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anã se na m anciã n na anã Eliza Santa Roza Eliana Schueler Reis Partindo da reflexão sobre um caso clínico e atravessando as diferenças e similitudes conceituais de vários autores, entre eles Freud, Férenczi e Winnicott, Eliza Santa Roza e Eliana Schueler Reis interrogam neste livro a importância do infantil para a psicanálise. Assim, não só propõem que as indagações relativas à análise de crianças são fundamentais para a prática da psicanálise, como tam- bém sublinham a importância de tornar possível a emergência do que, mesmo estando presente como marca do vivido, não existe como lembrança, não se aproveita como experiência, não se enuncia como desejo. Eliza Santa Roza tem como objeto principal do estudo a temática do brincar como forma de linguagem, dando continuação às ideias desenvolvidas em seu livro anterior Quando brincar é dizer - a experiên- cia psicanalítica na infância. Por sua vez, Eliana Schueler Reis repensa o trauma como fator de estruturação e desestruíuração psíquicas, inicialmente desenvolvido em sua tese de mestrado Trauma e repetição no processo psicanalítico - uma abordagem íerencziana. Como afirmam, "para produzir conhecimento é preciso afetar e se deixar afetar com intensidade pelo outro e pelo mundo". Desde Freud e sua elaboração das consequências de ser surpreendido, da análise na infância ao infantil na análise, de um caso clínico elaborado a quatro mãos ao estabelecimento de uma escrita, este trabalho conjunto não se furta às vicissitudes do brincar para a subjetivação do que nos precede. "A renovação da psicanálise como teoria - lembra Joel Birman em seu prefácio - sempre se realizou pelas vias da clínica e da sensibilidade para as questões atuais da cultura, sem as quais aquela perde qualquer gosto e interesse". Seja através da discussão a respeito do suicídio de crianças e a importância da televisão no ima- ginário infantil, seja a partir das surpresas, dificuldades e impasses clínicos, os artigos que compõem o livro não deixam de insistir com a constante retomada do que ainda não há para se dizer. • Eliza Santa Roza & Eliana Schuekr Reis anã \n\~ti se na \nranc\a isena anã Prefacio Joel Birman DA ANALISE NA INFÂNCIA AO INFANTIL NA ANALISE Copyright © 1997 EUza Santa Roza Eliana Schueler Reis Projeto Gráfico e Preparação Contra Capa 5231 d Santa Roza, Eliza Da análise na infância ao infantil na análise / Eliza Santa Roza St Eliana Schueler Reis; prefácio Joel Birman. - Rio de Janeiro : Contra Capa Livraria, 1997. 190p. ; 14 x 21 cm. ISBN 85-86011-06-1 1. Psicanálise. 2. Psicanálise infantil. I. Reis, Eliana Schueler. II. Título. CDD-616.8917 1997 Todos os direitos desta edição reservados à Contra Capa Livraria Ltda < ccapa@ easynet.com .br > Rua Barata Ribeiro 370 - Loja 208 22040-000 - Rio de Janeiro - RJ Tel (55 21} 236-1999 Fax (55 21) 256-0526 SUMARIO ]oel Birman . Além daquele beijo!? - sobre o infantil e o originário em psicanálise Eliza Santa Roza e Eliana Schueler Reis . De uma análise na infância ao infantil na análise trauma, repetição e diferença em Ferenczi 43 Eliza Santa Roza . E agora eu era o herói: o brincar na teoria psicanalítica 75 . Tentativa de suicídio na infância: uma hipótese acerca do eu 103 . Narcisismo, ideal do eu, criança e televisão 131 , Um desafio às regras do jogo: o brincar como proposta de redefinição do tratamento da criança hospitalizada 161 Eliana Schueler Reis Vida e morte do bebé sábio 57 Das palavras-coisa a esta coisa das palavras 87 Uma, três ou mais coisas que o sonho faz 119 , Múltiplos eus H5 Dedico este trabalho a minha mãe, que me ensinou mui' to cedo a escutar as histórias de vida, e à memória de meu pai, que me ensinou a ler e me deu livre acesso a todos os seus livros. Eliana Para minha mãe, que sempre brincou comigo, e à memória de meu pai, que me apontou a cultura como o maior bem humano. Nossos {agradecimentos a todas as pessoas que estão pre- sentes de diversos modos nesses textos. Familiares e ami- gos, colegas, alunos e professores, e particularmente nossos pacientes, pois sem eles não haveria motivo para escrever. ALÉM DAQUELE BEIJO!? sobre o infantil e o originário em psicanálise I. A QUE VIEMOS? Desde a inauguração do discurso freudiano a referên- cia à infância se impôs e se difundiu, tanto no campo do saber erudito quanto no imaginário social, como um sig- no insofismável da psicanálise. Esta imposição, diga-se de passagem, se realizou por diferentes razões que não me interessa aludir neste momento. Cabe destacar, por ora, que em verdade a infância foi enunciada como o funda- mento para a interpretação dos males do espírito, razão em última instância para dar conta dos impasses insupe- ráveis na existência psíquica dos adultos. Tratava-se de indagar no sofrimento mental destes sobre a sua causali- dade e a sua génese. Nestes termos, foi suposto que aque- le sofrimento teria sido produzido na vida pretérita do sujeito, na sua infância real, que deixava fendas dolorosas no seu psiquismo e sulcos sofrentes no seu corpo. Jcel Birman Assim, se a infância foi concebida como o tempo pri- mordial para a produção de um acontecimento patológico, este foi delineado como algo de ordem sexual. A cena da infância seria de natureza sexual, que na passagem do su- jeito da infância para a existência adulta, na adolescên- cia, teria o poder nefasto de produzir sintomas mentais. Isso porque o cenário sexual da infância, de qualidade excessiva, não poderia ser absorvido pelo psiquismo do sujeito na suposta maturidade. O indivíduo sucumbiria ao excesso da experiência sexual da infância, aprisionan- do-se na teia diabólica de sua reminiscência1. Seria esta referência axial a um acontecimento sexual ocorrido na infância, portanto, a causa primordial das perturbações mentais das individualidades nas origens da psicanálise2 •* que dava caução aos procedimentos inovadores empreen- didos pela cura catártica4. Apesar desta evidência histórica é preciso sublinhar, contudo, as continuidades e as descontinuidades paten- tes que existem entre os primórdios do discurso freudiano e os passos teóricos que foram realizados posteriormente no seu interior. Digo isso porque as diferenças são signi- ficativas, transformando os fundamentos não apenas 1 Freud, S. & Breuer, J. "Lês mécanismes psychiques dês phénomènes hystériques" (1893). Em: Freud, S. & Breuer, J. Études sur ITiystérie. Pa- ris, PUF, 1971. 2 Freud, S. "Uétiologie de 1'hystérie" (1896). Em Freud, S. Névrose, psychose et pervenion. Paris, PUF, 1973. 3 Freud, S. "Psychothérapie de rhystárie11 (1895). Em: Freud, S, & Pjreuer, J. Eludes sur \'hystérie. Op, cit. 4 Idem. Prefácio do pensamento como também da clínica psicanalíticas. A introdução do adjetivo infantil neste contexto foi um acontecimento crucial na discursividade psicanalítica. Não obstante a similaridade existente entre os significantes em pauta, o adjetivo infantil não quer dizer a mesma coisa que o substantivo infância. Uma distância incomensurá- vel os separa, certamente. Além disso, é preciso considerar que se o signiíicante infantil se introduziu pela ordem adjetiva, logo em segui- da transformou-se num substantivo. Nestas diversas transmutações, significantes e gramaticais, algo de fun- damental se processou na leitura do sujeito e de seu sofri- mento psíquico. Pode-se dizer, sem qualquer exagero, que foi neste deslocamento entre as palavras infância e infan- til, assim como nesta dança e nesta transmutação de gé- neros gramaticais, que se pode circunscrever a invenção da psicanálise como tal. No que tange a isso, não se pode então esquecer que as descontinuidades são muito mais importantes do que as continuidades. Isso é inegável, sem dúvida. A ruptura aqui açambarca as continuidades,levando-as de roldão. Por isso mesmo, não devemos nos confundir com a seme- lhança enganosa das palavras, apesar das facilidades que isso implica do ponto de vista teórico. A sedução é evi- dente, mas o horizonte que isso nos entreabre é pobre e limitado. Deve-se, pois, evitá-la e contornar os seus per- calços, já que entre a infância e o infantil existe não ape- nas um intervalo abissal para a psicanálise, como tam- bém se realizou uma transformação radical na leitura do espírito humano. Joel Birnum É justamente isso que gostaria de indicar aqui, à guisa de um esboço, com a intenção de costurar algumas das linhas de desenvolvimento do discurso psicanalítico. Para que isso? Para indicar certas linhas de desenvolvimento do discurso psicanalítico que esta problemática impõe. Isso também nos permitirá sublinhar alguns pontos de encon- tro entre Freud e seus discípulos, sejam estes seus con- temporâneos ou outros analistas posteriores. Pode-se vis- lumbrar aqui um dos pilares centrais do pensamento psi- canalítico, sem dúvida. Seria esta a razão pela qual o des- locamento do registro da infância para o do infantil se mostrou tão fecundo na tradição psicanalítica. II. EVOLUÇÃO, ÍÍISTÓRIA E TEMPORALIDADE Deve-se evocar, inicialmente, que a referência à in- fância no discurso freudiano se impôs a partir do paradigma teórico dominante na segunda metade do século XIX, isto é, o paradigma da evolução. Freud retomou este paradigma na versão forjada por Darwin, fundamentalmente. Porém se o discurso freudiano foi marcado pelos pressupostos da teoria evolucionista de Darwin, o que é inegável e reco- nhecido por Freud em passagens significativas de sua obra, isso não implica dizer que os pressupostos do paradigma da evolução não tenham tido incidência na construção da psicanálise por outras sendas teóricas que transcen- dem o campo da biologia. É este tópico que pretendo des- tacar para circunscrever a inscrição das categorias de in- fância e de infantil na psicanálise desde os seus primórdios. 