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78 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Unidade III MODULO 6 Neste módulo, o nosso objeto de estudo será as consequências advindas com o movimento do renascimento filosófico. Assim, nos dedicaremos à análise de alguns temas: Jusnaturalismo, Kant, Direito, Moral e Justiça. Vamos começar pelo estudo do Jusnaturalismo[1]. A filosofia escolástica exaltava a existência de uma lei divina. Dentro dessa concepção, tal lei não possuiria nenhuma espécie de erro ou falha, em função de sua natureza transcendente; dessa forma, além de perfeita, seria imutável. Essa concepção surge, de modo cristalino, nas concepções de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. A Cidade de Deus é o lugar regido pela lei divina que contrasta com a cidade dos homens, regida pela lei humana. A tarefa de incorporar a lei divina no âmbito da lei humana é o que deve ser realizado pelo Direito. Ressalte-se que se trata de uma tarefa dificílima. Na concepção tomista há uma lei eterna, uma lei natural e uma lei humana. A lei eterna regula toda a ordem cósmica (céu, estrelas, constelações, etc.) e a lei natural é decorrente dessa lei eterna. Fica claro nas duas concepções, sinteticamente resenhadas anteriormente, que a lei superior (a divina, para Santo Agostinho, e a eterna, para Santo Tomás de Aquino emana de uma força sobre-humana, qual seja: Deus. Para colocar um novo centro nessa concepção é que surge o direito natural. O Jusnaturalismo moderno elege a reta razão como guia das ações humanas. Grócio assim define o direito natural: “O mandamento da razão que indica a lealdade moral ou a necessidade moral inerente a uma ação qualquer mediante o acordo ou o desacordo desta com a natureza racional.”[2] Essa mudança de centro, verdadeira revolução copernicana na esfera do Direito, indica um novo caminho a ser percorrido pela Ciência Jurídica, que deixa de estar ligada à concepção místico-religiosa, para buscar ser fundamento último na razão. O direito natural divide-se em duas fases. A primeira fase, a antiga, tem início na Cidade-estado grega e usa a natureza como fonte da lei que “tem imensa força em toda parte e independe da diversidade das opiniões”. Grócio inaugura uma nova concepção do direito natural. O princípio último de todas as coisas não seria mais Deus, nem a natureza, mas a razão. Estava criada a Escola Clássica do Direito Natural, que 79 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA teve diversos representantes, entre eles, serão objeto de nosso estudo: Hugo Grócio, Samuel Pufendorf e John Locke. Os diferentes autores da Escola Clássica do Direito Natural não necessariamente concordavam entre si. Autores como Henrique e Samuel Coccejo, Leibiniz e Joan Cristian Von Wolf adotaram uma posição antirracionalista afirmando, categoricamente, que Deus é a fonte última do direito natural, o que contrariava a famosa assertiva de Grócio: “O Direito Natural existiria mesmo que Deus não existisse, ou ainda que Deus não cuidasse das coisas humanas”[3]. Hugo Grócio, nascido na Holanda, na cidade de Delf, no ano de 1583, filho de pai protestante e mãe católica. Seus primeiros trabalhos intelectuais versaram sobre: filologia, poesia, histórica e teologia. A partir de 1607, ano em que inicia o exercício da advocacia na cidade da Haia (sede do governo holandês), passa a interessar-se pelas questões do Direito. Sua principal obra, na qual expõe sua concepção do direito natural, é De Jure Belli ac Pacis, publicada no ano de 1625. A doutrina do direito natural de Hugo Grócio reflete o desejo de autonomia, que se manifesta, de modo inicial, em relação à Teocracia. Não é mais Deus ou a ordem divina o substrato do Direito, mas a natureza humana e a natureza das coisas. Não há possibilidade de uma sanção religiosa. O direito natural não mudaria seus ditames na hipótese da inexistência de Deus, nem poderia ser modificado por ele. “Portanto, não há nada de arbitrário no direito natural, como há arbitrariedade na aritmética. Os ditames da reta razão são o que a natureza humana das coisas ordenam.” O método dedutivo, influência do raciocínio matemático e geométrico, é o que possibilita à reta razão alcançar as regras invariáveis da natureza humana. Essa ideia, cara à Escola Clássica do Direito Natural, faz dele um Direito imutável, perene às transformações históricas e não suscetível aos diversos costumes e tradições dos diferentes povos. Essa divisão difere radicalmente da de Miguel Reale, que advoga a existência não de um direito natural imutável, mas problemático e conjetural, que vai acolhendo diversos valores no percurso da história: De tais paradigmas axiológicos resultam determinadas normas que são consideradas ideias diretoras universais da conduta ética, costumeira e jurídica. A essas normas, que nos permitem compreender a natureza e os limites do direito positivo, é que denomino Direito Natural, de caráter problemático- conjetural.” Conclui-se, portanto que o direito natural surge pela primeira vez na história do pensamento com os gregos. Dessa feita, sua grande contribuição é mostrar a ligação do Direito com as forças e as leis da natureza. Na segunda oportunidade que vem à tona, no século XVII, o direito natural aparece como reação racionalista à situação teocêntrica na qual o Direito fora colocado durante o medievo. 80 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Deus deixa de ser visto como emanador das normas jurídicas, ou como última justificação para a existência destas e a natureza passa a ocupar esse lugar. Trata-se da acentuada passagem do pensamento teocêntrico ao antropocêntrico. Ora, com um detalhe: a natureza não dá aos homens esse entendimento; é ele mesmo, por meio de uso da razão, que apreende esse conhecimento e o coloca em prática na sociedade. Esse novo pensamento prepara as bases intelectuais da Revolução Francesa (1789), que rompe, de modo definitivo e prático, com a teocracia e afirma, categoricamente, os direitos naturais. Rousseau, o próximo pensador a ser analisado, aprofunda e explicita a ideia do novo consenso realizado por meio dos contratos. Agora, vamos tratar da filosofia kantiana. Os estudiosos da filosofia costumam dizer que se pode adorar Kant ou detestar Kant. Segui-lo às últimas consequências ou abominá-lo. Só não se pode ignorar Kant. Emmanuel Kant – 1724-1804 – transformou o mundo da filosofia com sua produção na esfera da metafísica, epistemologia, ética e estética. Kant se impressionou com os escritos de Rousseau, notadamente o livro IV de Emílio. Desenvolveu a ideia rousseauniana de que a moral é assunto do coração e não da inteligência. A moralidade não pode ser privilégio do sábio, pois não é preciso conhecer as leis da natureza para que alguém se disponha a atuar como um ser moral. Todos os homens, independentemente de sua escolaridade ou erudição, foram chamados a uma vida impregnada de moralidade. Não há ser humano provido de discernimento incapaz de desconhecer o seu dever. Foi em David Hume que Kant encontrou a ideia fundamental de que a partir do conhecimento empírico ou metafísico – suficiente para mostrar aquilo que é – não se extrai a regra daquilo que deve ser. A experiência é sempre concreta e não suscita a dedução de leis universais. A partir daí, Kant concluiu que as leis universais são conhecidas pelo sujeito graças a um julgamento sintético a priori. O raciocínio kantiano é o seguinte: se uma parte da ciência existe e outra parte não pode resultar apenas da experiência, é porque ela é o produto de uma síntese operada pelo sujeito do conhecimento a partir de suas sensações. Esse conhecimento não resulta de uma síntese a posteriori que consistiria em associar os termos constatados na experiência, mas de uma síntese a priori, isto é, anterior àprópria experiência. Hume não admitia a existência de julgamentos sintéticos a priori, ou seja, que se explicam por outra coisa senão a experiência. Kant afirma, ao contrário, que se a ciência existe e não pode se fundar inteiramente sobre a experiência, é necessário que existam elementos a priori no conhecimento. Essa base adquire relevo também para a moral. A concepção humana da moral não pode depender unicamente da experiência. Ela deve também se alicerçar sobre um julgamento sintético a priori, que será um julgamento prático. 