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Multideia Editora Ltda. Alameda Princesa Izabel, 2.215 80730-080 Curitiba – PR +55(41) 3339-1412 editorial@multideiaeditora.com.br Conselho Editorial Marli Marlene M. da Costa (Unisc) André Viana Custódio (Unisc/Avantis) Salete Oro Boff (UNISC/IESA/IMED) Carlos Lunelli (UCS) Clovis Gorczevski (Unisc) Fabiana Marion Spengler (Unisc) Liton Lanes Pilau (Univalli) Danielle Annoni (UFSC) Luiz Otávio Pimentel (UFSC) Orides Mezzaroba (UFSC) Sandra Negro (UBA/Argentina) Nuria Bellosso Martín (Burgos/Espanha) Denise Fincato (PUC/RS) Wilson Engelmann (Unisinos) Neuro José Zambam (IMED) Coordenação Editorial: Fátima Beghetto Capa: Sônia Maria Borba CPI-BRASIL. Catalogação na fonte Spengler, Fabiana Marion (Org.) S747 Aceso à Justiça e Mediação [recurso eletrônico] / organização de Fabiana Marion Spengler e Theobaldo Spengler Neto – Curitiba: Multideia, 2013. 202 p.; 23 cm ISBN 978-85-86265-80-8 (VERSÃO ELETRÔNICA) 1. Acesso à justiça. 2. Mediação. 3. Justiça Restaurativa. I. Spengler Neto, Theobaldo (org.). II. Título. CDD 340.1(22.ed) CDU 340 É de inteira responsabilidade dos autores a emissão dos conceitos aqui apresentados. Autorizamos a reprodução dos textos, desde que citada a fonte. Respeite os direitos autorais – Lei 9.610/98. FABIANA MARION SPENGLER THEOBALDO SPENGLER NETO ORGANIZADORES ACESSO À JUSTIÇA & MEDIAÇÃO Curitiba 2013 PREFÁCIO A força normativa e substantiva dos Direitos Humanos como horizonte de sentido para a construção de uma nova cultura Jurisdicional: repensando lugares, procedimentos e conteúdos. Nunca se viu uma tensão e um debate tão grandes sobre a função jurisdicional como atualmente. Críticas, sugestões e diver- sas análises são dirigidas à atividade jurisdicional por diferentes segmentos sociais. A crise é uma constatação que ninguém ou qua- se ninguém contesta e as soluções apresentadas são de múltiplas orientações. Fala-se muito em controle externo do Poder Judiciário, em reformas processuais para agilizar a prestação da “justiça”, em reformas estruturais, em qualificar a formação dos magistrados e em outras temáticas que envolvem direta ou indiretamente o tema. Parece que a angústia em apresentar soluções provoca uma apatia do diálogo e gera proposições perigosas, capazes apenas de tentar atender aos reclamos pragmáticos de uma realidade complexa. Mas antes de reagir, de responder ao quadro de dificuldades é preciso perguntar, ou no mínimo perguntar de modo mais qualifi- cado, sobre quais são as funções da Jurisdição ou, dito de maneira diferente, o que uma sociedade democrática, que valoriza a diver- sidade e se fundamenta na proteção dos direitos humanos, espera da atuação jurisdicional e do próprio Estado no contexto de uma sociedade complexa. A negação do diálogo, a castração da diferença e a racionalização estereotipada, que marca os mecanismos tradici- onais de solução de conflitos e que gera apenas soluções jurídicas formais e não sociais substanciais têm pautado também o conjunto de respostas/soluções dadas para resolver as crises operacionais do Poder Judiciário. Isto é, o tecnicismo exagerado e o racionalismo cartesiano, que cegaram o direito positivo para a sensibilidade e para as necessidades históricas, continuam a cegar os operadores do direito e a induzi-los a reducionismos explicativos, um verda- deiro risco para a democracia. 6 Doglas Cesar Lucas Pensar o direito, os conflitos sociais e a Jurisdição no contexto da realidade social contemporânea não significa negar as conquis- tas e as virtudes da modernidade inacabada; significa, antes, repen- sar o direito, os conflitos e a Jurisdição para fortalecê-los. O grande desafio é humanizar o direito/Jurisdição para poder compreender os conflitos sociais também em sua dimensão humana, e não ape- nas jurídica, o que permitirá reconhecer nas novas formas de litigi- osidade a revelação das próprias formas da humanidade, que se reproduzem e se inovam, também, pelos conflitos sociais. Como a modernidade forjou uma Jurisdição limitada para atender a uma conflituosidade rotulada aprioristicamente e limitada geografica- mente em sua abrangência, para o jurista o conflito racionalizou-se, juridificou-se e perdeu o seu viés humano. O aumento e a comple- xidade dos conflitos contemporâneos desafiam o purismo metodo- lógico e a racionalidade hermética do direito positivo moderno que, ao racionalizar e centralizar o direito/Jurisdição, negou epistemo- logicamente a pluralidade/diversidade do conflito e perdeu a cria- tividade e a inventividade para tratar com o novo e com situações não padronizadas. E como os conflitos não podem ser eliminados da realidade social, uma sociedade complexa constitui-se de confli- tos complexos, de conflitos não tabulados e não estereotipados, de conflitos que a racionalidade tradicional não consegue entender e atender. E o quadro não é de otimismo, pois, nos destroços dessa Ju- risdição incapaz de compreender a essência humana do conflito e insuficiente para organizar a realidade social contemporânea, não surgem soluções emancipadoras, mas apenas novos ambientes de regulação e de solução de conflitos que, por sua vez, tendem a adaptar-se mais à “cultura” do mercado e do consumo do que ao projeto democrático. A Jurisdição tradicional, além de ceder espa- ços e ser questionada por novas formas de solução de conflitos, é repensada a partir da eficiência do mercado e obrigada a “produ- zir” soluções jurídicas em tempo real, mesmo que isso signifique muitas vezes a perda de garantias processuais. Os conflitos sociais não são aprisionáveis por modelos e por fórmulas padronizadas. Seguem o curso da história, alimentam-se em várias fontes e re- produzem o próprio dinamismo das relações humanas. Os conflitos impulsionam para o novo, são necessários para produzir a vida, Acesso à Justiça & Mediação 7 para declarar as diferenças e para aceitar os diferentes. Para os juristas e para a Jurisdição tradicional a teoria do conflito é a ine- xistência do conflito, é a tentativa de evitá-lo, de repensá-lo e de redefini-lo como litígio ou como controvérsia jurídica. A padroniza- ção do conflito e a negação da diferença e do diferente tornam a Jurisdição um espaço muito frágil, um ambiente desorientado, con- fuso e incapaz de trabalhar com um contexto social constituído pela diversidade, pelo pragmatismo, enfim, pela complexidade que não se deixa conceituar e aprisionar. As expectativas sociais não são consensuais, pois representam a pluralidade de interesses e de con- cepções de justiça, situação que se agrava nas sociedades de abissal desigualdade material e que denuncia a insuficiência e o descom- passo da razão burocrática jurisdicional para atender ao conjunto de demandas da sociedade. O aparecimento de novas formas de resolução de conflitos é exemplo desta crise, que é uma crise dos paradigmas do direito, que afeta a organização da sociedade. A Jurisdição deve constituir-se em um espaço público de de- bate, local privilegiado para expor e tratar das diferenças em confli- to. Não pode ser ambiente de constrangimento, de usurpação do desejo e de negação do cidadão, sob pena de cultivar um autorita- rismo devastador de sonhos e reprodutor de uma visão simplista e reducionista da realidade social. Não se pode estimular um modelo jurisdicional que se assente na rejeição da diversidade, na castra- ção das particularidades e na generalização dos sujeitos. A demo- cracia exige olhar e valorizar as diferenças, comprometer-se com cidadãos históricos (Pedros, Paulos, Marias) e não apenas com su- jeitos processuais (réus, autores, eleitores, contratantes, etc.), e humanizar a aplicação do direito e os próprios conflitos sociais. Isso faz lembrar Warat e sua preocupação com uma magistratura que parece resolver conflitosque lhe são alheios, sem sentir a exis- tência daqueles que fazem parte do próprio conflito. As respostas são dadas sem a participação do outro e a responsabilidade é atri- buída exclusivamente à norma. Os juízes, segundo o autor, “deci- 8 Doglas Cesar Lucas dem conflitos sem relacionar-se com os rostos. As decisões dos juí- zes são sem rosto”1. A força normativa dos direitos humanos substancializou o papel do Estado, construindo novos contornos para a sua agenda de possibilidades jurídico-políticas. Essa profunda alteração não representou, contudo, apenas uma mudança na postura valorativa, de afirmação e reconhecimento da dignidade humana como nú- cleos fundantes do Direito, mas significou também uma reformula- ção e questionamento sobre a validade do direito e a sua própria operacionalidade tecnológica. Como tecnologia que também é, o direito precisa reinventar-se, ser criativo ao ponto de construir ferramentas novas, procedimentos eficientes para garantir o en- frentamento da nova realidade e sobretudo para satisfazer um con- junto de novos direitos, de base epistemológica cada vez mais com- plexa e desconectada da temporalidade e espacialidade modernas. Seja em um ambiente nacional ou pós-nacional, a necessidade de diálogo com novos atores, novos lugares e o reconhecimento de demandas complexas, faz dos Direitos Humanos um critério epis- têmico, valorativo e tecnológico importante para a construção e avaliação de novas ferramentas jurisdicionais e administrativas. O discurso dos Direitos humanos precisa ser, cada vez mais, um dis- curso normativo sem deixar de ser utópico e prospectivo. Isso sig- nifica que as instituições deverão ser avaliadas segundo o atendi- mento aos níveis de satisfação desses direitos sem obstruir a pró- pria capacidade reivindicativa de sua natureza. Levar a sério os Direitos Humanos em todas as suas dimensões é condição de pos- sibilidade para travar disputas em todos os espaços institucionais