10 Prefácio Por que insisto nesta diferença de origem teórica dos modelos de pensamento que marcaram a construção da psicanálise? Qual a importância disso? Porque a teoria da evolução foi a revelação mais evidente de uma constru- ção teórica sobre a natureza, a cultura e a sociedade que perpassou todo o século XIX, segundo a qual as coisas do mundo seriam atravessadas pelo tempo e marcadas no seu ser pela história. Esta perspectiva delineou o horizonte da modernidade, ultrapassando em muito qualquer registro de ordem biológica. Vale dizer, restringir o alcance desta inovação ao discurso da biologia seria não vislumbrar a ruptura maior que então se processava, pela qual o ser do homem foi inscrito nas ordens do tempo e da história. E aqui que situa-se o fundamental desta problemática da infância. Com efeito, pode-se registrar a presença desde mode- lo de leitura desde A Fenomenologia do Espírito5, de Hegel, na aurora do século XDC. Neste contexto, Hegel realizou a crítica da filosofia de Kant, empreendendo a leitura his- tórica da natureza humana pela sua inserção na ordem do tempo. Foi realizada assim uma epopeia do espírito e da cultura humana, de seus primórdios até a modernidade. Ao lado da aventura filosófica hegeliana esta constru- ção teórica se encontrava também presente no campo da constituição de diferentes saberes empíricos, através dos quais se estabeleceram diferentes positividades. No cam- po das ciências, aoruitomia comparada buscava circunscrever a historicidade dos organismos desde o final do século XVIII, 5 Hegel, G, W. F. La phénomenologie de Fesprit. Volumes I e II. Paris, AuMer, 1941. 11 Joel Bírmfln a gramática comparada pesquisava as relações de derivação das línguas a partir de um tronco comum no século XIX e a economia política investigava os processos de formação e de circulação de riquezas desde o século XVIII. Além dos campos da filosofia e das ciências, entretan- to, a temporalização e a historicidade da natureza huma- na se revelavam também nos registros do imaginário lite- rário, no qual a constituição do romance como género e a sua implantação na cultura como modelo preferencial de narrativa literária foi o signo mais evidente deste proces- so constitutivo da modernidade. Pode-se depreender aqui as similitudes dos procedi- mentos de construção da escrita que se estabeleceram entre as tradições filosófica e literária. Para evidenciar estas semelhanças basta recordar que a história do espírito hu- mano, empreendida no projeto grandioso de Hegel em A Fenomenologia do Espírito, se realizou pelo viés do estilo romanesco, advindo dos romances de formação. Desta- cava-se aqui a incidência de Schiller e Goethe na escritu- ra de Hegel. Na arqueologia da modernidade realizada por Foucault em As palavras e as coisas6, a teoria da evolução das espé- cies e a sua derivação para as demais ciências humanas seria somente um dos signos reveladores da episteme da história que se constituiu na virada do século XVIII para o século XIX. Teria se realizado assim uma ruptura radical com a episteme da representação, que teria regulado a produção de saberes e de conceitos na denominada Idade 6 Foucault, M. Lês móis et lês c/ioses. Paris, Gallimard, 1966. 12 Prefácio clássica. Nesta perspectiva, tanto a vida quanto a língua e a riqueza seriam atravessadas pela historicidade e pela temporalidade. Estas definiriam, pois, as variações signifi- cativas existentes nos registros do organismo, da lingua- gem e da moeda. Na versão de Darwin em A origem das espécies1, a hu- manidade passaria necessariamente por um processo evolutivo para se constituir como tal, desde os seus primórdios no reino animal até as suas realizações mais espetaculares. Desta maneira, o homem se inscreveria como espécie na ordem da natureza, estabelecendo-se nesta leitura uma descontinuidade crucial com as anteri- ores concepções teológica e divina sobre a natureza hu- mana. Esta seria animal nas suas origens, regulada por ritmos vitais e pelos ciclos da natureza, de maneira que apenas após um longo processo evolutivo se realizaria a humanização da espécie humana tal como a conhecemos. Enfim, existiria uma infância da humanidade que apenas seria superada posteriormente, depois de um longo pro- cesso evolutivo marcado por seleções naturais. Assim, pela introdução da categoria de infância, para explicar a causalidade das perturbações psíquicas pela mediação da sexualidade, Freud construiu um modelo teórico para pensar o sujeito no qual este se constituiria pelo eixo do tempo. Com isso, o sujeito seria constituído pela história e seus destinos. Seria esta então a marca bá- sica que o discurso inaugurador do século XIX legou para a constituição da psicanálise. 7 Danvin, C. Lês origines dês espèces au mo^en de Ia séíection naturelle ou Ia lutte pour 1'existence dons Ia nature (1856). Paris, Reinwald, 1882. 13 Joel Btrmtm Neste legado, entretanto, duas concepções se confron- tam. Estas são diferentes, apesar de suas similaridades e até mesmo de suas proximidades. Por isso mesmo, cabe distingui-las pois a nuança é significativa. Por um lado a subjetividade é historicizada, marcada que é pela ordem do tempo; retira-se assim do sujeito qualquer substancialidade absoluta. Em contrapartida, a subjetivi- dade é colocada num processo evolutivo, marcado pelos valores da seleção natural e da adaptação. Pode-se dizer que o discurso freudiano se iniciou com a concepção evolucionista de Darwin, através da qual encontrou os pressupostos mais abrangentes da episteme da história, o que lhe permitiu se decantar progressivamente de seus valores propriamente evolucionistas. Seria esta a hipóte- se que esboço aqui para que se possa pensar na introdução da categoria de infância nos primórdios da psicanálise e no seu deslocamento posterior para a categoriade infantil. III. INFANTIL POR VOCAÇÃO? O traço de modernidade do discurso freudiano é as- sim evidenciado, instituindo-se por uma descontinuidade radical em relação às concepções de subjetividade que eram dominantes nos séculos XVII e XVHI. Com efeito, a psicanálise revela a sua originalidade teórica frente à psi- cologia clássica, iniciada pela filosofia de Descartes8, uma 8 Descartes, R. "MédLtations". Em: Descartes, R. Oeuvres et lettres. Paris, Gallimard, 1949. 14 Prefácio vez que desloca a indagação sobre o sujeito da ordem do pensamento para o registro da história de sua existência; o pensamento como critério fundamental do existir é sub- metido à temporalização de uma história. Nesta perspectiva, as demandas corpóreas passarão a regular as produções mais sofisticadas do espírito, que se- rão cadenciadas pela lógica das pulsões, e as vicissitudes do gozo, nos seus imperativos insofismáveis, serão permeadas pelas regularidades do tempo e passarão a se constituir numa história. Com efeito, não importa tão somente a sexualidade da individualidade como tal, mas a sua produção e a sua modelagem pela mediação das teorias sexuais infantis9. Estas se ordenam ao longo da história do sujeito, de ma- neira a imprimir as exigências do tempo no seu corpo e nas formações de seu espírito. Neste sentido, a leitura do sujeito como inscrito no campo de uma história implica definitivamente na sua encorpação, isto é, na incorpora- ção do espírito num corpo. Desta maneira, a incorporação do espírito na carne, num corpo ao mesmo tempo pulsional e sexual, revela o que existe na infância do espírito. Nas suas origens e nos seus primórdios aquele é corpo, sem dúvida. Porém com- prova-se ao mesmo tempo o registro infantil do sujeito, uma vez que o corpo seria a condição de possibilidade de uma história, pela sua insuficiência fundamental. Por isso, o sujeito será obrigado a historicÍ2ar-se para constituir possibilidades para a sua insuficiência vital, tendo que se 9 Freud, S. "Lês théories sexuelles infanriles" (1908). Em: Freud, S. La vis sexiíelle. Paris, PUF, 1973. 15 Joel Birmon assujeitar ao outro a fim de viabilizar-se para a ordem da vida. O sujeito tem que se historicizar para que a vida de seu organismo seja possível. Disso se pode depreender o paradoxo existente entre as ordens da vida e da história, pois seria pela via da historicização do corpo, mediada pela dependência ao outro, que a ordem da vida seria efetivamente possível. Sem isso o organismo humano seria inviável, dado as suas insuficiências, que seriam apenas ultrapassáveis pelo su- porte do outro. Entreabre-se, com isso, as aventuras de uma história que constituirá o sujeito propriamente dito, até mesmo como corpo. Cabe indagar agora se esta infância é a contingência insofismável de nossa animalidade de origem, signo do enraizamento do sujeito no registro corpóreo, sendo su- perada por processos evolutivos e civilizadores. A infân- cia seria, nestes termos, circunscrita no tempo e cronolo- gicamente delimitada, sendo ultrapassada por etapas su- periores da humanização. Ou se esta infância é insuperá- vel, já que para além de um longo momento histórico- evolutivo e cronologicamente circunscrito do sujeito a infância remeteria para um infantil que se encontra sem- pre presente na individualidade. Nesta outra leitura, en- tão, o sujeito seria infantil por vocação e não apenas por contingência de sua história evolutiva10. Disso pode-se vislumbrar como o discurso freudiano se deslocou de uma problemática do sexual centrada na infância para uma outra onde a sexualidade reenvia para 10 Pontalis, J. B. Aí»rès Freud. Paris, Gallimard, 1968. 