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UniCEUB – Centro Universitário de Brasíl ia Curso Introdutório de Ciência Polít ica Prof. Cleber Fernandes Pessoa ÍNDICE 1- Política e Ciência Política................................................................................................................ 4 2- Ciência Política e Direito................................................................................................................. 23 3- O Estado ........................................................................................................................................... 31 3.1 - Estado: definição do termo-conceito ................................................................................. 31 3.2 - Estado: elementos constitutivos ........................................................................................ 35 3.3 - Do Estado antigo ao Estado moderno ............................................................................... 36 4- As tipologias de governo ................................................................................................................ 40 4.1 - Aristóteles ......................................................................................................................... 43 4.1.1 - As tipologias de governo segundo Aristóteles e Platão ..... . . .............................. 46 4.2 - Maquiavel ......................................................................................................................... 51 4.2.1 - A obra de Maquiavel: militância política e ciência política ................................. 52 4.3 - Thomas Hobbes e John Locke: jusnaturalismo e juspositivismo ...................................... 68 4.3.1 - Thomas Hobbes.................................................................................................... 69 4.3.2 - Conclusão ............................................................................................................. 81 4.4 – Etapas do surgimento, desenvolvimento e consolidação histórica e teórica do Estado liberal .................................................................................................................................................... 82 4.4.1- John Locke .. ......................................................................................................... 84 4.4.2 - A trinomia jusnaturalista de Locke: estado de natureza, contrato social e Estado ............................................................................................................................................. 85 4.4.3 - O moderno significado de liberalismo .................................................................. 89 4.5 - Montesquieu e a Separação dos Poderes: mito e realidade ........................................ 94 4.5.1 - Montesquieu e a Separação dos Poderes............................................................... 95 3.5.2 - Separação dos Poderes: ascensão e decadência de um mito ................................. 98 3.5.3 - Conclusão .............................................................................................................. 100 4.6 - Karl Marx ........................................................................................................................ 102 4.6.1 - O materialismo dialético/dialética da história ....................................................... 103 4.6.2 - A obra de Karl Marx como instrumento de análise a serviço da ideologia .......... 106 2 4.6.3 - Conclusão: comunismo teórico e comunismo real................................................ 111 5- Democracia....................................................................................................................................... 115 5.1 - O uso indicriminado do vocábulo democracia ......................................................... ........ 116 5.2 - Afinal, o que é a democracia social................................................................ ................... 117 5.3 - A Democracia dos antigos................................................................ ................................. 122 5.4 - A democracia dos modernos: 1a fase (Poliarquia = democracia formal/política) ............ 126 5.5 - A república: divergência e convergência conceitual com a democracia .......................... 126 5.6 - Do liberalismo individual à 1a fase da democracia: democracia política (Poliarquia) ...... 128 5.7 - Evolução da democracia moderna: da 1a fase para a 2a fase ............................................ 129 5.8- A crítica dos socialistas à democracia liberal e o aparecimento de uma 3a via: ascensão da social-democracia/Welfare state ou Estado do bem-estar..................................................... 132 5.9 - Socialismo e democracia: a teoria marxista da democracia ............................................. 136 5.9(a) - Democracia e governabilidade: influência de modelos eleitorais nas relações executivo/legislativo .................................................................................................................. 139 5.9(b) - Avaliando a democracia: por que democracia? ........................................................... 141 6- O neoliberalismo: reação à crise fiscal do Estado social............................................................. 150 7- Sistemas de governo: presidencialismo, parlamentarismo e semipresidencialismo................. 154 7.1 - O Presidencialismo .......................................................................................................... 157 7.1.1 - Poderes constitucionais do presidente no Brasil e nos EUA: quem pode o quê, quando e como................................................................................................................................ 160 7.1.2 - Presidencialismo norte-americano: o presidencialismo que funciona bem?......... 165 7.1.3 - Brasil: presidencialismo de coalizão ..................................................................... 168 7.2 - O Parlamentarismo ......................................................................................................... 170 7.2.1 - Desenvolvimento do parlamentarismo: do parlamentarismo dualista ao parlamentarismo monista................................................................................................................ 170 7.2.2 - Premissas do parlamentarismo .............................................................................. 172 7.2.3 - Dinâmica do parlamentarismo: qual o mais estável e por quê.............................. 175 7.2.3(a) - O parlamentarismo britânico (sistema de gabinete) ......................................... 175 7.2.3(b) - O parlamentarismo sob controle partidário.................................................... 176 7.2.3(c) - O parlamentarismo Assembleísta ................................................................... 178 7.2.4 - Conclusão: presidencialismo, parlamentarismo e governabilidade................................ 180 7.3 - O semipresidencialismo................................................................................................... 182 3 7.3.1 - Uma terceira via? .................................................................................................182 7.3.2 - A teoria tradicional do semipresidencialismo: por que o sistema recebe a denominação? ....................................................................................................................................... 183 7.3.3 - O dinamismo do sistema semipresidencialista: oscilando entre presidencialismo e parlamentarismo?.................................................................................................................................. 185 7.3.4 - Semipresidencialismo e governabilidade .......................................................................186 8- Sistemas eleitorais e sistemas partidários .................................................................................... 187 8.1 - Sistemas eleitorais majoritários: eleições legislativas e executivas.............................. 189 8.1.1 - O dilema da escolha do sistema eleitoral .............................................................. 193 8.2 - Eleições majoritárias para prefeitos, governadores e presidente da república ......... 197 8.3 - Sistemas proporcionais.................................................................................................... 201 8.3.1 - Coligação para eleições de representantes no sistema proporcional..................... 205 8.3.2 - A cláusula de exclusão e o quociente eleitoral...................................................... 206 8.4 - Perspectivas e considerações sobre a reforma política: o sistema eleitoral e partidário no Brasil .......................................................................................................................... 208 9- Partidos Políticos ............................................................................................................................ 215 9.1 - De facção a partido: o surgimento dos partidos modernos................................................ 218 9.2 - A tipologia dos partidos..................................................................................................... 221 9.3 - A função dos partidos ........................................................................................................ 225 10- Legalidade e Legitimidade do Estado e do poder político ......................................................... 229 10.1 - Legalidade ...................................................................................................................... 