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AULA 1 POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE Profª Tânia Maria Santos Pires 2 CONVERSA INICIAL Para falar de políticas públicas de saúde, é de fundamental importância que estudemos a origem do cuidado, as motivações para que ele aconteça e como a responsabilidade do cuidado se estabeleceu de forma oficial, tornando-se uma tarefa do estado, até que se expressasse na forma como conhecemos e denominamos hoje de políticas públicas de saúde. Vivemos, atualmente, uma onda de questionamentos a esse respeito em razão das recentes ondas migratórias, sobretudo de pessoas empobrecidas pelas guerras ou catástrofes, que buscam desesperadamente por outros locais onde possam viver com um pouco mais de segurança. As sociedades mais desenvolvidas no contexto social se manifestam de diversas maneiras, ora acolhendo, ora rejeitando os refugiados. No meio desta ambivalência de sentimentos, repete-se a pergunta que vem sendo feita desde os primórdios das organização da sociedade: De quem é a tarefa de cuidar? Essa reflexão nos levará a uma melhor compreensão das prioridades estabelecidas pelos governos e também como podemos contribuir para um cuidado melhor executado e mais justo. CONTEXTUALIZANDO A triste história de Antônia Salvador, Bahia, Brasil, colônia de Portugal, ano de nosso Senhor Jesus Cristo de 1750. Antônia dos Santos era uma jovem de 18 anos, solteira e pobre. Órfã desde os 5 anos de idade, perdeu o pai por doença e a mãe morreu em um dos partos. Na ocasião, fora viver com alguns parentes que a entregaram para uma família de posses, para que trabalhasse como serviçal em troca de alimentação e abrigo. Lembra-se de que tinha irmãos, mas estes foram igualmente espalhados e não tem notícias deles, exceto de um deles, Pedro, mais velho 7 anos que ela e que de vez em quando ia visitá-la na casa da senhora. Nesse momento, Antônia está feliz e apaixonada pelo seu namorado secreto, João Sousa, de 22 anos. Ambos trabalham como serviçais em uma das casas de famílias nobres de Salvador, ela como cozinheira e ele como cavalariço. O namoro era secreto pelo fato de trabalharem no mesmo local, mas queriam se casar, embora até o momento não tivessem dinheiro para isso. 3 João ouviu falar que os marinheiros estavam ganhando muito dinheiro nas viagens entre Brasil e Portugal. Era sua intenção embarcar como marinheiro, ganhar dinheiro e voltar para casar-se com sua namorada. Assim pensando, embarcou em um dos galeões que singravam os mares transportando riquezas da colônia para o reino, sem saber que deixava Antônia grávida e desamparada à sua sorte e, principalmente, sem saber que nunca mais a veria. Depois de um mês da partida de João, Antônia começou a ter sintomas suspeitos de gravidez, angústia que piorou quando notou que suas regras não vieram nos outros dois meses. Procurou uma mulher conhecida e experiente em partos e teve a confirmação de que estava grávida. A sensação de pânico e desespero se apoderou dela. Como faria agora, sozinha, para lidar com essa situação? As viagens ao reino costumavam demorar muito. Provavelmente, quando João retornasse, seu ventre já estaria crescido e todos saberiam de sua desdita de ser mãe solteira. Entendeu que estava sozinha e desonrada. Resolveu inventar uma história, uma viagem ao interior, dizendo que ia atender um de seus irmãos ainda vivos que estava doente e abrigou-se em uma casa pobre de uma das vilas próximas, onde viveu miseravelmente até o nascimento de seu filho. Antônia sabia que não poderia ficar ali, teria que voltar a trabalhar, mas não seria aceita em nenhuma casa de Salvador levando um pequeno bastardo. O que poderia fazer? Jamais abandonaria seu pequenino à morte. Foi quando lembrou- se da Santa Casa e da roda dos enjeitados. Assim que seu bebê completou 40 dias de vida, Antônia saiu de madrugada, ainda escuro, com o seu pacotinho aconchegado ao peito e se dirigiu ao convento, onde silenciosamente depositou seu bebê no cilindro conhecido como a roda dos enjeitados. Em seguida, tocou o sino e escondeu-se atrás da coluna de uma igreja próxima, de onde, entre lágrimas silenciosas, veria a roda girar e se despediria de seu filho, para nunca mais encontrá-lo. Nunca mais encontrou-se novamente com João também. O sonho de um casamento feliz acabou no fundo do mar, onde o corpo de João foi jogado depois que contraiu uma febre, que deixou sua pele e olhos amarelos, causando grande dor em todo o corpo, hemorragias na boca e pele, vindo a morrer durante a viagem. 