e não institucionais, criar uma nova cultura de ensino e aprendizado do direito e fortalecer uma postura política e jurídica democrática fortemente republicana que seja capaz de enfrentar ranços históri- cos da desigualdade social de todos os tipos. Sem esse enfrenta- mento jurídico republicano a Jurisdição tenderá a reproduzir ve- lhas fórmulas técnicas no enfrentamento de problemas novos, apresentando ótimas soluções para problemas que não existem mais (a não ser na cabeça de juristas) ou soluções atrasadas e des- 1 WARAT, Luis Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001. v. 1, p. 214-215. Acesso à Justiça & Mediação 9 conectadas para um modelo de mundo que não existe mais. Para além disso, não faltam acusações sobre uma espécie de apropriação e confusão cada vez maiores entre os papéis jurisdicionais e aque- les de responsabilidade da política, cenário que revela os benefícios do envolvimento da jurisdição com a proteção dos direitos funda- mentais, mas que também deixa transparecer a continuidade e a fragilidade das estratégias jurisdicionais tradicionais na promoção desses mesmos direitos. O modelo de Jurisdição moderna não consegue enfrentar as demandas da economia global e os conflitos multiculturais que ca- racterizam a excessiva diversidade da sociedade atual, de modo que a elaboração de um novo paradigma de resolução de conflitos deve ser conduzida a partir de pressupostos comprometidos com a ampliação e o fortalecimento das conquistas democráticas. Furtar-se ao diálogo e ao compromisso de reinventar a racionalidade jurídica neste momento de dificuldades significa permitir que as soluções se deem à revelia dos interessados, distante das preocupações e dos espaços sociais que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, pro- duzem o conflito e retratam a atualização das demandas públicas pela própria implantação do litígio, seja ele absorvido ou não pelo direito estatal. Em outras palavras, quanto mais a Jurisdição sofre com um conjunto de demandas internas e externas que não conse- gue solucionar, mais claro fica que tanto as expectativas dos grupos marginais excluídos como dos grupos marginais que se excluem não estão sendo absorvidas nem se revelam capazes de atualizar as razões operacionais e funcionais do direito. A Jurisdição será capaz de conviver com tantos ambientes de- cisórios internos e externos? Não chegou o momento de se pensar novas maneiras de produzir respostas jurídicas às demandas sociais, capazes de valorizar espaços constituídos pela sociedade civil de forma democrática? Por certo, não será o mercado que dará as dire- trizes de uma reforma jurisdicional afinada com os direitos sociais e com as conquistas constitucionais que marcaram o cenário jurídico do século XX como um tempo de significativos avanços para a afir- mação da democracia. O mercado não tem compromisso com o de- senvolvimento das nações, não age em razão de sentimentos de soli- 10 Doglas Cesar Lucas dariedade e tampouco se preocupa com a implantação das políticas sociais presentes nas cartas constitucionais contemporâneas. Nesse cenário de inquietações e preocupações, o livro Acesso à Justiça e Mediação, organizado pela professora Fabiana Marion Spengler, grande estudiosa do assunto, e pelo professor Theobaldo Spengler Neto, cumpre um papel muito importante na missão de compreender a crise de identidade funcional do Poder Judiciário e de avaliar as alternativas à Jurisdição tradicional que têm aflorado como respostas para o déficit operacional na prestação da Justiça brasileira, especialmente a mediação. Com textos de experimenta- dos e de jovens pesquisadores, esta obra apresenta leituras mais didáticas e outras mais substanciais sobre os contornos teóricos, dificuldades, e aplicações da mediação como alternativa para (re)ver o conflito, (re)posicionar os atores sociais e cultivar proces- sos pacíficos de entendimento e diálogo. Um livro que deve ser lido com um olhar atento e otimista, mas não romântico, capaz de fazer perceber as fragilidades de nossa jurisdição tradicional e, ao mes- mo tempo, ser potente para lançar novas compreensões sobre o Direito e sobre as formas de realizá-lo. Eis aí o impacto da media- ção sobre o Direito: denuncia as precariedades do julgar moderno no momento que descobre o valor positivo e histórico do conflito e seus atores, e os reconhece de modo humanista, com tudo o que isso possa significar. Ijuí, 08 de setembro de 2013. Doglas Cesar Lucas Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Roma Tre, Itá- lia. Doutor em Direito pela Unisinos e Mestre em Direito pela UFSC. Professor nos cursos de Graduação e Mestrado em Direito da Uni- juí. Professor no Curso de Graduação em Direito do Instituto Cene- cista de Ensino Superior de Santo Ângelo – IESA. Pesquisador do CNPq. Avaliador do MEC/INEP. SUMÁRIO A BUSCA DE OUTRAS ESTRATÉGIAS NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ......................................................................................................................... 13 Theobaldo Spengler Neto Augusto Reali Beck A ABORDAGEM AO CONFLITO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: UMA ANÁLISE DO PODER JUDICIÁRIO VERSUS A MEDIAÇÃO ..................... 37 Charlise P. Colet Gimenez Marina Vetoretti AS DIFICULDADES ENFRENTADAS PELO ESTADO E PELA JURISDIÇÃO E A MEDIAÇÃO COMO MÉTODO EFICAZ NO TRATAMENTO DE CONFLITOS .................................................................................. 59 Ana Carolina Ghisleni CONSIDERAÇÕES ACERCA DA MEDIAÇÃO NO DIREITO DE FAMÍLIA ............................................................................................................................... 83 Roberta Marcantônio Jaiane Braga da Silva O ALCANCE DA DISSOLUÇÃO DOS CONFLITOS POR MEIO DE PRÁTICAS NEGOCIATIVAS .........................................................................................107 Augusto de Mello Caroline Pessano Husek Silva O ACÚMULO DE DEMANDAS E A MOROSIDADE DA JUSTIÇA CÍVEL NO BRASIL ........................................................................................................................ 129 Fabiana Marion Spengler Helena Pacheco Wrasse QUEBRA DE PARADIGMAS: OUTRO MEIO DE ACESSO À JUSTIÇA .......... 153 Josiane Rigon Caroline Wüst MEDIADORES X JULGADORES: FACES DE UMA MESMA MOEDA1 .......... 169 Josiane Caleffi Estivalet JUSTIÇA RESTAURATIVA: UMA POLÍTICA PÚBLICA DE PACIFICAÇÃO SOCIAL NOS CASOS DE DESTITUIÇÃO DE PODER FAMILIAR ......................................................................................................................... 185 Marli Marlene Moraes da Costa Rosane Teresinha Carvalho Porto A BUSCA DE OUTRAS ESTRATÉGIAS NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS Theobaldo Spengler Neto Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2000), onde atual- mente é professor adjunto. Professor de Direito Processual Civil (Processo de Conhecimento, Processo de Execução, Procedimentos Especiais e Processo Cau- telar) e de Direito Civil - Responsabilidade Civil. Vice-líder do Grupo de Pesquisas “Políticas públicas no tratamento dos conflitos”, certificado ao CNPq. Coordena- dor do Centro de Pesquisas Jurídicas do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul. Sócio titular do escritório Advocacia Spengler Assessoria Em- presarial – SC. Contato: theobaldospengler@spengleradvocatio.com.br. Augusto Reali Beck Acadêmico do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul - Unisc, bolsista de iniciação científica sob orientação do Prof. Me. Theobaldo Spengler Neto, PUIC, no projeto “Acesso à Justiça, Jurisdição (In)Eficaz e Mediação: a Deli- mitação e a Busca de Outras Estratégias na Resolução de Conflitos”, coordenado pela Profª. Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler. 1 INTRODUÇÃO O direito de se acessar a Justiça pode ser traduzido como a garantia de se ter assegurado acesso ao próprio Direito. Em se tra- tando este de verdadeiro fenômeno social, ao passo que é expres- são das clamantes reivindicações populares ao longo da história e quiçá o mais notável rebento da coletividade humana, não há se admitir afronte justamente ao princípio que o consagra. No Brasil, o encargo de promover justiça é confiado primordi- almente ao Poder Judiciário, que deverá inafastavelmente manifes- tar-se no sentido de dirimir os litígios postos à sua apreciação, sen- do-lhe vedado estabelecer qualquer tipo de critério discriminatório entre eles que importe declínio da prestação jurisdicional. Corolá- mailto:theobaldospengler@spengleradvocatio.com.br 14 Theobaldo Spengler Neto & Augusto Reali Beck rio lógico, se não pode o Judiciário se furtar da análise do caso con- creto, independentemente de suas proporções, ofensa maior ainda ao Direito seria a distinção entre os que litigam ou pretendem liti- gar. Na prática o que se verifica, porém, é um cenário de gritante segregação jurisdicional, reflexo principalmente da segregação econômica e cultural enfrentada pela sociedade. O Poder Judiciário brasileiro se tornou território hostil para parcela da população, que vê dessarte, comprometida a defesa de seus direitos. Em prol destes, e como obrigação moral e legal, foram concebidos instrumentos jurídicos no intuito de ver encurtada a distância que os afasta do Direito. Desde 1841 – ano de introdução da primeira ferramenta com este propósito - o modelo brasileiro de promoção ao acesso à Justiça evoluiu, partindo da concepção de gratuidade judiciária como único benefício ao carente até chegar à ideia hodierna de assistência jurídica integral. Muitos ainda são os obstáculos que se opõe ao acesso de par- cela da população ao Judiciário. Além dos elevados custos relativos ao trâmite processual, a