229 10.1.1 - Do princípio da legalidade: fundamentos do Estado de Direito/liberal........................ 229 10.1.2 - As cartas constitucionais: constituição formal e constituição material ........................ 231 10.2 - Legitimidade.................................................................................................... .............. 237 10.2.1 - Legitimidade e oposição ............................................................................................... 242 10.2.2 - O encontro entre legalidade e legitimidade.................................................................. 244 10.2.3 - Max Weber: as três formas de autoridade legítima...................................................... 245 11 - Referências bibliográficas........................................................................................................... 248 4 POLÍTICA E CIÊNCIA POLÍTICA “As instituições e não o homem constituem o tema de estudo próprio da política” John Plamenatz. 1.1 - A política Em sentido etimológico a palavra política tem sua origem no vocábulo polis, um substantivo do grego clássico que na língua portuguesa é literalmente traduzido por cidade, mas que na Grécia Antiga também acolhia como significado o conceito moderno de Estado, posto que, via de regra, o que se entende hoje como Estado, naquele período se reduzia às dimensões de uma cidade, unicamente. De modo que, em sua ligação com a palavra polis, o termo política refere-se a tudo o que estiver associado à cidade (polis), ao que for positivo, para o bem da cidade, como dizia, por exemplo, Aristóteles. Contudo, a necessidade de estrita observância a regras exigidas pelo assunto o dirige a uma definição mais metódica, de conteúdo epistemológico, adquirindo o significado de política uma conotação prática, como resultado de investigações filosóficas e também científicas e sociológicas. Assim, no plano da mais elevada abstração, na “quintessência” do racionalismo, “política é política e nada mais, é política pura (machtpolitik)”.1 É nesse aspecto que Hegel classificaria política como potência pura e simples, sob dimensão metafísica; sua intelecção conceitual de política foi desenvolvida por meio da argumentação dialética e idealista, cuja “razão absoluta” - síntese entre razão objetiva e razão subjetiva – manifesta-se pela compreensão do mundo inteligível e essencial (ideia) como fenômeno, e esta realidade (fenômeno) se traduz na política (matéria/coisa). É oportuno advertir que política pura ou potência pura, em termos assim tão absolutos, essencialmente metafísicos, configura uma abstração absoluta da ideia de poder, realizável perfeitamente apenas no plano do intelecto; é uma tipologia de manifestação de um determinado modelo idealizado de universo, pois no mundo prático a política pura geralmente se converte em realismo político (realpolitik), e este, apesar de exibir toda uma fórmula de ação com base na objetividade, na racionalidade lógica, na insensibilidade e até no cinismo para alcançar os fins, consiste, na prática, em aplicar de forma não absoluta e inflexivelmente, mas com certa relativização, aquele poder político - a priori - implacável. De todo modo, o manual prático da 1SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ed. Ática, 1994, vol. 1, p. 62. 5 realpolitik (realismo político) confirma que política é a capacidade de monopolizar o uso da força, portanto o exercício efetivo do poder, significando que quem detém o poder, monopoliza a possibilidade de limitar e de controlar as ações de todos os demais membros de uma comunidade. Em linguagem simplificada, a tradução dessas especulações racionalistas pode ser descrita por algo como a capacidade que A possui sobre B de impor-lhe comportamentos sem a contrapartida de resistência, não importando se tratar de relações sociais, entre Estados soberanos ou não soberanos, ou relações no âmbito interno de um Estado-nação. São extensos os registros históricos das lutas entre facções objetivando a conquista do poder, que uma vez alcançado, eventualmente legitimava a facção vencedora a submeter impiedosamente os vencidos, quando não os eliminava. Resguardadas as exceções, tal lógica de ação vem sendo executada desde a antiguidade; na modernidade ocidental ocorria em praticamente todas as cidades-Estado mediterrâneas e nos países que se encontravam em processo de unificação; na contemporaneidade o déjà vu foi sendo reeditado com a exibição das mais bizarras ditaduras que, despreocupadamente, anulavam ou exterminavam seus adversários e/ou inimigos sem maiores escrúpulos com postulados do tipo “devido processo legal”, como era regra no stalinismo, no fascismo, no nazismo, nas ditaduras militares etc. No campo teórico, Nicolau Maquiavel se consagrará como ícone do realismo político por desvendar, de forma sistematizada, os segredos da arte de governar; em seu catecismo, a difusão do aforismo “os fins justificam os meios” se converterá em mantra para os seguidores do realismo político e, consequentemente, como advertência, lembrando que política não é ética e nem envolve ideais, e sim força e poder recaindo indistintamente sobre todos, independentemente de valores morais, pois ainda que a moral seja a razão do indivíduo, é a política que é a razão do Estado. No campo prático, as teses realistas de Maquiavel não tardariam a ser experimentadas. Ainda assim, alguns séculos mais tarde, o estrategista militar prussiano Carl von Clausewitz, fiel discípulo do realismo, reforçaria seus fundamentos com a obra “Da Guerra”, cujo conteúdo encontraria no aforismo “A guerra é a continuação da política por outros meios” o seu slogan, que,em suma, não seria muito mais que uma paráfrase do “mantra” maquiaveliano. Sob esta visão de mundo, a partir do século XIX uma nova realidade se impõe; a humanidade testemunha o espetáculo de novos “cavaleiros”, alguns dos quais se tornarão lendários, como o general francês Napoleão Bonaparte e Otto von Bismarck, o arquiteto da unificação alemã. Naquela etapa histórica, as cartilhas do realismo iriam se transformar em regras de conduta para os governantes em geral, bastando para isso conferir a curiosa listagem dos estadistas que leram e rabiscaram apontamentos em seus exemplares da obra O Príncipe, ainda que simulando 6 divergências táticas e éticas, pois, de fato, não conseguiam disfarçar o mal-estar com seu conteúdo. Na verdade, como é de amplo domínio público acerca desta obra, o principal objetivo era o de desvendar a lógica do poder, incluindo todos os vícios e a corrupção que o cercam. A frase-lema da realpolitik (realismo político) representava, enfim, a justificativa simbólica e racional para a aplicação de suas doutrinas e, ao mesmo tempo, uma quase-sentença mortal para o mundo mágico e encantado do romantismo político dos politólogos utópicos. Ocorre que, no jogo de xadrez da concertação política em âmbito internacional, desde a queda de Napoleão e de Bismarck as peças do tabuleiro se moveram numa velocidade que os competidores não ousariam prever. Após a explosão da primeira bomba atômica, verificou-se um esfriamento de ânimo das partes, e cada passo de cada ator era milimetricamente estudado, sempre com base nos atos e omissões dos demais jogadores. As potências que emergiram da 2a Guerra portando as amedrontadoras armas atômicas, se encontrariam forçadas, durante a Guerra Fria, a recuar e a refletir sobre a eventualidade de outra guerra-total. Mas com o colapso do comunismo e o consequente fim da Guerra Fria, o mundo começaria a respirar aliviado - embora desencantado e no ritmo contínuo do realismo – e a se comprometer em reordenar os termos do aforismo de Clausewitz, que a partir de então melhor se adequaria sob um cuidadoso lema de que a “política é a continuação da guerra por outros meios”. Ato contínuo, o dogmatismo maquiaveliano seria objeto de correção conjuntural, encontrando em Max Weber um de seus revisores, que apesar de adepto do realismo, marcou sua atuação pela crítica sóbria e pela sintonia com a realidade de seu tempo. Weber, que legou ao pensamento político sua visão de mundo adequada à nova concertação liberal e democrática, que estava cooptando corações e mentes no Ocidente, julgava que “política pura” é um padrão de conduta tão irreal quanto a política puramente idealista. Entendia ele que política, no sentido mais objetivo, se realizaria dentro do Estado, devendo este ser o sujeito ativo do legítimo monopólio do exercício da violência física sobre toda a comunidade política de um determinado território, e que tal legitimidade só encontra fundamentação na ideia de que a violência física (o poder político) jamais poderá ser exercida indiscriminadamente. Assim, uma conjunção de fatores explicaria a razão de o estadista esculpido por Maquiavel, cujo ethos se resumiria à ética dos fins últimos ou ética da convicção, sair de cena e ceder seu posto para um novo protagonista da história, o estadista weberiano – por Weber chamado de líder ou chefe carismático - cujas regras de conduta seriam orientadas, dali em diante, pela ética da responsabilidade.2 2 Este tema encontra-se desenvolvido no capítulo dedicado a Maquiavel. 