81 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA Kant desenvolve a ideia de que a ciência e a moral são realidades outorgadas. Não se trata de criar uma ciência ou uma moral, mas de se indagar a quais condições a ciência e a moral se subordinam. Ou seja, como conceber a realidade para que ciência e moral sejam possíveis no convívio humano. A Crítica da Razão Pura responde à indagação a respeito da ciência e a Crítica da Razão Prática e o Fundamento da Metafísica dos costumes respondem à questão pertinente à moral. A condição do conhecimento e da obrigação moral é o sujeito transcendental. É o ser humano em sua concepção ideal, não aquele sujeito com a sua contingência. Não é o homem constatado pelo empirismo, pela história e pela sua caracterização meramente conjuntural. A condição da moralidade é a boa vontade. Qual é o elemento a que se possa religar a moralidade? Existe alguma coisa que se possa considerar como incondicionalmente bom, como bom em si? Ao contrário de todos os moralistas anteriores, Kant afirma que as virtudes tradicionais não são incondicionalmente boas, pois elas tanto podem servir para fazer o bem, como para fazer o mal. A inteligência, a coragem, a temperança, a prudência, podem ser exercidas e podem ser encontradas num ser imoral. Aliás, o mau provido de inteligência, de coragem, de temperança e de prudência, representa um perigo muito maior. Ele poderá potencializar o mau uso dessas virtudes com vistas a maximizar a sua capacidade de causar o mal. Por isso é que a ideia de moralidade tem de ser vinculada à vontade de usar moralmente as virtudes. É o conceito de boa vontade. Esse é o elemento necessário e também suficiente a que alguém seja um ser moral. Por isso é que Kant concebe a moralidade do sujeito, desvinculada das consequências e da utilidade de seus atos. A utilidade não pode ser o critério da moralidade, porque o egoísta é imoral, embora sua conduta possa vir a ser concretamente útil. O critério distintivo da moralidade é a intenção moral. Kant vai aperfeiçoar as noções de intenção moral e de boa vontade com recurso à ideia de dever. Se temos um dever, ele precisará de boa vontade para ser cumprido. Só que a mera conformidade com a observância do dever é insuficiente para aferir da moralidade do ato. Cumpre-se o dever por várias razões. Às vezes, é conveniente parecer bom. Há quem dê esmolas por interesse na edificação de uma boa imagem. Há um marketing da filantropia muito em voga nas sociedades emergentes. O novo rico quantas vezes não quer posar de mecenas? Outras vezes, é ser atento à moral por receio, ou por medo, ou por conveniência. Até mesmo para se obter uma recompensa. O comerciante honesto, com seus clientes cujo objetivo único é conseguir melhores negócios, não é um ser moral. As empresas que recorrem ao marketing ecológico – intuito de se adequar a uma expectativa de comportamento hoje em voga – e não acreditam na preservação, mas preferem o desenvolvimento a qualquer custo, não podem ser consideradas entidades morais. Aquilo que efetivamente interessa é perquirir o foro íntimo de quem age moralmente. Há intenção reta e consciente de se agir de maneira moral? Um ato só pode ser considerado moralmente bom se praticado não por interesse, pressão social, conveniência, simpatia, sensibilidade ou mera inclinação desprovida de convencimento. O que prepondera é o sentimento do dever, o respeito convicto à lei moral. O dever é a necessidade de praticar uma ação pelo mero respeito em relação ao comando moral que a determina. 82 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Pressuposta a realidade de que se deve agir por dever, como saber quais são as regras que impõem deveres e às quais se prestará observância? Nem todas as regras existentes são providas desse atributo. Há preceitos que, embora cumpridos, não significam observância ao dever moral. Entre as regras adotadas pelos homens, Kant distingue as máximas e as leis práticas. As primeiras são subjetivas, pois são consideradas valiosas pela vontade mesma do sujeito. As leis práticas fruem do requisito da objetividade. São reconhecidas como valiosas por todos os entes racionais. Só será moral a máxima a que me submeto, se ela puder se converter numa lei prática. Ou seja: aquele dever que me é dado cumprir seria consenso em relação à sua obrigatoriedade por toda a espécie humana. Aí vem a célebre fórmula da lei moral estabelecida por Kant: “Aja sempre de acordo com a máxima tal que se possa querer, ao mesmo tempo, que ela se converta em lei universal”. Quando uma lei particular pode revestir o atributo de lei universal, isso se chama imperativo categórico. Imperativo, pois é um dever possível, diante da razão e da vontade humana, de se adotar ou rejeitar. Categórico, pois é um comando não subordinado a qualquer fim. Preceito incondicional, resultado da adesão de minha razão e de minha vontade àquilo que considero moral. Chaïm Perelman sublinha as consequências concretas dessa concepção de ato moral coincidente com atuação conforme ao imperativo categórico. Quer dizer, uma regra que pode ser elevada à categoria de lei universal. “Se eu prometo sem ter a intenção de manter minha promessa, mas para me desembaraçar de alguém importuno, por exemplo, isso pode me ser útil. Entretanto, não posso pretender erigir o motivo dessa ação em lei universal, pois se as pessoas não honrarem suas promessas, isso resultaria em falta de confiança generalizada. Esse ato não é, portanto, conforme o imperativo categórico. É, por consequência, um ato imoral. Da mesma forma, a mentira: eu não posso querer que todos mintam, pois então não haveria mais possibilidade de comunicação e de confiança”[4]. A forma exterior da atuação humana carece de sentido para a concepção kantiana de moral. Diz respeito à licitude, à legalidade, mas não tem pertinência com a ética. Por isso é que basta a vontade da prática do mal e tal pensamento contaminou a higidez moral de quem foi por ele acometido. Ideia bastante aproximada a de pecado, pois pode-se pecar por ações, palavras, omissões e pensamentos. A moral kantiana segue uma linha evolutiva a partir da vinculação dos preceitos morais à religião. A lei moral ditada por Deus e que Rousseau tentou substituir pela voz da consciência, Kant pretendeu atribuir ao imperativo da razão prática. Seria a “moral exclusivamente humana. Desaparecem os deveres com Deus, como mostra particularmente a evolução do Direito Penal no final do século XVIII. Essa quase religião do homem ocupou o lugar da teologia. Mas a famosa moral kantiana, profana, adaptada à Europa secularizada tira sua substância do Evangelho: ‘Não farás a outrem aquilo que não queres que te façam’. Péguy demonstrou-o: a Razão subjetiva moderna, transformada em princípio da moral ‘laica’ dos mestres-escolas, é fruto da moral cristã-estoica”[5]. Cumpre distinguir, do imperativo categórico, o imperativo hipotético. Imperativo hipotético é aquele cujo comando é condicionado pelo desejo de realizar um fim. Devo agir assim se eu quiser atender a essa finalidade. 83 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA O vínculo entre finalidade e meios necessários a seu alcance resulta de uma análise concreta.Clarifique-se a ideia. Se todos os homens procuram a felicidade, os meios a tanto destinados deveriam ser categóricos, pois a finalidade é única. Essa constatação seria indiscutível se a felicidade fosse uma noção clara, una e determinada para todos. Todavia, lembra Kant, nada é mais confuso e indeterminado do que esta noção. Cada qual tem seu próprio conceito sobre ser feliz. Se essa ideia é heterogênea e dependente de uma série de fatores – sexo, idade, cultura, ideologia, filosofia existencial, religião, idiossincrasias, etc. – sua busca não pode se subordinar a instrumental único. Por isso é que cada pessoa, depois de delimitar o seu conceito de felicidade, vai determinar os meios para a sua consecução. Meios que serão, portanto, hipotéticos. A cada noção, uma hipótese de via a ser percorrida pelo interessado. Para isso é preciso desenvolver a prudência. Kant define a prudência como a habilidade na escolha dos meios de se atender à finalidade da busca da felicidade pessoal. A influência de Kant se espraia por vários domínios do pensamento. Todavia, a ética é parte fundamental de suas cogitações, “o que fica claro na formulação dos problemas centrais da filosofia, ou de suas ‘áreas’ segundo a Lógica: O que posso saber? O que devo fazer? O que é lícito esperar? O que é o homem? Kant apresenta a seguinte conclusão: ‘À primeira questão, responde à metafísica; à segunda, a moral; à terceira, a religião; e à quarta, a antropologia. Mas, no fundo, poderíamos atribuir todas à antropologia porque as três primeiras questões remetem à última’. A reflexão ética deve assim, de uma perspectiva filosófica, orientar-nos na resposta à segunda questão”[6]. É interessante que consideremos alguns textos de Kant: Resposta à pergunta: “Que é o esclarecimento?” “O Esclarecimento é a saída do homem da condição de menoridade autoimposta. Menoridade é a incapacidade de servir-se de seu entendimento sem a orientação de um outro. Essa menoridade é autoimposta quando a causa desta reside na carência não de entendimento, mas de decisão e coragem em fazer uso de seu próprio entendimento sem a orientação alheia. Sapere aude! Tenha coragem em servir-se de teu próprio entendimento! Este é o mote do Esclarecimento. Preguiça e covardia são as causas que explicam por que uma grande parte dos seres humanos, mesmo muito após a natureza tê-los declarado livres da orientação alheia (naturaliter maiorennes), ainda permanecem, com gosto e por toda a vida, na condição de menoridade. As mesmas causas explicam por que parece tão fácil outros afirmarem-se como seus tutores. É tão confortável ser menor!”[7]. Da diferença entre conhecimento puro e empírico “Não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a experiência; do contrário, por meio de que deveria o poder de conhecimento ser despertado para o exercício senão através de objetos que impressionam os nossos sentidos e em parte produzem por si próprios representações, em parte põem em movimento a atividade do nosso entendimento a fim de compará-las, conectá-las ou separá- las, e deste modo trabalhar a matéria bruta das impressões sensíveis com vistas a um conhecimento dos objetos que se chama experiência? Segundo o tempo, portanto, nenhum conhecimento precede em nós a experiência, e todo o conhecimento começa com ela”[8]. 