demasiada delonga para se obter a solução de uma lide contribui para o desprestígio da instituição para com o cidadão. O presente ensaio objetiva explicitar os principais fatores que afastam o cidadão brasileiro da prestação jurisdicional estatal. Pre- liminarmente, a necessidade de se promover o acesso à Justiça é explicada à luz do princípio da igualdade, ponto de partida para qualquer divagação acerca do tema. Em seguida, são contemplados os obstáculos que mais fortemente incidem sobre o acesso e é rea- lizada sintética busca histórica na legislação brasileira pelos ins- trumentos originários da crescente preocupação com a segregação jurisdicional no País. Após, são apreciadas as propostas mais con- tundentes do Projeto do Novo Código de Processo Civil – atualmen- te em trâmite na Câmara dos Deputados – no sentido de garantir participação igualitária dos litigantes, atenuação da demasiada onerosidade que implica o processo, simplificação dos procedimen- tos e, acima de tudo, eficácia da prestação jurisdicional. Finalmente, voltam-se as atenções para a mediação, estratégia alternativa à prestação jurisdicional tradicional que em seu bojo acolhe diversos pontos tutelado pelo direito de acesso à Justiça. Acesso à Justiça & Mediação 15 2 FUNDAMENTO DE PROMOÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA: O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A NECESSIDADE DE CORRETAMENTE INTERPRETÁ-LO O direito universal de igualdade, que figura como garantia fundamental na maioria das Constituições mundo afora e informa a todos os ramos do direito, se faz impreterível quando se pretende discutir o acesso à Justiça e os obstáculos que se opõem à sua efeti- vidade. Preconiza o princípio da isonomia que todos, sem qualquer discrição, deverão ser tratados com equidade pelo sistema jurídico, desde a produção normativa à execução das disposições legais. Fru- to da visão do constituinte do século XX, tal princípio é reflexo do clamor pela proteção dos direitos ditos sociais, surgindo para su- prir a ineficácia da lógica essencialmente individualista dos estados liberais burgueses, modelos em vigência desde o século XVIII. Na antiga concepção liberalista, os direitos tidos como naturais e ina- tos ao ser humano não careciam da intervenção do Estado para assegurar o seu cumprimento, exigindo deste tão somente um posi- cionamento passivo, prezando pela observância e não transgressão daqueles. Para Cappelletti e Garth (1988, p. 9), “esses direitos eram considerados anteriores ao Estado; sua preservação exigia apenas que o Estado não permitisse que eles fossem infringidos por outros”. Por não admitir os privilégios e distinções que o regime sim- plesmente liberal consagra, o direito de igualdade não foi postulado pela classe burguesa com tanto afinco como foi reivindicado o de liberdade. É que um regime de igualdade contraria seus interesses e dá à liberdade sentido material que não se harmoniza com o do- mínio de classe em que assenta a democracia liberal burguesa. À medida que cresciam em tamanho e complexidade, tendo acentuadas suas desigualdades econômicas, as sociedades do lais- sez-faire provocaram uma transformação no conceito de direitos humanos, deixando para trás a “visão individualista dos direitos, refletida nas ‘declarações de direitos’, típicas dos séculos dezoito e dezenove. O movimento fez-se no sentido de reconhecer os direitos e deveres sociais dos governos, comunidades, associações e indiví- duos” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 10). A atuação positiva do 16 Theobaldo Spengler Neto & Augusto Reali Beck Estado verificou-se necessária para assegurar a fruição dos direitos sociais básicos – incluído aqui o direito a tratamento isonômico entre os cidadãos. Há que se fazer, no entanto, imperiosa releitura deste princí- pio. Dedicar semelhante tratamento da lei a todos importaria em flagrante injustiça se tivesse aplicação no mundo dos fatos somente sob esta óptica. Para fins de facilitação e promoção do acesso à Jus- tiça, é imprescindível se levar em conta as particularidades das par- tes, sob pena de se trilhar ocaminho oposto e fomentar desigual- dades. Seria justo, pois, esperar condutas equivalentes de seres em completa disparidade econômica, social e/ou cultural? A igualdade dos sujeitos na ordenação jurídica, garantida pe- la Constituição, não significa que aqueles devam ser tratados por forma igual nas normas legisladas com fundamento na Constituição, especialmente nas leis. Não pode ser uma tal igualdade aquela que se tem em vista, pois seria absurdo im- por os mesmo deveres e conferir os mesmo direitos a todos os indivíduos sem fazer quaisquer distinções, por exemplo, entre crianças e adultos, sãos de espírito e doentes mentais, homens e mulheres. (KELSEN, 1998, p. 99) O princípio da igualdade positivado na Carta Magna brasileira de 1988, em seu artigo 5º, se apresenta sob seu caráter puramente formal, de interpretação estrita. Em seu corpo não há menção a aspectos personalíssimos do indivíduo, levando-se à convicção, corolário lógico, de que tal igualdade é apenas de direitos e deve- res, e não de condições. Outra dimensão, no entanto, deve lhe ser conferida para que sua real volição seja contemplada, qual seja, a igualização material dos indivíduos. Não basta, portanto, que à po- pulação sejam garantidas prerrogativas – mesmo a nível constitu- cional – se, no plano fático, parte dela não disporá de mínima con- dição de exercê-las. Nesse sentido, corrobora Augusto Tavares Rosa Marcacini que deve ser superada a limitada visão da igualdade formal: Mais do que a mera igualdade formal, a garantia de tratamen- to igualitário pela lei, a proibição de privilégios legais, é ne- cessário falar-se em igualdade de possibilidades. Em um Es- Acesso à Justiça & Mediação 17 tado verdadeiramente democrático, todos devem ter, subs- tancialmente, na sociedade, as mesmas possibilidades de de- senvolvimento social, intelectual, econômico. Enfim, todos devem viver em condições compatíveis com a dignidade hu- mana, condições estas que, por sua vez, não são estáticas, mas devem acompanhar o estágio de desenvolvimento tecno- lógico da sociedade. A isonomia deve, pois, ser entendida substancialmente. Todos devem ter chances de atingir o con- teúdo da norma, a finalidade a que se presta, ainda que por caminhos, - formas – diferentes (MARCACINI, 2009, p. 21-22). A percepção de que o princípio da igualdade de todos perante a lei, nos estreitos termos do caput do supracitado artigo 5º, tem como principal destinatário o legislador é lugar-comum doutriná- rio. O propósito é de impedir que ele crie normas discriminatórias entre pessoas, coisas ou fatos, e não de exigir que todos sejam tra- tados de forma abstratamente igual pela lei, a despeito de suas par- ticularidades. Segundo Kelsen (1998), com a garantia da igualdade perante a lei se estabelece que os órgãos aplicadores do Direito somente podem tomar em conta aquelas diferenciações que sejam feitas nas próprias leis a aplicar, ou seja, apenas se estatui que as normas devem ser aplicadas de conformidade com as normas. Uma decisão judicial pela qual uma pena prevista na lei a aplicar não é imposta simplesmente porque o delinquente é um caucasiano e não um afrodescendente, um cristão e não um judeu, embora a lei não tome em conta, na determinação do fato delituoso, a etnia ou a reli- gião do delinquente, é anulável como contrária ao Direito. Destarte há que ser vencido o enfoque essencialmente formal do princípio da isonomia para se adentrar a seara do acesso à Justi- ça, ao passo que a efetivação deste somente se dá combinada à apli- cação material daquele. Para que possa ser substancialmente exer- cido todo o conjunto de direitos e faculdades assegurado pela lei processual, alcançando assim a exata dimensão do princípio da igualdade, dois planos de ação devem ser realçados: “no direito material, todos devem ter a possibilidade de ser titulares dos direi- tos que o ordenamento jurídico lhes confere e de efetivamente exercê-los; no plano processual, o acesso à Justiça e a possibilidade de litigar em igualdade de condições se impõe” (MARCACINI, 2009, p. 22). 18 Theobaldo Spengler Neto & Augusto Reali Beck 3 A QUESTÃO ECONÔMICA E SOCIOCULTURAL COMO ÓBICE AO ACESSO À JUSTIÇA Pugnar pela “efetividade” do acesso à Justiça, apesar de devi- do, é ideia tanto quanto imprecisa. Mauro Cappelletti acredita que a efetividade perfeita pode ser expressa como a “paridade de armas” entre os litigantes, no sentido de que a conclusão do litígio confiado ao Estado se dê consoante aos méritos jurídicos das partes antagô- nicas, de forma alheia às diferenças que não lhes sejam de direitos. Ou seja, bem sucedido em sua empreitada pelo Judiciário deve ser aquele que sustenta a causa mais justa, e não o mais bem municia- do de advogados ou capaz de empreender mais esforços financei- ros (CAPPELLETTI; GARTH, 1988). Como bem reconhecera o juris- ta italiano, essa perfeita igualdade é utópica, porquanto as diferen- ças – por serem inerentes às partes – são de impossível transposi- ção por completo. Ressalta, porém, que se faz forçoso avançar na direção dessa quimera. Em sua obra, Cappelletti parte rumo ao diagnóstico dos obs- táculos ao efetivo acesso à Justiça, dividindo a análise em três cam- pos: (i) as custas judiciais e extrajudiciais referentes ao ajuizamento e acompanhamento de processo contencioso (obstáculos econômi- cos), (ii) as possibilidades das partes no tocante a recursos finan- ceiros e aptidão para reconhecimento de um direito e ajuizamento de uma ação (obstáculos socioculturais) e (iii) a abnegação dos in- teresses difusos e a dificuldade de organizar politicamente os gru- pos em defesa de seus direitos. No presente estudo, limitar-nos- -emos à apreciação das duas primeiras barreiras, melhores tradu- toras dos problemas enfrentados pela Justiça brasileira – não igno- rando, no entanto, a existência de uma terceira. 