7 As constantes referências a termos e conceitos ocidentais sugere uma pretensa supremacia eurocêntrica que, de fato, parece ser pouco questionável. Em contrapartida, não há como ignorar a contribuição de estrategistas da política e da guerra na antiguidade oriental, tais como Sun Tzu na China (544 a 496 a.C.) e Kautilya na Índia (370 a 283 a.C.). Contudo, com a evolução da civilização greco-romana, a filosofia política e do direito adquiriram um refinamento ímpar, sendo responsáveis pelo advento de uma sofisticada teoria de Estado. Dentre tantos pensadores importantes da Era Clássica, na filosofia política sobressai Aristóteles (384 a 322 a.C.), cuja teoria é considerada precursora dos regimes democráticos e liberais prevalecentes na contemporaneidade. Para este pensador grego, o significado de política está positivamente relacionado a polis (cidade), no sentido de que tudo o que for bom para a cidade (polis), tudo o que for para o bem da comunidade pode ser traduzido como política. Desta acepção deriva a universalização do termo aristotelismo, que define a natureza humana como sociável e, portanto, política por excelência, elevando o homem à condição de zoom politikós, um animal naturalmente político e social. De acordo com esta argumentação, a sociedade seria um construto anterior ao surgimento do próprio indivíduo, derivando a explicação filosófica do porquê de estar o homem, em todos os lugares, sempre em busca da companhia dos outros homens para viver em comunidade. E não é sem razão que provavelmente a política e os políticos não existiriam se o homem não necessitasse dos outros homens para sobreviver ou para poder usufruir seu tempo de vida de maneira mais cômoda. Se todos os homens fossem deuses, bastando-se a si mesmos, a luta cotidiana que todos travam pela alocação de recursos para satisfazer seus interesses particulares ou comunitários perderia a razão de ser, bem como não teria sentido a luta pela supremacia do poder político em nome da integração da comunidade política e da resolução de conflitos eventuais. Distante da pretensão de esgotar o assunto, um breve exame do acervo conceitual de Thomas Hobbes pode ser selecionado para reforçar a dedução aristotélica, ainda mais por se tratar de um pensador cujas convicções acerca do homem, da sociedade e do modo de exercer o poder, além de paradigmáticas, são abertamente antagônicas às teses de Aristóteles. No entanto, pode-se comprovar sem maiores esforços, uma curiosa convergência de pensamento que conjunturalmente aproxima Aristóteles de Hobbes – um moralista e um realista, respectivamente –, os quais, apesar das visíveis diferenças, certamente concordariam que a política é o fator condicionante para a sobrevivência em comunidade. A despeito de suas concepções francamente antitéticas acerca da natureza humana, da sociedade, do Estado e, enfim, do método de exercício do poder político, ambos compreendiam que as aspirações humanas só poderiam ser 8 concretizadas dentro da realidade estatal, isto é, com todos os membros de uma mesma comunidade pertencendo à uma específica organização política. Ressaltando, isto é o que Aristóteles concebe como política: a capacidade dos homens de racionalizar a convivência em comunidade, ou seja, da obtenção do bem-comum, implicando na possibilidade de fruição de uma boa vida, o viver bem, prerrogativas que abrangiam o somatório de todos os membros da polis. Com referência a Thomas Hobbes, é pacificamente conhecido seu negativo juízo de valor acerca da natureza humana, valoração que se situa em espectro diametralmente oposto ao que se posiciona Aristóteles. Para Hobbes, o homem não apenas é a- social como também antipolítico. Contudo, reconhecia que o homem, apesar de ser o lobo do homem em seu estado natural – portanto, na ausência do aparato estatal -, estaria habilitado a conviver comunitariamente, em paz e em harmonia com seus semelhantes, desde que sob o monopólio coercitivo do Estado, potência única e capaz de anular circunstancialmente a índole do “lobo-homem” e constrangê-lo a se comportar como um animal sociável. Em síntese, sob a ótica aristotélica, a política se relaciona a tudo o que for positivo para a comunidade, a tudo o que for em prol da polis, civil enfim. E sob a perspectiva hobbesiana, emque pese sua defesa de métodos distintos de ação política, evidentemente mais ásperos, prevalecendo mais o poder de fato do que o poder de direito, mais a força do que o consenso, os fins a serem alcançados, contudo, são basicamente os mesmos, ou seja, tanto quanto Aristóteles, Hobbes também detecta na política um instrumento cuja finalidade é idêntica à do eminente pensador grego: o bem-comum. Esta convergência de fins últimos da política é quase uma unanimidade entre os teóricos do Estado, independentemente do modus operandi de executar o poder que irão propor e defender – se movidos por convicções moralistas, realistas ou puramente por convicções ideológicas. Todavia, o aparente consenso, acomodado pela onipresença e generalidade do termo “bem- comum”, contribui para despertar o interesse acerca de seus reais significados, que na verdade são imprecisos, por se tratar de um conceito absoluto no plano racionalista, mas no plano existencial, de tão relativo, diz tudo e pouco explica ao mesmo tempo. Consolidou-se como uma esfinge, cujo enigma vem se perpetuando dos primórdios da teoria política até a atualidade, sem que seja definitivamente decifrado. Sua explicação de política em seu aspecto teleológico, ou seja, de qual seria a conexão existente entre os meios de ação (poder político) e a obtenção dos fins desejados, ainda não foram delimitados, relativamente aos meios, em função dos intermináveis antagonismos ideológicos. Quanto aos fins, a retórica verborrágica dos políticos é unânime em apontar como alvo o bem-comum no seu eterno sentido genérico, delegando para a ciência política o desafio de especificá-las no tempo e no espaço. O problema, genérico, carece 9 de ser diluído extensivamente em questões específicas, devendo se apresentar sob indagações mais objetivas, por exemplo: Como deve ser praticada a política? Como ela se relaciona com o poder? Quais são os agentes legitimados a praticá-la? E quais os seus fins? Um primeiro indício que ecoa deste labirinto teórico, revela que o manual de operação da política ainda tem as suas respostas distantes da unanimidade, a despeito da contribuição de tantos sábios; o quebra-cabeças perdura, segundo os estudiosos, porque de tempos em tempos o dinamismo das civilizações opera gradativos up grades nos valores relacionados aos métodos de ação política, acarretando uma darwinista revisão de paradigmas do que vem a ser a política em seu significado genérico, incluso na questão quem seria o seu agente-protótipo (o modelo de político), executando, enfim, uma seleção natural da “espécie”. Sem desconhecer que poder, política e poder político são comumente descritos como conceitos associados, sinalizando exprimir valores comuns, é prudente ressaltar que todo estudo que envolva a análise desses conceitos deve demonstrar suas consequências, qual seja, os resultados práticos do exercício do poder político. Simultaneamente à tarefa de identificar, classificar e definir sujeitos e objetos da política, sobrevive o debate, estéril para alguns, produtivo e didático para outros, referente à esfera de alcance da política, ou seja, a partir de que ponto um ato de poder já pode ser considerado um ato de poder político? Lembrando que poder é a faculdade que alguém tem para coagir o outro em fazer ou deixar de fazer algo em seu benefício, do contrário resultando em sanções, questiona-se acerca da possibilidade de existir política no âmbito das relações sociais; se, em havendo poder entre dois agentes não-estatais, podendo ser eles dois indivíduos ou dois grupos, estando, portanto, ausente o elemento Estado, poderá existir, naquela relação, poder político. Na percepção analítica dos puristas, somente existirá política quando na presença do Estado; quando o exercício do poder for operado por agentes que monopolizam a autoridade de governo, sob suposta existência de soberania do ente estatal, portanto. Desta delimitação exclusivista do foco de análise, deriva a noção de que somente será político o poder que for exercido a partir da supremacia estatal, isto é, no vértice da pirâmide sociológica, que compreende o indivíduo, a sociedade e o Estado, prevalecerá a decisão deste último, condicionando aos demais inescapável conduta de subordinação. Por exemplo, este poder decisional pode ser constatado na esfera da administração pública (poder executivo) pela monopolização discricionária da repartição dos bens públicos aos seus administrados; na esfera judiciária, pelo poder de proferir sentenças punitivas (jus puniendi), sobressaindo o caráter heterônomo do Estado, em razão de sua posição hierarquicamente superior e desigual com relação aos seus jurisdicionados; na esfera legislativa, em função de sua soberana autoridade para 10 expedir (promulgar, outorgar, decretar) normas e leis que tenham eficácia erga omnes, isto é, que sejam válidas para todos. Em contraposição, correntes flexíveis entendem que praticamente toda relação social expressa uma situação de poder, consequentemente relações políticas, desde que constatada a assimetria de influência nas relações entre esses particulares, seja uma relação de amigo para amigo, de pai para filho, entre o médico e seu paciente, o marido e a mulher, o líder religioso e seus seguidores etc., consumando, portanto, a onipresença do poder político. Nessas relações bilaterais, sempre estarão presentes interesses conflitantes, resultando na tentativa de imposição dos objetivos de cada um, por ação ou omissão, procurando influenciar a parte antagônica a fazer ou deixar de fazer algo em seu benefício, constituindo relações políticas e, por extensão, a ocorrência do poder político. Nesta corrente, situam, também, os adeptos da ocorrência do poder político no âmbito das relações internacionais que, tanto quanto na esfera interna de um Estado, admitem que entre Estados ocorrem intromissões e interferências de alguns sobre outros, influenciando-os a se comportarem