84 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico “Neste mundo, e também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade. Discernimento, argúcia de espírito, capacidade de julgar e como quer que possam chamar-se os demais talentos do espírito, ou ainda coragem, decisão, constância de propósito, como qualidades do temperamento, são sem dúvida a muitos respeitos coisas boas e desejáveis; mas também podem tornar-se extremamente más e prejudiciais se a vontade, que haja de fazer uso destes dons naturais e cuja constituição particular por isso se chama caráter, não for boa. O mesmo acontece com os dons da fortuna. Poder, riqueza, honra, mesmo a saúde, e todo o bem- estar e contentamento com a sua sorte, sob o nome de felicidade, dão ânimo que muitas vezes por isso mesmo desanda em soberba, se não existir também a boa vontade que corrija a sua influência sobre a alma e juntamente todo o princípio de agir e lhe dê utilidade geral; isto sem mencionar o fato de que um espectador razoável e imparcial, em face da prosperidade ininterrupta duma pessoa a quem não adorna nenhum traço duma pura e boa vontade, nunca poderá sentir satisfação, e assim a boa vontade parece constituir a condição indispensável do próprio fato de ser.” Por derradeiro, vamos tratar do Direito, da Moral e da Justiça. Primeiramente tratemos do tema Direito e Moral, analisando as regras morais e jurídicas como o circuito do dever-ser [9]. As regras jurídicas não estão isoladas na constituição do espaço do dever-ser social. Há discursos fundantes de práticas determinadoras de comportamento, dos quais temos a religião como dispersora de modos de ação (corretos, bons, adequados, virtuosos), a moral como constitutiva de um grupo de valores predominantes para um grupo ou para uma sociedade (e suas derivações, como a moral dos justos, a moral dos vencedores, a moral do “morro”, a moral da prisão), as regras do agir no trabalho constitutivas de ordem e imperativos de eficácia e organização funcional (sem que necessariamente sejam regras jurídico-trabalhistas), entre os quais aparece o discurso jurídico-normativo. A norma jurídica é mais uma das possíveis formas de constituição de mecanismos de subjetivação dos indivíduos, pertencendo à ordem das regras imperativas, politicamente determinadas, objetivamente apresentadas, das quais, sob nenhuma excusa (salvo as previstas em lei), pode-se deixar de cumprir. Assim, o grande grupamento da deontologia, o estudo das regras de dever-ser, coloca a experiência moral ao lado da experiência religiosa e da experiência jurídico-política. Pode-se mesmo estudar a autonomia do Direito em face das outras experiências, o que se fará a seguir, mas não se poderá fazê-lo sem considerar a importância de vislumbrar que a matéria da qual se constitui toda a experiência jurídica advêm do caudal das influências das demais regras de dever-ser. Diga-se, de princípio, que: O Direito é forma, a qual se apropria das experiências gerais da sociedade (incluídas as morais dos grupos, as reflexões religiosas, os imperativos políticos, as ideologias reinantes etc.) para colocá-las sob uma forma, que passa a determinar esta substância ou este conteúdo como juridicamente determinado e vinculante. Uma sociedade hipócrita em seus valores tende a ter um Direito que resguarda sua hipocrisia 85 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA (moral hipócrita). Uma sociedade democrática, livre, madura politicamente, eticamente responsável, tende a conceber os seus direitos a partir desses valores. O tema da relação entre Direito e Moral, normalmente, é tratado de forma que se indique a experiência moral e a norma moral como anteriores, sobretudo tendo-se em vista o cronológico surgimento das regras de Direito relativamente às regras da moral. Costuma-se também afirmar que a norma moral é interior, prescindindo de qualquer fenômeno exterior, como geralmente ocorrer com o fenômeno jurídico. Afirma-se, ainda, que a norma moral não é cogente, pois não pode dispor do poder punitivo de uma autoridade pública para fazer valer seus mandamentos, recorrendo-se, normalmente, a sanções diferenciadas das jurídicas (consciência, rejeição social, vergonha). E, por fim, afirma-se que a norma moral não é sancionada nem promulgada, pois estas são as características de normas estatais que se regulamentam dentro de um procedimentoformal, complexo e rígido, com o qual se dá publicidade aos mandamentos jurídicos. No entanto, os autores que enunciam essas notas diferenciais entre ambos os grupos de normas; de um lado, as jurídicas; de outro lado, as morais, reconhecem a falibilidade que os afeta. A isso tudo se acresça ainda a necessidade de segurança jurídica para ter Direito, fator que propicia a criação de outras necessidades internas ao sistema jurídico, que acabam por torná-lo fenômeno peculiar: criação de autoridades; divisão de competências; imposição de formas jurídicas; procedimentalização dos atos; discriminação taxativa de fatos, crimes, direitos, deveres e outras[10]. Os esforços de diferenciar Direito e moral não devem ser maiores que os de demonstrar suas imbricações. O Direito pode caminhar em consonância com os ditames morais de uma sociedade, assim como andar em dissonância com os mesmos. Na primeira hipótese, está-se diante de um Direito moral e, na segunda hipótese, está-se diante de um Direito imoral. Essas expressões bem retratam a pertinência ou impertinência do Direito com relação às aspirações morais da sociedade[11]. O curioso é dizer que o Direito imoral, apesar de contrariar sentidos latentes axiologicamente na sociedade, ainda assim é um Direito exigível, que obriga, que deve ser cumprido, que submete a sanções pelo não cumprimento de seus mandamentos, ou seja, que pode ser realizado. Em outras palavras, o Direito imoral, é tão válido quanto o Direito moral. Este, no entanto, é mais desejável, pois em sua base de formação se encontra o consentimento popular, ou seja, o conjunto de balizas morais de uma sociedade, refletindo anseios e valores cristalizados de modo expressivo e coletivo. Se a moral demanda do sujeito uma atitude (solidariedade), seu estado de espírito, sua intenção e se convencimento interiores devem estar direcionados no mesmo sentido vetorial das ações exteriores que realiza (intenção solidária, e não interesseira)[12]. É certo que a norma ética se constitui, na mesma medida da norma jurídica, de um comando de ordenação e orientação da conduta humana (dever- ser), tornando-se critério para averiguação da ação conforme ou desconforme, mas há que se notar esse diferencial[13]. Se o Direito demanda do sujeito uma 86 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III atitude (não matar), conforma-se com a simples não ocorrência do fato considerado criminoso, não arguindo acerca da volição (rivalidade). De fato, o que se há de dizer é que a moral se caracteriza por uma série de dados (espontaneidade, consciência, unilateralidade, conduta interior) que a faz algo distinto do Direito (coercitividade, bilateralidade, heteronomia, atributividade)[14]. São provas que corroboram a tese da intensa intimidade do Direito com a moral, a saber: a) a obrigação natural (ex.: dívida de jogo) descrita no art. 814 do novo Código Civil. Trata-se de obrigação puramente moral, não exigível juridicamente, mas que, se solvida, não pode ser motivo de ação judicial (pedido impossível). Tem-se aí a absoluta indiferença do Direito por um ato (não pagamento de dívida decorrente de obrigação natural) moralmente recriminável; b) o incesto não é considerado crime no sistema jurídico repressivo brasileiro, inexistindo tipo penal específico para a apenação do agente. Não obstante a indiferença legal sobre o assunto, trata-se de um típico comportamento moralmente condenável; c) a preocupação constitucional com o princípio da moralidade pública, expressa no art. 37, da Constituição Federal, caput: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”. Aqui se comprova a relevância do princípio moral para a própria organização, manutenção e credibilidade cívica dos serviços públicos. O que é moralmente recomendável tornou-se juridicamente exigível do funcionalismo público; d) toda a teoria do negócio jurídico e dos tratos comerciais circula em torno da ideia de boa-fé, estabelecendo inúmeras presunções a ela concernentes (art. 164, C. Civil, 2002); e) o mau proceder moral dos pais, do ponto de vista moral, pode acarretar efeitos jurídicos sobre o poder familiar, conforme se verifica da leitura deste artigo da legislação civil (art. 1.638, C. Civil, 2002); f) os próprios princípios gerais de Direito, de possível aplicabilidade em todos os ramos do Direito na falta de norma jurídica específica (art. 4º, LICC), têm origem ética (a ninguém lesar – neminem laedere; dar a cada um o seu – suum cuique tribuere; viver honestamente – honeste vivere); g) fica o juiz autorizado, jurídica e formalmente, em caso de lacuna da lei, a aplicar os costumes como forma de solução de litígios (art. 4º, LICC). Até mesmo do ponto de vista histórico, pode-se provar a intrínseca relação do Direito com a moral. Isso porque, a princípio, eram indistintas nas comunidades primitivas as práticas jurídicas, as práticas religiosas e as práticas morais. A sacralidade, o espiritualismo e o ritualismo das antigas práticas jurídicas e de suas fórmulas denunciam essa intrínseca relação[15]. 