3.1 OS OBSTÁCULOS ECONÔMICOS O custo referente à tramitação de um processo judicial é um dos grandes inibidores da busca pela tutela jurisdicional do Estado, afrontando a ideal “igualdade de armas” descrita por Cappelletti. Especialmente no Brasil, onde a distribuição de renda é bastante deficiente, o empecilho econômico acaba por evidenciar a incidên- Acesso à Justiça & Mediação 19 cia das desigualdades sociais no campo da litigância. A dedução é puramente lógica: a gritante fragmentação social brasileira, aliada à concentração das frações nas classes desfavorecidas economica- mente, conduz ao cenário de repulsão jurisdicional hodierno. Corro- bora este raciocínio Augusto Tavares Rosa Marcacini (2009, p. 22): Ao mesmo tempo em que a assistência jurídica passa a ter importância fundamental para resgatar a cidadania de volu- me gigantesco de seres humanos, o instrumento não pode deixar de ser visto como mero paliativo, diante do ideal, pos- sivelmente utópico, mesmo a longo prazo, de erradicar a po- breza. Quanto ao Brasil, mostra-se praticamente impossível conceder o benefício a todos os carentes de recursos, pelo simples fato de que a pobreza, neste país, é regra, e não exce- ção. O número de pessoas potencialmente usuárias do servi- ço é muito superior à capacidade de atendimento, ainda que esta seja ampliada. A solução para o problema, portanto, pas- sa pela diminuição dos níveis de pobreza. Aliás, o verdadeiro problema é a própria existência de pessoas em condições alarmantes de pobreza, e não a impossibilidade de atender a todos os pobres. A assistência jurídica, assim, só pode contri- buir para tornar a pobreza menos áspera. Dessarte, o obstáculo econômico ao acesso à Justiça não se re- sume ao alto custo da litigância, ao passo que representa, outros- sim, [...] a mais das evidentes contradições sociais refletida no campo da litigância. Em verdade, o obstáculo econômico con- siste em quaisquer dificuldades ou óbices por que passe um cidadão, quando em necessidade do uso do aparato da Justiça na sociedade, decorrente de seu nívelsocial. Portanto, é um equívoco asseverarmos simplesmente que ‘a justiça é cara’, no fito de simplificar a questão. (FONTAINHA, 2009, p. 42- 43) Para que se atinja a solução de uma lide, os litigantes preci- sam suportar diversas e demasiadas custas judiciais e extrajudici- ais (deslocamento, fotocópias, a guisa de exemplo), além de despe- sas eventuais com assistente técnico e perito e honorários advoca- 20 Theobaldo Spengler Neto & Augusto Reali Beck tícios contratuais e sucumbenciais, residindo nestes a maior parce- la da onerosidade despendida. Nos países que adotam o sistema sucumbencial – a exemplo do Brasil – os riscos da litigância são potencialmente maiores em relação àqueles assumidos pelas partes no Sistema Americano, on- de o vencido não é obrigado a reembolsar ao vencedor os honorá- rios empregados com seu advogado. A penalidade para o vencido no modelo sucumbencial é, grosso modo, duas vezes maior, vez que terá de arcar com os gastos de ambas as partes. Intentar uma ação judicial acaba por se tornar ainda mais desencorajante, exigindo do futuro litigante convicção de que logrará êxito em sua contenda. Os altos custos, não obstante seja uma ou ambas as partes a suportá- -los, erigem importante barreira ao acesso à Justiça. Merece maior destaque, no entanto, aquela que, segundo Cappelletti e Garth, é “a mais importante despesa individual para os litigantes”: os honorários advocatícios. Fundado em dados colhidos de relatórios de diversos países em seu Projeto de Florença1 – que deve ser observado com ressalva no tocante a valores, posto que sua realização data de 1978, porém sem demérito quanto ao teor das norteadoras conclusões –, os autores ilustram a questão: [...] nos Estados Unidos e no Canadá, por exemplo, custo por hora dos advogados varia entre 25 e 300 dólares e o custo de determinado serviço pode exceder ao custo horário. Em ou- tros países, os honorários podem ser calculados conforme critérios que os tornem mais razoáveis, mas nossos dados mostram que eles representam a esmagadora proporção dos altos custos do litígio, em países onde os advogados são par- ticulares. E concluem, apontando para o pressuposto que deve se fazer irrefutável no rompimento da barreira econômica: “qualquer tenta- 1 Coordenado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, em 1978, o Projeto de Flo- rença foi pioneiro no estudo e reflexão sobre a situação do Poder Judiciário no mundo, suas principais mazelas e obstáculos que se perfazem ao seu aperfeiço- amento, bem como as possíveis alternativas encontradas a esses problemas. A metodologia baseou-se na troca de experiências entre os Estados participantes, permitindo-lhes conhecer os problemas enfrentados por seus vizinhos e os fra- cassos e sucessos das alternativas utilizadas em sua superação. Acesso à Justiça & Mediação 21 tiva realística de enfrentar os problemas de acesso deve começar por reconhecer esta situação: os advogados e seus serviços são muito caros” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 11). Nas causas de valor relativamente pequeno, o obstáculo eco- nômico é atravanco ainda mais contundente, tornando a busca pela tutela jurisdicional verdadeira questão de investimento. É possível que, ao término da contenda, o valor devido ao vencedor se dilua consideravelmente em meio aos custos por ele gerados na ação, ou ainda que saia derrotado o autor, mesmo no sustento da verdade material. Também há de ser atentamente observado o tempo mé- dio para obtenção de uma solução que, em geral, é bastante extenso e acaba por dilatar os gastos das partes, pressionando os economi- camente fracos a abandonar suas causas, ou a aceitar acordos por valores muito inferiores àqueles que lhes seriam de direito, além de sujeitar aqueles que se aventurarem pelo Judiciário às farpas da intempestividade jurisdicional2. 3.2 OS OBSTÁCULOS SOCIOCULTURAIS Recai especialmente sobre os integrantes das classes sociais menos favorecidas o obstáculo sociocultural ao efetivo acesso à Justiça. Esses cidadãos, além de possuírem as supracitadas dificul- dades atinentes à sua deficiente condição econômica, se encontram à mercê dos precários estímulos governamentais em prol de seu desenvolvimento educacional e, por conseguinte, encontram difi- culdades para reconhecer seus direitos, reivindicá-los com amparo no Poder Judiciário ou promover sua defesa se acionados. Num primeiro nível está a questão de reconhecer a existência de um direito juridicamente exigível. Essa barreira fundamental é 2 Ademais, a morosidade do processo atinge de modo muito mais acentuado os que têm menos recursos. A demora, tratando-se de litígios envolvendo patri- mônio, certamente pode ser compreendida como um custo, e esse é tanto mais árduo quanto mais dependente o autor é do valor patrimonial buscado em juízo. Quando o autor não depende economicamente do valor em litígio, ele obviamente não é afetado como aquele que tem o seu projeto de vida, ou o seu desenvolvimento empresarial, vinculado à obtenção do bem ou do capital objeto do processo (MARINONI, 2008, p. 188). 22 Theobaldo Spengler Neto & Augusto Reali Beck especialmente séria para os despossuídos, mas não afeta somente os pobres. Ela diz respeito a toda a população carente não apenas no sentido de reconhecer um direito exigível, como no de se opor quando da ofensa a eles. Mesmo consumidores bem informados, por exemplo, só raramente se dão conta de que sua assinatura num contrato não significa que precisem, obrigatoriamente, sujeitar-se a seus termos, em quaisquer circunstâncias. Falta-lhes o conheci- mento jurídico básico para fazer objeções a esses contratos, e, antes disso, perceberem que são passíveis de objeção (CAPPELLETTI; GARTH, 1988). Outro ponto tange aos limitados conhecimentos acerca da maneira de ajuizar uma ação, fator estritamente ligado, outrossim, ao insucesso do sistema educacional no Brasil. Ademais, é pouco provável que o cidadão desfavorecido economicamente tenha um advogado – ou outro profissional da área do Direito – em seu ciclo de convívio a quem possa recorrer, ou mesmo que encontre nos meios de comunicação orientações de valor. Essa falta de conheci- mento relaciona-se a outro incidente, qual seja, a disposição psicoló- gica para recorrer a processos judiciais. A desconfiança nos advoga- dos, o excessivo formalismo dos procedimentos, a intimidação dos ambientes e das figuras, tais como juízes, advogados e promotores, podem fazer com que mesmo aqueles que sabem como encontrar aconselhamento jurídico qualificado desistam de suas causas. Ainda que tenha acesso à assistência judiciária gratuita, o ci- dadão corre o risco de ser amparado com debilidade, seja porque a instituição prestadora privilegia o caráter formativo da experiência para o acadêmico em detrimento do papel assistencial – no caso de assistência judiciária prestada por uma universidade –, ou porque o trabalho dos defensores dativos, nomeados pelo Estado, não é de- sempenhado com zelo integral, visto ser que prestado como obri- gação pelo profissional e sob baixa remuneração. Conforme Cappel- letti, “sem remuneração adequada, os serviços jurídicos para os pobres tendem a ser pobres, também. Poucos advogados se inte- ressam em assumi-los, e aqueles que o fazer tendem a desempe- nhá-los em níveis menos rigorosos” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 47-48). Para completar a lacuna da assistência jurídica para o menos favorecido, é mister acentuar a instituição das Defensorias Públi- Acesso à Justiça & Mediação 23 cas3, encarregadas de esclarecer a população quanto a seus direi- tos, sobre como reclamá-los e como desenvolver sua relação jurídi- ca com outros indivíduos ou pessoas jurídicas de direito privado ou público. A ação clarificadora como instrumento de justiça faz da Defensoria Pública a principalforma de acesso ao Poder Judiciário oportunizada pelo Estado em prol dos carentes. Apesar dos esforços já empreendidos no fomento à ampliação da acessibilidade judicial e jurisdicional, a distribuição da justiça no Brasil é insatisfatória e necessita primordialmente do rompimento de barreiras econômicas e socioculturais, para, aí sim, sofrer mu- danças eficazes. Reformas processuais ou de direito material, se isoladas, poderão apenas aliviar as chagas de um sistema que se faz inacessível para muitos – ou que, quando acessível, é intempestivo e dispendioso. O acesso a direitos – que compreende o conhecimen- to e a capacidade de reivindicá-los – deve sim ser suscitado por meio da revisão e adequação contemporânea do direito formal e substantivo, o que não deve substituir a imprescindível educação e orientação para o exercício da cidadania. 