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Distraidos Venceremos - Paulo Leminski

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ESTUDOS DAS OBRAS LITERÁRIAS
DISTRAÍDOS VENCEREMOS – PAULO LEMINSKI
AVISO AOS NÁUFRAGOS
Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho
muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?
LEMINSKRITURAS DELIRANTES
Cid Ottoni Bylaardt, professor do Pré-Vestibular Pitágoras
Paulo Leminski é um poeta curitibano, nascido em 1944,
razoavelmente citado e pouco lido. Conhecido por sua personalidade
polêmica, provocadora, irascível, colecionou epítetos: cachorro louco,
poeta provocador, agitador de mil baratos, samurai futurista, Rimbaud
curitibano com físico de judoca, discípulo zen de Bashô, lampiro-mais-
que-vampiro de Curitiba, caipira cabotino, polilingüe paroquiano
cósmico, caboclo polaco-paranense.
Suas influências declaradas foram a contracultura dos anos 60, o
concretismo (“a loucura que aquilo representa, a ampliação dos
espaços da imaginação, e das possibilidades de novo dizer, de novo
sentir, de novo e mais expressar”), João Cabral, Guimarães Rosa,
Samuel Beckett (autor americano do teatro do absurdo), John Lennon,
Matsuo Bashô (poeta japonês samurai do séc. XVII, considerado o pai
do haicai), Trótski (revolucionário comunista russo), Jesus Cristo e
Cruz e Souza (poeta simbolista negro catarinense).
O livro de poemas Distraídos venceremos divide-se em três
partes, num total de 109 textos: “Distraídos venceremos”, “Ais ou
menos”, e “Kawa cauim”. Essa última seção é dedicada aos haicais, e
será comentada à parte, por se tratar de um tipo peculiar de poema.
Entre os 80 poemas das duas primeiras partes, 38 são
metapoemas. Essa incidência de quase a metade de textos sobre
poesia denuncia a preocupação de Leminski com o fazer poético, e
nos mostra o ponto de partida, ou a porta de entrada para a poesia do
agitador cultural curitibano. Como escrever a metade dos poemas de
um livro sobre a poesia sem desesperar os leitores, ou
propositalmente desesperando, ou reveleminskando? Há que
perseguir, em sua via de loucoções, revérbios, frases desfeitas e
lugares-incomuns, a concepção poética do artista.
Em sua correspondência a Régis Bonvicino, Leminski declara:
“Ser poeta é ter nascido com um erro de programação genética que
faz com que, em lugar de você usar as palavras pra apresentar o
sentido delas, você se compraz em ficar mostrando como elas são
bonitas, têm um rabinho gostoso, são um tesão de palavra”. E
acrescenta, reafirmando a correspondência sexual da fruição poética:
“O poeta é aquele que deglute a palavra como objeto sexual mesmo,
como um objeto erótico. Para mim, a poesia é a erotização da
linguagem, o princípio de prazer na linguagem”.
Vamos tentar esclarecer o anseio do poeta, partindo do título do
livro e de sua primeira parte. É evidente a desmontagem e
remontagem do anexim “unidos venceremos”. A expressão, em sua
trajetória lingüístico-cultural, é bastante convergente, como locução
cristalizada e como formação etimológica: ela remete para um único
sentido, para a unidade.
Ao desfazer a frase feita, o poeta acrescenta-lhe múltiplas
possibilidades. Se se considerar que o verbo distrair descende do
latim distrahere, e significa “puxar para diversas partes”, teremos de
início o desmonte da idéia de unidade, de convergência. A expressão
se liberta de sua carga cultural e sua prisão etimológica para começar
a atirar para todos os lados, com conotações até desencontradas:
desatentos, inadvertidos, descuidados, divertidos, alheios, abstraídos,
desviados, desencaminhados, extraviados, esquecidos... Venceremos
mesmo assim? Sim, a poesia vai nos encontrar de várias maneiras,
ela só não vai mostrar caminhos, ela não tem que esclarecer coisas,
ditar regras, sistematizar, e sim dispersar, produzir possibilidades.