87 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA O que há que se questionar agora é qual a relação mantida entre Direito e moral, visto que foram analisados os principais aspectos que caracterizam cada qual dos ramos normativos. E, nesse sentido, só se pode afirmar que o Direito se alimenta da moral, tem seu surgimento a partir da moral, e convive com a moral continuamente, enviando-lhe e recebendo novos conceitos e normas. A moral é, e deve sempre ser, o fim do Direito[16]. Com isso, pode-se chegar conclusão de que Direito sem mora, ou Direito contrário às aspirações morais de uma comunidade, é puro arbítrio, e não Direito[17]. Conclui-se, portanto, que a ordem moral, por ser espontânea, informal e não coercitiva, distingue- se da ordem jurídica. No entanto, ambas não se distanciam, mas se complementam na orientação do comportamento humano. A axiologia é, portanto, capítulo de fundamental importância para os estudos jurídicos, visto que dá cristalização reiterada e universal por meio dos costumes diante do surgimento de exigências normativas jurídicas. Apesar dos esforços teórico-didáticos no sentido de diferenciar Direito e moral, não se pode perceber senão uma profunda imbricação entre o exercício do juízo jurídico e o exercício do juízo mora; pode-se até mesmo perceber esta inter-relação no ato decisório do juiz, sempre sobrecarregado pelas inflexões pessoais, costumeiras, axiológicas, contextuais e socioeconômicas que circundam o caso sub judice. Agora, nossa atenção deve-se voltar ao tema do Direito e Justiça, analisando, num primeiro momento, se a justiça é um valor absoluto ou relativo. A ideia de justiça, independentemente de qualquer tomada de posição, traduz uma complexidade de expectativas que tornam difícil sua conceituação. Reconhecendo a pluralidade de perspectivas em que se desdobra a ideia de justiça, podem-se detectar, no curso da história do pensamento ocidental, inúmeras correntes sobre o justo e o injusto, que se assinalam como habilitadas à discussão e à resposta para a pergunta: o que é a justiça? De fato, são inúmeras as tendências acerca da justiça, e entre elas podem- se apontar as seguintes: teoria sofista, teoria socrática, teoria platônica, teoria aristotélica, doutrina cristã, teoria agostiniana, teoria tomista, teoria rousseauniana, teoria kantiana, teoria hegeliana, teoria kelseniana, teoria rawlsiana[18]. No entanto, entre essas todas, ressalta-se o fato de que o pensamento ocidental e, inclusive, os ordenamentos jurídicos e as doutrinas jurídicas sofreram profundas e diretas influencias das seguintes ideias: a) dePlatão advém uma herança segundo a qual a justiça é virtude suprema; b) de Aristóteles advém uma herança segundo a qual a justiça é igualmente proporcionalidade; c) dos juristas romanos advém uma herança segundo a qual a justiça é vontade de dar a cada um o seu (iustitiaest constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi)[19]. 88 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Independentemente da assunção de qualquer resposta mais imediata à dimensão filosófica da justiça, deve-se ressaltar o fato de que inclusive as tendências mais modernas de teoria jurídicas têm dado importância a esta para a vivência das experiências jurídicas, contrapondo-se, dessa forma, ao mero formalismo decorrente do predomínio da filosofia positivista no seio das ideias jurídicas do século XX. Chegar o juiz a uma decisão justa, esta deve ser a meta de toda atividade jurisdicional; orientar o juiz nesse empreendimento, esta deve ser a meta da doutrina e da teoria do Direito. Nesse sentido, contribuem as posições e as ideias de inúmeros pensadores contemporâneos[20]. Nesse tipo de preocupação, o positivismo vê na justiça um absurdum ser combatido, pois sua realidade seria metafísica e impossível de ser conceituada. Chaïm Perelman ocupa papel nessa discussão sobre a justiça[21]. Isso porque, além de tratar da questão da justiça, trazendo-a novamente para o seio das preocupações jurídicas[22], vê como saída o impasse de sua conceituação o uso da teoria da argumentação. Ora, para Perelman, os conflitos em torno da justiça, e de seus possíveis enfoques, podem ser dirimidos ante um método argumentativo, em que todas as oportunidades são oferecidas para a discussão dos valores envolvidos, emergindo do diálogo a razoabilidade das respostas. Chaïm Perelman, em seu ensaio sobre a justiça, não admite que esta seja um valor absoluto, mas relativo e impassível de ser definido pelo conhecimento; o valor é relativo e depende da crença de cada qual. Ora, desta forma, Perelman aponta como saída para o problema a elevação da questão pra o nível da razoabilidade prudencial do diálogo e da argumentação[23]. Portanto, é a discussão racional, sobre valores mais ou menos aceitos, que constitui o objeto de conhecimento sobre a justiça. Estudar justiça, segundo Perelman, é estudar valores, e valores relativos, que se discutem historicamente, socialmente, culturalmente. Em face desse relativismo, também reconhecido por Hans Kelsen[24], não se pode afirmar algo diferente do que forçosamente se conclui: sendo um valor relativo, a justiça é passível de várias acepções, variáveis ao sabor das preferências, tendências, bem como das culturas, das ideologias, das políticas, devendo ser admitido que o valor absoluto da justiça não é palpável para o homem. Aliás, Platão mesmo, em suas investigações, torna clara a verdadeira natureza da justiça, que é transcendente e inacessível para os homens[25]. A questão da justiça, quando vista como elemento fundante do ornamento jurídico, pode ser considerada como algo relacionado com a doação do sentido. Isso porque, desde a Antiguidade, a justiça sempre representou o preenchimento das práticas do Direito, que acabou por se transformar em um mero proceder técnico, vazio, sem conteúdo preciso, objeto de labor, na modernidade. A própria história da humanidade, de suas ideologias, bem como de suas tendências político- econômicas, tornou o Direito frágil, suscetível e vassalo aos desmandos do poder político e econômico. O Direito, muitas vezes, arcabouço coercitivo da conduta humana social, se desprovido de essência e finalidade, serve a qualquer finalidade, independentemente de qualquer valor, podendo ser de importante utilidade para a dominação e o interesse de minorias. 89 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA No entanto, deve-se resgatar a ideia de que o preenchimento semântico do Direito pela ideia de justiça tem a ver com a teleologia do movimento do que é jurídico em direção ao que não é jurídico, mas é valorativo e deve ser a axiologia a se realizar: a justiça[26]. A justiça, porém, só se realiza se pensada como igualdade (aspecto material da justiça). Ela acontece, ela opera, ela se dá nas relações, ou seja, ela está presente nas relações humanas e corporifica-se como igualdade, que pode ser aritmética ou geométrica (aspecto formal da justiça), conforme se tenha em vista a igualdade absoluta ou a igualdade proporcional. A opção pela adoção da justiça geométrica, que tem em consideração a proporcionalidade (distribuição de deveres e direitos, permitindo a existência de desigualdades) ou a da aritmética (igualitarismo levado ao extremo) dependerá de códigos fortes e fracos prevalecentes axiologicamente na sociedade[27]. De qualquer forma, o que se percebe é que Direito e justiça são conceitos diferentes, que às vezes andam em sintonia, às vezes em dissintonia. Há que se ressaltar, no entanto, que se nem sempre o Direito caminha pari passu com a justiça, ainda assim ele a busca, nela deposita sua finalidade de existir e operar na vida social. O Direito deve ser o veículo para a realização da justiça. Em outras palavras, a justiça deve ser a meta do Direito. Ademais, a justiça não é coercível, é autônoma, correspondendo a uma norma moral, e não a uma norma jurídica. Normas jurídicas absorvem conteúdos de normas de justiça, funcionam como forma de compelir coercitivamente comportamentos injustos, de proscrevê-los socialmente, mas não há que se negar a natureza da justiça como norma moral, e não jurídica. Vistos esses aspectos do problema, deve-se admitir que, com essas características, a justiça, em face do Direito, está a desempenhar um tríplice papel, a saber: 1) serve como meta do Direito, dotando-o de sentido, de existência justificada, bem como de finalidade; 2) serve como critério para o seu julgamento, para sua avaliação, para que se possam aferir os graus de concordância ou discordância com suas decisões e práticas coercitivas; 3) serve como fundamento histórico para sua ocorrência, explicando-se por meio de suas imperfeições os usos humanos que podem ocorrer de valores muitas vezes razoáveis[28]. A partir das considerações acima, conclui-se, portanto, que a justiça funciona, como valor que norteia a construção histórico-dialética dos direitos, como fim e fundamento para expectativas sociais em torno do Direito. Apesar de a justiça ser valor de difícil contorno conceitual, ainda assim pode ser dita um valor essencialmente humano e profundamente necessário para as realizações do convívio humano, pois nela mora a semente da igualdade. Contrariando frontalmente o raciocínio positivista, é de se admitir que entre as tarefas do jurista se encontra propriamente esta, a de discutir o valor da justiça. Nesse caminho, o importante não é nem mesmo a solução que se possa encontrar para o dilema, mas a aquisição de consciência a propósito de sua dimensão. 