4 Restava, agora, para Antônia, tentar retomar seu antigo trabalho, onde pelo menos teria pão e abrigo ou, quem sabe, alugar-se como ama de leite para alguma família de posse. Considerando que na Europa já havia uma estrutura incipiente de cuidados aos desamparados, o que faltava ao Brasil colônia e à coroa portuguesa naquele momento para dar suporte à Antônia e ao seu anônimo filhinho em momento tão difícil, trazendo a todos um desfecho humanitário e correto? TEMA 1 – O CUIDADO COM OS MAIS FRÁGEIS E VULNERÁVEIS Para a subsistência do mais rudimentar grupamento social, há necessidade de implementação de ações positivas no interesse comum. Essas ações precisam ser organizadas em forma de projetos, amparadas por legislação, que venham ao encontro das necessidades daquela comunidade, promovendo seu cuidado e desenvolvimento. A esse conjunto de planos e ações voltadas ao interesse público, chamamos de políticas públicas. De forma mais estruturada por definição, políticas públicas “podem ser definidas como conjuntos de disposições, medidas e procedimentos que traduzem a orientação política do Estado e regulam as atividades governamentais relacionadas às tarefas de interesse público” (Lucchese, 2002, p. 3). São consideradas “como de responsabilidade do Estado – quanto à implementação e manutenção a partir de um processo de tomada de decisões que envolvem órgãos públicos e diferentes organismos e agentes da sociedade relacionados à política implementada” (Höfling, 2001). As políticas públicas de saúde fazem parte do campo de ação do Estado, o qual tem a responsabilidade de planejar, implementar e executar ações de saúde, nos seus diversos níveis de gestão, para a melhoria das condições de saúde da população. “Consiste em organizar as funções públicas governamentais para a promoção, proteção e recuperação da saúde dos indivíduos e da coletividade” (Lucchese, 2002, p. 3). Os temas e conteúdos das políticas públicas costumam variar de acordo com as características de um povo e sua cultura, porém há temas inquestionáveis por serem necessidades básicas de todos os povos. As temáticas da saúde e do amparo social são exemplos claros de temas irrefutáveis nas agendas de gestão pública atualmente, no entanto, a compreensão de que as necessidades de saúde e cuidado são direitos humanos acima de outros interesses e que a preservação 5 da vida é de interesse público tanto quanto também o é na esfera individual demorou um pouco para se consolidar ao longo da estruturação das sociedades até nossos dias. No contexto do cuidado, diversos setores apresentam-se ligados por interfaces e ações comuns, com objetivos confluentes. Essa confluência de interesses observa-se facilmente nas interfaces dos setores de saúde, educação, infraestrutura, ação social, moradia, emprego e renda. Não é por acaso que as populações com melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) são as que apresentam melhores indicadores em saúde, como também os piores indicadores estão entre as que tem o pior IDH. Essa relação entre desenvolvimento econômico e qualidade de vida e saúde está na base da elaboração dos estudos dos determinantes sociais de saúde. A definição de Determinantes Sociais de Saúde (DSS), de acordo com a comissão nacional que estudou o tema, são os fatores sociais, econômicos, culturais,étnicos e raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população (Buss; Pellegrini Filho, 2006). Os estudos internacionais do tema demonstram que os fatores DSS são mais impactantes na formação do contexto de saúde e doença do que os determinantes biológicos e hereditários que são passados em cada geração, inclusive com impacto na qualidade de vida. As ações em conjunto desses diversos setores potencializam-se mutuamente, gerando qualidade de vida e desenvolvimento econômico e social, porém nem sempre foi assim e ainda há muito a caminhar até que seja alcançada a meta da justiça social, cujo maior objetivo é diminuir as desigualdades, gerando equilíbrio e oportunidades para todos. 