de modo contrário aos seus interesses. Considerada nesses termos mais genéricos, a interpretação do que é política se confunde com a ideia de influência, como explica Bertrand de Jouvenel: “É político todo esforço sistemático, realizado em qualquer ponto do campo social, de mobilizar outros homens na procura de algum desígnio definido por aquele que realiza a mobilização (....)não há diferença de natureza entre as relações sociais e as relações políticas: trata-se simplesmente de uma questão de relações entre os homens”3. No sentido de expor as teses para uma eventual avaliação dialética, Peter Nicholson relata pontos de vista abrangentes e antagônicos, que adotam tanto concepções próximas do “anarquismo”, ao admitir a política em sociedades sem Estado, quanto outras mais ortodoxas, que somente admitem a política se diretamente associada ao Estado “e tudo o que tem a ver com ele”.4 Estes, rejeitam a tese de que exista poder político pelo simples fato de haver “governos privados” nas firmas, sindicatos, associações profissionais, igrejas, universidades, classificando essas estruturas de agrupamentos “para-políticos” ou de “quase-políticos”.5 Para contornar o problema, apresenta como recurso uma argumentação conciliatória, admitindo, em outras palavras, que o poder político é produto da dominação de um homem sobre o outro, dominação que pode se apresentar também sob a espécie de relação entre o Estado e seus súditos (governados). Nesses termos, sua solução seria a “alternativa[...]de aceitar que há governo em 3NICHOLSON, Peter. Política e Ciência Política. Cadernos da UnB, p.25. Brasília: EdUnB, [?]. 4 Política e Ciência Política, op. cit., p.25. 5 Idem, ibidem, p.25 11 toda organização e já que a política constitui de fato o governo, todos estes seriam políticos e formariam parte do domínio da ciência política”. 6 Contemplando o problemade modo semelhante, o cientista político Philippe Schmitter se debruça imparcialmente sobre o tema, também apresentando as duas faces da moeda, uma realista e, em seguida, outra de tendência pluralista, explicando que “Para alguns, a política é essencialmente uma luta, um combate em que o poder permite a alguns que o têm, assegurar a sua dominância sobre a sociedade e desta tirar partido. Para outros, a política é um esforço para fazer governar a ordem e a justiça em que o poder permite a proteção do interesse geral e do bem comum contra a pressão das reivindicações particulares”.7 Da vertente pluralista aparece uma instigante reflexão do sociólogo Talcott Parsons, que enobrece o debate ao adicionar o elemento sociológico à questão política e introduzir uma inovadora e não menos controvertida descrição de poder político, instrumentalizando o método estruturalista/funcionalista. Interpretando-o, acerca de sua compreensão do problema, provavelmente não deixaria de afiançar a parábola a seguir, estruturada na ideia de que a locomotiva do poder não é um trem desgovernado descendo montanha abaixo devastando tudo e todos que estiverem à sua frente, como um rolo compressor. Então, como contraponto à teoria da machtpolitik ou da realpolitik, Parsons vislumbrou a presença permanente de mecanismos institucionais de contenção à tendências absolutizantes do poder, classificando-os de Imperative Control8, esclarecendo que a dominação política não é um fim em si mesmo, o poder pelo poder apenas, pois a sua existência pressupõe uma constelação de valores impossíveis de serem violados aleatoria e arbitrariamente, razão pela qual considera que “o poder não é, basicamente, estar em condições de impor a própria vontade contra qualquer resistência. É, antes, dispor de um capital de confiança tal que o grupo delegue aos detentores do poder a realização dos fins coletivos”.9 O germe desta interpretação deriva dos primórdios da formação da civilização ocidental, pois entre os gregos do período clássico o exercício dos cargos públicos configurava mais encargo do que gozo de poder propriamente, já que desempenhar uma função pública, além de constituir obrigação, não conferia privilégios que distinguisse o magistrado dos outros cidadãos, pois os cargos eram exercidos por todos, em rodízio, e a permanência no cargo se 6 Política e Ciência Política, op. cit., p.25. 7 Idem, ibidem, p. 49. 8Ainda que ausente de uma tradução conceitual para a língua portuguesa, literalmente a expressão quer dizer “Controle Imperativo”. 9LEBRUN, Gérard. O que é poder, p. 14. Ed. Brasiliense: São Paulo, 1984. 12 distinguia pela brevidade, não existindo entre eles a percepção de dominação política. Como argumenta Hannah Arendt, complementando a definição daquela atividade tradicional, “A distinção entre governantes e governados pertence a uma esfera que precede o domínio político, e o que distingue este da esfera econômica do lar é o fato de a cidade (polis) basear-se no princípio de igualdade, não conhecendo diferenciação entre governantes e governados”.10 Em posição diametralmente oposta a essas, o pensamento marxista se mostra contundente e irredutível ao expor o Estado como nada mais nada menos que um instrumento de dominação de uma classe sobre outra para a manutenção do domínio, que se expressa especialmente em termos econômicos e por meio da classe mais poderosa, resultando na opressão de senhores sobre escravos (Estado escravista), da nobreza sobre camponeses (Estado feudal), da burguesia sobre o proletariado/assalariados (Estado burguês/capitalista). Como visto, o fator econômico e o fator histórico (matéria + história = materialismo histórico) formam o substrato crítico-analítico de Karl Marx e seu parceiro Friedrich Engels, por eles chamados de dialético, método que lhes fornecem elementos para interpretar as relações sociais e políticas como em O Manifesto Comunista: “O poder político [Estado] é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra”.11 A essa forma de poder, sob a hegemonia do Estado, Marx denominava de ditadura, não importando a espécie de poder exercido; porém há que se lembrar que Marx identificava poder também nas relações sociais, o poder senhorial com relação aos escravos no Estado escravista, com relação aos servos no feudalismo, e ao proletariado no capitalismo, todos definidos por ele como despotismo. Nos tempos atuais, ainda que considerando as prerrogativas e privilégios das funções governativas, marcas que a modernidade política imprimiu, talvez definitivamente, não há como ignorar, enfim, que quem dirige o governo - insistindo na linguagem simbólica -, não é muito mais que o maquinista da composição, pois apesar de detentor da chave que dá a partida e de dirigir o comboio, está ele irremediavelmente comprometido com regras norteadoras determinadas, das quais dificilmente poderia se libertar. Por mais paradoxal que possa parecer, ditadores aparentemente impulsivos como Mussolini, Stálin, Hitler, Mao Tsé-tung, Fidel Castro e Pinochet sempre estiveram vinculados aos “princípios” que os alçaram ao poder, estando, portanto, permanentemente forçados a ratificar fidelidade aos regimes que implantaram em seus países, caso contrário, os custos de uma aventura mal calculada poderia lhes trazer prejuízos 10ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro, p. 158. Apud Gérard Lebrun, op. cit., p. 26. 11MARX Karl. O manifesto comunista. Edição eletrônica: “Ridendo Castigat Mores”, p. 43. Ebooksbrasil.org (www.jahr.org), 1999. 13 irreparáveis. Com semelhante interpretação, Max Weber alerta que “O chefe não é senhor absoluto dos resultados de sua atividade, devendo curvar-se também às exigências de seus partidários, exigências que podem ser moralmente baixas. Ele terá seus partidários sob domínio enquanto fé sincera em sua pessoa e na causa que defende (...)”.12 Independentemente das características com que se apresentem, o poder e a política evocam direta conexão com a ideia de autoridade. Havendo obediência sem maiores resistências, mais ainda, com espontaneidade, ao comando de um agente, diz-se que o poder adquirido e exercido, realizou-se sob a égide da autoridade, manifestando, cumulativamente, fortes vestígios de legitimidade, uma vez que a obediência prestada se efetivou mais claramente a partir do contexto de um poder de direito, e não basicamente de um poder de fato, embora seja notório que o poder de fato - a possibilidade de recorrer ao uso da força – sempre persistirá, ainda que implicitamente, tornando real sua probabilidade de ser exercido, mesmo que apenas em casos extremos, pois do contrário, o poder de direito, mais espontâneo e baseado em valores e crenças, vinculado ao princípio da legitimidade e, portanto, da autoridade, perderia sua própria razão de ser. A evolução do Estado, desde a antiguidade, vem tornando cada vez mais complexo o significado de política e de poder, definidos pela capacidade de agregar em torno de si gradativa e contínua sofisticação de fundamentos como autoridade, dominação e legitimidade. E para desenvolver a conceituação desses fundamentos, inevitavelmente há de se recorrer à compreensão sociológica de poder em Max Weber, cuja formulação resultou em um dos mais notáveis construtos de sua sociologia: a tipologia ideal da autoridade legítima. A consequência dessa abstração encontra no termo dominação (herrschaft) a elaboração conceitual mais depurada para exprimir um cenário em que a autoridade exerce seu poder de forma legítima, quase incontestável, podendo a legitimidade da autoridade ser derivada de uma fonte tradicional, carismática, ou racional-legal. Em um cenário de dominação, repousa o pressuposto de elevado grau de consenso quanto à obediência aos que exercem o poder, oriundoda parte dos dominados, que agem orientados por uma disciplina derivada de múltiplas fontes, que podem advir de crenças e valores difusos (fé religiosa, tradição, estatutos legais, devoção à pessoas, motivações econômicas, altruísmo). Ainda que o tipo ideal seja um arquétipo mental do cientista social, via de regra tem sua idealização com base em um parâmetro comparativo do que acontece na realidade, podendo o fenômeno da dominação ser analisado, porque constatado, em qualquer instância: nas relações de dominação entre indivíduos e grupos de indivíduos, e não apenas nas 12 In: Política e Ciência Política, op. cit., p.119. 