90 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III O Direito pode ser dito um fenômeno sem sentido, com Tercio Sampaio, se divorciado da dimensão da justiça, à medida que sua função técnico-instrumental sirva às causas que garantem o convívio social justo e equilibrado. [1]Texto adaptado da obra Curso de Filosofia do Direito, de autoria de José Eduardo Bittar e Guilherme A. de Almeida, 6ª Edição, São Paulo, Editora Atlas, 2008. [2]Apaud Baptista, Direito e comércio internacional, 1994, p. 368. [3]Ibidem, p. 367. [4]PERELMAN, C. Introduction historique à la philosophie morale. Éditions de l’Université de Bruxelles, Bruxelles, Belgique, 1980, p.122. [5]VILLEY, M . Filosofia do Direito. Definições e fins do direito. Os meios do direito, Martins Fontes, São Paulo, 2003, p.113. [6]MARCONDES, D. Textos básicos de Ética – de Platãoa Foucault, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2007, p.94. [7]KANT, E. Em texto publicado em 1784, no periódico Berlinische Monatsschrift, em resposta a um pastor que lhe indagou o conceito de Esclarecimento ou Iluminismo. DANILO MARCONDES, op.cit., idem, p.95. [8]KANT, E. Crítica da Razão Pura. Pensadores, Abril, vol.XXV, 1ª ed., abril 1974, São Paulo, p.23. [9] Texto adaptado da obra Curso de Filosofia do Direito, 6ª Ed. da autoria de Eduardo C.B. Bittar & Guilherme Assis de Almeida, Ed. Atlas, São Paulo, 2008. [10] “Essas reflexões não significam, de modo algum, que o direito não possua uma especificidade, pela qual se afasta dos pontos de vista próprios da ética. Com efeito, a importância especial concedida em direito à segurança jurídica explica o papel específico do legislador e do juiz, tão oposto à autonomia da consciência que caracteriza a moral”. [11] Cf. Ferraz Júnior. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, 1994, p. 326-329. [12] “A qual dessas categorias pertencerá a Moral? Podemos dizer que a Moral é o mundo da conduta espontânea, do comportamento que encontra em si próprio a sua ração de existir. O ato moral implica a adesão do espírito ao conteúdo da regra”. (REALE. Lições preliminares de direito. 1994, p. 44). [13] “A norma ética estrutura-se, pois, como um juízo de dever ser, mas isto significa que ela estabelece, não apenas uma direção a ser seguida, mas também a medida da conduta considerada lícita ou ilícita. Se há, com efeito, algo que deve ser, seria absurdo que a norma não explicitasse o que deve ser feito e como se deve agir”. (REALE. Lições preliminares de direito. 1999, p. 36). [14] Cf. Reale. Lições preliminares de Direito. 1994, p. 57. “No tridimensionalismo, por exemplo, o direito é a um só tempo fato, valor e norma, ou seja, nele está imerso o juízo de valor, o costume, a axiologia... não podendo ser concebido como um fenômeno apartado da moral, com ela se relacionando intensamente” (Direito como experiência; Filosofia do direito; Lições preliminares de direito). 91 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA [15] Cf. Gusmão. Introdução ao estudo do direito. 1999, p. 67-70. [16] “A relação entre os seus respectivos domínios normativos consiste, em nossa opinião, sobretudo no seguinte: a moral é ao mesmo tempo, por um lado, o fim do direito, e, por outro, também, o fundamento da sua validade obrigatória” (RADBRUCH. Filosofia do direito. 1997, p.109). [17] “Está-se aqui a contrariar frontalmente a teoria normativista de Hans Kelsen. O Direito da Teoria Pura não pode ser por essência um fenômeno moral” (KELSEN. Teoria pura do direito. 1976, p.107). [18] Ver, a esse respeito, Bittar, Teorias sobre a justiça: apontamentos para história da filosofia do direito, 2000, p.1-235. [19] GUSMÃO. Introdução ao estudo do direito. 1999, p. 71-73 [20] Nesse sentido se destacam Esser, Pawlowski, Kriele, Rawls. [21] Perelman aponta em um de seus artigos (Ubër die Gerechtigkeit) seis conceitos de justiça: “1.A cada um o mesmo; 2. A cada um segundo os seus méritos; 3. A cada um segundo as suas obras;4. A cada um segundo as suas necessidades; 5. A cada um segundo a sua posição; 6.A cada um o que lhe é devido pó lei” (LARENZ. Metodologia da ciência do direito. 1989, p. 204) . [22] “O mérito de Perelman é o de ter legitimado de novo a discussão do conceito de justiça com propósito cientificamente sério” (LARENZ. Metodologia da ciência do direito. 1989, p.208). [23] São sua palavras, citadas por Larenz: “deve-se-ia deitar as mãos à obra, no sentido de elaborar uma lógica dos juízos de valor, na qual se tivesse como ponto de partida o modo como as pessoas raciocinam sobre valores. Isto deveria acontecer sob a forma de uma teoria de argumentação” (LARENZ. Metodologia da ciência do direito. 1989, p. 206). E isso é o que realmente faz Perelman, posteriormente, inclusive ao lado de Tytea, durante seu percurso intelectual ao escrever: Nova retórica, Ética e direito, Tratado da argumentação, entre outras obras ligadas à ideia do raciocínio valorativo, próprio do jurista. [24] KELSEN. O que é justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência, 1998, p. 23-25 [25] A respeito, consulte-se Bittar, Teorias sobre a justiça, 2000, p. 9-32 [26] Cf. Ferraz Júnior. Introdução ao estudo do direito. 1991, p. 361 ss. [27] idem [28] GUSMÃO. Introdução ao estudo do direito. 1999, p. 73 MÓDULO 7 Neste módulo vamos tecer algumas considerações a respeito do positivismo e do ordenamento jurídico. Para tanto, discorremos, ainda que brevemente, a respeito das concepções desenvolvidas por Hans Kelsen, Norberto Bobbio e Miguel Reale. 92 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Assim, vamos começar pelas considerações de Hans Kelsen. O ordenamento jurídico segundo Hans Kelsen sustenta-se nas relações lógico-formais entre as normas. Verifica-se, então, que o ordenamento circunscreve-se na lógica interna, portanto, coerência e hierarquia entre as normas: “A norma é a expressão da ideia de que algo deve ocorrer e, em especial, de que um indivíduo deve se conduzir de certa maneira. Nada é dito pela norma sobre o comportamento efetivo do indivíduo em questão. A afirmação de que um indivíduo ‘deve’ se conduzir de certo modo significa que essa conduta está prescrita por uma norma – ela pode ser uma norma moral, jurídica ou de algum outro tipo. O dever-ser simplesmente expressa o sentido específico em que a conduta humana é determinada por uma norma.” (Hans Kelsen, 1998:51). A norma e todas as instituições e todos os procedimentos jurídicos são entendidos por Kelsen como objetos específicos de uma área de conhecimento próprio. Acrescenta-se ainda que Kelsen identifica a ordem jurídica como ordem coercitiva e o Direito como ciência e técnica específica, portanto, diferencia a esfera jurídica de qualquer outra ordem, e o Direito de qualquer outra ciência, particularmente da sociologia. Tal concepção, evidentemente, tem como parâmetro o estabelecimento do Direito como ciência. A preocupação kelseniana de situar o Direito como ciência exigiu a identificação de um objeto exclusivo. Um objeto que não pudesse ser reduzido a nenhum outro campo de conhecimento. Isso porque se um objeto já é investigado, estudado por outro campo científico, seria por demais redundante que outra ciência também tivesse esse mesmo objeto com a mesma metodologia. Seria como que criar uma ciência que já existe. Para melhor explicitar tal afirmação, cabe a seguinte citação: “Na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a afirmação menos evidente de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou consequência, ou por outras palavras na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas. Pelo que respeita à questão de saber se as relações inter-humanas são objeto da ciência jurídica, importa dizer que elas também só são objeto de um conhecimento jurídico enquanto relações jurídicas, isto é, como relações que são constituídas através de normas jurídicas.” (KELSEN, 2000:79). Assim, o direito tem como objeto de estudo a norma – nela e por ela mesma – acrescida de todas as esferas atinentes a suas origens e aplicações. Portanto, a logicidade se impõe como condição, senão excludente de outras, pelo menos como a mais significativa, o que exclui a multidisciplinaridade do Direito. Não incorpora a investigação do social ou dos valores sociais ou mesmo a formação histórico-cultural, mas só a formação histórica da própria norma. 93 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA Desse modo, a pressuposição de Kelsen é de que o Direito caracteriza-separticularmente por regular a sua própria criação. Isso significa que há normas cuja marca maior é o de produzirem outras normas. As normas produzidas vão encontrar sua validade exatamente por serem originadas de conformidade com a norma anterior. Isso é possível se, e tão somente se, entendermos que existe uma relação entre as normas, uma relação lógica entre elas. A norma geradora será sempre superior, enquanto a norma produzida é denominada de inferior. Acrescenta-se ainda que tal relação lógica entre as normas permite verificar a validade das mesmas: a norma superior é a que dá validade para a norma inferior. Desse modo, é possível, então, verificarmos que a unidade do ordenamento jurídico é uma determinação de dependência, pois a norma inferior é sempre dependente da norma superior. Se visualizarmos tal dependência como um desenho só nos resta a visualização em vertical, há um encadeamento vertical no ordenamento. Pode-se, então, segundo Kelsen fazermos a seguinte exposição: constituição-legislativo (deve-ser) & processo judicial e administrativo Particularmente quanto à lei, esta é de responsabilidade do legislativo, enquanto os decretos e/ou decretos-leis podem ser elaboradas por autoridade administrativa. A lei é entendida no que se refere ao seu tipo: material e formal. Material é a mais geral; enquanto a formal é aquela norma geral que agora se apresenta como lei anunciada pelo legislativo. O ordenamento jurídico é assim entendido como um sistema de normas que se apresentam interligadas (norma superior-norma inferior). Acrescenta-se ainda que no ordenamento de Kelsen inclui a comunidade jurídica