1.1 Vulnerabilidade e risco Para sabermos de forma mais clara do que estamos falando, é oportuno entendermos o conceito de vulnerabilidade e risco, apesar do uso muito frequente dos dois termos com o mesmo sentido. Entende-se que vulnerabilidade é a situação de exposição de pessoas, famílias e comunidades a condições sociais, econômicas e psicológicas inapropriadas ao seu desenvolvimento. Essas condições fragilizam as famílias aumentando o seu risco, que é a possibilidade 6 da ocorrência de desfechos graves que afetam as famílias em várias dimensões do seu viver. Pessoas, famílias e comunidades que vivem na pobreza, em moradias precárias, sem acesso à infraestrutura ambiental, como esgoto, energia elétrica, asfalto, água tratada, expostas a situações de violência e com pouca escolaridade estão em condições de elevada vulnerabilidade, com alto risco para a doenças diversas, criminalidade, abandono de incapazes, aborto e morte precoce. A vulnerabilidade dessas populações expressam-se de diversas formas e tem diversas origens. No nosso país, um viés muito importante relaciona-se às pessoas afrodescendentes e populações indígenas. O histórico do nosso país quanto à escravidão, primeiro da população indígena e, posteriormente, os negros, deixou um rastro de pobreza e indigência que se reflete ainda em nossos dias por meio do desamparo social e falta de perspectivas a essas populações. Estudos mostram que a população que se declara negra constitui 45% da população brasileira, porém são 65% dos pobres e 70% dos extremante pobres, o que também se demonstra proporcionalmente na baixa escolaridade e em outros indicadores sociais, havendo por isso necessidade de políticas públicas especificas para o atendimento a esses segmentos. 1.2 Vulnerabilidade e resiliência A resiliência é a capacidade que têm os indivíduos e famílias de reagirem positivamente aos fatores estressores externos, voltando ao seu funcionamento normal após um período de dificuldades. De forma mais clara, significa “dar a volta por cima”, “transformar o limão na limonada”. Sabemos que todas as famílias e indivíduos passam por períodos de dificuldades e são obrigados a reagir diante delas. Os estudos mostram que famílias em grande vulnerabilidade são afetadas na sua capacidade de reação diante dos problemas, ficando em grande risco de sofrerem desestruturação e rompimento de suas ligações nessas situações. Diante disso, cabe à sociedade cuidar dos mais vulneráveis, no intuito de diminuir o risco para essas pessoas e famílias, que, na maioria das vezes, de acordo com a sua estratificação de vulnerabilidade, estão tão fragilizados que não conseguem sozinhas superar essa condição. No decorrer da história da sociedade, a instituição do cuidado com as parcelas mais frágeis surge por três motivações principais: razões religiosas e humanitárias, razões sociais e comunitárias e razões políticas e econômicas. 7 Vamos estudar cada uma dessas motivações e seus momentos de maior ênfase na estruturação das políticas públicas de saúde. TEMA 2 – O CUIDADO POR RAZÕES RELIGIOSAS E HUMANITÁRIAS As razões religiosas se manifestaram prioritariamente, sobretudo na cultura judaico-cristã ocidental. Há várias referências bíblicas do dever de se cuidar dos órfãos e das viúvas, desde o pentateuco ao Novo Testamento, com uma nota interessante em Deuteronômio cap. 27:19 “maldito aquele que perverter o direito do estrangeiro, do órfão e da viúva”. O cristianismo trouxe como dever cristão a ação de amparar os necessitados. Isso está registrado nos primórdios da igreja no século I, com o registro de que havia pessoas especialmente designadas para cuidar da assistência aos frágeis. A instituição dos diaconatos, a designação de diáconos (palavra de origem grega que significa “servidor” ou “aquele que serve”) demostra a importância do problema para esses primeiros cristãos (Atos 6:1 a 5). A função dos diáconos era administrar as doações da comunidade cristã para suprir as necessidades dos órfãos e viúvas, pessoas doentes e desvalidas. A motivação da caridade cristã levou muitas pessoas a se dedicarem exclusivamente a essa tarefa, criando ordens religiosas dedicadas ao cuidado de mulheres e crianças desamparadas desde a Idade Média, que se abrigavam em conventos e monastérios. Os países europeus, da Idade Média ao Iluminismo, não tinham um programa de amparo estruturado aos pobres, que pudesse promover a vida, mas foi ao longo desse período que ações importantes foram se estruturando e modificaram aos poucos a visão da assistência à saúde e cuidado com os pobres. A mortalidade infantil era imensa e o infanticídio não era considerado um crime propriamente dito, mas um pecado (Nascimento, 2008). Essa concepção de pecado com relação às crianças levou a Europa, sobretudo os países de tradição católica, como Portugal, Itália