16 Prefácio o infantil. Isso porque arguiu as insuficiências da ordem vital, que colocam o humano na dependência de um ou- tro. Nesta condição, o animal humano fica fadado a uma história, maneira de procurar ultrapassar as suas insufici- ências estruturais. Porém reencontra a sua finitude e a sua mortalidade, evidenciando a perenidade do infantil. IV. DA INFÂNCIA AO INFANTIL Trata-se de pontuar agora este deslocamento entre a infância e o infantil no interior do discurso freudiano, destacando as diferentes figuras pelas quais o infantil se apresentou na psicanálise. Em seguida, cabe indicar a re- tomada do pressuposto do infantil na tradição psicanalí- Cica pós-freudiana, sublinhando a importância deste per- curso de pesquisa na tradição psicanalítica. Assim, se ao longo dos escritos inaugurais de Freud, publicados na última década do século XIX, a infância já era uma referência constante para procurar dar conta das neuroses e das demais perturbações psíquicas, foi sem dúvida com a publicação de A interpretação dos sonhos11 e dos Três ensaios sobre a teoria sexual12 que a tese em pauta ganhou mais fôlego e consistência. Contudo é preciso considerar que neste novo patamar teórico do discurso freudiano, que se identifica como a constituição da psica- 11 Freud, S. LWerprétaton dês revés (1900). Paris.PUF, 1976. 12 Freud, S. Trots essais sur Ia théorie de Ia sexuaiité(l905). Paris, Gallimard, 1962. 17 Joel Birmcn nálise no sentido estrito, se enunciou um paradoxo. Este revela a oposição entre os registros da infância e do infan- til, assim como o deslocamento de Freud de uma indaga- ção do primeiro para a do segundo. Com efeito, a alusão ao universo da infância e à sexu- alidade, que se impôs com as teorias sobre os sonhos e sobre a sexualidade, tinha como fundamento o assenta- mento daqueles no registro da/amasia, e não no da reali- dade. A infância referida se inscrevia no fantasma do su- jeito, encontrando aqui a sua eficácia etiológica nas per- turbações psíquicas. Seria, pois, a fantasmatização do su- jeito sobre a sua infância, sobre o seu passado, que teria o poder de plasmar o seu imaginário e delinear as suas ma- neiras de gozar. Conseqtientemente, esta infra-estrutura fantasmática teria plena efetividade-na produção dos sin- tomas neuróticos. Na constituição da psicanálise propria- mente dita, portanto, a efetividade da infância e do sexual migraram da realidade material para a realidade psíquica. Em contrapartida, pela célebre teoria da sedução13, formulada na última década do século XIX, as perturba- ções psíquicas das individualidades se ancorariam no real da infância, na sedução sorrida pelo sujeito. Era evidente para Freud que o efeito patógeno da sedução se inscrevia no campo da memória do acontecimento, pois os neuró- ticos sofriam de reminiscências14. Apesar da mediação da memória, era suposto que a sedução acontecida na reali- dade seria a responsável pela construção sintomática. 13 Freud, S. "L'étiologie de l'hystérie" (1896), Em Freud, S. Névrose, psychose et psrversion. Op. cit. 14 Freud, S. & Breuer, j. "Lês mécanismes psychiques dês phénomènes hystériques" (1893). Em: Freud, S. & Breuer, J. Eludes sur ITrystérie. Op. cit. 18 Prefácio Nestes termos, quando Freud numa carta a Fliess for- mulou "não acredito mais na minha neurótica"15, uma subversão se realizou na leitura da subjetividade pela psi- canálise. Isso porque não seria mais pela efetividade da sedução ocorrida que se produziriam as perturbações men- tais, mas no fantasma forjado de um suposto aconteci- mento. A consequência maior disso foi o deslocamento do sexual do registro da realidade material para o da rea- lidade psíquica, para se interpretar em novas bases a lógi- ca do espírito humano. A partir daí a sexualidade passava pelo fantasma que ordenaria o corpo erógeno. Nesta perspectiva, a infância foi remanejada na sua sig- nificação, pois se deslocou do registro genético e cronológico para o do funcionamento psíquico. Foi aqui que se consti- tuiu propriamente o conceito de infantil, marcando a sua diferença com a noção evolutiva de infância. Existiria assim um infantil no psiquismo que seria irredutívela qualquer dimensão cronológica e evolutiva. Vale dizer, foi pressupos- ta a existência de um infantil no psiquismo que não se dissol- veria na infância cronológica do sujeito. Seria desta manei- ra, enfim, que o sujeito seria marcado pelo infantil não por acidente de percurso, pelas vicissitudes do processo maturacional de desenvolvimento, mas por vocação. Este infantil por vocação recebeu diferentes versões ao longo do discurso freudiano e do pensamento psicanalítico pós-freudiano. No intercâmbio de Freud com os seus cola- boradores mais próximos o infantil foi remanejado na sua significação de diferentes maneiras. É tudo isso que vere- mos em seguida. 15 Freud, S. La ntussonce de Ia psychandtyse. Paris, PUF, 1973, p, 190, 19 Joel Birnum V. AS VERSÕES DO INFANTIL Logo nos primórdios do pensamento psicanalftico o in- fantil foi caracterizado como sendo o inconsciente. Foi aqui que o infantil se transformou num substantivo, perdendo o atributo negativo anterior, onde seria representado no regis- tro da reminiscência. Do estado de um resto, que seria rema- nescente no campo da memória, o infantil se substantivou na estrutura do inconsciente. Neste, o infantil foi esboçado por diferentes traços que circunscreviam o seu ser. Antes de mais nada, o infantil se identificava com o desejo. O que existia de infantil no sujeito se representa- ria pelo universo caótico do desejo, que aquele não re- nunciaria jamais. Como desejo o infantil se tornaria pa- tente pelos sonhos16, pelos atos falhos17 e pelo chiste18. Isso para nos referirmos à "psicopatologia da vida cotidiana", pois o infantil como desejo estaria presente também na formação do sintoma. Nesta medida, o desejo seria a for- ma de ser por excelência do infantil, a sua matéria prima primordial. Com isso, o infantil se identificaria também com o processo primário, que regularia o desejo e o inconscien- te, contraposto ao processo secundário, que regularia a razão, a consciência e o eu19. Ainda neste contexto o in- 16 Freud, S. L'mterprétation dês revés. Capítulos II e VII. Op. cit. 17 Freud, S. Psychojxnologie de Ia víe quolidienne. Paris, Payot, 1973. 18 Freud, S. "Jokes and their relatíon Co the unconscious" (1905). Em: Slandard Edition of the complete {js^chologicol ivorks of Siginund Freud. Volume VIII. Londres, Hogarth Press, 1978. 19 Freud, S. Vinterprétation dês revés. Capítulo VII. Op. cit. 20 Prefácio fantil foi circunscrito como aquilo regulado pelo princí- pio do prazer, que se contraporia pontualmente ao prin- cípio de realidade, regulador dos processo racionais20. Logo em seguida, com a formulação da teoria da sexualidade, o infantil foi identificado com a pulsão sexual21. Como fun- damento do inconsciente e do desejo a pulsão sexual se- ria a matéria prima do infantil; este se consubstanciaria, pois, pelas pulsões perverso-polimorfas, que definiriam a essência da sexualidade e do gozo humanos. Nos ensaios metapsicológicos de 1915o infantil con- tinua a se identificar com o registro pulsional, porém a pulsão começa a perder a sua identidade obrigatória e necessária com a sexualidade; a pulsão sexual é apenas uma das modalidades do pulsional22. A partir de agora, com efeito, existiriam pulsões sexuais e não sexuais, já que o discurso freudiano passou a opor a força pulsional e sua inserção no universo da representação. Somente a inserção do pulsional no registro da representação circuns- creveria a pulsão sexual no sentido estrito, ao passo que a força pulsional no sentido estrito não teria qualquer atri- buto erógeno. Seria justamente esta força pulsional em estado puro que neste contexto remeteria ao infantil. A força pulsional se desdobrou na concepção de pulsão de morte nos anos 1920, pois a pulsão de morte se enun- cia como uma modalidade de pulsão sem representação23. 20 Idem. 21 Freud, S. Trois «saís sur Ia théoríe de Ia sexucdité. 1° ensaio. Op. cit. 22 Freud, S. "Pulsions et destins dês pulsions"(1915). Em Freud, S. Métapsychologie. Paris, Gallimard, 1968. 23 Freud, S. "Au-delà du príncipe du plaisir" (1920). Em: Freud, S. Essois de psychanaijse. Paris, Payot, 1981. 21 Joel Birmon Na sua oposição permanente à pulsão de vida, a pulsão de morte seria a representação do infantil por excelência, a sua nova substancialidade. Com efeito, o infantil agora se revela pela dimensão diabólica da repetição que, como compulsão, dá corpo ao infantil. Como compulsão de repetição, a pulsão de morte foi alocada por Freud no Isso, na sua nova concepção do apa- relho psíquico delineada em 1923M. Neste contexto, o infantil se inscreve no Isso, pólo pulsional do psiquismo oposto ao Eu e ao Supereu. Desta feita o infantil seria regulado pelo principio do Nirvana, não sendo mais iden- tificado com o princípio do prazer, já que agora aquele remeteria para os registros da morte e da expulsão, e não mais da vida. No desdobramento desta concepção o infantil foi iden- tificado com o trauma, pela superposição que se realizou entre a tópica do Isso, a pulsão de morte e a compulsão de repetição. Como registro do traumático o infantil passa a ser permeado pela angústia do real, isto é, por uma moda- lidade de angústia não inscrita no registro da representa- ção e por isso mesmo na exterioridade do campo do desejo25. Sendo identificado com a substancialidade do traumáti- co, o infantil seria a condição do sujeito onde a dita an- gústia sinal falha e não entra em cena, impondo ao sujei- to o real açambarcador da angústia. Nesta derivação de conceitos o infantil torna-se re- presentado pela figura do desamparo, que passa a obcecar 24 Freud, S. "Lê mói et lê ca" (1923). Idem. 25 Freud, S. InKibition, symptôme et ongoisse (1926). Paris, PUF, 1973. 