que também é formada pela mesma ordem com poderes para elaboração de normas. Desse modo, o ordenamento é operacional, pois permite tanto a criação de normas como também a sua efetiva aplicação através de órgãos competentes. Aqui não há, segundo Kelsen, uma oposição entre a criação e a aplicação, pois ambas são simultâneas. O sistema de normas jurídicas possui necessariamente um caráter dinâmico, pois, como vimos, o Direito contém particularidades e dentre elas a de criar e regular a si mesmo. Assim, a validade de uma norma não é definida pelo conteúdo, mas pela validade, por ser gerada de uma forma determinada, ou melhor, se é gerada dentro do sistema de inter-relações entre as normas, enfim dentro do ordenamento jurídico: 94 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Elaboração da constituição (geral) abstrato & Legislação e costume & Decisão judicial & Execução da sanção (particular/individual) concretude Dinâmica do Direito Agora, vamos considerar algumas das lições de Norberto Bobbio. A concepção de ordenamento jurídico de Norberto Bobbio vincula-se muito às características gerais do significado de ordenamento como unidade, coerência, completude e relações entre ordenamentos. Assim, é possível dizer que, como complementação, há na exposição de Bobbio: “O Direito não como norma ou como campo distinto de tantos outros campos de conhecimento, pelo estudo da norma, mas pelo ordenamento jurídico. Isso implica na sua pressuposição explícita de que o Direito se distingue por ser um ordenamento jurídico não passível de ser confundido com qualquer outro tipo de ordenamento.” Em outras palavras, Bobbio desloca o estudo do Direito da norma para o ordenamento jurídico. A compreensão de que o estudo do Direito não compreende o estudo de uma norma isolada, mas de um conjunto de normas, é o pressuposto inicial para a caracterização de alguns traços profundamente marcantes na compreensão do Direito, segundo a exposição de Norberto Bobbio, em sua obra Teoria do ordenamento jurídico. Bobbio inicia sua exposição dizendo que: “as normas jurídicas nunca se apresentam de modo isolado, mas muito pelo contrário elas existem sempre em um conjunto, ou melhor, usando as palavras do próprio autor de um contexto de normas e, é nesse contexto que se estabelecem relações muito particulares e podemos acrescentar, singulares entre si.” Desse modo é o contexto de normas, das articulações entre elas que se denomina de ordenamento. Por consequência, é possível, então, o ordenamento normativo como o objeto do Direito ou, ainda, como o próprio Direito. Isso porque a relevância da norma isolada para a compreensão do fenômeno 95 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA Direito não é suficiente, é imperiosa a incorporação do conjunto de normas articuladas. Por conseguinte, desloca-se da norma para o ordenamento, em outras palavras, da norma para o conjunto ordenado: “[...] o que comumente chamamos direito é mais uma característica de certos ordenamentos normativos que de certas normas. Se aceitarmos essa tese, o problema da definição do Direito se torna um problema de definição de um ordenamento normativo e, consequentemente, diferenciação entre este tipo de ordenamento normativo e um outro, não o de definição de um tipo de normas. Nesse caso, para definir a norma jurídica bastará dizer que a norma jurídica é aquela que pertence a um ordenamento jurídico, transferindo manifestamente o problema da determinação do significado de ‘jurídico’ da norma para o ordenamento.” (BOBBIO, 1997, p. 28) O Direito, a partir desse princípio, é um complexo de normas que se organiza em um sistema de regras de conduta. Acrescentando-se que o Direito é um conjunto de regras que valem, mesmo que pela aplicação da força. O direito é, assim, um ordenamento normativo de eficácia reforçada, que se faz valer pelo direito de coação. Tal poder só é possível de existir por um conjunto de órgãos ordenadamente, posto que aplica mesmo que pela força - a coerção. Quem tem a condição de exercer o poder pela força? O soberano retém o poder de exercer a força para aplicar a norma efetivamente. Esse poder é constituído por órgãos que, por sua vez, são estabelecidos pelo próprio ordenamento normativo. A expressão soberania permite apresentar não a norma, mas uma articulação de normas, portanto, um conjunto complexo. Não é norma isolada, mas sim o seu ordenamento que apreende ainda as instituições jurídicas de um modo geral. Assim, a norma é acompanhada de sua obrigatoriedade, que Bobbio qualifica como convicção ou crença de obrigatoriedade de obediência. Por que de obediência? Porque se por ventura a norma for violada ocorrerá ação do poder judiciário e poderá ocorrer, em consequência dessa ação, a aplicação de uma sanção. A norma jurídica caracteriza-se assim pelo seu poder de coerção. O Direito tem sua existência sustentada pela organização sistematizada das normas. É o conjunto que sobressai como fundamental e não a norma. Por consequência, a norma será jurídica e não qualquer outra, será somente aquela que pertence ao ordenamento jurídico. Desse modo, segundo Norberto Bobbio, o fenômeno jurídico é bem melhor compreendido ou explicado por intermédio de uma teoria do ordenamento jurídico, que passa a ser o parâmetro para identificar a norma pelo conjunto que pertence. Ora, e as normas que não expõem a sanção por não prescreverem modos de condutas? Ou de outro modo, como incluir no ordenamento normas que se identificam, não como prescritivas de condutas ou de comportamentos, mas que designam competência ou esclarecimentos? Por se tratar de conjunto normativo é evidente que sempre haverá necessidade desse tipo de norma, então, as normas não seguidas de sanção também fazem parte do ordenamento jurídico, pois é uma necessidade implícita ao procedimento jurídico a designação de outras normas que não determinam sanções, mas determinam competências. 96 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Ao expandir suas reflexões, Norberto Bobbio apresenta aindaa validade e a eficácia como características fundamentais das normas. Tendo como parâmetro o ordenamento e a articulação que se verificam nesse conjunto, a validade é proveniente da inclusão no ordenamento. Em outras palavras, a norma é válida por pertencer explicitamente ao conjunto das normas. A eficácia é apreendida por sua efetiva aplicação, ou seja, a norma é eficaz se for aplicada em concreto pelos procedimentos jurídicos. Assim é possível que tenhamos normas válidas, porém não eficazes se porventura não houve a aplicação prática, se não houve nenhuma ação jurídica proveniente dessas normas. Se determinada norma pertence ao conjunto, é caracterizada como válida, mas não necessariamente eficaz, pois não foi possível sua verificação na realidade jurídica. A eficácia é uma característica da norma que está intimamente vinculada à sua aplicação. A estrutura do ordenamento jurídico, na análise Norberto Bobbio, é formada pelas normas de estrutura ou de competência. Assim, as normas que prescrevem ou delegam competências, ou as condições bem como os procedimentos, enfim aquelas que regulam interesses, formam o quadro ou a moldura, constituem a forma estrutural da qual originam as normas de condutas válidas. Desse modo é possível, segundo o autor em estudo, que exista ordenamento com uma única norma de estrutura, da qual decorrem várias normas de conduta. Por que várias normas de conduta e uma norma de estrutura? Porque é possível que uma única norma estrutural seja suficiente para organizar todas as outras normas decorrentes, ao passo que as condutas obrigam necessariamente uma enorme quantidade de normatização, o controle é muito mais complexo quando se refere ao comportamento. A unidade como marca fundamental do ordenamento, exige segundo a concepção exposta por Norberto Bobbio, a existência de uma referência que irá organizar de modo a formar uma unidade. Essa referência é entendida a partir da inclusão da fonte das fontes. O que vem a ser isso? A problemática da unidade dos ordenamentos em geral está vinculada às fontes de Direito. Assim, há ordenamentos jurídicos simples cujas normas que os constituem são provenientes de uma única fonte e os ordenamentos jurídicos complexos em que as normas que os constituem são geradas por duas ou mais fontes de Direito. Podemos expor através do seguinte esquema a exposição das fontes: 1. fontes originárias; 2. fontes derivadas que, por sua vez, desdobram-se em fontes reconhecidas e fontes delegadas: As fontes originárias são aquelas que dão origem ao complexo jurídico, ou de outro modo, são originárias juridicamente, o que implica evidentemente em não ser originárias na perspectiva da história. Isso porque muito do que é instituído juridicamente é originário de antecedentes históricos às vezes até mesmo anterior, a formação do próprio Estado. 