Por que “venceremos”, na primeira pessoa do plural? Porque,
conforme declarou Leminski, “poeta não é só quem faz poesia. É
também quem tem sensibilidade para entender e curtir poesia. Mesmo
que nunca tenha arriscado um verso. Quem não tem senso de humor,
nunca vai entender a piada”. O título é, portanto, um convite para que
os poetas da emissão e da recepção possam se desentender na maior
desunião, e tirando o maior proveito disso.
A poesia vai nos encontrar de várias maneiras, ela só não vai
mostrar caminhos, ela não tem que esclarecer coisas, ditar
regras, sistematizar, e sim dispersar, produzir possibilidades.
UM DESTRATADO POÉTICO
O primeiro poema da primeira parte, “Aviso aos náufragos”,
contém a essência da concepção de poesia do autor, e funciona como
uma advertência. Temos aí novamente o processo desmonte-remonte.
Navegante viaja na superfície; náufrago afunda, aprofunda, sucumbe,
deixa-se envolver pelo oceano. E de todos os náufragos, os mais
profundos são os náugrafos (cf. “O náufrago náugrafo”). Quem são os
náufragos? O poeta criador, os poetas leitores, as poesias palavras.
Vamos então ao aviso. A página na qual se leminskreve a poesia
nasceu branca, pálida, primitiva como uma folha de árvore, ou
histórica e canônica como a epopéia Ilíada. Não era para ser lida, ou
já trazia a leitura de séculos, em sua brancura de areia, em seu
recôndito inacessível da constelação ou do pico mais alto, até que se
sujou com a mancha gráfica, a partitura para os olhos, o poema.
Aí comparece aquele “rabinho gostoso” na “sílaba sentida”, o
“ai!” dolorido do Himalaia, a poesia em suspensão para mostrar que
sílaba também sente dor. A que não nasceu ainda: a página por vir. As
águas sagradas do rio Nilo conduzem a palavra, inscrita no papiro, a
escrita vai cumprir seu destino histórico, vai ter tradução em todos os
sistemas lingüísticos, vai tornar-se comum a todos, vulgarizando as
confidências. Acima de tudo, o poema vai inverter a ordem comum das
coisas, tornando-se a pedra sobre a qual o vidro do entendimento cai
e se fragmenta. Se a pedra não vai ao telhado, o telhado vai até a
pedra. Ao final, a poesia se aproxima da vida naquilo que ela tem de
inesperado, fragmentado, desordenado, irracional.
A idéia de que a poesia deve carregar em si o imperativo da
mudança aparece também em “A lei do quão”, que pode ser traduzido
como “a lei de como fazer poesia” em que a clássica Branca de Neve
vai sofrer em breve uma mudança de textura e de temperatura. Para
fazer o máximo do mínimo, o poeta deve estar atento aos menores
detalhes da língua. A poesia não apresenta um caminho fácil de
transitar, a escrita é infinita; assim como a vida, percorre estradas
turbulentas.
O momento da criação é encenado em “Adminimistério”: como
administrar o pequeno mistério da inspiração que visita o poeta em
seu sono da meia-noite? Insetos visitam a folha branca, como se
palavras fossem. Ou são mesmo, a julgar pelas “nuvens de equívocos”
ou “enxames de monólogos” presentes em “Iceberg”, uma paradoxal
pedra de gelo reduzida ao mínimo necessário, “um piscar de espírito”,
que poesia não tem que ficar explicando as coisas. “One-way poetry”,
como definiu uma vez o Leminski, completando: “poesia-curtiu-cabou”.
É a tendência à síntese buscada pelo autor: “A única razão de ser da
poesia é o antidiscurso. Poesia, num certo sentido, é o torto do
discurso. O discurso torto”.
