Buscar

Tobias Barreto

Prévia do material em texto

10/15/2019 Tobias Barreto
www.academia.org.br/print/261/textos-escolhidos 1/5
 Academia Brasileira de Letras
Tobias Barreto
DEVE A METAFÍSICA SER CONSIDERADA MORTA?
 I
A questão de saber se a metafísica deva ou não ser considerada como exausta e morta,
escapa, sem dúvida, se não completamente ao programa, pelo menos aos limites desta
pequena folha.
Pedimos, todavia, respeitosamente, ao público a permissão de apresentá-la ao círculo de
nossos leitores e contribuir com algum esforço para a sua solução.
Antes de mais nada, merece reparo como os espíritos em nosso país se portam no que diz
respeito a semelhante indagação. O que melhor e mais acertado se pode afirmar no assunto é
que o ponto de vista filosófico do nosso pretenso mundo científico é caduco e sem o mínimo
préstimo. Não resta a mais leve dúvida que até as estrelas de primeira grandeza, os mais
afamados pensadores e escritores da terra se distinguem pela sua fé implícita no velho Deus da
teologia e da Igreja. Nada sabem de sério do desenvolvimento da vida intelectual do tempo
presente e ousam falar de tudo, de filosofia, de religião, de ciência, e do que falam fazem
grande alarde.
Uma coisa, porém, urge observar e é que com essa enorme ignorância correm emparelhados o
orgulho e o desprezo pelos mais notáveis feitos científicos estrangeiros, notadamente alemães.
É isto suficiente para caracterizar, de um lado a deplorável condição em que nos achamos, e
por outro, justificar o interesse que tomamos em responder à pergunta proposta. Se em nossos
dias nenhum homem verdadeiramente culto deve ignorar que o dogmatismo da metafísica
moderna foi abalado por Hume, cuja implacável crítica coube a Kant concluir em mais largas
proporções e com mais considerável profundeza, há de causar admiração e grande espanto
que tão triviais verdades ainda despertam entre nós.
Certo, antes que Augusto Comte, o fundador do positivismo na França, expelisse o absoluto
para a região das quimeras, já Hume havia derrocado o edifício metafísico (...) Foi, em verdade,
a dúvida do genial filósofo escocês acerca da validade dos juízos sintéticos em geral, que veio a
se tornar o estímulo e a fonte das profundas pesquisas de Kant; e este mesmo declarara, sem
rebuço, que a crítica de Hume é que primeiro o despertara de seu sono dogmático. São, com
efeito, profundamente penetrantes as fortes palavras, como que talhadas em mármore, com que
o terrível céptico inglês fechou seu Ensaio sobre o Espírito Humano. Ele diz: - “Quando,
convictos da doutrina aqui ensinada, penetramos numa biblioteca, que destruição devemos
causar? Tomemos um livro de teologia ou de metafísica e perguntemos: contém investigações
sobre grandezas e números? Não. Contém o resultado de experiências acerca de fatos e
realidades existentes? Não. Jogue-se então o livro ao fogo, porque não poderá conter nada
além de sofisticarias e mistificações”. - Profunda e belamente dito.
10/15/2019 Tobias Barreto
www.academia.org.br/print/261/textos-escolhidos 2/5
Desde o momento em que semelhantes verdades foram impunemente pronunciadas, a
metafísica deixou de poder ser considerada como pertencente ao grupo das ciências, quer
quando fala do supersensível ou da essência das coisas, quer quando se pronuncia
racionalmente sobre a substância da alma, a origem do mundo, a existência e os atributos da
Divindade.
Toda a filosofia até o aparecimento de Kant, como ensina Schopenhauer, não passou de um
sonho estéril de falsidade e servilismo intelectual, do qual os novos tempos só se libertaram
pelo grado partido da Crítica da Razão Pura.
E cremos não estar em erro, proferindo a crença de que não teria Kant atingido o seu
desenvolvimento, se não fora o influxo de Hume.
Distinguem-se no período pré-crítico do sistema kantesco dois estádios: no primeiro, esteve o
grande filósofo sob o influxo da filosofia escolástica alemã; no segundo, sob a influência céptica.