97 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA As fontes derivadas são aquelas que decorrem das originárias e são subdivididas em reconhecidas e delegadas: as reconhecidas, cujo exemplo mais relevante é o costume que é reconhecidamente aceito pela sua constante presença nas relações entre as pessoas e, portanto, adquirem o estatuto de reconhecimento quando aplicadas; as fontes delegadas cujo exemplo mais significativo são os regulamentos, normalmente delegados pelo Legislativo ao Executivo. Não é a quantidade de fontes que qualifica um dado ordenamento jurídico, mas, sim, que o ordenamento exponha regras de comportamento e regras de produção para outras normas. Continuando, cabe a verificação do que é fonte, pois se o ordenamento está intimamente vinculado a fonte geradora de Direito, é imperioso que a definição de fonte seja explicitada. Para tanto, a elaboração de tal definição incorpora os termos fatos e atos. São estes que identificam a fonte, evidentemente atos e fatos dos quais o ordenamento faz depender a produção de normas jurídicas. Isso significa que as fontes do Direito são compostas por fatos ou atos que, quando analisados na perspectiva do ordenamento ou tendo o ordenamento como parâmetro, são geradores de normas jurídicas. A ideia de ordenamento significa que existe, como vimos anteriormente, uma referência, um ponto de apoio que estabelece a unidade, ou seja, para que determinado conjunto seja denominado de ordenado, é imperiosa a condição unificadora. Assim, Norberto Bobbio irá participar da mesma ideia de Hans Kelsen, quanto ao ponto de referência unificador, que irá estabelecer a unida: a norma fundamental. Desse modo, apresenta-se a mesma consequência já apontada pelo pensador alemão, a hierarquia das normas, pois a partir da norma fundamental, todas as demais são dela derivadas em escalas: “Então diremos que a norma fundamental é o critério supremo que permite estabelecer se uma norma pertence a um ordenamento; em outras palavras, é o fundamento de validade de todas as normas do sistema. Portanto, não só a exigência de unidade do ordenamento, mas também a exigência de fundamentar a validade do ordenamento induzem a postular a norma fundamental, qual é, simultaneamente, o fundamento de validade e o princípio unificador das normas de um ordenamento. E como um ordenamento pressupõe a existência de um critério para estabelecer se as partes pertencem ao todo, e um princípio que as unifique, não pode existir um ordenamento sem norma fundamental.” (BOBBIO, 1997, p. 62) Evidentemente, a concepção de Norberto Bobbio tem que justificar essa norma geradora das demais. Tal justificativa é encontrada através da própria fundamentação de tal norma, ou seja, é preciso obedecer ao poder originário. O que vem a ser esse poder originário? Nada mais que o poder político que, ao tomar ou assumir o poder, insere um novo ordenamento jurídico. Por que tomar ou assumir? Segundo Norberto Bobbio, é por demais a redução do Direito ao poder de força, isso porque é perfeitamente verificável na realidade que o poder pode ser tanto tomado pela força, aqui entendido como força física, quanto pelo consenso. 98 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Apesar de ocorrer a mesma interpretação de Hans Kelsen quanto à norma fundamental, Norberto Bobbio se distancia, fazendo uma crítica a Hans Kelsen quando aborda a definição do Direito. Há, segundo Norberto Bobbio, um deslocamento da definição do Direito de Hans Kelsen, pois emerge uma confusão, um equívoco de considerar a parte como um todo e o instrumento com o fim. De um modo geral, verifica-se uma identificação entre ordenamento jurídico e Direito com a definição do próprio Direito estabelecido por Bobbio. Pode-se confirmar essa afirmação por uma análise de sua obra Teoria do ordenamento jurídico, que investiga exatamente a noção de unidade, de coerência e de completude do ordenamento e as relações entre os ordenamentos: “O termo ‘direito’, na mais comum acepção de Direito objetivo, indica um tipo de sistema normativo, não um tipo de norma”. (BOBBIO, 1997, p. 31). Por derradeiro, cumpre-nos dedicarmos às lições de Miguel Reale, notadamente no que tange à sua teoria tridimensional do direito. O ordenamento jurídico, segundo Miguel Reale, possui o caráter normativo e, por consequência desse caráter, certa graduação, pois a natureza das normas é diferente, mas não se circunscreve exclusivamente ao lógico formal, isso porque incorpora outros fatores como o social e o histórico. Por incluir fatores históricos, sociais e culturais, o ordenamento não é assim um conjunto só linear e lógico, mesmo porque a linearidade não é o traço característico do social e do histórico, pois os valores sociais são passíveis de mutações, modificam-se, transformam-se no decorrer de um período histórico. Podemos entender a exposição do significado de ordenamento jurídico, segundo Miguel Reale, através suas Lições Preliminares de Direito, a partir de umaconduta dedutiva em que o mais geral é o conjunto de normas e os modelos jurídicos que possuem como marcas a vigência e a eficácia em um determinado território. Acrescenta-se aqui que conforme a relação de complexidade há uma graduação no ordenamento, o que significa dizer que podemos compreender uma relação do maior para o menor. A referência máxima para estabelecimento dessa graduação do menor para o maior é o próprio ordenamento jurídico do Estado. Esse conjunto forma um sistema que passa a ser denominado ordenamento jurídico: “[...] podemos dizer que o ordenamento jurídico pode ser visto como um macromodelo, cujo âmbito de validade é traçado em razão do modelo constitucional, ao qual devem imperativamente se adequar todos os modelos jurídicos” (REALE, 1995, p. 196). Desse modo, pelo fato de especificar em cada território, verifica-se, então, que em cada país haverá um ordenamento jurídico próprio gerado por sua história, pelas relações sociais estabelecidas; enfim, o ordenamento, corresponde às necessidades ou complexidades sociais de cada sociedade. Decorrente da inclusão do valor, não é possível circunscrever a compreensão do ordenamento jurídico somente em um sistema de leis ou em um sistema de normas como exclusivamente exposições de proposições lógicas. O ordenamento é o sistema de normas jurídicas presentes, por isso vigentes e eficazes, incluindo-se as fontes de Direito e seus conteúdos e, por ser entendido como presente, incorpora também as possíveis projeções. 99 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA Portanto, o ordenamento é o sistema de normas na sua real e concreta exposição de realidade. Qual a constituição do ordenamento de forma mais objetiva? Qual ou quais os elementos que formam o ordenamento a partir daquele mais geral para o mais particular dentro do sistema? Segundo o autor em estudo, por entender que a experiência jurídica é fator determinante na compreensão do Direito, ele expõe o que podemos entender como primeiro momento do ordenamento jurídico, denominados instrumentos lógicos e linguísticos que formam a sustentação básica do Direito. Tal instrumentação é assim exposta: categorias, figuras, institutos, instituições, sistemas. Decorrentes, e agora entendido como segundo momento do princípio para o ordenamento jurídico, decorrem as seguintes categorias: competência, tipicidade, culpabilidade, etc. Como terceiro momento do ordenamento, apresentam-se as categorias que vão se incorporando ao sistema, evidentemente, agora como resultante da experiência jurídica de uma determinada sociedade em um determinado momento histórico. Finalmente, as normas, as figuras, os institutos e as instituições se articulam de forma lógica, o que implica em dizer que tal articulação gera ordenadamente: O ordenamento jurídico, conforme o exposto por Miguel Reale, inclui dois fatores: primeiro, a história de uma determinada sociedade, suas marcas culturais, seu desenvolvimento; enfim características que podemos dispor como eventos sociais; segundo, a experiência jurídica ou a própria vivência de práticas jurídicas dentro da esfera da efetiva realização das normas ou de efetiva interferência no social. Assim: O ordenamento jurídico não poderia deixar de ser normativo, mas não se caracteriza como um conjunto de normas expostas, de modo que apresentem uma escala ou uma hierarquia e muito menos como uma exposição sistemática de proposições lógicas. Agora, por que não é uma sistematização lógico-formal? Isso evidentemente é decorrência das interferências das práticas sociais e das práticas técnicas do Direito em cada configuração social, ou melhor, das correlações entre essas práticas. A teoria tridimensional, por incluir a formação história-cultural e a experiência jurídica, admite a norma como a última etapa de um longo processo e por ser processo implica dinâmica, que tem seu ponto de partida no fato acrescido dos valores que os mesmos podem incorporar. Além dessas características, a teoria tridimensional permite qualificar as regras conforme sua natureza, pois elas não possuem idênticas naturezas. Umas direcionam a prescrição de comportamento ou de conduta; outras se referem à distribuição de competência; e outras ainda têm como objetivo especificar, ou melhor, dirimir ou esclarecer as demais. 