Da mesma forma o impulso que leva o poeta a escrever não
pode ser explicado. Há tentativas: porque ele precisa, porque ele está
embriagado (tonto, mesmo, ele que morreu de hepatite etílica), porque
o dia amanhece... Afinal, não existe explicação. “Tem que ter por
quê?”
Em “Diversonagens suspersas”, o poeta fala sobre ser poeta. O
princípio da superposição de palavras se realiza aqui como amálgama
de diversas-personagens-suspensas-dispersas,que confirma também
o princípio da dispersão, da divergência. O poeta está perdido “no
exato lugar onde está”, e seu verso também ainda não pode ser
localizado, ele está
Em algum lugar de um lugar,
onde o avesso do inverso
começa a ver e ficar.
Embora saiba que está pervertendo/subvertendo a língua pátria,
ele tem tanta fé na poesia quanto um canônico Gonçalves Dias:
Por mais prosas que eu perverta,
não permita Deus que eu perca
meu jeito de versejar.
Semelhante à enxurrada do Nilo, um texto está repleto de ecos
históricos, ele carrega em si a história dos outros textos da
humanidade. Até que ponto essa impregnação histórica influencia o
texto do poeta? É o que ele pergunta em “Distâncias mínimas”:
ouvir é ver se se se se se
ou se me lhe te sigo?
Todas as palavras que mancham um papel já foram escritas
alguma vez por alguém, é o que reitera o poeta em “Plena pausa”.
Assim como o branco é a soma de todas as cores, a página branca
contém a “soma de todos os textos”. “Folha isenta” não existe. Mesmo
a mais pura areia do Saara longínquo possui uma carga de
significação que o artista não pode ignorar:
Nunca houve isso,
uma página em branco.
No fundo, todas gritam,
pálidas de tanto.
Ciente de que nem a página se apresenta a ele isenta, o poeta
tem de correr atrás da palavra, o elemento lúdico, combinatório,
anagramático, mais significante do que significado. São os artefatos a
que ele se refere em “Passe a expressão”, em que o ofício do poeta se
apresenta irreverentemente associado aos eventos fisiológicos de
comer e defecar. A idéia da poesia como uma mancha no papel é
retomada novamente na disgusting metáfora das fezes sujando o
papel higiênico.
A impotência de buscar o sentido, ou a falta de sentido da busca
do sentido não é só do leitor; os conceitos são sobrepostos, as frases
e as palavras também, são fragmentos que se dispersam, ao invés de
convergirem para um sentido; assim é a confusão essencial do poeta,
que só por amar as palavras se sente confundido por elas:
Se tudo existe
para acabar num livro,
se tudo enigma
a alma de quem ama.
Os conceitos são sobrepostos, as frases e as palavras
também, são fragmentos que se dispersam, ao invés de
convergirem para um sentido; assim é a confusão essencial
do poeta, que só por amar as palavras se sente confundido
por elas.
Talvez por sua confusão, o poeta sente em si o peso do idioma
corriqueiro que ele não criou, e busca “O par que me parece”, uma
língua idealizada, próxima da pureza primitiva dos Hititas, ou das
imaculadas areias da praia distante. A mesma metáfora da areia como
ideal de pureza poética aparece também em “Aviso aos náufragos” e
em “Plena pausa”, de difícil — ou impossível — alcance. Mas o poeta
continua perseguindo o idioma poético de palavras essenciais, em que
cada uma delas vale por duas.
Na linha do equívoco essencial, a poesia ilude tanto o poeta
criador quanto o poeta leitor; ela é feita de luzes que se refletem,
porém luzes enganosas: o que parece verde é sinal vermelho que
barra a passagem. A poesia é o desencontro dos contrários, dos
“Desencontrários”. As palavras resistem às ordens do poeta, parecem
fora de si, não acham as saídas, terminam por não levar a nada:
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.