14 relações de dominação institucionais (de governo, de Estado e também nas relações internacionais). Comparadas as condições de poder, e constatadas sua efetividade, quem o exerce detém autoridade e, se esse exercício se efetivar com legitimidade, ocorrerá o fenômeno da dominação, que em termos de tipologia ideal, seria a essência do poder político: a síntese do poder de fato (obediência como temor à possibilidade de uso da violência física ou poder coercitivo) com o poder de direito (obediência com base em crenças e valores em estatutos: sagrados, legais, pessoais). Em suma, o nível mais consistente possível de consentimento e de obediência dos governados a quem governa eleva a dominação ao ápice da legitimidade, porém com a devida lembrança de que no mundo das coisas, da razão prática, a expectativa de legitimidade plena, até o presente momento, é um assunto que somente na esfera de uma metafísica de tipo platônica é que poderá encontrar a sua concretização. 1.2 – Ciência Política: a ciência na política O que é a ciência política? Para ser obtida uma resposta razoavelmente adequada, o primeiro passo deveria ser acionado em direção a uma análise introdutória do conceito de ciência em si; ato contínuo, seria recomendável a descrição do processo evolutivo das ciências sociais, do advento da ciência política e de seu processo de autonomia científica, finalizando com uma abordagem teleológica, qual seja, a relação entre meios e fins na ciência política. É de domínio público que na antiguidade, tanto no Oriente quanto no Ocidente, houve uma seleta categoria de estudiosos empenhados na missão de desvendar os mistérios da natureza objetivando, na medida do possível, controlá-la e subjugá-la, para que dela o homem pudesse usufruir de seus benefícios. Toda ciência atual, praticamente, incluindo aquelas de estágio mais avançado e sofisticado, tem suas primeiras noções na antiguidade, basicamente no Oriente, porém revestido de um viés fortemente intuitivo e especulativo. Nessa medida, a ciência, enquanto detentora de atributos específicos para ser reconhecida como tal, tem seu advento exclusivamente no Ocidente, caso da arquitetura, engenharia, biologia, química, astronomia, física, etc., e todas as ciências humanas, como explicaria Max Weber em sua obra magna, de 1905, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo: “Apenas no Ocidente existe uma ciência em estágio de desenvolvimento que reconhecemos, hoje, como válido (...) a busca racional, sistemática e especializada da ciência por parte de pessoal treinado e especializado existiu somente no Ocidente (...)”.13 13 Pp. 23 e 25. São Paulo: Martin Claret, 2006. 15 Do período clássico ocidental, Platão e Aristóteles se destacam como os exemplos mais expressivos de personalidades que elegeram o conhecimento na verdade como compromisso de suas vidas intelectuais, embora adotando concepções e metodologias distintas. Platão, o precursor da filosofia propriamente dita, deslocou as indagações cosmológicas do período pré- socrático para um novo eixo de preocupações: as questões antropológicas. Em suas especulações acerca do homem e seu lugar neste mundo, dedicou extrema devoção às suas convicções filosóficas, cujos fundamentos racionalistas transcendiam o mundo natural, priorizando o mundo inteligível (ideias) - sem nenhuma interferência dos sentidos e das opiniões - em detrimento, portanto, do mundo sensível (das coisas); sua matriz filosófica fundamentada no mundo inteligível, cuja comprovabilidade de teses se realiza em objetos e formas ideais, tem seu processamento pela via da formulação e do emprego preponderante do método prescritivo, normativo, do dever-ser, deontológico, enfim. Por intermédio de sua narrativa sedutora, Platão estruturou um extraordinário modelo racionalista de responder a todas as indagações, invertendo o paradigma do pensamento convencional e apresentando o seu como originalmente ontológico (do verdadeiro ser), por meio de uma complexa reflexão teórica derivada da dialética em que confronta o ser com o não-ser, resgatando, portanto, de forma sutil, o verdadeiro ser a partir de uma intuição deontológica, porém apresentada como legitimamente ontológica, demonstrando que o não-ser pode também se constituir em algo - por ser sensível - e não puramente o nada, como sustentava Parmênides, precursor do método e da tese. Portanto, sendo um falso-ser, o não-ser não deixaria de ser algo, no caso uma sombra ou cópia imperfeita; é o aparente (sensível), embora não a essência, o inteligível. Um indício da convicção de Platão, de que não se sentia alienado e nem tangenciando a realidade factual, pode ser comprovado em sua magistral reflexão desenvolvida na obra A República, na qual descreve a alegoria do “mito da caverna”, cujo protagonista é um filósofo, que nesta condição se sente responsável por conduzir os homens à luz do sol. Como explica Max Weber, “o sol representa a verdade da ciência, cujo objetivo é o de conhecer não apenas as aparências e as sombras, mas também o ser verdadeiro”.14 Esta e outras alegorias platônicas simbolizam o esplendor da filosofia grega e de seu significado para o futuro, pois naquele momento germinava um processo evolutivo para o conhecimento, que em Platão se caracteriza pelo racionalismo e a dialética como meios para tal. Ao avaliar seus métodos como científicos, Platão exalta a ciência pelos recursos que “elevam a parte mais sublime da alma até a 14 In: Ciência e Política, op. cit., p. 32. 16 contemplação do mais excelente de todos os seres”; e que a ciência representa a “libertação das correntes, a [sua] conversão das sombras (...) a [sua] a ascensão para o Sol (...)”.15 Adiante de Platão, Aristóteles já se antecipava como protótipo do futuro cientista moderno, pois antes de formular suas retumbantes teorias sociais, já havia enveredado no caminho das investigações científicas dos fenômenos da natureza, descrevendo experimentos na área de botânica, realizando observações em astronomia e formulando conjecturas em física, química, em suma, dominando o processo analítico (lógica) como instrumento - ainda que com meios incipientes – para atingir o conhecimento (ciência). Seu método de entender e de explicar o mundo era diverso da intelecção platônica, pois para Aristóteles a origem do conhecimento e da verdade residia nas coisas e objetos reais e no homem, sendo passíveis de verificação e podendo ser testados a partir da instrumentalização lógico-analítica de suas teorias, materializadas em recursos hoje reconhecidamente científicos, como a proposição, o planejamento e a coleta de dados, a observação factual, a experimentação, a comprovação. Para atingir níveis confiáveis de comprovabilidade científica, a experimentação foi o mais significativo vetor de indução para o advento da ciência; e este evento ímpar da humanidade só teve lugar no Ocidente Moderno, germinando na Renascença. Tudo isso, graças a uma casta de cérebros privilegiados, principiando por Galileu Galilei, que determinava como regra de pesquisa a experimentação e o rigor nasistematização, sendo secundado pela obstinação de Francis Bacon, com sua filosofia experimental, que recusava toda forma de conhecimento intelectual que não tivesse origem no empirismo, isto é, na experiência sensitiva. No entanto, o caráter de cientificidade das pesquisas foi definitivamente consumado quando da divulgação da lei da gravidade de Isaac Newton que revolucionou a concepção de mundo da época, demonstrando que, por métodos científicos, o universo pode ser conhecido, explicado e explorado, portanto sendo previsíveis seus movimentos, porquanto guiado por leis físicas determinadas. Em adição à pluralidade de premissas acima elencadas, o racionalismo preconizado por René Descartes, cujo método indutivo de conhecimento se baseava em rigorosos enunciados matemáticos, foi decisivo para contribuir com a complementação estruturante das ciências. A consequência de todo este colossal acervo de proposições teoréticas foi a emergência das ciências factuais, primeiramente as exatas e a seguir - no ainda futuro e distante século XIX - as ciências sociais ou humanas. A evolução das ciências abstratas (matemática, lógica) e das ciências factuais (física, biologia, química etc.), forneceram subsídios mais do que suficientes para que as teorias sociais pudessem evoluir para o âmbito científico. Antes restritas ao universo da filosofia, as teorias 15Platão. A República. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p. 246. 