4 ESBOÇO HISTÓRICO: OS INSTRUMENTOS BRASILEIROS DE PROMOÇÃO AO ACESSO À PRESTAÇÃO JURISDICIONAL A legislação brasileira apresenta instrumentos para fazer frente às barreiras impostas historicamente ao acesso à Justiça, dos quais passaremos a contemplar os mais notáveis. A primeira incidência de texto legal em prol da promoção do acesso dos pobres à Justiça no Brasil deu-se em virtude da adoção da compilação jurídica portuguesa, as Ordenações Filipinas, ratifi- cada em 1841, no início do Segundo Reinado de Dom Pedro II e dizia respeito à assistência judiciária gratuita. O litigante poderia ser isentado do pagamento das custas relativas ao recurso de agra- vo ordinário se alegasse ser pobre e rezasse pela alma de D. Diniz em audiência. Já o preparo do recurso de revista poderia ser dis- 3 A Defensoria Pública é um serviço público, patrocinado pelo Estado, posto em função das pessoas social e financeiramente desprotegidas, que deve prestar assis- tência jurídica integral, atuando em todos os graus de jurisdição e também de for- ma extrajudicial e nas instâncias administrativas, assegurando aos seus assistidos a ampla informação e defesa jurídicas (CAOVILLA, 2006, p. 98). 24 Theobaldo Spengler Neto & Augusto Reali Beck pensado com a anuência do Rei. A alegação de suspeição do juiz era condicionada ao oferecimento de caução, de valor variável confor- me a hierarquia do magistrado, da qual era o pobre isento (MARCACINI, 2009). Pouco tempo depois, em 1842, foi editado o Regulamento 120, que previa o pagamento de metade das custas judiciais – no pro- cesso criminal – pelos cofres municipais, se o réu fosse pobre. Ao município restava resguardado o direito de haver do réu tal quantia, quando ele se encontrasse em melhor condição financeira. Ainda no mesmo ano, a Lei 150 desobrigava os “miseráveis”4 do pagamento integral do dízimo de chancelarias cobrado no processo civil. Essas esparsas disposições normativas, entretanto, eram niti- damente insuficientes para garantir o efetivo acesso dos carentes aos tribunais, tema emergente no cenário internacional da época e que tinha a França5 como recente pioneira em sua contemplação. Ciente da carência do sistema brasileiro nesse sentido, o Presidente do Instituto dos Advogados do Brasil, Nabuco de Araújo, propôs, pela primeira vez no Brasil, medidas concretas para que fosse asse- gurado o direito de acesso à Justiça aos carentes. A sugestão do ju- rista, de fato acatada, foi a implantação, pelo instituto que presidia, de um conselho para prestar assistência jurídica e judiciária aos necessitados nas causas cíveis e criminais. Os encarregados pela prestação seriam os próprios membros do Instituto. Posteriormente, proclamada a República, é editado o Decreto 1.030, de 1890, que, dispondo sobre a organização da justiça no Distrito Federal (cumpre ressaltar que, à época, a capital federal situava-se na cidade do Rio de Janeiro), autorizava o Ministro da Justiça a organizar “uma comissão de patrocínio gratuito dos po- bres no crime e no cível, ouvido o Instituto da Ordem dos Advoga- dos, e dando os regimentos necessários”6. Em 1891 é promulgada a primeira Constituição Republicana, que, fiel à sua veia absenteísta, nada discorre acerca da temática do acesso à Justiça. Somente em 4 Termo extraído do § 4º do artigo 10 da Lei 150, de 9 de abril de 1842. 5 Foi publicado na França, em 22 de janeiro de 1851, o Código de Assistência Judiciária, que impunha aos advogados o ônus jurídico de promover a defesa em juízo das partes hipossuficientes economicamente. 6 Art. 176, do Decreto 1.030, de 14 de novembro de 1890. Acesso à Justiça & Mediação 25 1897, por meio do Decreto 2.4577, é instalado no Distrito Federal o primeiro serviço de Assistência Judiciária totalmente suportado com recursos públicos. Nos anos subsequentes, o patrocínio gratuito oferecido como serviço público se mostrou mais eficaz e foi preferido em relação ao auxílio prestado por advogados dativos – embora este ainda fosse adotado em um grande número de causas –, o que se refletiu nas reformas dos Códigos de Processo Civil de alguns Estados8, “como o de Pernambuco, no art. 68, da Bahia, nos arts. 38 e seguintes, de São Paulo, no art. 65 e seguintes, e Minas Gerais, no art. 68”. A isen- ção de custas processuais, outrossim, foi alvo de apreciação por essas legislações. Em 1930, via Decreto 19.408, é criada a Ordem dos Advoga- dos do Brasil, posteriormente regulamentada pelo Decreto 20.784, de 14 de dezembro de 1931. A assistência judiciária gratuita passa a ser jurisdição exclusiva da ordem e múnus profissional do advo- gado, sujeitando seu descumprimento a penalidades desde multas até o cancelamento da inscrição na entidade. Finalmente, em 1934, o constituinte reconhece que é dever da União e dos Estados o patrocínio gratuito das causas dos necessita- dos e prevê a criação de órgãos públicos que se destinariam especi- ficamente a tal prestação. A promoção da assistência judiciária ga- nhara o devido enfoque, tornando-se garantia constitucional com a promulgação da nova Carta Magna. No entanto, com o golpe de 1937 e a conseguinte instauração da Constituição do Estado Novo, é rebaixada para texto infraconstitucional, se fazendo presente no Código de Processo Civil de 19399. 7 O Decreto 2.457, de 8 de fevereiro de 1897, trouxe algumas disposições ino- vadoras que até hoje permeiam a legislação atinente à concessão de gratui- dade de justiça. Entre elas, a redefinição de “pobreza”, estendendo o benefício àqueles que não pudessem arcar com as despesas processuais sem prejuízo da manutenção própria ou de sua família, que ultrapassava a velha concepção baseada em critérios estanques de percepção de renda. 8 À época, vigente a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, competia às unidades federativas legislar sobre matéria processual, respeitando os princípios constitucionais estabelecidos pela União. 9 O Código de Processo Civil, fruto do Decreto-lei 1.608, de 18 de setembro de 1939, e vigente a partir de 1940, dedicou capítulo especial para a questão da gratuidade de justiça, qual seja, o Capítulo II, Título VII, do Livro I. 26 Theobaldo Spengler Neto & Augusto Reali Beck Finda a Ditadura Vargas e retomada a democracia no País, a garantia volta a ter status constitucional com a promulgação da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. O passo de ver- dadeira importância, porém, viria a ser dado em 1950, quando aprovada a Lei Federal 1.060, que consolidou em um só diploma legal diversas disposições relativas à concessão de assistência judi- ciária gratuita até então dispersas em vários códigos e leis. Recep- cionada pelas Constituições que lhe seguiram, a Lei 1.060 ainda vigora, não obstante tenha sofrido substanciais alterações à medida que o modelo brasileiro ia se solidificando. Em 1984 é criado um importante instrumentopara viabilizar a apreciação judicial de causas de pequeno valor, o Juizado Especial de Pequenas Causas, mediante a Lei 7.244 do mesmo ano. Ainda que a defesa técnica e a orientação jurídica não fossem dispensa- das, a maior simplicidade do procedimento permite que o órgão prestador de assistência judiciária “produza” mais com menor es- forço e, consequentemente, o atendimento pode ser ampliado (MARCACINI, 2009). Para a defesa em juízo de interesses difusos, foi instituída a ação civil pública pela Lei 7.347, em 1985, destinada à reparação de danos morais e patrimoniais contra o meio ambiente, o consumi- dor, os bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o ideal de acesso à Justiça é elevado a novo pata- mar. O antigo direito de assistência exclusivamente judiciária é su- perado e a assistência jurídica integral10 passa a ser o horizonte para onde devem apontar os esforços estatais. A competência para prestá-la é conferida às Defensorias Públicas dos Estados e da União, de criação prevista no artigo 134 da Magna Carta, mas não há óbice 10 Spengler faz precisa distinção entre “assistência judiciária” e “assistência jurídica integral”, observando que esta “deveria acontecer não só no sentido de solucionar litígios, mas também para preveni-los, por isso é integral, é ju- rídica e não judiciária. Importante salientar que por assistência jurídica en- tende-se aquele instituto que compreende a assistência judiciária, sendo mais ampla do que esta, e mais completa, uma vez que engloba, em seus serviços, além dos judiciais, também aqueles de orientação e informação” (SPENGLER, 1999, p. 51). Acesso à Justiça & Mediação 27 à existência de “outros órgãos prestadores, diversos da Defensoria Pública, que podem ou não ser mantidos por verbas públicas. Neste sentido, encontramos alguns Municípios que mantêm serviços de assistência jurídica à população. Existem, ainda, associações civis que prestam o serviço e entre estas destacamos as entidades estu- dantis” (MARCACINI, 2009, p. 76). Em 1990, duas codificações de relevância histórica para o Brasil são publicadas. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069), que extingue os juizados de menores, garante o direito do livre acesso da criança e do adolescente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, isentando as ações judiciais de competência da Justiçada Infância e Juventude do pagamento de qualquer tipo de custas judiciais. Já o Código de Defesa do Consu- midor (Lei 8.078) prevê mecanismos para a proteção judicial dos interesses difusos e coletivos dos consumidores. Em 1994, é promulgada a Lei Orgânica da Defensoria Pública no Brasil, regulamentando as normas e diretrizes emanadas da Constituição de 1988, que estabelece os parâmetros e normas ge- rais que devem ser observados pelos Estados da Federação para a organização deste serviço público. É a primeira legislação em âmbi- to nacional a dispor sobre a instituição da Defensoria Pública. A seguir, em 1995, sobrevém a Lei 9.099, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e revoga a Lei 7.244/84, que dispunha sobre os Juizados de Pequenas Causas. O objeto dos Jui- zados Especiais são as demandas de menor complexidade, que se- rão orientadas pelos princípios da oralidade, simplicidade, infor- malidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação. Foram esses princípios, ou- trossim, que inspiraram a criação, em 2001, dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, com a Lei 10.259. Em 2004, a edição da Emenda Constitucional 45 aponta para a necessidade de se dedicar maior presteza à atividade jurisdicio- nal. A Emenda da Reforma do Judiciário – como ficou comumente conhecida a EC 45/04 – trouxe ao texto constitucional os princípios da razoável duração e da celeridade na tramitação do processo, além de algumas mudanças pontuais norteadas por tais diretrizes. Pode-se afirmar, com a ciência dos supramencionados marcos legislativos, que o sistema brasileiro de promoção do acesso à Jus- 28 Theobaldo Spengler Neto & Augusto Reali Beck tiça aos economicamente fragilizados basicamente tomou a hodi- erna forma no período compreendido entre 1946 e 1994. Optou-se pela adoção de uma entidade pública, a Defensoria Pública, especi- almente designada para prestar assistência jurídica integral por intermédio de profissionais remunerados pelos cofres públicos, não obstando à prestação – em caráter subsidiário – por advoga- dos, não remunerados pelo erário, ou organizações e entidades di- versas como as Faculdades de Direito, por exemplo. 5 A CONTEMPLAÇÃO DO DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA NO PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO DE CIVIL DE 2010 Dezenas de diplomas legais modificando o texto original do atual Código de Processo Civil brasileiro foram editados desde 1973, quando promulgado, tendo como escopo pontos específicos que careciam de urgente atualização. Era esse o caminho mais fácil a percorrer, afinal, a codificação era jovem. Mas até quando seriam cabíveis reformas pontuais? Acumuladas quase quatro décadas de vigência, o panorama é de considerável desconsolidação, de obnu- bilação sistemática do direito processual civil. De outro lado, a gri- tante morosidade da prestação jurisdicional no Brasil, sem pers- pectiva de amenização, acalenta o vislumbre a um novo Código. Um código de processo civil deve inapelavelmente densificar o direito de ação como direito a processo justo e, muito especial- mente, como um direito à tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva (MARINONI; MITIDIERO, 2010). Não se fidelizando a tais direitos fundamentais processuais civis previstos na Constitui- ção, é concebível que tenha sua credibilidade para com o cidadão abalada. De fato, é o que vem se verificando no caso brasileiro. Em 2009, sob motivação da desconfiança do jurisdicionado em relação ao Poder Judiciário, é instituída uma Comissão de Juris- tas encarregada da elaboração do novo Código de Processo Civil brasileiro. Presidida por Luiz Fux, sob relatoria de Teresa Arruda Alvim Wambier e composta por eminentes processualistas, a co- missão elabora o anteprojeto e o apresenta ao Congresso Nacional no ano seguinte. No Senado Federal o anteprojeto é recebido sob a alcunha de Projeto de Lei 166/10. Elaborado e aprovado pelo Se- Acesso à Justiça & Mediação 29 nador Valter Pereira, seu texto substitutivo11 é encaminhado para apreciação da Câmara dos Deputados, onde assume o nº 8.046/10. O Projeto inicia a disciplina do direito processual civil enunci- ando os direitos fundamentais nos quais se baseia o processo civil e que deverão servir de diretrizes para os operadores da matéria. Entre eles, elenca a igualdade de todos perante o Direito, consagra- da no princípio da paridade de armas: “É assegurada às partes pa- ridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculda- des processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz velar pelo efetivo contraditório” (art. 7º). Observam Marinoni e Mitidiero (2010, p. 74) que [...] o direito ao processo justo tem como elementos inafastá- veis o direito à igualdade (art. 5º, I, CF) e o direito ao contra- ditório (art. 5º, LV, CF). Um processo de cariz realmente de- mocrático não pode prescindir da previsão de ‘participação em contraditório mediante paridade de armas’. Isto porque a paridade de armas é pressuposto para que o contraditório encontre ambiente propício ao seu cabal e pleno desenvolvi- mento. Nesse sentido, a positivação de direito fundamental disposta nos artigos 3º a 11 do Projeto, apesar de basicamente simbólica, é elogiável, posto que atentapara a necessidade de se perceber a le- gislação infraconstitucional sob a ótica de desdobramento da Cons- tituição. Visa-se a sobreposição dos princípios constitucionais às regras infraconstitucionais sobre processo e procedimento, o que ofereceria maior margem ao magistrado para adequar a técnica ao caso concreto, balizando sua decisão não só em regras formais, mas, mormente, nas carências da realidade. Não basta, no entanto, apenas trazer mais um princípio ao di- reito processual civil. A participação igualitária das partes no pro- cesso importa a previsão de ferramentas que propiciem sua pre- 11 As referências dispositivas realizadas neste ensaio têm por base as alterações apresentadas pelo Relator-Geral no texto substitutivo do Projeto de Lei 166/2010. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/ getPDF.asp?t=84496>. Acesso em: 04 nov. 2012. 30 Theobaldo Spengler Neto & Augusto Reali Beck servação e atenuem as diferenças a elas inerentes, na forma de re- gras jurídicas. Em seu artigo 358, o Projeto cria a possibilidade de dinamiza- ção do ônus da prova, atribuindo a realização da prova à parte que, consideradas as circunstâncias da causa e as peculiaridades do fato a ser provado, encontrar-se em melhor condição de fazê-lo. Presen- tes as condicionantes, deve o magistrado seguir à dinamização do ônus de provar. Em não havendo subsídio para tal, não poderá ele, em hipótese alguma, dar vez ao instituto. Não há menção expressa quanto ao ideal momento para acertá-lo, porém, ao se realizar rá- pida interpretação sistemática, resta claro que o despacho sanea- dor é o momento mais oportuno. Não poderia ser de outro modo, a contemplação da assistên- cia judiciária gratuita subsistir no Código em gestação. Alojada no artigo 99, a previsão dispositiva inova ao estender expressamente o benefício à “pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira”, bem como possibilitar que o juiz determine de ofício a comprova- ção da insuficiência econômica pela parte, se houver nos autos ele- mentos que evidenciem a falta dos requisitos legais da gratuidade de justiça (art. 99, § 1º). Na linha de promoção do direito fundamental à assistência ju- rídica integral, é instituído pelo Projeto o dever de os órgãos e re- partições oficiais cumprirem determinações judiciais relativas à entrega de laudo pericial com preferência, no prazo estabelecido, quando a parte estiver no gozo da gratuidade de justiça (art. 457, § 1º). O descumprimento do prazo sujeita o órgão e seu dirigente à multa sancionatória, por cujo pagamento ambos responderão soli- dariamente (art. 457, § 2º). O ataque àquele que é tido por grande massa da população brasileira como o mais perene dos obstáculos ao acesso ao Poder Judiciário fitou a simplificação de procedimentos. À morosidade da prestação jurisdicional foram propostas pontuais alterações com o desiderato de imprimir celeridade ao processo, sem, no entanto, desprestigiar os que litigam. Com a abolição do procedimento co- mum sumário pelo Projeto, coube especialmente ao rito ordinário o suporte de tais modificações. Não é por outra razão que será a re- paginação deste – o rito ordinário – o objeto de análise seguinte. Acesso à Justiça & Mediação 31 De acordo com o regime processual proposto, o réu não será mais citado para apresentar defesa, no gênero, com as espécies da contestação, da reconvenção, das exceções de impedimento, de suspeição e de incompetência relativa e da impugnação ao valor da causa, além da impugnação à concessão do benefício da assistência judiciária, como atualmente lhe é franqueado. Essa proliferação de defesas é burocrática e contribui para o retardo na solução do con- flito de interesses (MONTENEGRO FILHO, 2011). No Código vigente, são respostas do réu a contestação, a re- convenção e as exceções (art. 