Foram principalmente Wolf, Locke e Hume que indicaram os marcos capitais por onde Kant teve
de passar antes de descobrir os seus próprios.
Destarte, se reuniram nele todas as energias e esforços de seus predecessores. A parte de
Hume tinha de ser a mais considerável e duradoura. Somente depois do genial escocês poderia
vir um Kant: a estrada estava aberta, mas só ele a poderia verdadeiramente alargar.
 II
A máxima de que as investigações metafísicas são estéreis em resultados e de que é perda
completa de tempo ocupar o espírito com elas, está em favor entre numerosas pessoas que se
gabam de possuir o senso comum, e nós ouvimo-la às vezes enunciar por autoridades
eminentes, como se sua conseqüência lógica, a supressão desse gênero de estudos, tivesse a
força de uma obrigação moral.
Neste caso, contudo, com noutros análogos, aqueles que promulgam as leis parecem esquecer
que um legislador prudente deve tomar em consideração não só se o que ordena é coisa que se
deva desejar, como ainda se é possível que se lhe obedeça. Porquanto, se a última questão é
resolvida negativamente, não valeria certamente a pena agitar a primeira.
Tal é, efetivamente, a grande força da resposta a dar a todos aqueles que bem quiseram fazer
da metafísica um artigo de puro contrabando espiritual. Que seja para desejar, ou não, o impor
um direito proibitivo sobre as especulações filosóficas, é absolutamente impossível impedir-lhes
a importação no espírito humano. E é assaz curioso notar que aqueles que proclamam com
maiores brados abster-se dessas mercadorias são, ao mesmo tempo e em grande escala,
consumidores inconscientes de uma ou de outra de suas inúmeras falsificações ou imitações e
arremedos. Com a boca cheia de broa grosseira, terrivelmente indigesta, tão de seu gosto,
prorrompem em invectivas contra o pão comum. Em verdade, o tentame de alimentar a
inteligência humana com um regime estreme de metafísica é pouco mais ou menos tão feliz
quanto o de certos pios orientais que pretendiam sustentar o corpo sem destruir vida alguma.
Todos conhecem a anedota do micrógrafo sem contemplação que destruiu a paz de espírito de
um desses doces fanáticos, mostrando-lhe os animais que pululam numa gota de água com a
qual, na cândida inocência de sua alma, ele matava a sede; e o adorador confiante do senso
comum pode expor-se a receber um abalo do mesmo gênero quando o vidro de aumento da
lógica rigorosa revela os germes, se não as formas já adultas, de postulados essencialmente,
fatalmente metafísicos que fervilham entre as ideias mais positivas e até as mais terra-a-terra.
Aconselha-se aí de ordinário ao estudante sério, para o arrancar aos fogos fátuos que brotam
dos pântanos da literatura e da teologia, que se refugie no terreno firme das ciências físicas.
Mas o peixe legendário que pulou da frigideira ao fogo, não era mais tolamente aconselhado do
que o homem que busca um santuário contra a perseguição metafísica entre as paredes do
observatório ou do laboratório. Diz-se que a metafísica deve seu nome ao fato de que, nas
obras de Aristóteles, tratam-se das questões da filosofia pura imediatamente depois das da
10/15/2019 Tobias Barreto
www.academia.org.br/print/261/textos-escolhidos 3/5
física. Se isto é verdade, esta coincidência simboliza com felicidade as relações essenciais das
coisas, porquanto a especulação metafísica segue de tão perto a teoria física quanto os negros
cuidados seguem seu cavaleiro.
Basta mencionar as concepções fundamentais e realmente indispensáveis da filosofia natural
que tratam dos átomos e das forças, ou as da energia potencial, ou as antinomias de um vácuo
ou não vácuo, para lembrar o fundo metafísico da física e da química, ao passo que, no tocante
às ciências biológicas, o caso ainda é mais grave. Que é um indivíduo entre as plantas e os
animais inferiores? Os gêneros e as espécies são realidades ou abstrações? Há uma coisa que
se chama força vital? Ou este nome denota apenas uma relíquia de velho fetichismo
metafísico? A teoria das causas finais é legítima ou ilegítima? Eis aí alguns dos assuntos
metafísicos sugeridos pelo mais elementar estudo dosfatos biológicos.