17 sociais foram se emancipando, adquirindo o status de ciência a partir do momento em que começam a empregar as ferramentas da metodologia científica. Desse modo, a sociologia, em decorrência da perseverança de Auguste Comte em adaptar e aplicar, de forma sistematizada, os métodos científicos aos seus trabalhos sociológicos, veio a se tornar a primeira de todas as ciências sociais, com a obra Sistema de Política Positiva, de 1851. A partir de então, os demais campos do conhecimento, filiados aos estudos da área de humanidades, evoluem paulatinamente até que sejam reconhecidos o seu status científico, como a economia, a administração, a psicologia, o direito etc. Fato semelhante ocorreu com a Ciência Política, malgrado sua dificuldade de se transformar em ciência independente, pois seu caráter sui generis no modo de interagir e coexistir com as outras ciências humanas, de excepcional naturalidade, impôs-lhe a árdua missão de ter de provar que não seria um simples apêndice daquelas ciências, já então estruturadas. No posto de teoria sociológica, ou melhor, categorizada como uma ciência geral das sociedades, desfruta de íntimas ligações com todas as ciências humanas, como não poderia ser de maneira diversa, tanto que, como objetos de interesse investigativo da Ciência Política, atualmente tais ciências estão relacionadas como seus subsistemas. De fato, o status de ciência de síntese, é ratificado pela atuação da Ciência Política produzindo pesquisas simultaneamente em todos as áreas das ciências sociais, como a História, a Filosofia, a Economia, a Psicologia, a Administração, a Sociologia, a Antropologia, as Relações Internacionais, o Direito. Como ciência de síntese, converte-se em disciplina dinâmica, o que explica o fato de continuamente recorrer às outras ciências sociais para melhor desenvolver suas teses, uma vez que estas ciências foram acumulando valiosos acervos ao longo do tempo. Os frutos da comunhão entre a Ciência Política e as demais ciências humanas constituíram uma pluralidade de subsistemas no âmbito da Ciência Política, como exemplo o seu livre trânsito na Sociologia para extrair dela conhecimento associado à política, que resultou na denominada Sociologia Política; atitude semelhante com relação à Economia originou a Economia Política; no campo da Psicologia, de sua área mais correlata à Ciência Política, seu derivativo foi a Psicologia Social; da Administração, a Administração Pública; e da Filosofia a Filosofia Política. Enfim, todas as sub-áreas das demais ciências humanas relacionadas a fenômenos políticos e do poder, são, indubitável e simultaneamente, campos de interesse investigativo para a Ciência Política explorar e, então, produzir suas teorias científicas. Nesse contexto tão vasto para pesquisa, em razão da amplitude do campo de teoria social, e tão promissor para oferecer resposta a inúmeras e nunca antes respondidas indagações, em razão da disponibilização de avançados métodos científicos, após o estabelecimento da sociologia 18 como ciência a ciência política iria se equipar de metodologias a fim de solucionar as dúvidas que anteriormente excitava a inquietude dos filósofos, dúvidas que não podiam ser definitivamente resolvidas porque ausentes os instrumentos para tal. É certo, pois, que o desenvolvimento científico se estrutura com base na filosofia, e importantes descobertas da ciência aconteceram como resposta aos mais instigantes questionamentos filosóficos. Coincidência ou não, alguns dos mais sofisticados pensadores, que já instrumentalizavam avançadas técnicas em suas teorias sociais/filosóficas, conquistaram a reputação de cientistas sociais/políticos, como Aristóteles, Maquiavel, Montesquieu, Tocqueville. Entretanto, somente no final do século XIX (1896), com a obra Elementi di Scienza Politica, de Gaetano Mosca, que apareceria oficialmente a primeira obra de ciência política estritamente considerada. A partir da afirmação e consequente justificativa de que há uma linha que separa ciência de não-ciência, naturalmente despontaria o questionamento acerca da localização da faixa divisória que a demarca: Como identificar se uma obra de teoria social seria ou não científica? Até que ponto uma obra de teoria política seria delimitada como filosofia política e uma outra descrita como ciência política? O Contrato Social, famoso livro de Jean-Jacques Rousseau, por se tratar de uma obra de filosofia política, e por se destacar como uma obra bastante lida, comentada e discutida, se encaixa como protótipo e poderia ser objeto do exame que a proposta requer. Como obra de teoria social, é também teoria política, e como teoria política, é também teoria de Estado, assim como uma obra de ciência política. Contudo, O Contrato Social não se filia na categoria de obra científica, porque ausentes pré-requisitos imprescindíveis para caracterizar o trabalho científico, como a neutralidade e a ausência de posicionamento ideológico etc. Em verdade, nesta obra de Rousseau estão presentes alguns dos mais elementares postulados que levam à desqualificação do valor de cientificidade de uma obra, postulados que são interligados, inclusive: o elemento prescritivo, relativo ao dever ser e o deontológico, que se apresentam no propósito de formatar um modelo de sociedade, que seria perfeita, e o juízo de valor, elemento subjetivista que sintetiza no pensamento do escritor um conjunto de crenças e sentimentos morais composto de energia suficiente para orientá-lo em suas prescrições. Outro elemento, aparentemente secundário, porque formal, vem a ser o modelo teórico adotado, o jusnaturalismo, cuja fundamentação se sustenta em uma hipotética forma de convivência social dos homens em seu estado natural - sua fase pré-estatal -, baseado puramente no racionalismo, sem comprovação histórica e experimental, portanto. Em situação análoga, várias publicações de pensadores fundamentais para a compreensão da história política ocidental podem ser apontadas, como o Leviatã de Thomas Hobbes, O Segundo Tratado sobre o Governo Civil de John Locke e o vasto acervo de 19 escritos políticos de Karl Marx. Nestas obras é possível detectar com relativa facilidade alguns critérios inerentes ao método científico, como o empirismo, análise histórica, dados quantitativos e estatísticos, mas em contrapartida, percebe-se neles um viés de inegável comprometimento ideológico,como a devoção ao absolutismo com relação a Hobbes; a defesa inflexível do liberalismo com relação a Locke, e, sob o signo cientificista, uma religiosa retórica doutrinária ao socialismo/comunismo com relação a Marx. Em comum, a defesa aberta de todos eles aos valores éticos e morais que, caso a caso, compõe o sustentáculo de suas ideologias. Em posição diversa à dos princípios deontológicos (ética/moral) que se identificam com o dever ser e, portanto, com os postulados autênticos da filosofia, situam as premissas relativas aos preceitos ontológicos, associados ao ser, ao que concretamente é, portanto à verdade, ainda que esta verdade não seja um paradigma absoluto, eterno e imutável, mas que seja uma verdade que contenha validade, isto é, que seja exposta sob o signo da neutralidade, da comprovabilidade, da confiabilidade e que resista a testes de hipóteses; que sejam verificáveis no seu tempo de vigência. Neutralidade, verificabilidade, confiabilidade, testes de hipótese, são termos-conceitos inseparáveis dos pré-requisitos da cientificidade. Qualificam-se como instrumentos formais da experimentação de conjecturas e hipóteses cientificamente estimadas, e processadas por meio da observação empírica, da indução, da dedução, sob argumentação racional dos fatos etc., e jamais militar a serviço de uma causa, como legitimamente podem atuar os filósofos. Tanto quanto a filosofia, especialmente a filosofia política, a ciência política tem como finalidade produzir teses relativas aos fenômenos do poder político, às instituições do Estado em geral, como exemplo a abordagem funcionalista do Estado (explicação e previsão das consequências do seu funcionamento) relativamente ao processo decisório, às políticas públicas, ao comportamento político de eleitores e de parlamentares, à investigação sobre os fundamentos do poder, da autoridade, da dominação, da legitimidade, porém se abstendo de emitir juízos de valor, portanto, dispondo da singularidade de atuar com imparcialidade, de forma sistematizada e com rigor, arquitetando para edificar, pensando, observando, explicando e prevendo, sem a interferência de ideologias; tanto quanto possível submetendo-se aos comandos da neutralidade, instrumentos esses que não são propriamente necessários à existência da filosofia como teoria social em si. Contudo, se o fim último da ciência política é demonstrar de forma sistematizada as suas proposições (descobertas), como as relacionadas acima, também é oportuno advertir que a ciência política, como qualquer ciência, não é absolutamente imune à apropriação indevida de suas “descobertas”, podendo ser manipulada inescrupulosamente por agentes movidos por interesses inconfessáveis, portanto vulnerável ao risco de ser empregada com fins moralmente 20 reprováveis por detentores de cargos públicos, partidos políticos, grupos de pressão e associações representativas em geral. 