22 Prefácio o discurso freudiano desde os anos 193026.0 infantil como trauma revelaria a posição de desamparo do sujeito fren- te ao que existe de imposição no impacto da força pulsional, que lança aquele no campo da angústia do real. Neste cenário, onde a angústia sexual não pôde ante- cipar o perigo para o sujeito, permitindo a este lançar mão de procedimentos simbólicos de proteção, apenas resta a fragmentação psíquica. Pela mediação desta o sujeito se rom- pe em pedaços, forma pela qual se realiza não apenas a inci- dência do traumático e do pulsional, assim como procura operar uma escaramuça definitiva para evitar o impacto da angústia do real e a posição do desamparo. Por esta figura- ção última o infantil se identificaria então com a clivagem do Eu, com o esfacelamento pulverizante do sujeito27. VI. AS PASSAGENS PELA MORTE E PELO SINISTRO Considerando a genealogia da categoria de infantil no discurso freudiano, pode-se evidenciar umadescontimtidade óbvia que estaria além desta descrição e de suas diferentes nomeações. O que me interessa sublinhar agora é adireção que assumiu Freud na construção desta categoria no campo psicanalítico. É esta direção de pesquisa que pode nos indicar as passagens entre o discurso de Freud, o de seus discípulos próximos e o da psicanálise pós-freudiana. 26 Freud, S. Moloise daru Ia cívilisaiion (1930). Paris, PUF, 1971. 27 Freud, S. "Splitting of the ego in the process of defense"(1933). Em: Standard Edttíon of the complete ps^choíogical ivorícs of Sigmurui Freud. Volume XXIII. Op. cit. 23 Joe[ Bírman Assim, dos primórdios da investigação psicanalítica até os anos 1915 e 1920 o infantil se identificava com o regis- tro da sexualidade, isto é, com o campo do desejo e com o que era regulado pelo princípio do prazer. Após os anos 1920, em contrapartida, o infantil passa a ser circunscrito como o que não pode ser erotizado e como o que é regu- lado por um além do princípio do prazer. Vale dizer, o infantil passa a ser identificado com o real da angústia e com trauma, com aquilo capaz de lançar o sujeito no de- samparo e de promover o seu esfacelamento. Depreende-sedisso que o infantil se deslocou do eixo da vida para o da morte, que passou a dar a tónica do funcionamento primordial dos processos psíquicos. A exis- tência psíquica não seria uma consequência automática da condição do organismo vivo, mas implicaria numa cons- trução complexa, na qual a pulsão de vida precisaria do- minar o movimento espontâneo do organismo para a morte e a imobilidade28. Nestes termos, necessário seria o trabalho de ligação do outro, que pelos investimentos erógenos seria capaz de possibilitar ao jovem humano a proteção face ao desamparo primordial e o domínio de sua prematuridade essencial. Isso porque neste contexto a pulsão seria traumática por excelência, esfacelante para o sujeito. A razão disso se deve ao rato do psiquismo passar a ser concebido como atravessado por intensidades e marcado por um excesso que o campo da representação não conseguiria absorver imediatamente. O trauma se constituiria justamente nes- 28 Freud, S. "Lê problème économique du masochisme"{1924). Em: Freud, S. Névrose, psychose et perversion. Op. cit. 24 Prefácio te gíip, neste intervalo sempre representado entre o ex- cesso da força pulsional e a impossibilidade de interpreta- ção pelo sujeito daquele excesso. Com isso, os represen- tantes-representação da pulsão (Freud) e os significantes (Lacan) estariam sempre atrasados na sua possibilidade de dominar o impacto da força pulsional que transborda- ria no real da angústia. Como consequência o infantil re- vela a posição de desamparo do sujeito frente à "exigên- cia de trabalho da pulsão"29. Enfim, evidencia-se a razão pela qual o indivíduo humano seria infantil por vocação e não por acidente no seu percurso gene tico-evolutivo. Pode-se também depreender desta genealogia da ca- tegoria de infantil que Freud introduziu novamente o trau- ma no seu discurso, no final de seu percurso teórico. Con- tudo, transformou-se radicalmente o sentido do conceito de trauma em psicanálise. Com efeito, se nos primórdios da psicanálise o trauma estava identificado com o real da sedução, posteriormente o trauma revelaria a dimensão sinistra daquela. Se a sedução era erotismo, mesmo que esta produzisse efeitos também dolorosos, em seguida se- ria apenas dor, sem restos prazerosos. A sedução agora se identificaria com o poder da morte, com o excesso pulsional que o sujeito não pode absorver pela via interpretativa, portanto com aquilo que lhe transborda e lhe fragmenta. Assim, se a sedução era anteriormente beijo e carícia, erotização corpórea do sujeito, agora transmuta-se em impacto desconcertante, anunciando a face hedionda da 29 Freud, S. "Pulsions et destins dês pulsions"(19l5). Em: Freud, S. Métapsychologie. Op. cit. 25 Joel Birman morte. Esta se torna presença pelo esfacelamento corpóreo que promove, encharcando o sujeito pelo real da angús- tia. A sedução nos reenvia para além daquele beijo, para algo que se desloca do calor úmido da carícia para o que há de frio e de árido no horror da morte. VII -. O INFANTIL, O ACONTECIMENTO E A PRESENÇA ABSOLUTA Porém isso não é tudo. Algo mais se impõe aqui, que é fundamental para definir as relações do sujeito com as .ordens do tempo e da história. O trauma e a sedução seri- am aquilo que se inscreve num registro temporal muito particular, pois não sendo ainda algo da ordem propria- mente da história, seriam a condição de possibilidade de historicízação para o sujeito. Como acontecimento, o trau- ma tem a consistência de uma presença absoluta, que se representa permanentemente como compulsão de repeti- ção. Esta presença absoluta, como acontecimento, seria agora o oposto de uma história. Porém seria aquilo que impõe ao sujeito a demanda de se historicizar, única for- ma possível que se coloca para este de dominar o aconte- cimento traumático. Enfim, a interpretação como traba- lho de ligação do traumático seria a possibilidade única que resta ao sujeito para historicizar a presença absoluta da morte como acontecimento crucial de sua existência. Com efeito, inscrevendo-se no território do imóvel regulado pelo além do princípio do prazer, paralisado pelo fascínio da ordem do inorgânico e pelo encantamento si- nistro do Nirvana, o trauma se inscreve agora fora da 26 Prefácio temporalidade histórica, isto é, na exterioridade do tem- po da narrativa e da eternidade do desejo. Como presen- ça absoluta, o trauma e a sedução evidenciam a pontuali- dade do tempo, posto que é puro acontecimento. Como eterno presente, que insiste em se apresentar, o trauma está fora da dialétíca da temporalidade histórica, na qual entre o passado, o presente e o futuro se forja o tecido intrincado de uma história. Por isso mesmo o trauma e a sedução eviden- ciam algo que se situa na exterioridade da história, isto é, da temporalidade cadenciada do desejo e da narrativa concatenada dos acontecimentos. Seria isso que delinearia a categoria do infantil no per- curso final do discurso freudiano. O infantil como voca- ção fundante do sujeito estaria para além da história e da dialética temporal do desejo. Porém o infantil seria, por isso mesmo, a condição de possibilidade para que o sujei- to pudesse constituir uma história e se plasmar pela temporalização. Enfim, sem o solo fundante do infantil o sujeito estaria fadado à imobilidade produzida pela pleni- tude, sem ter qualquer fratura no seu ser que lhe impulsi- onasse para a construção de uma história. VIII. A LÍNGUA DO INFANTIL Nestas passagens pode-se depreender como e onde se realizaram os percursos teórico-clínicos dos discípulos de Freud e dos analistas pós-freudianos no que concerne ao território do infantil. As trilhas, destes e daqueles, foram traçadas sempre para surpreender o que existia de sinistro 27 Joel Bírman no infantil. Para delinear as fronteiras deste território apátrida e sem nome, pois situado fora do tempo e da história, os psicanalistas foram obrigados a aprofundar os enunciados de Freud na direção de um além daquele bei- jo. Isso porque o infantil enfeixava agora, nos seus desti- nos, impasses e paradoxos, a matéria prima fundamental da experiência psicanalítica. A direção da cura psicanalí- tica se centrava em constituir destinos possíveis para o infantil, de maneira a inscrevê-lo no campo do desejo e do erotismo. Seria esta a única forma de transformar a substancialidade sinistra do infantil em história, marcan- do-o pela dialética da temporalidade. Trata-se, pois, de se defrontar com o infantil em estado nascente, para transformá-lo nos primórdios de uma história para o su- jeito. Como origem, imobilizado pela presença absoluta da morte, o infantil seria finalmente a condição de possi- bilidade para ofiat lux do sujeito, numa história cadenciada pelo desejo. Foi nesta trilha de pesquisa que foram empreendidos os percursos de Ferenczi no final de sua obra. Realizou-se aqui, diga-se de passagem, o que este fez de mais criarivo para o conhecimento psicanalítico do sujeito, tanto no registro teórico quanto no manejo clínico de situações consideradas impossíveis para a comunidade analítica de então. É preciso reconhecer aqui não apenas a originali- dade do discurso ferencziano frente aos seus contemporâ- neos, como também o seu lugar privilegiado para delinear o campo da psicanálise na atualidade. Isso porque soube captar a seriedade que a questão do infantil colocava para a teoria e a clínica psicanalíticas. 