297). Com vistas à simplificação do procedimento nesse ponto, o Projeto propôs a supressão das exce- ções, a transformação da reconvenção em pedido contraposto (art. 326) e o deslocamento de determinadas matérias antes suscetíveis de exceção e de provocar incidentes processuais para o rol de pre- liminares de contestação – como é o caso da arguição de incompe- tência relativa e absoluta, da impugnação ao valor da causa e da impugnação à concessão do benefício da gratuidade de justiça (art. 327, II, III, XII). O procedimento de proposição de provas judiciais foi simpli- ficado, seguindo a vertente do atual procedimento sumário. O rol de testemunhas deverá ser apresentado na petição inicial e na con- testação (art. 296, do Projeto), sob pena de preclusão e perda do direito de produzir prova testemunhal posteriormente. Ademais, cai para cinco o número máximo de testemunhas a serem arroladas pelas partes – atualmente o limite é de dez testemunhas. Uma das grandes apostas do Projeto é dar ênfase à composi- ção amigável dos litígios. Em seu artigo 323, prevê que o réu será citado para comparecer à audiência de tentativa de conciliação, e não para imediatamente contestar o pedido. Na audiência, atuarão conciliadores e mediadores, se houver. A realização de conciliação ou mediação deverá ser estimulada por magistrados, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial (art. 145). A contestação somente será oferecida após a audiência de conciliação ou após a última sessão de conciliação e julgamento (art. 324 do Projeto), o que é positivo, posto que não terá o réu, até a tentativa de conciliação, eivado suas intenções de compor amiga- 32 Theobaldo Spengler Neto & Augusto Reali Beck velmente o litígio. Se uma das partes manifestar desinteresse pela autocomposição, a audiência será dispensada (art. 323, § 5º), pros- seguindo-se desde então à apresentação da contestação. 6 A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS COMO ALTERNATIVA À FUNÇÃO JURISDICIONAL DO ESTADO Como se sabe, à medida que cresciam em complexidade, as so- ciedades deparavam-se com a inevitabilidade de conferir a uma figu- ra imparcial e autônoma a função de regular as condutas sociais, de modo que esta zelasse pelo harmônico convívio entre os indivíduos do grupo. Em um processo gradual, muniu-se este ente, o Estado, do poder de coerção, outorgando-lhe o poder-dever de dizer e apli- car o direito aos conflitos oriundos do meio. Surgia então, em con- traponto à defesa privada de interesses e como mister exclusivo deste, a jurisdição. No desenrolar do tempo, se verificou em nosso país progres- sivo aumento da dependência do cidadão em relação ao aparelho estatal de decisão de litígios, fruto de uma cultura que estimula a conflitualidade e de uma estrutura jurídico-política sempre empe- nhada em “decidir” (de forma paliativa) conflitos sociais, e não em “eliminá-los” (com concretude). O resultado é o abarrotamento do Poder Judiciário, que não mais consegue dar respostas em tempo razoável – comprometendo, muitas vezes, a utilidade da sentença – ou apreciar todas as situações que demandam acesso à Justiça. Nesse contexto, dada a evidente incapacidade do Estado de mono- polizar a jurisdição de maneira eficaz, faz-se necessário examinar estratégias alternativas de prestação jurisdicional12. Paralelamente às formas jurisdicionais tradicionais, existem possibilidades não jurisdicionais de tratamento de disputas que 12 “Deve-se ter presente, também, que as crises por que passa o modo estatal de dizer o direito – jurisdição – refletem não apenas questões de natureza estrutu- ral, fruto da escassez de recursos, como inadaptações de caráter tecnológico – aspectos relacionados às deficiências formativas dos operadores jurídicos – que inviabilizam o trato de um número cada vez maior de demandas, por um lado, e de uma complexidade cada vez mais aguda de temas que precisam ser enfren- tados, bem como pela multiplicaçãode sujeitos envolvidos nos polos das rela- ções jurídicas, por outro.” (SPENGLER; MORAIS, 2008, p. 78) Acesso à Justiça & Mediação 33 merecem atenção face ao atual quadro de excessiva litigiosidade. Chega-se assim à mediação, modalidade da justiça consensual que não é estranha ao Judiciário, e sim age no sentido de completar o processo judicial quando possível, estimulando a cooperação pac- tuada e convencionada entre os litigantes por intermédio de um mediador legalmente habilitado (SPENGLER; MORAIS, 2008). Guardando semelhança com o processo judicial, na mediação também há a presença de um terceiro entre os litigantes. Sua atua- ção e influência no resultado final, porém, muito se distanciam do coercitivo desempenho do juiz (que se estende à prolação da sen- tença), cabendo-lhe auxiliar os participantes na resolução de uma disputa, assumindo o papel de conselheiro, facilitando-lhes a co- municação sem forçar-lhes à avença. O acordo final trata o proble- ma com uma proposta mutuamente aceitável e será estruturado de modo a manter a continuidade das relações das pessoas envolvidas no conflito. Diferentemente da jurisdição estatal tradicional na qual o poder de gerir o conflito é delegado aos profissionais do direito, com preponderância àqueles investidos das funções jurisdicionais, na mediação, por constituir um mecanismo consensual, as próprias partes detêm esta prerrogativa, podendo escolher de forma livre e consciente. Daí a importância da escolha recair sobre um mediador qualificado, afinal, é com o auxílio deste que os envolvidos buscarão compreender as fraquezas e fortalezas de seu problema, a fim de tratar o conflito de forma satisfatória (SPENGLER; MORAIS, 2008). O culto ao conflito, reflexo da sociedade em seu atual estágio e responsável pelo panorama de excessiva litigiosidade, tem alto ín- dice de propagação e é nitidamente insustentável, inobstante se invista de forma veemente no aparelhamento do Judiciário – possi- bilidade por si só remota. Dentre as estratégias disponíveis, é a mediação que oferece o solo mais propício para o cultivo da não conflitualidade entre as partes, e mais, o faz ao instituir denso filtro pré-processual com grande potencial contributivo para o desafo- gamento da máquina estatal. Ademais, a ampliação das formas de tratamento de litígios aliada ao uso de linguagem e emprego de sistemática mais simples, bem como maior contato humano entre os envolvidos e menor dispêndio de tempo e dinheiro, apontam os ho- lofotes na direção do deveras esquecido direito de acesso à Justiça. 34 Theobaldo Spengler Neto & Augusto Reali Beck 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS A segregação social experimentada pelo Brasil não pode ter reflexos no âmbito do processo judicial. Apesar de aparentemente fantasioso e inalcançável, este pensamento oferece as coordenadas iniciais para rumar em direção ao plano da igualdade material, que é a igualdade de condições e possibilidades do cidadão perante a Justiça. A utopia, diga-se de passagem, é a força motriz do Direito, vez que impõe ao cientista jurídico a preliminar idealização da norma em um mundo abstrato e perfeito para somente então im- portá-la ao terreno fático. Em verdade, expurgar todos os obstáculos ao efetivo acesso à Justiça é tarefa impraticável, pois, conforme foi visto, alguns deles são inerentes ao nível social ou cultural do indivíduo. No entanto, sua mitigação é viável e pode tomar forma por meio da orientação pré-processual e processual ao cidadão, da concessão de benefícios processuais aos necessitados e de adaptações da legislação ao caso concreto. Nessa esteira, o Brasil adotou o modelo de assistência jurídica integral, dever inarredável do Estado e exercido preferen- cialmente pela Defensoria Pública. Cônscio dessa realidade e com atenções voltadas à dinâmica fo- rense, o Projeto do Novo Código de Processo Civil propõe alterações pontuais na codificação. Entre elas, a busca pela composição amigável dos litígios, por meio do incentivo à conciliação, e pela autocomposi- ção, utilizando-se da mediação, a simplificação de procedimentos no rito ordinário e a distribuição do ônus da prova de acordo com a ca- pacidade de provar das partes são dignas de aplausos. Não obstante a preocupação do Projeto em conferir celerida- de aos procedimentos, especialmente no rito ordinário, e razoável duração ao processo, há que se questionar a oportunidade de ta- manha reforma que na essência não acrescenta muito ao estado da arte. A morosidade na resolução dos litígios sob sua jurisdição, fa- tor que gera desprestígio do Poder Judiciário para com o cidadão brasileiro, não parece ter origem na lei processual, e sim em sua estrutura. Acesso à Justiça & Mediação 35 REFERÊNCIAS CAOVILLA, Maria Aparecida Lucca. Acesso à Justiça e cidadania. Chapecó: Argos, 2006. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988. CESAR, Alexandre. Acesso à Justiça e cidadania. Cuiabá: UFMT, 2002. FONTAINHA, Fernando de Casto. Acesso à Justiça: da combinação de Mauro Cap- pelletti à realidade brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. FUX, Luiz et al. O novo processo civil brasileiro (direito em expectativa): reflexões acerca do projeto do novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Assistência Jurídica, Assistência Judiciária e Justiça Gratuita. São Paulo, 2009. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O Projeto do CPC: críticas e pro- postas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. v. 1. MONTENEGRO FILHO, Misael. Projeto do Novo Código de Processo Civil: confronto entre o CPC atual e o projeto do novo CPC: com comentários às modificações substanciais. São Paulo: Atlas, 2011. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. SPENGLER, Fabiana Marion. Assistência Judiciária da UNISC como meio de acesso à Justiça na comarca de Santa Cruz do Sul. 1999. 