1.3 - O político Delinear o “estadista” é a tarefa conclusiva deste estudo de ordenação e análise dos elementos fundamentais da engrenagem política. Depois de especificados seus sujeitos (ativos e passivos), objetos e fins, o momento requer a identificação do protótipo do “homem político”, a descrição do que seria o ator protagonista da política. Este sujeito - o “homem político” – vem a ser nada mais nada menos que o indivíduo predestinado a pôr a mão no leme da história, segundo Max Weber. E quem ou como seria ele, afinal? Seria o politís da Grécia Clássica? O homem de virtù esculpido por Maquiavel? Ou o cosmo-histórico descrito por Hegel? Ou teria o perfil do líder carismático projetado por Weber? Antes de adentrar em considerações específicas, convém observar preliminarmente que no universo da interpretação sociológica de Max Weber prolifera uma multiplicidade de definições e conceitos adequados para proporcionar conclusões efetivas acerca da personalidade ideal do estadista; daquele que reuniria, afinal, as qualidades do dirigente habilitado a conduzir o destino de multidões. De fato, há reais indícios de que o tipo ideal recairia sobre o estadista weberiano (o chefe carismático), sugerindo ser ele produto de uma simbiose de todos os demais conjuntamente, encontrando no politís grego seu ponto de partida e seu protótipo. Este seria a matriz da convergência do “DNA” do zoom politikós aristotélico, o animal político por excelência, com o rei-filósofo platônico, rigidamente formado pelo Estado para este fim, que, em sequência, seria plasmado ao homem de virtù maquiaveliano por suas qualidades pessoais (coragem, valor, capacidade) e a fortuna (sorte), e ao hegeliano, como o homem-síntese fundador das grandes nações. Iniciando a análise específica por Platão, cabe lembrar que em sua missão de construir a polis (cidade) ideal não descuidou da tarefa imprescindível de “reproduzir” o seu arquétipo de estadista. A elaboração de seu complexo projeto de “engenharia social”, tão ousado quanto controvertido, contemplava a “cidade” perfeita conjugada com a reforma do homem inteiramente conduzida pelo Estado. Além da formação rigorosamente especializada do homem para atender a todas as demandas estruturais da cidade-Estado, como guardiães, negociantes e artesãos, o Estado cuidaria de educar seus futuros estadistas sob um ordenamento que excluía a intervenção de particulares e da família. A rigidez moral e política exigida para esculpir o estadista, chamado de rei-filósofo, seria obtida pela dedicação aos estudos filosóficos, que preencheriam estes indivíduos com valores como virtude da alma, coragem, conhecimento do bem, sabedoria, 21 justiça, como expressou o próprio Platão: “quando tiverem vislumbrado o bem em si mesmo, usá-lo-ão como um modelo para organizar a cidade, os particulares e a sua própria pessoa, cada um por sua vez, pelo resto de sua vida. (...)suportarão trabalhar nas tarefas de administração e governo, por amor à cidade, pois que verão nisso não uma ocupação nobre, mas um dever indispensável”.16 Na sequência, são expostas as teses de Aristóteles e Max Weber, duas referências cardeais no assunto em apreciação, não obstante a notória inclinação otimista de ambos no modo enxergar a política, com as devidas ressalvas. Para Aristóteles, a política vem a ser o instrumento capaz de promover o bem da polis, o bem-comum, ideia convergente com os postulados de Weber, que compreendia a política como a arte de atingir o possível a partir de tentativas do impossível; ambos definiam a política como uma nobre atividade humana, porém advertindo que tal atividade pode absorver, simultaneamente, o germe para torná-la uma profissão vil, dependendo, pois, dos meios de ação. Mas, em termos estritamente realistas, Weber consegue identificar no universo da política, simultaneamente aos princípios da objetividade, o seu ângulo subjetivista, descrevendo-a como “aspiração à participação no poder, ou a influência sobre a distribuição do poder, quer seja entre Estados ou, no interior de um Estado, entre os grupos humanos que compreende”, complementando com a definição do homem diretamente envolvido com a política, nos termos seguintes: “Aquele que faz política aspira ao poder, quer seja como meio a serviço de outros fins – ideais ou egoístas – ou o ‘poder pelo próprio poder’, ou seja, para gozar do sentimento de prestígio que confere”.17 (Weber, 1999, p. 544). A distinção entre a boa e a má política, foram delimitadas por ele em uma de suas monumentais palestras, proferida logo após o fim da I Guerra Mundial e publicada em conciso ensaio,18 obra que permanece até os dias atuais como referência na área de metodologia científica, pois ali Weber demarcou a linha distintiva entre ciência e política, ou seja, estabeleceu os limites que separam o homem vocacionado para a ciência daquele que possui o dom para a arte da política. No campo específico da política, Weber distinguiuo político autêntico do politiqueiro, que é o diletante da política, ou seja, traçou com clareza a linha que separa o político de vocação, o líder político por excelência, classificado por ele como líder carismático, daquele espécime de indivíduo que atua na política movido por um tipo de paixão que se restringe apenas à paixão pelo poder; o politiqueiro é uma variedade de político que vive da política mas não vive 16 Platão, op. cit., p. 255. 17Economia e Sociedade, 4a ed., p. 544. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1999, 2 vols. 18WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Ed. Cultrix, 1967/68. 22 para a política. Este diletante não possui o senso de proporção que compõe o caráter do político de vocação. Sua paixão pela política é apenas uma paixão frívola, assim como sua ética é apenas uma ética baseada em convicções meramente subjetivas, que Weber considera inimiga mortal de qualquer devoção a uma causa: a vaidade. A vaidade, que afeta a qualidade psicológica do homem político, pela ausência de distanciamento das pessoas e das coisas, traz amargas consequências, ela é “o pecado do desejo de poder, que, sem qualquer objetivo, em vez de se colocar exclusivamente ao serviço de uma ‘causa’, não consegue passar de pretexto de exaltação pessoal. Em verdade e em última análise, existem apenas duas espécies de pecado mortal em política: não defender causa alguma e não ter sentimento de responsabilidade”.19 Na extremidade oposta do político deslumbrado emerge o político de vocação, o genuíno homem de Estado que, embora podendo viver da política, essencialmente vive para a política. Ao lado de suas convicções subjetivas, prevalece o senso de proporção, cujo comportamento conduz a ações objetivas que traduzem a conjunção da ética da convicção (coragem, valor, capacidade) com a ética da responsabilidade, característica distintiva do político autêntico: “Neste sentido profundo, todo homem sério, que vive para uma causa, vive também dela (...) Aquele que esteja convencido de que não se abaterá nem mesmo que o mundo, julgado de seu ponto de vista, se revele demasiado estúpido ou demasiado mesquinho para merecer o que ele pretende oferecer- lhe, aquele que permaneça capaz de dizer ‘a despeito de tudo!’, aquele e só aquele tem a ‘vocação’ da política”.20 19 Idem, ibidem, p. 107. 20 Idem, ibidem, p. 65; 124. 23 2 - CIÊNCIA POLÍTICA E DIREITO “Quem só sabe Direito, não sabe (d)Direito”. Esta frase, independente de quem a proferiu, não deixa de ser, à primeira vista, uma provocação. Mas, o provocador, ninguém mais ninguém menos que o eminente jurista Pontes de Miranda, não parou por aí. Complementou, dizendo que ‘não deve transpor as portas de uma faculdade de Direito aquele que não for um sociólogo’. Apoiado em seu elevado prestígio acadêmico, este jurista, que além de diplomata, era filósofo, professor, advogado, ensaísta, e até matemático, permanece sendo uma das mais expressivas autoridades do direito brasileiro de todos os tempos, mesmo passados mais de 30 anos de sua morte, por isso concentrando em si credibilidade suficiente para pronunciar palavras tão ásperas. Em face do impacto dessas declarações, resta legítimo ao noviço universitário de Direito questionar se as impiedosas impressões de Pontes de Miranda são mesmo dotadas de fundamentos racionais, e se não seriam injustas ante o pragmático interesse daquele que deseja, acima de tudo, obter seu diploma na área jurídica. Assim considerando, o perplexo estudante calouro se depararia com um enigma a ser decifrado: O que quer dizer o Jurista com ser ‘sociólogo’? Será que ele estava definitivamente convencido de que só após concluir um curso de Sociologia é que alguém estaria apto a ingressar em uma faculdade de Direito? Com a devida vênia, não parece razoável que um intelectual da expressão de Pontes de Miranda tivesse convicções tão ortodoxas e conservadoras assim, pois a problemática por ele abordada não é de ordem puramente formal, mas sim material, ou seja, de conteúdo. Explicando melhor: a essência de sua preocupação tinha origem na frágil bagagem intelectual que portavam os estudantes daqueles tempos, em grande maioria; fragilidade que comprometia irremediavelmente a qualidade do sistema judicial brasileiro, com reflexos negativos no sentimento de justiça de toda a comunidade nacional, por inundar o “mercado” com profissionais de capacidade tão duvidosa que, ao invés dos ilustres juristas com os quais a sociedade deveria ser contemplada, na verdade aqueles profissionais do Direito não seriam mais que genuínos “rábulas” a infestar os tribunais e os escritórios de advocacia. Infelizmente, o cenário crítico denunciado por Pontes de Miranda não faz parte de um passado de triste memória apenas. Pelo contrário, não só não desapareceu como vem contribuindo para a degeneração do setor educacional brasileiro, porquanto a proliferação das faculdades de Direito mais se assemelha a um complexo organizacional cujo objetivo principal parece ser o de fabricar diplomas em escala industrial, reproduzindo uma nova tipologia de rábulas, que são os milhares de novos bacharéis em direito despreparados até mesmo para obter a qualificação mínima e poder exercer a advocacia. 