e Espanha, a desenvolver ações caritativas de amparo às crianças que perduraram até o século XIX. Entre essas ações está a oficialização da roda dos enjeitados nos conventos. Inicialmente, a roda servia para receber doações. As pessoas depositavam seus donativos às freiras enclausuradas e tocavam o sino. A irmã encarregada de girar a roda a girava e recebia as dádivas. Posteriormente, o sino passou a ser tocado para receber os bebês enjeitados por diversos motivos, como extrema pobreza dos pais, orfandade, proteção da honra, crianças fruto de 8 relacionamentos ilícitos, os bastardos de homens casados e até crianças malformadas congenitamente, por serem consideradas vergonhosas e representativas de castigo divino. A roda era uma opção generosa ao se considerar a outra opção que seria abandonar a criança em monturos, nas florestas, onde eram devoradas por animais, ou então vendidas aos traficantes piratas para as mais diversas finalidades de exploração humilhante. O Brasil assume o modelo português de assistência aos enjeitados ainda no seu papel de colônia. A historiadora pernambucana Alcileide Nascimento relata que a principal motivação do acolhimento as crianças enjeitadas era a aplicação do sacramento do batismo aos pequeninos, que, quando abandonados para morrer ao léu, à beira de rios, monturos e florestas, não recebiam o sacramento e não teriam suas almas salvas. Ela relata que algumas crianças deixadas na roda levavam bilhetes que pediam que o bebê fosse batizado. A primeira casa dos enjeitados no Brasil é registrada em Salvador (BA) em 1726. Depois, o Brasil ainda teria mais 14 casas nesse mesmo intento, sendo depois encerradas com as mudanças de paradigmas sociais e de assistência aos desamparados. A última a encerrar suas atividades foi a de São Paulo, em 1950. A Figura 1 mostra a roda dos enjeitados ou a roda dos expostos. Figura 1 – Roda dos enjeitados Disponível em: <www.aldeiasdeportugal.com>. Apesar do estigma representado pelo abandono, a roda dos enjeitados ou dos expostos, como também era conhecida, foi a primeira forma de proteção à 9 criança abandonada. Era uma iniciativa de motivação religiosa, posteriormente com apoio oficialinstitucional, mas ainda sendo, no seu vínculo e sustento, uma obra de caridade. O abrigamento, apesar de benéfico, não impedia a morte maciça dessas crianças até um ano de idade, fosse por dificuldades nos cuidados, em virtude do elevado número de crianças para um número pequeno de irmãs de caridade que as cuidavam, ou pela maior fragilidade em razão do maior número de doenças, além da dificuldade em se encontrar amas de leite para os recém-nascidos. Estes eram alimentados com leite de outros animais, mas a falta dos devidos cuidados de higiene, visto que se desconhecia a esterilização do leite, levava os bebês à morte por infecções intestinais. Doenças como a sífilis congênita não eram tratadas, além das demais doenças infecciosas epidêmicas como o sarampo, que assolavam as crianças. Em resumo, mesmo com boa vontade e caridade, havia necessidade de maior envolvimento social e planejamento no cuidado dessas crianças. Nesse momento histórico, o Iluminismo forneceu o conteúdo racional necessário à mudança de paradigmas quanto ao cuidado e suas consequências sociais e econômicas. Figura 2 – Foto de crianças abandonadas no Asylo dos Expostos Fonte: Revista A Cigarra, 1919. 10 TEMA 3 – O CUIDADO POR RAZÕES SOCIAIS E COMUNITÁRIAS O foco do cuidado a partir do interesse comum também tem suas raízes na ancestralidade. As experiências adquiridas com as grandes epidemias, como a peste e a cólera, levaram as comunidades a desenvolver o senso de preservação. O estabelecimento de regras de isolamento dos doentes de lepra é um exemplo claro da visão da proteção comunitária. Mesmo na Idade Média, há registros de ações de saúde pública incipiente, com a organização de uma estrutura administrativa para a prevenção de enfermidades e supervisão sanitária para a proteção da saúde comunitária. A atuação acontecia em forma de conselhos formados por cidadãos ilustres da cidades, chamados na Inglaterra de vereadores. Esse conselho administrava a cidade, cuidando de suas finanças, abastecimento, supervisão de obras públicas e também de saúde e bem-estar, por meio de subcomitês, que organizavam ações como limpeza das ruas e supervisão dos mercados de alimentos. O cuidado de pessoas, no entanto, ainda estava fora da jurisdição oficial, e a assistência médica