28 Prefacie Reconhecendo, nos anos 1920, a fecundidade teórica das novas leituras freudianas sobre o infantil, Ferenczi cons- truiu outros conceitos que lhe permitiram seja inventar novos procedimentos metodológicos para a experiência analítica, seja reinventar em outros termos a versão freudiana final sobre o infantil. É justamente aqui que se inscreve o Lugar de criador ocupado por Ferenczi na his- tória da psicanálise, assim como a sua imensa atualidade.No que concerne a isso tudo é sempre o infantil que está em questão no seu discurso, sendo esta a sua problemática sine qua non. Nesta perspectiva, Ferenczi retoma o início do per- curso freudiano para inverter o seu sentido, pois agora a sedução é uma carícia sinistra e mortífera que lança o sujeito no trauma e na angústia do real. Nesta imersão do sujeito no caos e no dilaceramento fragmentador, no além daquele beijo, é preciso transformar a catarse em neo- catarse30. Pela mediação desta atualização transferencial o trauma poderia revelar a sua dimensão trágica pára ser inscrito numa história. Esta, como qualquer outra histó- ria, se faz pela corporeidade e pelo afeto que a escande como narrativa. Foi esta retomada do afeto que Ferenczi realizou na experiência psicanalítica, fazendo trabalhar a hipótese freudiana da pulsão de morte. Com isso, procu- rou dar conta do excesso que impregna o psiquismo do sujeito, oferecendo trilhas possíveis para o seu desdobra- mento e simbolização pela neo-catarse. É sempre os des- tinos possíveis para este excesso o que está em questão. 30 Ferenzi, S. "Princípio de relaxamento e neo-catarse" (1930). Em: Ferenczi, S. Obras Ccnrtffetas. Volume IV. São Paulo, Martins Fontes, 1992. 29 Joeí Birman Por isso mesmo, em Confusão de língua entre os adultos e a criança pôde contrapor a dita linguagem da ternura à linguagem da paixão, para dar conta daquele excesso no sujeito que se materializaria como desamparo e fragmen- tação psíquicas31. Com efeito, o infante seria marcado traumaticamente pelo adulto justamente porque, falando a linguagem da ternura, não poderia ter meios para domi- nar a linguagem da paixão deste último. Esta seria marcada pela perversidade, pela dimensão mortífera da sedução. Com isso, se fragmentaria de maneira pulverizante, pois buscaria num desmentido silenciar psiquicamente aquilo que se evidencia de forma clamorosa no seu corpo, isto é, a sedução sinistra de que foi objeto. Neste contexto, o sujeito se constitui numa posição de "criança sábia", maneira pela qual procura manter de maneira idealizada as figuras parentais32. Com isso se ocul- tam seus gestos perversos, a sua face torpe e horrenda. A raiva provocada pela submissão masoquista e pela mani- pulação de que foi objeto conduziria o sujeito para o reco- nhecimento da linguagem da paixão. Seria esta a via para se dominar o infantil, inscrevendo-o numa temporalidade e transformando-o numa narrativa. Este infantil por vocação estaria na base do sujeito, fundando o seu ser, nos diz literalmente Ferenczi. Seria por isso mesmo que qualquer análise de adulto implicará sempre na análise do infantil33. Este fala continuamente 31 Ferenczi, S. "Confusão de língua entre os adultos e a criança" (1933). Idem. 32 Ferenczi, S. "O sonho do bebé sábio". Idem. Volume III, 33 Ferenczi, S. "Análise de criança com adultos" (1932). Idem. Volume IV. 30 Prefácio a linguagem da ternura, maneira pela qual o sujeito procura salvar a face hedionda das figuras parentais e mesmo parodoxalmente de curá-las. O exercício do psicanalisar em última instância implicaria, pois, na instauração de uma outra linguagem, pela qual se eva- porariam o desmentido e a fragmentação, oferecendo ao sujeito outros destinos possíveis para o seu excesso e desamparo. ix, ARCAICO E ORIGINÁRIO Foi justamente este eixo teórico-clínico, fundado no último Freud e em Ferenczi, que marcou a leitura pós- freudiana sobre o infantil, no que esta teve de mais fasci- nante e de fecunda. Esta é ainda uma das vias mais ricas da psicanálise na atualidade, revelando a sua pujança e o seu fôlego inventivo. Ainda hoje se mantém, em suas li- nha gerais, esta concepção do psicanalisar. Desta maneira, a dimensão estrutural do infantil — o infantil por vocação, repito — passaria a revelar a leitura do sujeito e marcar as vicissitudes do processo psicana- lítico. Não haveria análise sem que o infantil fosse a cai- xa de Pandora do psicanalisar, a sua finalidade. Isso se evidencia pela obviedade de que, no fundamental, mes- mo os oponentes teóricos vão na mesma direção da cura psicanalítica. As contradições doutrinárias, no que concerne a isso, são secundárias face a esta finalidade es- tratégica imposta pelo psicanalisar. 31 Joel Bírman Assim, se em Melaine Klein o infantil se revela dra- maticamente pela posição esquizo-paranóide, que deve ser dominada pela lógica da posição depressiva34, o infan- til em Winnicott se enuncia de maneira mais suave pelos efeitos do espaço transicional e da mãe suficientemente boa35. Apesar das diferenças teóricas óbvias nestas con- cepções do psicanalisar, é sempre o infantil que está em questão para ambos. Isso para me referir à tradição ingle- sa da psicanálise em sua face mais fecunda e criativa. Contudo, na tradição francesa o infantil se enunciou de maneira diferente no discurso psicanalítico, por dife- rentes autores. Com efeito, nesta direção de pesquisa a categoria do infantil se enunciou pelos conceitos de arcai- co e originário em diversos discursos sejam estes de Conrad Stein36, de Piera Aulagnier37 e de Jean Laplanche38. Nes- te, a concepção do originário se funda na teoria da sedu- ção generalizada, maneira pela qual Laplanche funde as concepções de Freud e de Ferenczi para fazer a passagem para a psicanálise da atualidade. s E como arcaico e originário que o infantil se apresenta ainda na atualidade psicanalítica. Nestes termos, o infan- til seria aquilo que se situaria fora da temporalidade do desejo e da construção da narrativa histórica, isto é, num tempo primordial marcado pela presença absoluta do trau- ma e da ameaça flagrante de morte. Neste registro a mor- 34 Klein, M. Psicanálise da criança. São Paulo, Mestre Jou, 1975. 35 Winnicott, D. W- Piayingand recduy. London, Penguin Books, 1988. 36 Stein, C. Venfant imagina/ré. Paris, Denõel, 1971. 37 Aulagnier, P. La vtolence de 1'interpretatian. Paris, PUF, 1975. 38 Laplanche, J. NoiweauxfonàemenKfiMThpsydvmaiyx. Paris, PUF, 1987. 32 Prefácio te seria soberana, na sua absoluta presença que obceca completamente o sujeito. O infantil seria aquilo que não se fez ainda história, estando colado como presença no registro do acontecimento. Como tal o infantil seria do registro do mito, daquilo que fala de maneira circular e insistente do Mesmo, onde o Outro como alteridade radi- cal ainda não se inscreveu pela dialética do presente, do passado e do futuro. Porém é evidente que, como mito e como origem, o infantil seria a condição do sujeito cons- truir uma história, forjando pela ficção uma narrativa ca- denciada de seus primórdios. Com efeito, o infantil seria então a marca impressa no corpo da impossibilidade humana, no seu esforço sempre recomeçado para tornar possível o sujeito, que revela a finitude humana no seu confronto permanente com a morte. Naquela se evidencia contudo a única possibilida- de de historização para o sujeito, que de sua incompletude será fadado necessariamente à simbolização do seu exces- so e de suas intensidades. Desta maneira, poderá aquele dominar as marcas de seus traumas que lanham o seu corpo frágil e quebradiço, para dar um destino suportável à sua vocação para o desamparo. X. UM BEIJO, AFINAL DAS CONTAS É nesta linha de pesquisa que se inscreve este belo livro, escrito a quatro mãos por duas psicanalistas inquie- tas com os destinos atuais da psicanálise. Nos nove ensai- os que compõem esta obra fecunda de boas ideias, ambas 33 Jocl Birman procuram retomar, numa linguagem nova, a problemáti- ca do infantil na atualidade do campo psicanalítico. Per- correndo a trilha teórica que se construiu com Freud e Ferenczi, as autoras desdobram a sua reflexão através de Lacan, de Winnicott e de Melaine Klein, relançando o infantil nos percursos atuais do mundo psicanalítico, e procuram introduzir na psicanálise os desenvolvimentosatuais da pesquisa científica com bebés, como o trabalho de Daniel Stern, e de reflexão filosófica, como o de Gilles Deleuze e Félix Guattari, para repensar hoje no estatuto do infantil. Evidencia-se assim a riqueza desta obra que procura circunscrever o deslocamento cruciai que se ope- rou pela psicanálise da "análise da infância ao infantil na análise". Para a realização deste projeto, entretanto, é preciso quebrar com as muralhas que emparedam o campo psica- nalítico da atualidade. Com efeito, é preciso ultrapassar a casca superficial das diferentes doutrinas, para fazê-las dialogar entre si sobre o infantil. Com isso, promover a interlocução entre os surdos, permitindo que os mudos possam falar entre si de maneira inteligente. As autoras revelam a sua grandeza de espírito ao se valerem da ri- queza da tradição psicanalítica sem qualquer mesquinha- ria e mentalidade de seita, para possibilitarem o diálogo de diferentes autores sobre o infantil na psicanálise da atualidade. Despidas de preconceitos, fazem Freud dialo- gar com Ferenczi, apesar de suas broncas recíprocas. Da mesma maneira, fazem ambos dialogarem não apenas com os analistas pós-freudianos, mas também com a tradição científica e filosófica da atualidade. Com isso, Lacan pode 34 Prefácio retomar o seu diálogo interrompido com Melaine Klein e com Winnicott— algo hoje já esquecido—, para relançar a problemática do infantil na psicanálise e delinear os des- tinos desta na atualidade. Porém isso não é tudo. Ainda bem! O debate teórico e conceituai não fica preso a si mesmo, ao suposto rigorismo da lógica teórica. As autoras pretendem sair do suposto rigor da escolástica conceituai, que se revela de uma grande esterilidade intelectual; dão um chega para lá na infecundidade de certas querelas atuais do campo psicanalítico, presas na repetição fatigante dos credos das posições doutrinárias. Dizem em surdina: chega de masturbação teórica! Assim nos convidam para o verda- deiro trabalho intelectual na