Não é tudo: pode-se dizer, sem medo de errar, que as raízes de cada sistema de metafísica
repousam no fundo dos fatos da fisiologia. Ninguém pode contestar que os órgãos e as funções
da sensação sejam tanto da esfera do fisiologista quanto o são os órgãos e funções do
movimento, ou os da digestão; e, todavia, é impossível adquirir até o conhecimento dos
rudimentos da fisiologia da sensação sem ser levado diretamente a um dos mais fundamentais
de todos os problemas metafísicos. Com efeito, as operações sensitivas têm sido desde tempos
imemoriais o campo de batalha dos filósofos.
(Ensaios e estudos de Filosofia e Crítica)
 
 
RELATIVIDADE DE TODO CONHECIMENTO
A primeira proposição do programa pretende estabelecer como verdade a relatividade dos
conhecimentos humanos.
Parece à primeira vista que nenhuma dúvida se pode levantar sobre tal produto. Desacreditada
a pretensiosa ontologia metafísica e quase reduzida a proporções de velha mitologia, que tem
perdido o seu primitivo encanto poético, é explicável que a ideia da relatividade de todo o saber
humano viesse substituir o antigo prejuízo dos princípios absolutos e absolutas verdades.
Mas é mister que nos entendamos e tratemos logo de prevenir-nos contra um grande erro, que
pode resultar de uma má interpretação do programa.
Ele começa por dizer que os conhecimentos humanos são relativos. Se com isto quis apenas
significar que os nossos conhecimentos estão na dependência de certas condições, sem cujo
preenchimento eles não podem ser completos, e porque tais condições nunca serão
perfeitamente preenchidas, também eles nunca estarão no caso de se chamarem perfeitos, se
esta é a idéia visada pelo programa, nenhuma contestação.
Não é crível, porém, que a isto se quisesse restringir a proposição mencionada.
A ideia da relatividade de todo o saber não é uma ideia nova; pelo contrário é quase tão velha
como a filosofia. Entretanto, neste século, e mesmo em nossos dias, ela parece ter tomado um
caráter novo. Pelo menos é certo que filósofos notáveis não se têm dedignado de consumir, por
amor dela, muito papel e muita tinta, posto que nenhum proveito sensível nos tenha advindo de
semelhante gasto.
É na Inglaterra principalmente, que, nos últimos tempos, a teoria da relatividade do saber tem
sido professada e discutida com particular predileção. Quem primeiro ali apresentou-a com uma
certa insistência (refiro-me aos tempos atuais) foi Hamilton, que aliás não teve coragem de
sustentá-la em todas as suas conseqüências.
10/15/2019 Tobias Barreto
www.academia.org.br/print/261/textos-escolhidos 4/5
Na obra de Stuart Mill sobre a filosofia de Hamilton há dois capítulos (II e III) consagrados à
elucidação desta doutrina.
Sobretudo interessante é o capítulo II, porque nele vêm expostas concisa e claramente todas as
diversas nuanças da teoria em questão.
Porém é de supor que este distinto pensador, a despeito de sua grande sagacidade, deixou
despercebido um ponto essencial na afirmação da relatividade dos nossos conhecimentos.
Mill opina que essa relatividade consiste no fato de que nós só podemos conhecer as nossas
próprias afecções e nossos estados íntimos. Por isso, para ele, os extremos relativistas são
aqueles que afirmam que nós não só nada conhecemos dos nossos próprios estados, como
também que nada mais temos, nada mais há a conhecer.
Mas isto envolve um engano. Com a relatividade do saber admite-se um elemento de
inverdade, de imperfeita validade objetiva.
Afirmar que os nossos conhecimentos são relativos só tem sentido sob o pressuposto de que as
coisas em si não são tais, quais são para nós, e que só podemo-las conhecer tais quais elas
nos aparecem.
