário indígena para as quais dedicava tempo e intermitentes esforços desde os primeiros anos de 1890.34 A persistente predileção pelo estudo da língua e dos costumes dos índios poderia justificar, quem sabe, a metáfora com que João Pandiá Calógeras o definiu em conferência dedicada à sua memória no IHGB, como um “desconfiado tapuia 29 Carta a Paulo Prado [13/01/1924], CCA, vol. 2, pp. 450-451. Durante os dez anos em que esteve casado (1881-1891), Capistrano teve cinco filhos com Maria José de Castro Fonseca, falecida aos 31 anos, de febre puerperal: Honorina, Adriano, Fernando, Henrique e Matilde. CÂMARA, J. A. Saraiva, op. cit., p. 128. Sobre as circunstâncias do ingresso de sua primogênita, Honorina, na vida monástica das carmelitas descalças e a escrita epistolar mantida a partir de então entre pai e filha, ver BUARQUE, Virgínia A. Castro. Escrita singular. Capistrano de Abreu e Madre Maria José. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura, 2003, pp. 23-100. 30 Carta a João Lúcio Azevedo [06/01/1924], CCA, vol. 2, p. 286. 31 A assinatura “João Ninguém” começa a aparecer em cartas de Capistrano a destinatários como João Lúcio Azevedo ou a Paulo Prado por volta de 1925 e assume variações esporádicas como “Dr. João Ninguém” , “J.N.” , “J. Ninguém” , “ Inútil João Ninguém” . 32 Carta a Paulo Prado [29/06/1923], CCA, vol. 2, pp. 449-450. 33 Cartas a João Lúcio de Azevedo, CCA, vol. 2, pp. 270-271 e p. 276 34 Tratarei desta questão no Capítulo 3, item 3.1. 22 transplantado para o meio civilizado...” .35 Ou poderia ter inspirado mais explicitamente descrição semelhante de João Ribeiro: “Ninguém como ele parecia um índio que houvesse perfurado a civilização e subido à tona da nossa cultura, com arco e flexa, seminu e indomável” .36 Um outro tema recorrente na escrita epistolar capistraniana, sobretudo em seus últimos anos, ainda pode ser relacionado a esta imagem de selvagem transplantado à vida civilizada: a lembrança da saída de sua terra natal e a rememoração da data de sua chegada ao Rio de Janeiro. “No dia 25 de abril vi o Rio pela primeira vez, em 1875. Como o tempo corre!”37 Tinha 21 anos quando embarcou no vapor Guará rumo à Corte, à capital do Império para a qual convergiam os homens de letras de sua geração em busca de oportunidades de trabalho no ensino, na política e no jornalismo.38 Uma viagem cujo percurso seria rememorado e matizado pela nostalgia de suas origens provincianas. Até então Capistrano transitara do sítio Columinjuba, freguesia de Maranguape, onde nascera em 23 de outubro de 1853, para Fortaleza, onde freqüentou o Colégio dos Educandos e o Ateneu Cearense.39 Matriculado em 1865 no recém inaugurado seminário daquela cidade, nele permaneceria por poucos meses, até ser afastado por sua “preguiça e vadiação” .40 Retornou ao sítio familiar e, algum tempo depois, seguiu para Recife para se preparar para a admissão na Faculdade de Direito. Reprovado, regressa ao Ceará, move-se entre Columinjuba e Fortaleza, participa do grupo autodenominado “Academia Francesa” e publica seus primeiros artigos no jornal Maranguapense em 1874.41 35 CALÓGERAS, J. P. 6ª Sessão ordinária realizada em 13 de setembro de 1927, Revista do IHGB, tomo 101, vol. 155, 1928, p. 345. 36 RIBEIRO, João. Devia ser hoje um dia de luto nacional. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14/08/1927. Apud MATOS, P. G. de. Capistrano de Abreu, op. cit., p. 350. 37 Carta a Guilherme Studart [20/04/1904], CCA, vol.1, p. 167. 38 VENTURA, Roberto. Estilo tropical, história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1991, p. 137. 39 Para as informações sobre a infância e a mocidade deCapistrano antes de sua partida para a Corte, baseio-me em CÂMARA, J. A. Saraiva, op. cit., pp. 5-91. 