O poeta leitor, por sua vez, tem que aprender a “Ler pelo não”,
tentar ler o que não é apenas óbvio, o ausente, o silencioso. O leitor
que conseguir “desler, tresler, contraler” vai ser premiado com a
América procurando as Índias, vai ver o dentro fora e o fora dentro, vai
encontrar tudo aquilo que não esperava onde era impossível
encontrar.
Ler, ensina o poeta em “M de memória”, não passa de uma
lenda, já que as obras são um acúmulo de histórias inúteis. O saber é
um bem inútil em “Objeto sujeito”. Sabedoria é não saber nada que
valha a pena (pasárgada, xanadu, shangrilá, ou a chave de um
poema).
“Poesia: 1970” é poesia marginal, aquela em que um rabisco já é
um clássico. Sobre a poesia marginal, o poeta declarou certa vez: “a
poesia dos anos 70, ou ‘marginal’, é ótima: ela registra bobagens tão
insignificantes que nenhuma prosa se dignaria recolher para as
eternidades da memória. A poesia dos anos 70 é uma antropofagia.” A
voz poética despreza quem defende a poesia de impulso, de
improviso, mas garante que continua a cometê-la.
“Despropósito geral” é o despropósito de escrever obras-primas,
como resultado de uma estranha luta e muito abuso, quando na
verdade sua poesia é eco de toda a escrita do mundo.
Em “Um metro de grito”, Leminski metaforiza o comércio poético
perguntando: “quanto me dão / por minhas idéias?” A recepção da
poesia é algo enganosa, “coisas que eu vendo a metro / eles me
compram aos quilos”, afinal para que serve a arte, para que se
consomem filmes, livros, discos? Diante da postura dos intelectuais
brasileiros de defesa comiserada da poesia, que, segundo eles, é
injustiçada pelo grande público, que não a consome, Leminski dizia
que poesia não é feita para vender: “Poesia é um ato de amor entre o
poeta e a linguagem”. Daí a idéia de grito associada à poesia, que
aparece em ‘Um metro de grito”, “O par que me parece”, “Passe a
expressão”, e “Distâncias mínimas”: o desabafo, o orgasmo, o produto
dessa relação de amor.
Essa relação de amor chega a ser adoração, como em “Anch’io
son pittore” (“Eu também sou pintor”), em que o eu-lírico refere-se à
postura de Fra Angelico, pintor italiano do século XV, que se ajoelhava
diante de suas pinturas religiosas, como se fosse pecado não se
curvar diante de tão magnífica criação: “orava como se a obra / fosse
de deus não do homem”. Ao declarar-se também “pittore”, a voz
poética confessa sua adoração pela obra poética, obra divina.
Poesia pode ser arte sublime mas também pode traduzir-se em
“Rimas da moda”, cada tempo com seu verso característico: na
década de 1930, as rimas singelas de amor puro e o sofrimento
amoroso; nos anos sessenta, a poesia em defesa de uma sociedade
mais justa; nos anos 80, a liberação sexual na sedução amorosa.
Esse império dos signos em dispersão é o mundo das palavras
em “Nomes a menos”. Nome não é coisa, é o que resta das coisas
quando elas passam. E todas passam, só os nomes ficam, a palavra é
mais resistente do que a coisa nomeada. E a “alma” do signo não tem
nome e não é coisa, nome e coisa são coisas que doem dentro do
nome, “que não tem nome que conte / nem coisa pra se contar”.
A dispersão das palavras e expressões na folha branca retorna
em “Sortes e cortes”, em que uma tesoura deforma a folha, que
contém uma magia diabólica, “claro oculto entre as claridades”, uma
sensação de vazio que dá saudade. Em “Sujeito indireto”, o poeta
declara que sua luta com as palavras poderia ser amenizada se ele
pudesse atingir a perfeição ainda no projeto. Seu desejo era
vislumbrar a arte perfeita antes de começar a obra, mas isso é
impossível.