ocidental era permeada de religiosidade e misticismo. Um importante e reconhecido equipamento de saúde para a sociedade, o hospital, não exercia a função que tem hoje. Por muito tempo, na Europa, o hospital foi considerado um lugar para que mendigos e pobres pudessem morrer com dignidade, recebendo os sacramentos religiosos. Eram administrados por ordens religiosas, cuja prioridade era a salvação da alma por meio da administração dos sacramentos. O hospital também serviu como instrumento legal para o cumprimento de pena para mulheres que eram acusadas de prostituição. A partir do século XIII, os hospitais começam a mudar de administração e objetivos, sendo a sua gestão transferida para o município, embora as ordens religiosas se mantivessem no cuidado dos doentes. O número de hospitais aumentou significativamente, assim como os chamados leprosários, cuidados e atendidos pelas ordens religiosas, dando assistência aos pobres, que desde então foram chamados de indigentes. O foco do cuidado comunitário destacou a assistência à saúde dos mais pobres para que estes, por sua vez, não contaminassem todo o grupo comunitário. Considerando o contexto isento de base científica, sem os instrumentos e conhecimento da moderna ciência social e de saúde, o legado medieval europeu 11 pode ser considerado muito bem-sucedido no foco social, no entanto, o interesse comunitário no cuidado não foi tão motivador quanto o foi o interesse econômico. TEMA 4 – O CUIDADO POR INTERESSES ECONÔMICOS Os custos com as ações de saúde são geralmente entendidos como gastos, como despesas, porque não se veem os retornos imediatos dos investimentos feitos. Para que aconteça uma mudança na visão de gasto para a visão de investimento, faz-se necessária uma mudança de paradigma como aconteceu na Inglaterra, na Alemanha e na França a partir do século XVII. Na base dessa mudança de visão, estava um conjunto de doutrinas políticas que aumentavam o poder do estado e de seus dirigentes, soberanos e líderes, coincidente não por acaso, com o desenvolvimento da indústria nesses países. Refiro-me ao sistema mercantilista. Naquele momento, a seguinte pergunta estava sendo feita pelos monarcas e soberanos das nações que mais se desenvolviam no mundo: Que rumo deve o governo seguir para aumentar o poder e a riqueza da nação? Ter uma população grande, era a resposta imediata, para fazer frente a uma mão de obra de qualidade. Nesse caso, há que se cuidar da saúde da população, e controlar essa população para que seja usada para os interesses do estado. Metodologias estatísticas se desenvolveram e foram aplicadas nas análises dos problemas de saúde. Essas análises estimularam o desenvolvimento de estudos de saúde pública. A ideia de uma política nacional de saúde desenvolveu-se na Inglaterra, mobilizando diversos setores, envolvendo médicos, legisladores, homens de negócios, matemáticos e estatísticos, com o objetivo comum de cuidar da população, para que esta, usufruindo de boa saúde, pudesse ser cada vez mais produtiva, desde o chão da fábrica até os grandes pensadores. Muda-se o foco do cuidado caritativo para o foco do desenvolvimento econômico. Na prática, entende-se que é muito mais lucrativo cuidar-se da criança para que esta não morra, mas que se desenvolva de forma saudável e sirva à pátria em vários aspectos. Promover formação e ofício profissional aos pequenos significava lucro no futuro e desenvolvimento para a nação. Na mesma linha, entendeu-se que dar condições para que a mulher pobre pudesse cuidar do seu filho pequeno, amamentando-o pelo tempo certo e necessário até que ficasse forte o suficiente para resistir às doenças, não tendo 12 que abandoná-lo por falta de recursos, mostrava-se muito mais vantajoso e lucrativo para a nação. Criavam-se, assim, os rudimentos das leis de amparo à maternidade e à criança. A infância não era entendida como uma fase especial do desenvolvimento humano. As crianças pobres eram abandonadas dentro de suas próprias casas, por causa da falta de alternativas das famílias, ou tinham que se submeter a trabalhos pesados e insalubres desde cedo. As famílias ricas, por sua vez, deixavam seus filhos sob cuidados dos serviçais, quando se notou que as crianças da nobreza estavam sendo corrompidas na sua formação ética e moral em razão dessa prática. Diante dessas realidades, ações se desenvolveram no sentido de proteger a criança, para que esta conseguisse sobreviver e que tivesse a preservação do seu