Negando-se esta distinção, todo o saber é decerto relativo a nós, mas esta relatividade não
implica então nenhuma inverdade dos conhecimentos, nenhuma limitação da sua validade.
O saber seria então absolutamente verdadeiro. Mas quando se diz que os conhecimentos
humanos são relativos, o que se quer afirmar é justamente o contrário daquilo, é que
absolutamente verdadeiro não é o nosso saber.
Esta teoria da relatividade formou-se em oposição à consciência comum, e este ponto não deve
ficar esquecido.
O homem, que não reflete, crê: 1º, que ele conhece as coisas exatamente como elas são em si;
2º, que estas coisas existem justamente como são conhecidas, independentes do
conhecimento; são objetos em si, absolutos, sem relação a nós.
Foi a inconciliabilidade destas duas asserções que provocou os primeiros escrúpulos céticos.
Já na Grécia, Protágoras dissera que o homem é a medida de todas as coisas, das que são,
como elas são, das que não são, como elas não são; e por este modo levou a doutrina da
relatividade aos seus extremos limites.
Porém é de notar que quando assim se leva tão longe esta teoria, ela converte-se no seu
contrário e dá aos nossos conhecimentos uma validade e verdade ilimitadas, que de todo se
opõem nos fatos.
A tese de Protágoras implica necessariamente que os objetos cognoscíveis não se distinguem
do conhecimento que temos deles, pois que a não ser assim, o sujeito cognoscente não poderia
ser medida de tudo, se o conhecimento e seu objeto não são duas, mas uma só coisa, então
não se pode mais falar de relatividade. Uma relação, se esta palavra tem um sentido, não é
concebível sem duas coisas, entre as quais a relação exista, e sem relação, naturalmente, não
é possível relatividade alguma.
Os relativistas modernos aproximam-se de Protágoras. Porém nós acabamos de ver onde para
o protagorismo.
A doutrina da relatividade só tem senso racional, nas duas seguintes hipóteses: 1ª, que os
objetos cognoscíveis são determinados pela própria natureza do sujeito cognoscente; 2ª, que
eles, justamente por causa desta sua relatividade, não representam a verdadeira, absoluta
essência da realidade.
10/15/2019 Tobias Barreto
www.academia.org.br/print/261/textos-escolhidos 5/5
Que se deve entender, quando se diz que os objetos cognoscíveis são relativos ao sujeito,
estão em necessária relação com ele? Somente isto: que na essência dos mesmos objetos há
alguma coisa que os prende ao sujeito, uma originária adaptação daqueles às leis deste.
A relatividade do saber encerra dois momentos, diz A. Spir: primeiramente, o conhecimento dos
objetos, dados como coisas externas no espaço, só é valioso com relação ao ponto de vista da
consciência comum, mas objetivamente, ou em si, inexato, não verdadeiro. Conforme a
expressão de Kant, as coisas têm no espaço só uma realidade empírica, nenhuma realidade
transcendental. Em segundo lugar, os objetos empíricos são simples fenômenos, não
apresentam a realidade em sua essência originária, absoluta, porém na forma estranha da
pluralidade da mudança e da antítese ou dualidade de sujeito e objeto de conhecimento.
E eis aí o que se pode dizer em nome da filosofia ainda que em ligeiros traços a respeito da
afirmação que os nossos conhecimentos são relativos.
Entretanto, dou-me pressa em confessar que a questão da relatividade, assim concebida, e só é
que regularmente deve sê-lo, não tem muito cabimento na ciência, de que nos ocupamos. Mal
se descobre a ligação que possa haver entre esta tese e as demais que lhe sucedem no
encadeamento lógico do sistema.
Para ter alguma razão de ser é mister considerá-la no sentido de limitação. Todos os nossos
conhecimentos são limitados. E dois são estes limites, diz Dubois Reymond: um consiste em
que nós não podemos saber o que é força e matéria; o outro em que não podemos saber, como
dos átomos e seu movimento pode nascer uma sensação...
URL de origem: http://www.academia.org.br/academicos/tobias-barreto/textos-escolhidos

Continue navegando