100 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Dentro dessas esferas de diferentes naturezas não há possibilidade de uma escala, de uma linha reta, mas quando muito uma certa relação ou, como o próprio Miguel Reale diz, correlação entre elas. A correlação daria, assim, o caráter de unidade. Oportuno, nesse instante de nossas reflexões, atermos ao princípio do ordenamento como expressão de uma experiência social, ou histórico-social. A história não é construção única, mas múltipla, vários são os constituintes da história, múltiplos são os fatores, portanto, não se verifica uma história social com fatos que se apresentam de modo hierárquico ou de modo que podemos qualificar como relação de causa e efeito de modo linear e único. Consequentemente, a experiência jurídica como resultante dessa vivência social não irá, evidentemente, apresentar linearidade de exposição. Enfim, qual a validade do ordenamento assim entendido? Qual o pressuposto que sustenta a validade de um determinado ordenamento jurídico? A concepção em estudo irá designar uma razão de ordem prática, em outras palavras é a prática como resultado do Direito ser entendido como uma experiência com três dimensões: fato, valor e norma. Aqui se verifica que outro pressuposto para a definição do Direito sustenta a compreensão de ordenamento jurídico. De imediato, a inclusão do social e do histórico, como fatores importantes e não excludentes do ordenamento, implica em entender que o Direito é uma ciência social e como tal, apesar de ter seu objeto específico, esse objeto é formado ou tem outras determinações que não só a norma por ela mesma, nem o fato ou o valor isoladamente: “A integração de três elementos na experiência jurídica (o axiológico, o fático e o técnico formal) revela-nos a precariedade de qualquer compreensão do Direito isoladamente como fato, como valor ou como norma, e, de maneira especial, o equívoco de uma compreensão do Direito como pura forma, suscetível de albergar, com total indiferença, as infinitas e conflitantes possibilidades dos interesses humanos.” (REALE. 1996, p. 699) Assim, o fato social historicamente construído adquire significativa importância não só como sustentação do Direito, mas também releva a importância do Direito que incorpora marcas que escapam a interpretação meramente lógico-formal: “O certo é que, enquanto que para um adepto do formalismo jurídico a norma jurídica se reduz a uma ‘proposição lógica’, para nós, como para os que se alinham numa compreensão concreta do Direito, a norma jurídica, não obstante a sua estrutura lógica, assinala o ‘momento de integração de uma classe de fatos segundo uma ordem de valores’, e não pode ser compreendida sem referência a esses dois fatores, que ela dialeticamente integra em si e supera.” (REALE. 1995, p. 104) Percebe-se que ao associar o caráter social e/ou cultural ao ordenamento, a unidade não está só presente pela logicidade da disposição das normas, mas também pela correspondência ou adequação com as necessidades apresentadas pela realidade social. 101 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. IAMUNDO, Eduardo. Sociologia e antropologia do direito. São Paulo: Saraiva, 2013. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Traduçãode Luís Carlos Borges. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. _____________. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. REALE, M. Filosofia do Direito. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 1996. ____________. Lições preliminares de Direito. 22.ed. São Paulo: Saraiva, 1995. MÓDULO 8 Neste último módulo da disciplina Filosofia do Direito, trataremos de vários assuntos que são essenciais para a formação humanística do acadêmico do curso de Direito do século XXI. Vamos principiar o nosso estudo pelas considerações a respeito da Filosofia do Direito como Epistemologia Jurídica, notadamente no que tange à concepção desenvolvida por Hans Kelsen. Hans Kelsen radicaliza toda uma guinada positivista que vinha sendo realizada desde o século XIX, na medida em que tenta separar do Direito Positivo aspectos que lhe são estranhos, como o Direito Natural. Desde a antiguidade, podemos identificar juristas que se dedicam ao estudo do Direito Positivo, aos comentários das leis então vigentes, como os próprios romanos ou os glosadores da Idade Média. Entretanto, somente após o surgimento do positivismo filosófico de Augusto Comte (1798-1857), o positivismo jurídico chega à reformulação do próprio conceito de Direito, retirando desse todo resquício metafísico, opondo-se assim às concepções jusnaturalistas, sejam elas de base natural, divina ou racional, que desde os primórdios serviram para a definição do Direito. A partir de então, o Direito é identificado à lei, não havendo nada acima dele que funcione como parâmetro de aferição de sua justeza. Na Filosofia positiva de Comte, o conhecimento – que seria o positivo, em oposição aos históricos estados teológico e metafísico – caracterizar-se-ia pela elaboração de leis, tendo em vista a regularidade dos fenômenos. A busca de tais leis, mais especificamente, das leis naturais, seria feita pela observação, abdicando-se de qualquer pergunta por uma causa última. O espírito, num longo retrocesso, detém-se por fim perante as coisas. 102 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade III Kelsen transpõe o método das ciências naturais para a análise do Direito, acreditando ser tal metodologia indispensável para se alcançar a objetividade que o conhecimento científico do fenômeno jurídico, em seu entender, requereria. Nesse sentido, já no prefácio à primeira edição da Teoria Pura do Direito, obra que sintetiza todo o pensamento do citado jurista, ele assim se pronunciou sobre ela: Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade, consciente da legalidade específica do seu objeto. Logo desde o começo foi meu intento elevar a jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão[1]. Demonstrado o conceito de ciência de que parte Kelsen resta resgatarmos fragmentos de sua teoria, para que assim possamos, a partir de dentro, realizar uma análise do alcance do pensamento positivista, bem como do impasse em que este sempre recai. Falamos anteriormente sobre a negativa kelseniana de realizar juízos valorativos sobre as normas jurídicas. No entanto, tal postura nada mais representa do que o método utilizado por Kelsen para estudar o seu objeto, pois pretende conhecer o fenômeno jurídico em sua “pureza”, esvaziado de qualquer elemento externo, como aspectos sociológicos, psicológicos, políticos ou éticos que estejam a ele conectados[2]. Para assim proceder, o autor define o objeto da ciência jurídica – a norma – e o faz distinguindo o Direito da natureza, o mundo do dever-ser, do mundo do ser [3]. A estrutura da norma seria: Se A, deve ser B. Se alguém comete um crime, matando ou roubando, por exemplo, deve ser-lhe aplicada uma sanção. Entretanto, a frustração de tal expectativa punitiva, dentro de certos parâmetros, não faz com que o Direito perca sua normatividade. Miguel Reale identifica com propriedade a influência de Kant sobre Hans Kelsen: “Há, em toda sua obra, as ideias fundamentais, de fonte kantista, de que ‘o conhecimento científico não pode ir além do dualismo de natureza e espírito, de realidade e valor, de ‘ser’ e ‘dever-ser’; que ‘não é possível deduzir um valor da simples verificação de um fato, ainda quando frequente e normal[4]. Apesar de Kelsen afirmar que a validade, a existência de uma norma independe de sua eficácia, pois admitir o contrário seria reduzir o Direito, o dever-ser, ao ser, o próprio autor admite que um mínimo de eficácia é essencial para a própria validade das normas jurídicas, o que representa uma ruptura de seu pressuposto epistemológico, na medida em que a “pureza” do Direito é relativizada pela introdução dessa dimensão sociológica[5]. 103 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA Kelsen considera a norma jurídica como um esquema de interpretação do mundo, pois, partindo da distinção entre os dois mundos, ser e dever-ser, afirma que o que interessa ao jurista não são os fatos, mas a significação jurídica a eles atribuída. Por exemplo, a morte de uma pessoa, um fato natural, pode ter relevância jurídica quando, por exemplo, o falecido deixa bens, devendo então ser aberta sua sucessão, legítima ou testamentária. Entendemos então por que milhões de mortes de combatentes inimigos em uma guerra podem criar heróis e gerar condecorações, enquanto matar uma única pessoa pode privar o autor de sua liberdade para exigir de alguém qualquer soma em dinheiro. Esse exemplo ilustra o sistema escalonado de normas tal como desenvolvido por Kelsen, pois este considera que a validade de uma norma, ou seja, seu sentido objetivo, decorre de outra hierarquicamente superior, e assim sucessivamente, até se chegar à Constituição. O ato criador da Constituição, por seu turno, tem sentido normativo, não só subjetiva como objetivamente, desde que se pressuponha que nós devemos conduzir como o autor da Constituição preceitua. Assim, para garantir o respeito à própria Constituição – na medida em que não se reconhece nenhuma norma positiva, posta, acima dela, apta a dar competência a seus autores, a dar sentido objetivo às normas por estes elaboradas –, Kelsen criou a norma fundamental, uma pressuposição lógico-transcendental, utilizando aqui, por analogia, um conceito da teoria do conhecimento de Kant, uma norma que, em última instância, conferiria validade a todo o ordenamento jurídico, ao estabelecer o caráter vinculante da Constituição. Se toda norma adquire validade a partir de uma norma superior, de onde adviria a validade da Constituição? Como solucionar o paradoxo de ser a Constituição o fundamento de validade das demais normas e não possuir, ela mesma, fundamento? Como “solucionar” essas questões sem romper com sua opção metodológica, isto é, sem recorrer a elementos externos ao Direito para justificá-lo, como à natureza ou a Deus? A função do Direito, para Kelsen, é somente descrever as normas jurídicas existentes em determinada ordem jurídico-política, sem realizar qualquer juízo de valor sobre ela. Nesse sentido, sua função difere da atividade de criação do Direito atribuída aos órgãos jurídicos, como o legislador, que elabora normas gerais e abstratas, ou ao juiz, que aplica o Direito a um caso concreto, estabelecendo uma norma individual. Entretanto, o próprio Kelsen deu uma guinada decisiva na segunda edição da Teoria Pura
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