40 “Em julho de 66, foi aconselhado ao sr. seu pai que o retirasse por algum tempo, a fim de emendar da sua preguiça e vadiação” . Livro de matrículas (1864-1890) do Arquivo do Seminário Arquidiocesano de Fortaleza. Apud CÂMARA, J. A. Saraiva, op. cit., p. 31. 41 O “movimento” da Academia Francesa, fundada em Fortaleza no ano de 1872, ocorreu paralelamente ao da chamada Escola de Recife (de Sílvio Romero e Tobias Barreto), reunindo Rocha Lima, Tomás Pompeu, Araripe Júnior, Guilherme Studart, além do próprio Capistrano. Sobre este assunto, ver ensaio de Capistrano dedicado a Rocha Lima, ABREU, J. C. de. Estudos e Ensaios 1a série. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975, pp. 71-80 e COUTINHO, Afrânio. Euclides, Capistrano e Araripe. In: Conceito de Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, pp. 109-110. Para uma análise da “Escola de Recife” como uma tradição inventada pelos seus próprios integrantes, sobretudo por 23 Dessa época também são as conferências sobre “A literatura brasileira contemporânea” e o encontro decisivo com José de Alencar (1829-1877), cuja estadia em Maranguape era motivada pelas pesquisas sobre o folclore cearense. A visita renderia uma carta de apresentação das mais credenciadas na qual o romancista recomendava ao jornalismo fluminense o talento daquele “homem do futuro” .42 Três anos mais tarde, já vivendo na Corte, Capistrano escreve, pela primeira vez para a Gazeta de Notícias: no Necrológio a Alencar, reconhecia nele “o primeiro e principal homem de letras brasileiro” , o “fundador” da nossa literatura.43 1.2 O historiador e seus descobrimentos “25 de abril, festa de São Marcos. Há 46 anos, em igual dia, um domingo tão cerrado que quase nada permitia ver, aportei a esta terra, que desde então é a minha e provavelmente será até o fim, porque quem comeu a carne, roa os ossos” . “Este seu mês de abril, até certo ponto, é também meu. A 12 saí do Ceará para o Rio, da primeira vez em 75, da segunda em 84, depois de assistir à libertação da capital. A 25, dia de S. Marcos, um domingo de cerração, que não me permitiu ver a baía, lancei há 48 anos âncora nesta terra que, desde então, é minha” . Romero, ver ALONSO, Ângela. Idéias em movimento. A geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002, pp. 133-142. Os artigos publicados no Maranguapense, intitulados “Perfis Juvenis” , tratam dos poetas Casemiro de Abreu e Junqueira Freire e foram incluídos nos Ensaios e Estudos, 1a série, op. cit., pp. 1-34. 42 “Nas minhas pesquisas fui auxiliado por um jovem patrício meu, Sr. João Capistrano de Abreu, notável por seu talento, entre tantos que pululam na seiva exuberante desta nossa terra, que Deus fez mais rica de inteligência do que de ouro. Esse moço, que já é fácil e elegante escritor, aspira ao estágio da imprensa desta Corte. Creio eu que, além de granjear nele um prestante colaborador, teria o jornalismo fluminense a fortuna de franquear a um homem do futuro o caminho da glória, que lhes estão obstruindo uns acidentes mínimos” . Carta de José Alencar a Joaquim Serra. Apud CÂMARA, J. A. Saraiva, op. cit., p. 89. Em 1921, Capistrano lembrava o encontro em carta ao filho de Alencar: “Há hoje 47 anos que vi seu pai pela primeira vez em Maranguape!” Carta a Mário de Alencar [24/08/1921], CCA, vol. 1, p. 255. 43 Em 1877, por ocasião da morte de José de Alencar, o diretor do jornal Gazeta de Notícias, Ferreira de Araújo, pediu a Machado de Assis, integrado ao grupo de redatores do jornal, que escrevesse o seu necrológio. Antes que Machado lhe entregasse seu artigo, Ferreira pediu-lhe que lesse um outro de autoria de um cearense admirador de Alencar. “Machado de Assis, depois de ler o artigo que era de Capistrano, disse apenas: é admirável. E rasgou com calma o que lhe fora encomendado” . CÂMARA, J. A. Saraiva, op. cit., pp. 98-99. 