caráter e desenvolvimento ético adequado. No século XVII, desenvolveu-se a base da pediatria e um novo entendimento do que é a criança e a infância. A criança começou a ser compreendida como diferente do adulto no aspecto emocional e biológico. Suas necessidades emocionais tanto quanto sua fragilidade biológica foram consideradas peculiares, e um novo sistema de proteção social começou a ser construído dentro das famílias, considerando-se as orientações médicas. Outro aspecto que foi de fundamental importância para a melhoria social e de investimento nos hospitais durante os séculos XVII e XVIII foi o desenvolvimento da tecnologia de guerra. A forma para que uma nação ou reino tivesse reconhecido seu poder e liderança estava condicionada na formação de um numeroso e poderoso exército. A tecnologia de guerra, a partir do desenvolvimento dos equipamentos bélicos à base de pólvora, exigiu cuidado maior com as crianças e, posteriormente, com os soldados. Cuidar dos órfãos para que cresçam e sirvam à pátria, sua mãe cuidadora, compondomais tarde os pelotões da infantaria era garantia de um exército numeroso e poderoso. Para isso, era essencial evitar que as crianças morressem precocemente. Os órfãos eram conhecidos como filhos da pátria e teriam de manifestar sua gratidão cumprindo seu dever militar. O pelotão de frente, a infantaria, era formado pelos infantes órfãos ou abandonados, que tinham o dever de devolver à mãe pátria os cuidados dela recebidos. Dentro dessa lógica, iniciativas e empreendimentos se destacaram na Inglaterra. Em 1741, criou-se o Hospital dos Enjeitados de Londres. Em 1748, publicou-se o “ensaio sobre amamentação e manejo de crianças” e cidadãos 13 filantropos influentes, como Jonas Hanway, trabalharam em defesa da causa das crianças pobres. Na França, em 1793, foi sancionado um decreto relacionado à saúde das crianças e das mulheres grávidas. Da mesma forma era essencial equipar-se os hospitais para que o soldado ferido pudesse ser cuidado e sobreviver, porque, afinal, um soldado treinado que viesse a perecer significava perda de patrimônio bélico. Como se vê, os interesses econômicos e de poder se sobrepujam aos interesses humanitários, porém o conjunto das três visões de cuidado, humanitária (religiosa), social e econômica tornaram-se a base da estrutura moderna da atenção à saúde e uma visão prática das políticas públicas de saúde que trouxeram mais benefícios à sociedade. Ao longo deste módulo, veremos como estas políticas públicas de saúde, que tiveram seus rudimentos na Idade Média, desenvolveram-se no Iluminismo e chegaram até o estado moderno, estruturaram-se e ampliaram-se, sendo a base da sociedade e da estrutura estatal atual. TEMA 5 – COMO EXERCER O CUIDADO Ao iniciar seu livro Uma história da saúde pública, George Rosen, médico americano nascido em 1910, analisa os principais componentes que originaram as políticas públicas de saúde da contemporaneidade. Ao longo da história humana, os maiores problemas de saúde que os homens enfrentaram sempre estiveram relacionados com a natureza da vida em comunidade. Por exemplo, o controle das doenças transmissíveis, o controle e a melhoria do ambiente físico (saneamento), a provisão de água e comida puras, em volume suficiente, a assistência médica, e o alívio da incapacidade e do desamparo. A ênfase sobre cada um desses problemas variou no tempo, e de sua inter-relação se originou a Saúde Pública como a conhecemos hoje. (Rosen, 2006, p. 31) Como observamos no análise de Rosen, existem ações que se integram para adequação do homem ao espaço/meio ambiente em que vive. Dentro desta estruturação, por mais que se consiga as condições ambientais adequadas, há que se cuidar dos desamparados, com objetivo de levá-los ao desenvolvimento e autonomia social. Analisando a realidade que temos hoje no Brasil, sobretudo nas grandes metrópoles, vemos que as comunidades que se formaram nas periferias das grandes cidades, sobretudo aquelas que surgiram de forma desordenadas, com ocupações irregulares, não se levou em consideração o risco ambiental a que 14 estão submetidas. É comum vermos construções precárias em barrancos, que desmoronam com as chuvas, matando pessoas, principalmente crianças. Nesse contexto, famílias ocupam prédios condenados nos centros das cidades, grupos habitam espaços que funcionam de forma independente da lei e da ordem, como acontece nas comunidades dos morros cariocas, antigamente conhecidas como favelas. A demora na estruturação da ação estatal, de políticas efetivas que pudessem trazer alternativas rápidas àquelas que se apresentavam para as pessoas, causou o vazio assistencial e de políticas públicas que pudessem subsidiar o cidadão e ampará-lo nas suas escolhas. O produto dessas situações é o caos social, com a falência da lei e da ordem. Nessa situação, faz sentido o questionamento apresentado pela I Conferência Internacional sobre Promoção de Saúde, realizada pela OMS em 1986 no Canadá: “Até onde o cidadão pode ser considerado responsável pela sua própria saúde?”