psicanálise. Ufa! Que alívio poder sair desta sopa entediante que tira o gosto agradá- vel das boas discussões e nos deixa amargos. Para a realização disso as autoras evocam que no cam- po psicanalítico a construção conceituai se relaciona com o registro da clínica. Este é o segredo de Polichinelo da produção intelectual na psicanálise, segredo que os psica- nalistas frequentemente esquecem tal a sua obviedade. Com efeito, para se mostrar fecunda a retórica dos con- ceitos se nutre de seu solo, isto é, de uma reflexão sempre recomeçada sobre a experiência psicanalítica. Esta é a única possibilidade para a sua renovação, para dar frescor aos conceitos e retirá-los da condição cadavérica de enti- dades platónicas. Desde os tempos heróicos da constituição da psica- nálise sempre foi pela via de uma indagação inquieta sobre a experiência analítica que a teorização se realizou; 35 Joel Birman de maneira febril, pois o que interessava aos psicanalistas era captar os desdobramentos e as vicissitudes daquela experiência seminal. Nas últimas décadas do movimento psicanalítico isso foi esquecido e a teorização em psicaná- lise se transformou numa retórica estéril. Esta é a razão pela qual o discurso psicanalítico se transformou em dife- rentes doutrinas rivais, que nas suas mediocridades e fundamentalismos não debateram mais entre si, mas se digladiam como numa guerra de religiões. No Brasil, esta condição pequena do campo psicana- lítico atinge o nível do descalabro. Ao perder a ligação orgânica com o solo fecundo da experiência, a retórica escolástica dos conceitos atinge entre nós os pináculos da surrealidade. Com isso, a escolástica psicanalítica se tor- na absurda e caricata pois não diz mais nada; transforma- se num simples jogo vazio de palavras, completamente deserotizado e sem tempero. As autoras deste livro nadam contra a corrente, no que concerne a isso também. Não são as únicas, eviden- temente. Porém engrossam o manancial daqueles que se contrapõem a esta hipocrisia de uma parcela significativa do campo psicanalítico da atualidade. Para isso, traba- lham conceitualmente considerando as suas experiências clínicas. Ousam expor as suas experiências psicanalíticas, nos seus sucessos e fracassos, para renovar a leitura conceituai em psicanálise e possibilitar a interlocução cri- ativa entre as diferentes tradições psicanalíticas. Para isso é preciso leveza. Vale dizer, é preciso um es- pírito desprendido e lúdico. Para se trabalhar com o in- fantil em psicanálise, encarando a finitude e o confronto 36 Prefácio insistente com a morte, necessário é se perguntar sobre o brincar na sua banalidade ontológica. É preciso ter hu- mildade e grandeza para se reconhecer que esta banalida- de não é tão óbvia assim. É por isso que o brincar ocupa uma posição estratégica nesta obra não apenas para re- pensar o lugar deste método na análise de crianças, mas também para inscrevê-lo na análise de adultos. Pode pen- sar, pois, na possibilidade de sua inserção no tratamento de crianças hospitalizadas. Para concluir, é preciso evocar ainda que as questões da atualidade, além de serem o solo da experiência psica- nalítica, são o outro do debate conceituai. A renovação da psicanálise como teoria sempre se realizou pelas vias da clínica e da sensibilidade para as questões atuais da cultura, sem as quais aquela perde qualquer gosto e inte- resse. No que concerne a isso também a obra mostra o seu tempero, voltando-se para questões muito atuais, como o suicídio de crianças e o impacto da televisão no imagi- nário infantil. Por tudo isso, em suma, trata-se de um livro renova- dor do espírito da psicanálise no Brasil, que nos revela que esta começa a entrar na maturidade de maneira deci- siva, apesar de seus tropeços inevitáveis. Já era tempo, afinal das contas. Ganhamos com isso um beijo, não si- nistro, evidentemente. Rio de Janeiro, 20 de abril de 1997 Joel Birman 37 INTRODUÇÃO O que leva o psicanalista a escrever? O interesse teórico, clínico, o desejo, e mesmo a necessidade de expressar suas ideias, compartilhá-las com outros, sair da solidão do con- sultório? Um pouco disto tudo e mais ainda, provavelmente. A ideia deste livro nasceu da experiência de uma es- crita conjunta na qual duas analistas resolveram elaborar um trabalho de reflexão sobre um caso clínico. O que nos entusiasmou foram, dentre outras coisas — como sempre existem muitas—, nossas diferenças, pois nossas práticas clí- nicas e origens teóricas são distintas. Uma vem dedicando- se ao atendimento de crianças e a outra, à clínica de adultos. No entanto, fomos descobrindo em nossas conversas e estu- dos que esta diferença, ao invés de nos afastar e dificultar a discussão, trazia uma curiosa combinação de pensamentos. Desta maneira nasceu um trabalho que buscava es- sencialmente uma aliança no interior das diferenças em lugar de excluí-las, pois esta é uma das grandes dificulda- des da prática analítica. De maneira geral os analistas se agrupam pelas semelhanças de suas escolhas e tendem a desconsiderar as outras possíveis. Reproduz-se no campo psicanalítico a tendência da ciência moderna de colocar- se como a única ficção possível, passando a constituir um campo de verdade inquestionável e fechando-se às dis- cussões e aos diálogos teóricos. 39 nta Roza ffEliana Schweler Reis Temos todos, inclusive, dificuldade em reconhecer a legitimidade de outras práticas terapêuticas, reproduzin- do um pouco a preocupação da medicina moderna em depurar seu campo de ação para diferenciá-lo do que se- ria charlatanismo. O que a medicina faz com o que ela chama de "efeito placebo", nós psicanalistas tendemos a fazer com as correntes diferentes das que escolhemos. Acabamos por nos esquecer que fizemos uma escolha, considerando nossa posição como a única verdadeiramen- te psic analítica; tomamosas demais como erros e credita- mos seus efeitos terapêuticos à incomensurabilidade da transferência, ou seja, mera sugestão. O que buscamos desfiar ao longo deste livro — atra- vessando as diferenças e similitudes conceituais de vários autores — é a ideia de que as indagações relativas à aná- lise de crianças são fundamentais para a prática da psica- nálise, já que o infantil se apresenta no espaço analítico como o que não se deixou domar, muitas vezes como o inominável, o trauma que impede a organização de senti- dos múltiplos que possam se entrelaçar em desejos. Não importa, portanto, se o paciente é uma criança ou não, importa sim que o analista possa se entegrar com seu ana- lisando à aventura de tornar visível o que se oculta, dizível o não dito, e mais do que isso, tornar possível a emergên- cia de algo que, mesmo estando presente como marca de um vivido, não existe como lembrança, não se aproveita como experiência, não se enuncia como desejo. Falar da análise da infância é falar do infantil na aná- lise, é falar do brincar como processo de organização, lin- guagem, expressão e complexificação da vida. O que é a 40 Introdução transferência senão a possibilidade de encenarmos nossos teatros próprios, de brincarmos de "esconde-esconde", de "mamãe-posso-ir", de "estátua", de "papai e mamãe", de "passar anel" e tantos outros. Cada sessão de análise põe em jogo um novo cenário e uma nova direção que podem modificar os antigos roteiros. Este livro foi uma forma de brincarmos juntando nos- sas histórias, nossa prática clínica, nossas leituras e inte- resses teóricos com a intenção de trazer para o texto um pouco do prazer que tivemos conversando e discutindo as questões e os ternas tratados. O livro é também a continu- ação e o desenvolvimento de nossos trabalhos anteriores1. Durante sua elaboração procuramos pensar os impasses de nossas experiências clínicas. Cada texto resultou do que disso compartilhamos. Da análise na infância ao in- fantil na análise, de um caso clínico elaborado a quatro mãos configurou-se uma parceria na qual tentamos aprofundar a reflexão sobre temas que vão desde os clas- sicamente psicanalíticos, como sonhos, trauma, jogo, lin- guagem, narcisismo e teoria das pulsões, até os que tratam de questões polémicas da atualidade, como heterogênese e complexidade. Esperamos que o resultado deste encontro transmita aos leitores alguma coisa deste prazer, pois acreditamos que para produzir conhecimento é preciso afetar e se dei- xar afetar com intensidade pelo outro e pelo mundo. l Trauma e repetição no processo psiccmalítíco: umaobordagem/erencziana, dissertação de mestrado em teoria pskanalítica de Eliana Schueler Reis, e Quando brincar é dizer: a experiência psicanalíaca na infância, de Eliza Santa Roza. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2a ed., 1995. 41 DE UMA ANÁLISE NA INFÂNCIA AO INFANTIL NA ANÁLISE trauma, repetição e diferença em Ferenczi Eliana Schueler Reis & Eliza Santa Roza Em abril de 1979 uma analista recebeu em seu con- sultório um menino de quatro anos, indicado por uma colega que havia sido procurada para uma orientação um ano antes, ocasião em que Mário—é como vamos chamá-lo — perdera sua mãe num acidente de carro. Eis seu relato colhido na primeira entrevista com a avó paterna: Mário e sua mãe iam à praia, o carro foi fechado por um ônibus e, ao desviar-se, atingiu um poste. No impacto, a mãe de Mário foi jogada contra o volante mas não ficou inconsciente, não teve ferimentos aparentes; foi levada a um hospital para exames e lá entrou choque e morreu, em consequência de uma hemorragia interna. O menino nada sofreu e foi Levado do local do acidente para casa dos avós por uma viatura da polícia. 