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O Sertão de Primeiras Estórias - Guimarães Rosa

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Guimarães Rosa, o Ser-Tão de "Primeiras Estórias"
Profa. Aparecida do Carmo Frigeri
João Guimarães Rosa, mineiro de Cordisburgo, nascido sob o signo de
câncer, em 27 de junho de 1908, é iluminado pelo longo horizonte dos
morros verdes, poeira do sertão e veredas das gerais. Viajou mundo
como diplomata, mas trouxe o mundo para Minas ou levou Minas para o
mundo, reconhecendo-se no regionalismo universal.
Partindo do primitivo espaço do sertão, começa a delinear o seu
aprendizado do mundo, seguindo o curso do rio, metáfora da vida.
Realizou uma viagem de três meses com vaqueiros mineiros, o que foi
fundamental para que compreendesse o homem, a linguagem e o sertão
e, dessa essência primitiva, extraísse o seu material poético. Na
verdade, em Guimarães o sertão é o mundo: um espaço externo que
contém ointerno, começando pelos subterrâneos da Gruta do Maquiné,
no município de Cordisburgo.
Homem místico e de poucas palavras consegue em sua obra rasgar o
tempo e entrar pelo espaço, em busca da essência humana.
Observe Guimarães por meio do próprio Guimarães:
"Que nasci no ano de 1908, você já sabe(...) Minha biografia literária
não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não tem tempo, não
tem princípio nem fim. E meus livros são aventuras, para mim são
minha maior aventura. Escrevendo descubro sempre um novo pedaço
do infinito. Vivo no infinito, o momento não conta. Vou-lhe revelar um
segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e
me chamava João Guimarães Rosa. Quando escrevo repito o que já vivi
antes (...) Como escritor, não posso seguir a receita de Hollywood,
segundo a qual é preciso sempre orientar-se pelo limite mais baixo do
entendimento. Portanto, torno a repetir: não do ponto de vista filosófico
e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e
Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade, da solidão (...). No
sertão, o homem é o 'eu' que ainda não encontrou um 'tu'."(1)
( Na próxima edição, mais informações sobre Guimarães e sobre a
geração de 45 - 3ª Geração do Modernismo Brasileiro, em que este está
inserido)
ENTRANDO NAS HISTÓRIAS DE "PRIMEIRAS ESTÓRIAS"
Primeiras Estórias é um universo enigmático, composto por 21 contos
que segundo Maria Luíza Ramos "convergem para a problemática
central: a falta de lógica da existência, ou a angústia provocada pela
insegurança da vida humana."(2) Nestas "Estórias" primitivas, o mundo
é povoado por crianças, loucos, jovens, valentões e idosos. Essas
personagens circundam ao redor de fatos estranhos que as colocam em
situações extremas, diferenciando-as das demais, nas diferentes etapas
da vida. O espaço, na maioria dos contos, é o rural, porém não deixa de
aparecer os vilarejos e também o universo urbano. Pela composição das
personagens e pelo espaço, é possível perceber que o ambiente de
"Primeiras Estórias" está calcado na existência humana, seus dramas,
angústias, buscas e destino. É uma sondagem do Homem que começa a
compor sua "Estória" de vivente, em busca da compreensão de algo
que, às vezes, não é possível compreender. Desta forma, traça o seu
destino que se divide entre bem x mal, mundo terreno x mundo
celestial, em que todos, desde o nascimento, encenam o seu
aprendizado da existência.
SINTESE DO ENREDO "A MENINA DE LÁ"
Maria, conhecida por Nhinhinha, é a personagem central deste conto.
Menina de 4 anos incompletos que não se interessa por brinquedos, vive
sozinha no seu canto, nos seus silêncios. Difere das crianças de sua
idade e quase não fala. O pouco que diz, situa-se em um pequeno
número de palavras desconexas ou sem sentido, incompreensível para
os simples mortais do seu pequeno mundo.
"Sua casa ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo
de água limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus." Nhinhinha "nascera já
muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes. Chamava o pai de
"Menino pidão"e a mãe de "Menina grande". O narrador informa que
Nhinhinha gostava dele, e que conversava com ela:
"E Nhinhinha gostava de mim.
Conversávamos, agora." E começa a relatar as falas estranhas da
menina, que estava no quintal vestidinha de amarelo e salienta que:
"o que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: -
'...alturas de urubuir... ' Não dissera só: - '...altura de urubu não ir.' E
acrescenta que "o dedinho chegava quase no céu", e que também
suspirava e depois dizia - "Eu quero ir para lá." , e falava de parentes
mortos, dizendo que iria visitá-los. O narrador diz não ter mais visto
Nhinhinha, mas sabe que começou a fazer milagres. O primeiro foi
presenciado pela tia , Tiantônia, quando Nhinhinha pede para o sapo vir
até ela e chega uma rã brejeira.. Dias depois pede uma pamonhinha de
goiaba e aparece uma dona com a comida. Os milagres se sucedem,
como a cura da doença da mãe com um abraço. A família não conta
para ninguém os milagres da menina por medo dos curiosos e
interesseiros.
Chegou a seca e o pai apela para Nhinhinha, quando a menina quis, veio
e arco-íris e choveu. Com a chegada do arco-íris, a menina se alegrou e
começou a pular e correr pelo quintal, coisa que nunca fez, e também
disse algo para Tiantônia, fazendo-a ralhar com Nhinhinha.
Nhinhinha morre e Tiantônia revela o que a menina disse, quando
apareceu o arco-íris: "queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites
verdes brilhantes.". Para a mãe tudo sairia do jeito que a filha desejava
"pelo milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nhinhinha."
COMENTÁRIOS
O conto "A menina de lá" é narrado em terceira pessoa. Entretanto, em
um momento do texto, o narrador também passa a ser personagem (
"Conversávamos, agora"), em outros, funciona como um narrador
testemunha dos fatos, ora mais próximo, ora distanciado. Sabe de todos
os acontecimentos por presenciá-los e por ouvir falar deles, porém, não
diz a revelação que Nhinhinha fez para Tiantônia, quando apareceu o
arco-íris. Isso só acontecerá depois da morte da menina.
Semanticamente é possível perceber que a menina não pertence ao cá (
terra), mas sim ao lá (céu), pela presença de palavras ligadas ao
universo do mundo do lá: lua, estrelinhas, céu, alturas, aves, mortos,
saudade, milagre, a mãe não tirava o terço da mão, e a menina mora no
"Temor-de-Deus" e principalmente a palavra arco-íris, dentre outras.
Arco-íris é a palavra-chave, pois remete ao imaginário coletivo de fazer
um pedido ao arco-íris quando este aparece no céu. Pela metonímia
"caixão colorido", Nhinhinha pede a morte e metaforicamente, o que ela
deseja, acontece. Há, nesse momento, o clímax do conto, pois é o
confronto entre os dois mundos: o cá ( mundo terreno), de Tiantônia,
em que a morte é vista como ruim, repreendendo a menina versus o lá,
que para Nhinhinha é a alegria , a libertação de um mundo que não é o
seu, esperando cumprir o seu destino e realizar o seu desejo de ser "a
menina de lá". Desta forma, fecha-se o círculo do universo premunitório
traçado pelo conto, calcado no destino fatídico de uma menina que não
pertence ao mundo de cá, entretanto possui a magia de um outro
mundo encantado: o mundo da criação artística.

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