E assim continuam a desfilar os flashes poéticos com seus
recados. “Como pode?”: a poesia de hoje é diferente da de ontem,
tudo muda, provoca uma sensação de estranhamento; “Rosa Rilke
Raimundo Correa”: o trabalho poético tenta transformar sensações em
palavras; “O atraso pontual”: a inspiração é um “impuro espírito”, ao
mesmo tempo arquiteto e vampiro, racional e sobrenatural, a poesia
existe na ausência do tempo e do espaço no encontro do tempo e do
espaço, a essência da solidão do poeta e de sua poesia; “Segundo
consta”: o poeta rejeita o projeto de felicidade que a sociedade lhe
propõe, e ao acabar o mundo, ele será reconstruído segundo a ótica
poética, com exceção talvez do amor: será possível sua recriação?
Alguém se lembra de como ele era antes?
LEMINSKIETAÇÕES AMOROSAS
Outras são as temáticas: a vida incompleta e inexplicável, a
inutilidade da memória, a apreensão do mundo em suspensão, em
flashes atemporais, o amor/desamor do homem, sua infinita
incapacidade de amar ou de lidar com o enigma amoroso, a
ambigüidade e indefinição do ser humano em sua trajetória tortuosa,
plena de problemas que não se resolvem e constituemfamília:
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas
Merece destaque a temática amorosa, que comparece como
segunda em presença, com nove ocorrências. Leminski se queixava
de que nenhuma disciplina científica nunca tenha tratado do amor
como objeto de estudo: “O amor é uma coisa que você vai ter que
procurar nos artistas, na televisão, no cinema, e, principalmente, na
poesia”. Já que a ciência o despreza, vamos achá-lo nos textos. Mas o
que é o amor para o Paulo? É tudo o que é a poesia e a vida:
incertezas, mudanças constantes, desencontros, relacionamentos
instáveis.
Mas o que é o amor para o Paulo? É tudo o que é a poesia e
a vida: incertezas, mudanças constantes, desencontros,
relacionamentos instáveis.
Alguns exemplos de como esse Leminski fabricou seus miúdos
momentos de poesia, partículas subatômicas, prótons, elétrons, grãos
de poeira cósmica.
exploração de frases feitas e
anexins
“Distraídos venceremos”
“Aviso aos náufragos”
invenções léxicas
(neologismos)
“Espaçotempo ávido,
lento espaçodentro”
“Dois leos em cada pardo”
“Em Brasília admirei.
não a niemeyer lei"
textura paronomástica
“A vocês, eu deixo o sono.
O sonho, não.
Esse, eu mesmo
carrego.”
“náugrafo
o náufrago
mais profundo”
montagem “Diversonagens suspersas”“Adminimistério”
estrangulamento
“a letra A a
funda no A
tlântico
e pacífico com
templo a luta
entre a rápida letra
e o oceano
lento”
repetição
“um texto texto cego
um eco anti anti anti antigo
um grito na parede rede rede
volta verde verde verde”
palavras e frases estrangeiras
(estrangeirismos)
“Anch’io son pittore”
“Oceans,
emotions,
ships, ships,
and other relationships,
keep us going
through the fog,
and wandering mist.”
deformações ortográficas
“náugrafo”
“desab
rocha
o maracujá”
enumeração caótica
“Argila, esponja, mármore,
borracha,
cimento, aço, vidro, vapor, pano e
cartilagem,
tinta, cinza, casca de ovo e grão de
areia,
primeiro dia de outono, a palavra
primavera,
número cinco, o tapa na cara, a
rima rica,
a vida nova, a idade média, a força
velha,”
trocadilho
“ano novo
anos buscando
um ânimo novo”
“tudo dito,
nada feito,
fito e deito”
Ele já começa vazio num poema sem título (“Pra que título? O
poema não funciona sozinho?”), e reflete o próprio vazio da existência,
“essa maldita capacidade, / transformar amor em nada”. A maldita
incapacidade de amar é reiterada no coração do eu-lírico de “Além
alma”, o qual NÃO TEM VAGA NEM LUGAR para o amor, cuja
presença faz sofrer, cuja ausência cai macio. O sentimento continua
negado na lógica lúdica do poema sem título cujos primeiros versos
são “sorte no jogo / azar no amor”: o jogo do amor não serve para
quem não gosta de jogo, independente de azar ou sorte, e sua falta
provoca “Parada cardíaca”.