24 “Há 52 anos desembarcava aqui, um domingo, dia de cerração. Quão pouco sabia da vida. Não distava muito de um cego, solto nesta cidade de automóveis. Ainda hoje, quando penso no passado, não compreendo como não soçobrei desde as primeiras passadas” . Capistrano de Abreu. 44 Se ao Rio de Janeiro atribuía a condição de seu ancoradouro, a terra em que aportara e que considerava sua até o fim de seus dias desde aquele abril de 1875 e, do Ceará, dizia não possuir “mais nem micróbios”45, a construção da memória sobre o momento e o lugar em que teria se esboçado o seu projeto historiográfico remetia Capistrano ao cenário “original” , à Maranguape. “Sabe que há hoje exatamente 50 anos tive a primeira idéia de escrever uma história do Brasil?” , arrematava assim uma carta a Paulo Prado datada de 20 de maio de 1924.46 Por meio de uma lógica retrospectiva tanto quanto prospectiva, a sua história de vida desenrolava-se desde uma “origem”: a sua opção de se dedicar aos estudos históricos era creditada às leituras feitas ainda no tempo em que vivia em sua terra natal. Em 1914, revelava a José Veríssimo: “Quando pensei em consagrar-me à história do Brasil, resultado de uma leitura febricitante de Taine, Buckle e da viagem de Agassiz, feita ainda no Ceará, não me lembro se pretendia abarcar toda a história” .47 Mais tarde, a João Lúcio Azevedo reitera e ratifica o seu “descobrimento” : “Tenho presente a primeira vez, em que veio a idéia de escrever a história do Brasil. Estava no Ceará, na freguesia de Maranguape, com poucos livros, arredado de todo comércio intelectual. Acabava de ler Buckle no original, relia mais uma vez Taine, tinha acabado a viagem de Agassiz” .48 Capistrano foi um “devorador” de livros e documentos, um “bookmanger” na expressão dele próprio49, dotado de uma “curiosidade onímoda”, na visão de um de seus 44 Carta a João Lúcio Azevedo [25/04/1921], CCA, vol. 2, p. 208; Carta a João Lúcio Azevedo [1923], CCA, vol. 2, p. 274; Carta a Honorina [25/04/1927], CCA, vol. 1, p. 69. 45 “Ontem completou-se o 31º ano de minha chegada ao Rio. Do Ceará já não tenho mais nem micróbios.” Carta a Guilherme Studart [26/04/1906], CCA, vol. 1, p. 175. 46 Carta a Paulo Prado [20/05/1924], CCA, vol. 2, p. 457. 47 Carta a José Veríssimo [21/01/1914], CCA, vol. 1, p. 200. 48 Carta a João Lúcio Azevedo [19/03/1917], CCA, vol. 2, pp. 37-38. 49 “Um caxambuense, ainda pior bookmanger que eu, afirmou-me haver à venda na Casa Alves de São Paulo exemplares da terceira edição de Varnhagen, que comecei e não acabei” . Carta a Paulo Prado [1922], CCA, vol. 2, p. 423. 25 comentadores.50 Entre o Capistrano leitor, viajante a circular em terras alheias, “caçando por conta própria” , na metáfora de Michel de Certeau, e o Capistrano historiador, “a escritura acumula, estoca, resiste ao tempo” para se estabelecer em um lugar próprio.51 Para o jovem leitor, “arredado” em terras provincianas, o deslocamento para a capital do Império bem se assemelhava a uma viagem de descobrimento, como sugere Ilmar Mattos: “sabia já que o Brasil não era longe dali, e que para descobri-lo tornava-se necessário não tanto dele sair, ir para o exterior, para repensá-lo à distância [...], e sim desbravar o seu interior, revelar sua natureza mais íntima, por meio de muitas viagens, reais ou imaginárias [...].”52 Em torno da leitura, portanto, configura-se não apenas o projeto “original” de vida, mas um método de ofício, pois o Capistrano historiador “ lê os textos e vê os fatos, visto que ler é ver” .53 E para ver e fazer ver, escrevendo a partir e de acordo com aqueles, ele poderia ser o narrador “propositadamente em repouso”, na figuração que Flora Sussekind
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