. Considerando a responsabilidade dos governos na estruturação das políticas públicas, que incluem as diversas frentes de condicionantes de saúde, como a educação, apoio social, emprego e renda, moradia e a questão ambiental, pode-se pensar nessa questão de forma mais abrangente do que as ações no nível individual, praticadas pelo cidadão, que possam ser causadoras de doenças. O cuidado com os mais frágeis está de acordo com os princípios que embasam o SUS, sobretudo o princípio da equidade. Dentro da estrutura pública, vale a pena identificar quem são esses mais frágeis e quais critérios devem ser usados para estabelecer-se o grau de vulnerabilidade de uma população. Dentre os critérios que são mais utilizados, estão o nível educacional, as condições de moradia, famílias monoparentais, renda mensal por pessoa componente da família, número de crianças entre zero e 5 anos de idade. Os programas sociais de transferência de renda vêm sendo discutidos no Brasil e internacionalmente desde a década de 1980. Há nos programas instituídos no Brasil, pontos em comum, com o objetivo de prover aos setores mais sensíveis este cuidado. No setor saúde, há uma forte relação dos programas sociais de vacinação e acompanhamento de crianças na rede de atenção à saúde, tanto quanto da gestante e da nutriz. O programa Bolsa Família é o maior programa social de transferência de renda do Brasil dos últimos anos e mantém uma interface muito forte com a saúde. 15 O Programa Bolsa Família, conforme informações oficiais, foi concebido com o objetivo de atender a duas finalidades básicas: “enfrentar o maior desafio da sociedade brasileira, que é o de combater a miséria e a exclusão social; promover a emancipação das famílias mais pobres” (Marques; Mendes, 2005, p. 159). Completando essa análise, pesquisadores sociais identificam esses objetivos como “compensatórios”, no sentido de compensar a pobreza extrema dessas famílias, e outro de promover acesso a políticas universais, para oferecer condições de autonomização futura dessas famílias” (Silva, 2004). De fato, o maior objetivo é garantir padrões mínimos de sobrevivência, retirando pessoas da pobreza extrema que se associa à fome e todos os seus entornos cruéis, que expõem as pessoas aos mais variados riscos. As políticas públicas de saúde, assim como as políticas públicas no âmbito social, devem ter como seu maior objetivo o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos, o que significa que, apesar de o objetivo a curto prazo ser permitir a saída da condição de extrema pobreza, que imobiliza as pessoas, impedindo seu processo de escolha, a longo prazo as políticas de transferência de renda devem promover a saída da situação de dependência e instigar a autonomia, por meio da compreensão do processo de amadurecimento social e desenvolvimento ativo na massa produtiva do país. Para isso, o país precisa estabilizar seu processo de crescimento econômico, processos de geração de emprego e renda, programa educacional efetivo, amparo social e condições gerais de saúde para a população. Após a consolidação desses componentes, as populações podem caminhar para uma vida saudável e feliz. 5.1 Revendo a problematização (apresentação de possíveis soluções) Antônia é uma jovem sozinha e desamparada no Brasil colônia, em Salvador (BA), no ano de 1750. Ela acaba de deixar seu bebê, recém-nascido na roda dos enjeitados, para ser cuidado pelas irmãs e voluntárias do convento da Santa Casa. Considerando que, na Europa, já havia uma estrutura incipiente de cuidados aos desamparados, o que faltava à colônia e à coroa portuguesa naquele momento para dar suporte à Antônia e ao seu anônimo filhinho em momento tão difícil, trazendo a todos um desfecho humanitário e correto? 