Entretanto, o amor às vezes insiste, aí dá merda, como em
“Merda e ouro”: “Não há merda que se compare / à bosta da pessoa
amada”. Quando ele chega, incomoda. Você não pode medi-lo, mas
sabe que ele aumenta ou diminui (“há pouco era muito, / agora apenas
um sopro”). Amar exige luta e muita vontade: “a pedra só não voa /
porque não quer / não porque não tem asa”. Contraditoriamente, o
sentimento amoroso, por mais que seja negado, permanece: “sentir
fica”.
POESIA-CURTIU-CABOU
Depois de tanta poesia sobre poesia, poeta, leitor, e depois
amor, vamos aos haicais de “Kawa cauim”. O que é isso? Parece-nos
o ideograma de “rio” em japonês como o high spirit do delírio
tupiniquim. Esta parte tem como subtítulo “Desarranjos florais”,
justificando o fato de que a seção não se compõe de haicais
formalmente perfeitos. Mesmo mantendo os três versos tradicionais do
haicai, como acontece na maioria das vezes, eles nunca obedecem à
estrutura tradicional de 5-7-5 sílabas. Em outros casos, o pequeno
poema apresenta não três, mas quatro, cinco ou seis sílabas, e às
vezes tem até título, o que foge à característica formal do pequeno
poema japonês.
Leminski começou a se interessar pelo haicai em torno dos vinte
anos de idade, estudando e traduzindo autores japoneses,
principalmente Matsuo Bashô, poeta japonês (segunda metade do
século XVII) que levou o haicai à perfeição.
O haicai como forma fixa é um pequeno poema de três versos,
de 5, 7 e 5 sílabas, respectivamente. O próprio Leminski explica as
funções dos três versos do haicai:
“O primeiro verso expressa, em geral, uma circunstância eterna,
absoluta, cósmica, não humana, normalmente, uma alusão à estação
do ano, presente em todo haicai. O segundo verso representa a
ocorrência do evento, o acaso da acontecência, a mudança, a
variante, o acidente casual. Por isso, talvez, tenha duas sílabas a mais
que os outros. A terceira linha do haicai apresenta interação entre a
ordem imutável do cosmos e o evento.”
Segundo o especialista Reginald Horace Blyth, citado pela poeta
Alice Ruiz (ex-mulher de Paulo Leminski), destacam-se no haicai as
seguintes características principais:
“a) a ausência do eu, onde o poeta procura não deixar
transparecer sua individualidade, inserindo sua opinião; b) não
moralidade, pois questões morais configurariam prosa e não poesia; b)
solidão, a plenitude de estar só consigo mesmo; d) grata aceitação, o
que nos torna mais felizes, independente das coisas que nos
aconteçam; e) intelectualidade ou ausência das palavras, procurando
usar mais substantivos do que adjetivos; f) contradição, de notada
influência do espírito zen, à semelhança dos koan (anedotas), que
servem para o mestre treinar seus discípulos.”
Antes de se iniciarem os “Desarranjos florais”, parte que contém
os haicais propriamente ditos, o poeta explica o ideograma de kawa,
rio em japonês, e “explica” a filosofia de “Hai” e “Kai”. “Hai” nasce
perfeito, e definha ao iniciar a busca de si mesmo, do conhecimento,
das explicações da vida, da arte e da poesia, diminui ao crescer e
morre germe. “Kai” reitera o estado quase puro da poesia, que retira o
corpo mas deixa a sombra, o mu-ga (“não-eu”, em japonês, o exato
ponto de harmonia entre o eu e as coisas).