24 Despreocupados, em um primeiro momento, inúmeros estudantes calouros de Direito ao iniciarem suas atividades acadêmicas se põem a questionar acerca do porquê de estudar disciplinas propedêuticas, como exemplo a Ciência Política, e do porquê de matérias assim “abstratas” serem obrigatórias no Curso. Como é notório, a conquista da redemocratização brasileira tem despertado um positivo sentimento de cidadania na população nacional, gerando um volume crescente de demanda por justiça, especialmente porque a reaquisição da cidadania política encoraja os recentes cidadãos a também reivindicar por mais direitos sociais e civis, devido a suas prerrogativas de peticionar perante o judiciário. A consequência da maior participação e procura por garantia de direitos, na ausência de adaptação do aparato judicial, será o congestionamento do sistema, pois a crescente demanda da sociedade pela prestação jurisdicional do Estado tem sobrecarregado a capacidade deste em oferecer respostas satisfatórias à sociedade, levando autoridades de maior destaque e compromisso, de todas as instituições estatais, a manifestar preocupação com o quadro caótico que abrange todo o sistema judiciário (segurança pública, sistema prisional, poder judiciário), em cujos pronunciamentos se constata a reafirmação da intenção programática de aparelhá-lo adequadamente, o que vem ocorrendo, mas em magnitude aquém do desejável e do possível. Não obstante tudo isso, é fato incontestável que a carreira jurídica vem se transformando numa área cada vez mais atraente porquanto promissora, encerrando poder de abrir portas para o mercado de trabalho com mais facilidade aos seus profissionais do que a maioria das outras profissões acadêmicas. Então, o estudante de Direito, recém-ingressado na faculdade, ali se encontra, teoricamente, a fim de preparar-se para ser advogado, delegado, analista judiciário, juiz, procurador, defensor público, eventualmente ministro de tribunal, para seu deleite particular ou, ainda, quem sabe, para prestar contas à sociedade, posto que nos dias atuais, em quase todas as “tribos”, das mais diferentes classes sociais, quase todos se encontram matriculados em um curso de nível superior. “Mas... política - dirá o acadêmico de Direito - não é a minha praia, pois além de não gostar de política, não gosto dos políticos e, mais que isso, não tenho a menor pretensão de me envolver com política e, menos ainda, de ser um político”. Enfim, considerando uma argumentação dessa natureza,argumentação que contesta a existência de efetiva convergência de atuação, interesse e objetivos da Ciência Política em relação ao Direito, cabe insistir no questionamento: deveria a Ciência Política realmente ser matéria obrigatória para o curso de Direito? Esse questionamento é parte de uma série de outros tantos, no vasto cabide de dúvidas que abalam a estrutura dos valores do universitário. Desse modo, no que respeita à Ciência 25 Política em particular, considerações acerca da posição e finalidade da matéria no curso de Direito devem ser elencadas e discutidas. Em primeiro lugar, torna imprescindível resgatar a abordagem inicial acerca do conceito de “sociólogo”, cuja definição, não por coincidência, expõe as ligações da Ciência Política com o próprio Direito, haja vista que ambos os cursos, em sua substância, estão umbilicalmente ligados aos fenômenos sociológicos, à sociologia, enfim. Portanto, em sentido amplo, o “sociólogo” em referência muito se assemelha ao que Aristóteles classificou como sendo o zoom politikós, o homem político e social por excelência, dotado de capacidade bastante para tecer análise crítica acerca da comunidade em que vive; reter sensibilidade suficiente para refletir sobre seu papel social e de ser elemento constituinte do processo de resolução dos problemas e conflitos produzidos pela dinâmica das sociedades contemporâneas, pois entre os objetivos gerais de um curso de Direito destaca-se o de “formar bacharéis aptos ao exercício ético das diversas profissões jurídicas, atuantes na construção da cidadania, implementação da democracia e proteção do Estado Democrático de Direito”.21 Neste contexto, a Sociologia e a Ciência Política se vêem conceitualmente associadas, podendo ser definidas, tanto uma quanto a outra, em poucas palavras, como uma ciência geral das sociedades, cujos objetos de estudo interagem com os mais variados fenômenos sociopolíticos, portanto disciplinas constituídas de vasto interesse do conhecimento acadêmico, além de marcante natureza dinâmica quanto à duração de seus paradigmas científicos. Os fenômenos sociopolíticos são movimentos que muitas vezes ocorrem de forma conflituosa, e esses conflitos geralmente objetivam transformações, mas também produzem profundas marcas nas estruturas do Estado, podendo levá-lo a um estágio de debilidade, até mesmo ao colapso, repercutindo decisivamente no papel estatal de atuar como árbitro capaz de assegurar a estabilidade, independente de qual seja a ordem ideológica dominante. Por essa razão, o progresso dos conhecimentos da política como arte e como ciência, legou ao Estado, por meio da evolução de suas instituições, o papel de sujeito legitimado a monopolizar os instrumentos de coerção, a fim de assegurar a ordem e pacificar a sociedade, em que pese todos os seus antagonismos – legítimos ou não -, por meio do Direito. Na sequência dessa ordem de ideias, o Direito legislado viria a ser uma decorrência da imposição do poder, que é o poder político. Ao longo do processo civilizatório, o poder político vem se tornando cada vez mais sofisticado, sendo que o suporte para seu desenvolvimento se realiza por meio da acumulação do saber dos estudiosos da área, cujo processo evolutivo avança 21 In: Proposta Pedagógica do Curso de Direito: Centro Universitário de Brasília – UniCEUB, p. 4. 26 do estágio de fetiche ou mera arte para o estágio filosófico e deste para o científico que, surpreendentemente, só irá se materializar na área de humanidades quando surge a Sociologia, a primeira de todas as ciências sociais. Então, a política enquanto ciência, com suas ferramentas investigativas e explicativas, possui mecanismos para apontar meios mais eficazes e eficientes de alcançar a justiça a partir da construção de consensos, promovendo, enfim, a paz, a segurança e o desenvolvimento social. Não obstante, os diagnósticos não surpreendem quando se detecta em parte considerável dos acadêmicos profunda deficiência da necessária capacidade de abstração dos fatos. A deficiência se torna evidente quando operadores do Direito são indiscretamente flagrados confessando suas paixões obsessivas pelos dogmas jurídicos, assumindo posições em causas sem o necessário exame dos fatos e das consequências, não raro danosas para todo o corpo social. Trata-se de paixão cega, semelhante àquela “denunciada” em certa canção, cujo autor, ao tentar expressar a intensidade e a pureza de sua paixão, comparava-a, ironicamente, com igual intensidade de “paixão” que um calejado pescador não escondia seu encantamento por sua moderna e reluzente rede de pesca. Aquele trabalhador, alienado pela rudeza de seu cotidiano, devotava mais atração à engenhosa ferramenta de subsistência do que a uma eventual atitude de contemplação da exuberância e imensidão do oceano, que todos os dias apresentava diante de si, impávido e eterno. Para ele, a utilidade daquela ferramenta era tão dogmática que dispensava qualquer ato de reflexão comparativa, e por isso lhe causava um sentimento de indiferença perante a presença majestosa do mar, embora fosse ele a fonte de seu sustento; com semelhante comportamento, o rábula contempla o exercício da profissão jurídica como um fim em si mesmo, absorvendo do significado de “justiça” nada mais que um instrumento de sua sobrevivência material. Em trincheira oposta alinhou-se Rui Barbosa. Poucos brasileiros foram tão abnegados quanto este eminente jurista na defesa da construção de um Estado que fosse capaz de distribuir justiça com equidade, ainda que tais significados sejam demasiado complexos para uma compreensão universal. Lutou na contramão da ideologia corrente num Brasil em que a justiça vigente era a justiça da oligarquia, haja vista que no campo político foi uma vítima do implacável esquema coronelista, quando candidato à presidência da república. O reflexo desse esquema operava igualmente no âmbito do direito, uma vez que, naquele estágio, a ciência jurídica, já reconhecida como dogmática, justificava sua supremacia na irresistível lei posta pelo recente modelo de Estado ocidental, então resultante das revoluções burguesas. A nova ordem individualista, de privilégios direcionados aos detentores da grande propriedade, exprimia presunçosamente a “legitimidade” da vontade do legislador (ideologia das classes dominantes) 27 no exercício do papel de ditar a ordem legal registrada em estatutos sistematicamente positivados, independente da apreciação do significado do que é o justo ou o não-justo. Como apóstolo da justiça, manejava sabiamente o aspecto teleológico do Direito (correlação entre meios e fins: e.g. a lei posta pelo Estado e seus objetivos), que é um dos eixos basilares da ciência jurídica. Ao operador do Direito e ao estudante das ciências jurídicas, irradiava palavras de ordem ao seu engajamento na luta contra a opressão e a iniquidade, ressalvando que, em caso de eventual conflito entre o direito e a justiça, o “cidadão-sociólogo”, guardião do direito, jamais deverá vacilar em somar suas forças pela promoção dos valores supremos da justiça. Em contraste a esta forma de ação organizada, uma força reativa e inorgânica, porém poderosa, opera sistemática e silenciosamente no sentido de enfraquecer o sistema judicial. Por exemplo, bacharéis mal-formados, são parte dos efeitos colaterais perceptíveis entre militantes do direito, muitas vezes privados do necessário discernimento para se comportar de modo que não um “rábula”, aquele temerário “aplicador autômato da lei que se posiciona acriticamente em relação às soluções jurídicas criadas pelo Estado”.22 Por isso, um dos pré-requisitos ao estudante de Direito, além do comprometimento acadêmico, diz respeito à absorção de valores éticos inerentes à carreira jurídica, que requer do acadêmico, tanto quanto exige do jurista, a
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