16 Opção 1 – Faltava a visão de desenvolvimento social comobase para o desenvolvimento econômico, que foi o elemento propulsor dos benefícios sociais e de saúde na Inglaterra e Alemanha. Feedback 1 – Essa é a melhor resposta sem dúvida. A visão espoliativa da Coroa Portuguesa sobre as suas colônias limitava a visão do desenvolvimento industrial e, em consequência, limitou o desenvolvimento humano, que aquela época já acontecia em países que perceberam a ligação entre os dois interesses, o econômico e o social. Opção 2 – Faltava a ação do Estado, naquela época representado pela Coroa Portuguesa, na construção de orfanatos e locais oficiais de cuidado aos bebes desamparados. Feedback 2 – Faltava maior presença do estado no planejamento e gestão das questões sociais, porém a construção de mais orfanatos não seria a solução para o problema, e sim o envolvimento efetivo do estado em políticas de amparo aos pobres. Opção 3 – Faltava a sensibilização da sociedade no sentido de atender os pobres e desamparados, exercendo a caridade religiosa de fato. Feedback 3 – Apesar da importância do envolvimento da sociedade nas discussões, denúncia de situações de risco e até mesmo nas proposições de melhoria social, a religiosidade como única visão de cuidado tem suas limitações no âmbito das igrejas, embora seja uma das bases da doutrina cristã. Nota-se que a união das visões de cuidado é muito mais efetiva para a sociedade. FINALIZANDO Neste passeio histórico, vimos como as visões de cuidado se desenvolveram, mesmo no mundo ainda desprovido do conhecimento científico. O foco do cuidado humanitário expresso no dever religioso do amparo aos pobres e frágeis da sociedade levou muitos abnegados cuidadores a abrir mão de seu conforto pessoal e tomar conta de crianças desamparadas e rejeitadas. Ao mesmo tempo, a evolução do conceito de saúde comunitária e proteção da saúde do grupo se desenvolvia desde a Idade Média com medidas sanitárias e sociais. Os interesses de poder econômico, no entanto, foram os fatores que mais impulsionaram o cuidado das pessoas, porque motivou o estado a intervir, assumindo o seu papel de cuidador da população, para que esta tivesse saúde e condições físicas de trabalho. Não se chega à idade adulta produtiva sem 17 cuidados na infância, portanto, “há que se cuidar do broto para que a vida nos dê flor e fruto” (Coração de estudante – Milton Nascimento). Vimos que a sociedade deve eleger os mais vulneráveis e assumir com estes compromissos que se expressam por meio de programas de amparo social, mas que, ao mesmo tempo, promovam o desenvolvimento da independência e autonomia. No Brasil, um importante programa de transferência de renda é o Programa Bolsa Família. Vários dos seus focos concentram em importantes indicadores de saúde como vacinação e pré-natal. LEITURA OBRIGATÓRIA Texto de abordagem teórica – Determinantes sociais de saúde BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. Determinantes Sociais de Saúde. Physis: Rev. Saúde Coletiva, v. 17, n. 1, p. 77-93, Rio de Janeiro, 2007. Texto de abordagem prática – Políticas públicas MEDEIROS, A. M. Políticas públicas. Sabedoria Política, 2013. Disponível em: <https://www.sabedoriapolitica.com.br/ci%C3%AAncia-politica/politicas- publicas>. Acesso em: 14 maio 2018. Saiba mais – A roda dos expostos Assista ao interessante e emocionante vídeo que mostra como a histórica roda dos expostos ainda repercute na sociedade. RODA dos expostos. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VLZoLGFVeEs>. Acesso em: 14 maio 2018. 18 REFERÊNCIAS BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. Determinantes Sociais de Saúde. Physis: Rev. Saúde Coletiva, v. 17, n. 1, p. 77-93, Rio de Janeiro, 2007. LÍNGUA Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2016. Disponível em: <http://www.infopedia.pt/$roda-dos-enjeitados>. Acesso em: 14 maio 2018. MARCILIO, M. L. A roda dos expostos e a criança abandonada no Brasil colonial: 1726-1950. In FREITAS, M. C. (Org.). História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997. NASCIMENTO, A. A sorte dos enjeitados: o combate ao infanticídio e a institucionalização da assistência às crianças abandonadas do Recife (1789- 1832). São Paulo: Annablume; FINEP, 2008. ROSEN, G. Uma história da saúde pública. 3. ed. São Paulo: Hucitec; Unesp, 2006. WAN-DALL JR, O. A. (Estado, cidade e direito de ser) exceção: sobre políticas antidemocracia e o estado de inclusão na cidade residual. Disponível em: <www.ppgau.ufba/urbicentros/2012/st243.pdf>. Acesso em: 14 maio 2018.
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