43 Elicna ScKucler Reis & Elica Santa Roza A partir deste fato uma problemática familiar foi acir- rada: sua avó materna, que sempre fora contra o casa- mento de seus pais, tendo perdido a única filha mulher, passou a acusar o genro — que tinha apenas 21 anos — de ter sido o causador da fatalidade pois havia dado um carro à esposa; o pai de Mário retornou à casa paterna e elegeu seus pais para cuidarem de seu filho, o que desen- cadeou uma disputa das famílias por ele. De um lado a avó materna jogando-o contra o pai e estimulando as lem- branças da mãe (mostrava fotos, levava-o ao cemitério para ver o túmulo); de outro a família paterna evitando o assunto, adiando a notícia da morte por considerarem-no muito pequeno (diziam que a mãe havia viajado), procu- rando "aplacar" a dor de Mário com excesso de carinho , presentes e poucos limites. Mário tornou-se um verdadeiro "problema": agitado, desobediente, provocador. Gritava, quebrava coisas à toa, fugia na rua, xingava a todos, corria sem parar. Fazia, se- gundo o relato da avó, "todo o tipo de bobagens" em casa e na escola. Quando visitava sua avó materna, voltava "pior", dizendo "barbaridades" como: "Foi meu pai que matou minha mãe". No primeiro contato com Mário a analista se deparou "ao vivo" com as descrições da avó. Uma criança muito agitada, correndo o tempo todo pelo consultório, acen- dendo e apagando as luzes, gargalhando, derrubando li- vros e papéis, tentando passar cola nos móveis e na roupa da analista numa atitude francamente provocativa. Aos limites reagia dizendo: "Você não me manda". 44 Da análise na infância ao infantil na análise Na segunda sessão Mário se apresentou de modo se- melhante mas já conseguiu explorar os brinquedos, e deu- se o estabelecimento da transferência. Pegou um carri- nho vermelho e atirou-o longe, dizendo: "O carro da mi- nha mãe era vermelho, eu odeio vermelho". A analista lhe disse que devia odiar tudo o que lhe lembrava que não tinha mais urna mamãe, e Mário respondeu: "Você é mágica? Adivinhou como?" Após este breve diálogo Mário retornou à agitação e às gargalhadas ante a impossibilidade do adulto de limitá-lo; era rápido demais. Pegou o molho de chaves na porta, correu para a janela ameaçando atirá-lo, e disse: "Agora nunca mais vamos sair daqui, vou ficar a vida toda aqui". A analista se aproximou lentamente, dizendo que aquilo não iria adiantar, pois teriam que se separar em algum momento mas que haveriam mui- tos outros encontros entre eles. Ele ouviu, saiu da ja- nela e entregou as chaves. As sessões subsequentes deram início a uma série de jogos Fort-Da: abria e fechava janelas, apagava e acendia luzes, destacava papéis, rasgava-os e tentava colar. Em algumas sessões seu próprio corpo era objeto: numa delas saiu correndo da sala, voltou, foi para o corredor do pré- dio. A avó ameaçou dar-lhe palmadas mas não o fez. A analista sinalizou o seu desejo de sentir-se protegido con- tra si mesmo, pedindo limites, e a avó, compreendendo esta fala, virou-se para Mário e lhe deu umas palmadinhas. Mário chorou, entrou na sala quietinho, encostou-se no corpo da analista e ficaram olhando a rua. 45 Eliana Schweler Reii & Elí^a San O controle, o desafio, o triunfo, o pedido de limites surgiram em quase todas as sessões durante os dois pri- j meiros anos de análise. Mário testava a capacidade da analista de sobreviver a ele; dela não desviava seu olhar e a capturava por inteiro ao tentar estragar coisas, sujar a sala, espalhar os livros etc. Numa ocasião falou sobre seu medo de monstros. Algo assustador e monstruoso dentro dele retornava como fantasia fóbica. Ele próprio se torna- ra uma espécie de monstro: criança insuportável e sem li- mites. Custava-lhe muito ter que separar-se da analista e assim instauraram-se fenómenos transictonais1. Mário leva- va pequenos objetos a cada final de sessão e não os largava nem para dormir. Ele dizia: "Vou levar seus negócios". No começo do terceiro ano de análise ocorreu uma mudança substancial em Mário imediatamente após uma determinada sessão. Nesta sessão, pediu para ir ao banhei- ro logo que chegou. Como demorasse, a analistafoi ver o que estava havendo e encontrou Mário manipulando o extintor de incêndio. Tentou impedir que abrisse a vál- vula mas já era tarde. Acionado o extintor, a espuma saía em jatos, atingindo a analista e todo o banheiro, enquan- to Mário dava gargalhadas. Travaram uma luta corporal e em seguida a analista com raiva encerrou a sessão di- zendo: "Você passou dos limites. Suma-se daqui. Não quero mais lhe ver hoje". Espantadíssimo com esta reação Mário perguntou baixi- nho: "E na próxima vez, eu venho?" A analista o reassegurou do retorno dizendo que o esperava na sessão seguinte. l Winnicott, D.W. Pltrçing ara! reality. Londres, Penguin Books, 1988. 46 Da análise nu infância ao infantil na análise Mário voltou com medo, tímido e assustado. Mas já não era mais o mesmo. Propôs uma brincadeira de "cair no poço e salvar" que consistia em dividir a sala em regi- ões: os poços de jacarés, cobras etc.; cada um na sua vez deveria "cair", gritar por socorro e ser salvo. Analista e cri- ança alternavam os papéis de vítima e salvador. A dupla so- breviveu ao ódio, e disso brincaram durante meses. A partir daí a análise transcorreu de forma mais tran- quila; Mário passou efetivamente a brincar e falar. Atua- va bem menos, estava muito melhor em casa e na escola. Aos oito anos quis interromper e aos nove pediu para voltar, tendo ficado mais um ano e trabalhado pratica- mente uma única temática: o novo casamento de seu pai. Quinze anos depois do primeiro encontro de Mário com a analista, esta recebe um telefonema seu, pedindo um retorno à análise. O rapaz está com 19 anos e traz queixas de excesso de nervosismo e "descontrole"; dorme mal e tem fortes dores no estômago. Briga com a namora- da e tem medo de machucá-la. Qual a questão fundamental que permeia a vida de Mário e que o traz de volta à análise tantos anos depois? Embora esta situação suscite a discussão sobre o final de análise na infância, este caso, se considerarmos os dados referentes à análise atual de Mário, também nos conduz ao caminho da problemática do trauma. A partir das con- cepções de Ferenczi tentaremos tecer algumas reflexões, procurando traçar os elos entre os dois períodos de análise deste caso. O que vemos inicialmente é uma situação de polari- zação, na qual uma família explora a morte da filha (mãe 47 Eliana Scliweler Reis & Eliza Santa Ro^a de Mário), enquanto a outra evita disso falar. Porém, o acontecimento foi negado por ambas e não houve como realizar o luto pela morta. Como Mário poderia dar senti- do ao seu vivido — o acidente —, se o sentido ficou esfa- celado nessas duas versões? Se aderisse à versão dos avós maternos, teria que encarar o pai como assassino. Como fazer uma identificação com um pai infantil e assassino, sem se tornar um monstro? Por outro lado, os avós paternos, que foram designa- dos por este pai para dele cuidar, não assumiram uma ver- são própria, ou seja, "quem cala consente". A Mário res- tou a dúvida crucial: Será seu pai o culpado? Ou, o pior de tudo, será que o culpado não é ele próprio, Mário? O que se passou no imaginário dessas duas famílias, girando em torno de um acontecimento dramático? Má- rio não podia elaborar sua perda, uma vez que ninguém a sua volta pôde fazê-lo. A culpa parecia atravessar a todos, não poupando ninguém, Mário tornou-se então o ponto de tensão máxima de toda a história. Foi a testemunha chave e ao mesmo tempo aquele que não morreu, que sobreviveu no lugar do outro. Ele é culpado de viver. Mário — "(...) Estou apavorado. Acho que minha na- morada está grávida(...) Eu não quero filho, mas e se ela fizer um aborto e morrer? Eu vou ser o responsável(...) Ai, já estou até vendo, a cadeia, a polícia vindo me pé- gar(...) Ai..." Analista — "Polícia? O que te lembra polícia?" Mário — "Nada(...) Nunca tive nada com a polícia, graças a Deus(...) Pêra aí...no acidente, eu fui no carro da polícia... só me lembro disso, eu tinha três anos". 48 De análise na infância ao infantil nfl análise As relações entre a mulher amada, a morte e a culpa surgiram nitidamente nesta sessão. A conduta onipoten- te da criança transformou-se numa problemática obsessi- va na adolescência. Controlado e controlador por sua conta, Mário reproduz na atualidade com a namorada o amor/ódio da relação com a mãe. Seu medo é de que, tal como a mãe, a namorada não sobreviva ao seu ódio, que surge na perspectiva da ideia de um filho, Identificação com o "pai-assassino"? Podemos nos perguntar se a angústia experimentada por Mário chega a se delinear como angústia de castra- ção. A angústia vivida por toda a família, e da qual Mário sempre foi o porta-voz, diz respeito à angústia de separa- ção, angústia de morte. Percebemos que através do me- canismo da negação, utilizado maciçamente, eles tentam escapar da necessidade de afirmar a perda dolorosa, po- rém real. Quantas perdas estariam sendo condensadas naquele acidente fatal? A hipótese que nos parece mais plausível nesse caso é a da auto-clivagem narcísica de Mário. Vejamos melhor esta questão. Ferenczi, definindo sua nova abordagem sobre a ques- tão traumática ligada ao surgimento de angústias incontrolãveis e atuações incoercíveis, afirma que a exis- tência do trauma torna a criança fixada em certas atitu- des obstinadas. "A personalidade ainda fracamente de- senvolvida reage ao brusco desprazer não pela defesa, mas pela identificação ansiosa e a introjeção daquele que a ameaça"2. ZFerenczi, S. "Confusão de língua entre os adultos e acriançan(l933). Em: Obras Completos. Volume IV. São Paulo, Martins Fontes, 1992,p.l03. 