A adoração de Leminski pelo haicai começa por sua crença
no texto curto, de bate-pronto, típica de uma poesia feita de
“saques, piques, toques & baques”
A adoração de Leminski pelo haicai começa por sua crença no
texto curto, de bate-pronto, típica de uma poesia feita de “saques,
piques, toques & baques”, como se auto-analisa o poeta. Para ele, “o
haicai valoriza o fragmentário e o ‘insignificante’, o aparentemente
banal e o casual, sempre tentando extrair o máximo do significado do
mínimo de material, em ultra-segundos de hiper-informação. De
imediato, podemos ver em tudo isso os paralelos profundos com a
estética fotográfica. Esses traços característicos do haicai podem ser
transpostos sem nenhuma dificuldade para a fotografia”.
Vejamos um deles:
noite sem sono
o cachorro late
um sonho sem dono
Seguindo o hexálogo de Horace Blyth, constatamos que o
poemeto a) não revela um eu subjetivo; b) não lida com questões
morais; c) apresenta a solidão essencial; d) pressupõe a grata
aceitação tipicamente zen; e) contém poucas palavras, com
predominância de substantivos; f) apresenta uma incoerência no
objeto da ação de latir.
O haicai capta o mundo exterior, a fotografia de um momento,
que ultrapassa sua própria vulgaridade. Apesar da elisão do sujeito,
apresenta-se um Eu maior (mu-ga), que permite que o mundo seja,
sem a interferência de anseios e temores. A noite sem sono não é a
insônia de um homem, é um estado de coisas da própria noite, uma
declaração de que ela está lá, “uma circunstância eterna, absoluta,
cósmica”. O evento, a perturbação vem com o latido do cão, sem
dono, como a noite, o sono e o sonho. O sonho sem dono da terceira
linha é o elemento que concilia as duas anteriores, que completa a
cena, arredondando-a; não necessariamente a conclusão lógica, mas
a parte integrante que confere unidade à tríade.
E assim seguem os “desarranjos” do Paulo, sobre o mar, o céu,
o sábado ou simplesmente o dia de vida, o sol, a chuva, as praias,o
inverno, a lua, o vento, a alvorada, o temporal, a tarde... Aí ele ri e lhe
dá de presente:
rio do mistério
que seria de mim
se me levassem a sério?
No dia 7 de julho de 1989, aos 45 anos, ele desencarnou. E
deixou o seu adeus:
Adeus, coisas que nunca tive,
dívidas externas, vaidades terrenas,
lupas de detetives, adeus.
Adeus, plenitudes inesperadas,
sustos, ímpetos e espetáculos, adeus.
Adeus, que lá se vão meus ais.
Um dia, quem sabe, sejam seus,
como um dia foram dos meus pais.
Adeus, mamãe, adeus, papai, adeus,
adeus, meus filhos, quem sabe um dia
todos os filhos serão meus.
Adeus, mundo cruel, fábula de papel,
sopro de vento, torre de babel,
adeus, coisas ao léu, adeus.
É claro que o Paulo Leminski não está todo aí, mas tem um
pedacinho bom.
Para conhecer melhor esse poeta pouco lido, utilizamos a
seguinte BIBLIOGRAFIA:
LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense,
1995.
LEMINSKI, Paulo. Melhores poemas. (org. GÓES, Fred e MARINS,
Álvaro). São Paulo: Global, 1997.
LEMINSKI, Paulo. Uma carta uma brasa através, cartas a Régis
Bonvicino. São Paulo: Iluminuras, 1992.
CAMPOS, Haroldo de. “Uma leminskíada barrocodélica”, in Folha de
São Paulo, caderno Letras, 2/9/1989
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