149f.. Dissertação (Mestrado). Universidade de Santa Cruz do Sul, Programa de Pós-Graduação - Desenvolvi- mento Regional, Santa Cruz do Sul, 1999. SPENGLER, Fabiana Marion; MORAIS, José Luis Bolzan de. Mediação e arbitra- gem: alternativas à jurisdição! 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. TORRES, Jasson Ayres. O acesso à Justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. A ABORDAGEM AO CONFLITO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: UMA ANÁLISE DO PODER JUDICIÁRIO VERSUS A MEDIAÇÃO Charlise P. Colet Gimenez Doutoranda em Direito e Mestre em Direito pela Unisc – Universidade de Santa Cruz do Sul e Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Unijuí – Uni- versidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Professora de Estágio de Prática Jurídica, Direito Penal e Processo Penal pela URI – Universida- de Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões (Santo Ângelo/RS). Integrante do Grupo de Pesquisa: “Políticas Públicas no Tratamento de Conflitos”, vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, coordenado pela Professora Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler e vice-lidera- do pelo Professor Mestre Theobaldo Spengler Neto. Advogada. Contato: charliseg@santoangelo.uri.br Marina Vetoretti Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da Unisc – Universidade de Santa Cruz do Sul. Integrante do Grupo de Pesquisa: “Políticas Públicas no Tratamento de Conflitos”, vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, coordenado pela Professora Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler e vice-liderado pelo Professor Mestre Theobaldo Spengler Neto. Contato: marinavetoretti@hotmail.com1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS No dia a dia de uma pessoa, desde o acordar até o dormir, di- versas situações conflituosas são desenhadas – disputas no seio familiar, no trânsito, no trabalho, consigo mesmo, entre amigos, vizinhos, conhecidos, estranhos etc. Ou seja, a existência do ser humano é inerente ao conflito e, das suas interações, ele surge, po- dendo ser construtivo, fazendo-o crescer, ou destrutivo, quando se utiliza da violência ou meios não adequados para solucioná-lo. Ao ultrapassar os limites, há necessidade de intervenção, ra- zão pela qual o presente capítulo investiga o conflito abordado pelo 38 Charlise P. Colet Gimenez & Marina Vetoretti Judiciário enquanto modelo tradicional, bem como pela mediação, como uma nova cultura de tratamento do conflito. Ao longo da história, a evolução percorreu da autotutela ao poder do Estado de solucionar o conflito, quando foi transferido ao Poder Judiciário, representado pela figura do juiz, o qual tem o po- der de decidir o conflito, dizendo quem é o ganhador. Dessa forma, enfrenta atualmente a insatisfação das pessoas por ela atendidas, oportunidade em que se apresenta a mediação como modelo con- sensual construído entre as partes. A mudança de formas de tratar conflitos e responder às ne- cessidades das partes envolvidas permite a criação de uma socie- dade justa e livre, a qual abre espaço para a diversidade, liberdade, individualidade e igualdade entre as pessoas, são vistas como por- tadoras de capacidades e de necessidades positivas. Assim, devem-se buscar condições permanentes de tratamento de conflitos que te- nham possibilidades concretas de construção da paz positiva como um meio ao progresso social, a partir dos direitos do homem. 2 O CONFLITO SOB A ÓTICA SOCIAL A palavra conflito tem origem no latim, conflictu, confligere, significando lutar, chocar, contrapor ideias, razão pela qual está sempre associada em embate com algo ou com alguém. No entanto, conceituá-lo revela-se uma tarefa árdua, em razão de sua origem ser diversa – social, política, psicanalítica, familiar, interna, externa – ou por abarcar motivações étnicas, religiosas ou de valores (SPENGLER, 2010). A história relata que a evolução do ser humano foi acompa- nhada pela existência do conflito que, por sua vez, adotou distintas formas de resolvê-lo, seja por meio de guerra, luta corpo a corpo, vingança, ordálio, ou, ainda, pela intervenção de processos norma- tivos ou jurídicos (GORCZEVSKI, 2007). O conflito pode ser estabelecido entre sindicato e empresa, en- tre nações, entre um marido e sua esposa, ou entre crianças etc., as- sim como a sua existência traz questões intrapessoais, interpessoais, intracoletivos, intercoletivos e internacionais (DEUTSCH, 2004). Acesso à Justiça & Mediação 39 Dessa forma, a trajetória da humanidade descreve uma reali- dade em que o ser humano sempre conviveu com o conflito, cuja face se revela na escravidão, na homossexualidade, na preservação ambiental, na liberdade de crença, no direito das mulheres a um tratamento igualitário, dentre outras disputas excluídas do debate, porém a evolução do pensamento humano possibilitou a integração das partes conflitantes e a satisfação das suas necessidades. Assim, toda sociedade é fortemente marcada pela existência de conflitos, positivos ou negativos, demonstrando-se em cada um os valores e as motivações das partes envolvidas, suas aspirações e objetivos, seus recursos físicos, intelectuais e sociais para suscitar ou tratar a disputa. Percebe-se que cada participante de uma interação social responde ao outro de acordo com as suas percepções e cognições, as quais podem ou não corresponder à realidade do outro; bem como cada participante é influenciado pelas próprias expectativas em relação às ações e conduta do outro, podendo a interação social ser iniciada por motivo distinto daquele que mantém a integração das partes. [...] o conflito é uma forma social possibilitadora de elabora- ções evolutivas e retroativas no concernente a instituições, estruturas e interações sociais, possuindo a capacidade de se construir num espaço em que o próprio confronto é um ato de reconhecimento, produzindo, simultaneamente, uma transformação nas relações daí resultantes. Desse modo, o conflito pode ser classificado como um processo dinâmico de interação humana e confronto de poder, no qual uma parte influencia e qualifica o movimento da outra. (SPENGLER, 2010, p. 248) Da interação, os atores são expostos como modelos e exem- plos a serem imitados e com os quais se deve identificar. Dessa forma, compreende-se que a interação social se desenvolve em um ambiente (família, grupo, comunidade, nação, civilização) que apu- rou técnicas, símbolos, categorias, regras e valores relevantes para as interações humanas. Para a compreensão dos eventos desencadeados pela intera- ção social, devem-se entender as inter-relações dos eventos com o 40 Charlise P. Colet Gimenez & Marina Vetoretti contexto social que envolve cada um. Ademais, salienta-se que, apesar de um participante da interação social, seja pessoa ou gru- po, ser uma unidade complexa, composta por vários subsistemas interativos, ela pode agir unificadamente em determinado aspecto de seu ambiente, e, por conseguinte, tomar decisões no plano indi- vidual ou no plano nacional, as quais podem desencadear uma luta entre diferentes interesses e valores de controle sobre a ação (DEUTSCH, 2004). Quando os papéis sociais não são desempenhados de forma adequada, ou seja, de acordo com as expectativas do grupo social, nascem os conflitos (SPENGLER, 2010), podendo ser avaliados en- quanto construtivos, ou seja, com funções positivas, consoante re- fere Deutsch (2004, p. 29): O conflito previne estagnações, estimula interesse e curiosi- dade, é o meio pelo qual os problemas podem ser manifesta- dos e no qual chegam às soluções, é a raiz da mudança pesso- al e social. O conflito é frequentemente [sic] parte do proces- so de testar e de avaliar alguém e, enquanto tal, pode ser al- tamente agradável, na medida em que se experimenta o pra- zer do uso completo e pleno da sua capacidade. Em adição, esclarece Deutsch, em grupos fundamentados a partir de laços frouxos e em sociedades abertas, o conflito se abriga com o escopo de integrar e estabilizar o relacionamento das partes antagonistas, visto que permite uma expressão direta e imediata de reclamações rivais. E, complementa o referido autor: Além disso, o conflito dentro de um grupo frequentemente [sic] ajuda a revitalizar normas existentes; ou contribui para o surgimento de novas normas. Nesse sentido, o conflito soci- al é um mecanismo de adequação de normas a novas condi- ções. Uma sociedade flexível beneficia-se do conflito por cau- sa desse comportamento, na medida em que ajuda a criar e a modificar normas, assegura sua continuidade sob condições diversas. (COSER, apud DEUTSCH, 2004, p. 30) Assim, na medida em que a explosão de um conflito indica a rejeição de uma acomodação anterior existente entre as partes, eis que o respectivo poder dos contendores foi verificado no conflito, Acesso à Justiça & Mediação 41 um novo equilíbrio pode ser estabelecido e o relacionamento pode prosseguir sobre essa nova base (COSER, apud DEUTSCH, 2004). Por isso Muller (2006, p. 19) refere que [...] a humanidade do homem não se cumpre fora do conflito, mas sim para lá do conflito. O conflito está na natureza dos homens, mas quando esta ainda não está transformada pela marca do humano. O conflito é o primeiro, mas não deve ter a última palavra. [...] o homem não deve estabelecer uma rela- ção de hostilidade, onde cada um é inimigo do outro, mas de- ve querer estabelecer com ele uma relação de hospitalidade, onde cada um é hóspede do outro. É significativo que os ter- mos hostilidade e hospitalidade pertençam à mesma família etimológica: originalmente, as palavras latinas hostes
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