49 Scfmeler Reis & Elizo Santa Roca Como já assinalamos, a questão da identificação sur- ge de modo assustador posto que Mário só pode se identi- ficar com um pai acusado da morte de sua mãe e que não pôde se desfazer dessa acusação, pois se omitiu e não as- sumiu o lugar de pai de seu filho. Mário não teve como desenvolver sua capacidade de juízo, já que lhe faltaram os elementos para elaborá-la. A palavra, o sentido, a significação se apresentavam muito comprometidos nessa família. A avó dizia que ia dar uma palmada, mas não fazia um gesto efetivo nesse sentido, ficando uma palavra vazia. O jogo de Fort-Da, que Mário esboçava quando criança, implicava em lan- çar a si próprio no abismo. Não havia uma simbolização possível da angústia de separação pois estavam todos pre- sos a ela tentando negá-la. Mário fala de seu carro em praticamente todas as ses- sões desde seu retorno à análise. Tem tanto medo de que seja roubado que não consegue aproveitar uma festa. Ele próprio é seu guardador, tendo que sak da festa inúmeras vezes para verificar se o carro continua no lugar em que estacionou, se não tem pessoas sentadas em cima dele etc. O jogo de Forí-Da que Mário empreendia com o próprio corpo na infância é agora deslocado para o carro. Mário — "Quando estou na praia, paro o carro num lugar que eu possa ver quando subo na onda. O pessoal fica me sacaneando, porque às vezes não desço em onda boa só para não perder o carro de vista". Na verdade, desde o início Mário pareceu ser o único do grupo a afirmar a necessidade de elaboração da perda. Ao tornar a vida de todos insuportável quando criança, 50 Da análise na infanda ao in/tmti! na análise ele tentava forçá-los a olhar para o seu drama. De uma certa forma, Mário encarnava o papel de "psiquiatra da família". Este termo foi cunhado por Ferenczi para designar a reação da criança a uma experiência que não pode ser elaborada pelo grupo familiar, recaindo sobre ela a res- ponsabilidade pelo sofrimento dos outros. Esta criança sente-se encarregada de "cuidar" dos outros membros da família, ficando submetida a um "saber" que não se liga aos afetos. Há uma clivagem entre um eu machucado e um "eu que tudo sabe e nada sente".3 Mário era o psiquiatra louco que enlouqueciaa famí- lia para que ela não se esquecesse de sua história. O pro- blema é que ele, como criança, não podia dar sentido aos seus afetos e aos dos outros. Desse modo, nada se ligava, ficando somente a tentativa desesperada de Mário para dar um sentido à perda do objeto (mãe, pai etc.) O traumático no caso de Mário não foi o acidente em si, mas a impossibilidade de representá-lo segundo um código significativo para todos os envolvidos. O acidente não encontrou um equivalente simbólico, ficando então como puro acontecimento, fixado no seu presente, não podendo se tornar passado, memória, e ser esquecido. A impossibilidade de fazer ligações ameaça romper com o sentido e estabelecer a primazia da pulsão de morte. Seus comportamentos de criança terrível apon- tavam para isso. Suas atuações no curso da análise atual reforçam esta hipótese: 3 Ferenczi, S. "Análise de Crianças com Adultos"(1932). Em: Obras Completas. Volume IV, op. cit., p. 77. 51 Elidia Schueler Reis & E\i& Santo Rota Mário — "Vou viajar, adoro. As estradas são perigosas mas eu ando a HO km por hora, assim me livro delas mais rápido e corro menos perigo..." Em sua "lógica" consciente Mário atira-se à repeti- ção. No terceiro mês desta análise sofre um grave acidente, porém mais uma vez não se fere. Mário — "Acabei com o carro [descreve o acidente]. Ninguém sabe como não me machuquei... Foi milagre... Foi o destino... Não tenho mesmo que morrer de aciden- te de carro!" Analista — "E você está tentando? Testando?" Mário ri e diz: "A primeira coisa que fiz foi perguntar ao meu pai se meu acidente foi igual ao de minha mãe". Sabemos que o trabalho de luto normalmente é feito atra- vés de uma ligação hiperacentuada com o objeto, para então decompô-lo em suas mínimas partes, podendo des- te modo o sujeito enlutado introjetar sua relação com o objeto perdido, transformando-a em investimentos de objetos internos e desfazendo-se gradualmente do objeto perdido como presença4. Os movimentos de Mário — li- gar e desligar, ir e vir, brincar e destruir—representavam sua tentativa de trabalho de luto pela morte da mãe, rea- lizado na transferência à analista. No primeiro período da análise de Mário o momento crucial que possibilitou a reconstrução/destruição do ob- jeto e conseqúentemente a elaboração de algum luto, deu- se na sessão em que a analista o mandou embora. Essa palavra, esse gesto reafirmaram a existência de Mário, 4 Freud, S. "Duelo y Melancolfan(1917). Em: Obras Completas. Volu- me XIV. Buenos Aires: Amorrortu,1986, p.241-55. 52 Da analise na in/ância ao infantil na análise confirmaram para ele a sua substancialidade assim como a da analista. Não podia fazer tudo porque os dois existi- am e ela sabia cuidar de sua (da analista, e dele, analisan- do) segurança. Ao mesmo tempo, quando a analista ex- pressou sua indignação, ela o reconheceu como sujeito existente, colocando-o num plano de consistência em que nunca se encontrara: o da responsabilidade pelos seus atos e pelas consequências destes sobre o outro. Introduziu-se aí a possibilidade de um desejo para Mário. Nessa sessão em que houve uma ruptura, reafirmou- se o laço transferencial. Já podia haver uma salvação para Mário e seus objetos. A ruptura fazia-se necessária para que pudesse haver uma (re)ligação dos objetos fantasmáticos. O que podemos pensar sobre a vivência traumática de Mário é que ela não pode ser pensada simplesmente como resultante da morte da mãe. Esta morte ativou vá- rios conflitos existentes no grupo familiar, conflitos estes que se fixaram em torno do acontecimento. Temos então algo semelhante ao desmentido a que se refere Ferenczi. O choque traumático produz uma reação de "anestesia", a "comoção psíquica" que interrompe a ati- vidade psíquica, desligando-a da percepção. A ligação só pode ser refeita à medida que houver um outro sujeito que atue como mediador. Desse modo, um acontecimen- to violento que atinja uma criança, de tal modo que ela não tenha condições de significar, terá um efeito traumá- tico se não houver um adulto (portador da palavra) que exerça uma função interpretante. Se o acontecimento não puder ser repetido pela palavra, através da narrativa a um 53 Efíana Schweler Reis & Elíia Santa Roja outro que possa servir como receptor/transmissor, sua viru- lência não será mediada, permanecendo como uma marca fixa inquestionável, porque não representada5. A noção de desmentido recoloca o traumático na or- dem da linguagem, criando porém o espaço necessário para pensarmos aquilo que, sendo da ordem da percep- ção, irrompe no vivido mas deixa de ser representado. Havendo o desmentido, há trauma e há a clivagem do eu. Mário costuma dizer agora que não confia em ninguém. "Todos mentem para mim", diz ele. O acontecimento traumático sendo desmentido não tem como se inscrever no campo das representações, pas- sando a existir como uma memória sem memória, ou seja, suas marcas se apresentam como reais, atuais, no sentido das neuroses atuais, identificadas por Freud como afecções sem conteúdo psíquico, manifestadas em sensações cor- porais, crises de cólera, de angústia e fobias. Mário retorna para a análise em busca de sua memó- ria. A analista de sua infância foi a testemunha de sua história e ele crê que é com ela que ele pode reencontrá- la, refazê-la. Vendo o computador em cima da mesa da analista, Mário procura saber: "Você tem a vida de seus pacientes em disquetes?(rindo) Você tem aí um disquete de minha vida? Posso ver?" Perguntado em ocasiões como esta sobre suas lembran- ças da análise anterior, Mário sempre alega que era muito pequeno e que não conseguia lembrar nada. No entanto, no decorrer desta análise vem trazendo lembranças atra- 5 Ferenzi,S. "Análise de Crianças com AduItos"U932), op. cit., p. 79. 54 Da análise na infância ao infantil na análise vês de situações externas relacionadas ao consultório. Lembra das lojas que ficavam embaixo do prédio (a aná- lise atual se passa em outro consultório), lembra da sala "muito grande" (ele é que era pequeno), e às vezes per- gunta. "O que é que eu fazia lá? Minha avó diz que eu tocava o terror..." (e ri). O que Mário procura aos 19 anos é não ter que encarnar mais uma vez em sua vida o terror (schreclc) resultante do trauma. Como sucedâneo da memória Mário tem a repetição. Quando se trata dos afetos ele não tem autonomia, age diretamente comandado pela repetição. O perigo apare- ce nos repetitivos sonhos com cobras, que ele associa com o veneno e por sua vez com as mulheres. "As mulheres são veneno". O que estará sendo expresso nessa frase? O perigo representado pela sua proximidade? A ameaça de morte que paira sobre os seres femininos é equivalente à ameaça que paira sobre ele de se tornar assassino e ter a punição tão esperada, pois como nenhum sentido foi dado, o crime permanece impune. O sentido que permanece fixado é o do crime e castigo. Achamos interessante ressaltar a questão de repeti- ção, inclusive porque Mário busca a mesma analista: "Acho que é você quem pode me ajudar" é uma das frases da primeira entrevista da análise atual. Ele vem repetir com ela na tentativa de fazer as ligações. No momento atual, Mário não consegue um domínio das pulsões posto que está preso no fluxo de repetições. Ao mesmo tempo é nessa repetição da repetição transferencial que ele deposita a esperança de não repetir mais o traumático. Ferenczi fala da repetição na transfe- 55 EKanã Schueler Reis & Elija Santa Roía rência que possibilita a inscrição de algo novo como rememoração. A presença do analista serve de suporte à repetição e no entanto algo é diferente.6 E através da se- melhança e da diferença com sua vida infantil que pode se abrir para Mário o caminho para a solução do trauma. 6 Ferenczi, S. "Princípio de Relaxamento e Nêo-catarse" (1930). Em: Obras Completas. Volume
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