Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
' ' QUE E A BIBLIA? DANIEL-ROPS da Academia Francesa Tradução de J. DUPRAT SEI E CREIO ENCICLOPÉDIA DO CATóLICO NO SÉCULO XX SEXTA PARTE BíBLIA, LIVRO DE DEUS, LIVRO DOS HOMENS FLAMBOYANT A CRíTICA E A BíBLIA JEAN STEINMANN * Seria em vão pretender apresentar ao grande público o Padre Steinmann. :bsse especialista da his tória -e da crítica, tanto no ponto de vista da Escri tura como no literário, tornou-se bastante notório pelo estilo. Pela paixão impetuosa com que defende suas idéias, lança-se contra o adversário sem consi deração de pessoas, a demolir preconceitos. :bste grande trabalhador que sabe reviver homens e épo cas, sublima-se em projetar luz sôbre os problemas, conquistando ràpidamente auditório imenso e fiel. Prende-se, com deito, o leitor à obra do Padre Steinmann, pois que seus livros são sempre vivos e frementes, bem como impregnados de profunda cul tura, ponderados no arrebatamento e calorosos na indignação. Para maior proveito e encanto dos leitores da - "Enciclopédia do Católico no Século XX", o eterno Problema do valor da Bíblia constitui o tema dd seu último livro. E terno, dissemos, porquanto, desde_ que a Bíblia existe, não houve época que não ti vesse conhecido, tanto entre os judeus como entre os cristãos, controvérsias bíblicas. A Bíblia - Livro dé Deus, e inspirado por Êle, - não é, contudo, escrito por Êle, mas por homens. Assim por que não resisti ria ela, como todo documento escrito, à tríplice crítica textual, literária e histórica, que apenas pode contri buir para colocar a Palavra de Deus em mais viva e pura claridade? Nada tem a cnuca, por si mesma, em face da Bíblia, de desrespeitoso nem de destruidor. Bem ao contrário! Ê o que claramente explica o Padre Stein mann que, após ter breve e claramente definido o que ela é, de modo geral, traça curta e viva his tória da crítica bíblica,- a fim de levantar afinal, a respeito de cada um dos livros do Antigo e do Novo Testamento, o balanço dos seus resultados. * LIVRARIA EDITORA FLAMBOYANT QUE É A BÍBLIA? POR DANIEL-ROPS Da Academia Francesa de Letras * Assim como ao Cristo, é a Bíblia a Palavra de Deus. E como ao Cristo também, é ela o alfa e o omega do Cristianismo, o começo, fim e a totalidade da vida cristã. · Normal é, portanto, que a nova coleção "Enci clopédia do Católico no Século XX" cuja finalidade é ensinar os cristãos a informar os que o não são, lhe seja início esta apresentação da Bíblia. E quem melhor poderia apresentá-la, de modo mais oportu no, do que um homem que, na inquietação do nosso mundo, descobriu os vestígios do Verbo de Deus na obscuridade de nossa alma, percebendo as cintilações .,2a espada de fogo a interceptar o Pa*aíso perdido, na angústia das vitórias da Morte e sentindo sôbre a própria face o "sôpro suave da brisa", sinal da Passagem d' Aquêle que nos fala ao coração? Ê assim que Daniel Rops nos vai descrever a Bíblia "Livro de Deus, Livro dos Homens". Livw de Deus, pois que é Êle o Sujeito e o Objeto. Ê Deus que fala de sua própria Natureza, sua Criação, Desígnios e do seu Povo. Livro dos homens pois que o caniço agitado pelo vento do Espírito, o cá lamo do escritor inspirado, transmite-nos, também, os costumes, o temperamento, a história e a mentali dade dos povos e dos indivíduos envolvidos no plano divino. Neste apaixonante resumo da História e das histórias, do Sentido e dos sentidos da Bíblia, Daniel Rops entrega-nos o fruto dos seus trabalhos pacientes de exegese e de história, que levaram seu nome atra vés do mundo, e também de suas meditações ínti mas e cotidiano encontro com o "Livro". * LIVRARIA EDITORA FLAMBOYANT NIHIL OBSTAT São Paulo, 10 de abril de 1958 Mons. HBLADIO CoRREIA LAURINI IMPRIMA1UR São Paulo, 10 de abril de 1958 Moas. LAPAYETTB Ex delegatiooe 60 SEXTA PARTE - BlllLIA, LIVRO DE DEUS, LIVRO DOS HOMENS QUE É A BíBLIA? DANIEL-ROPS, DA ACADEMIA FRANCESA Título do original francês: QU'EST-CE QUE LA BIBLE? JE S AIS - JE CROIS I!NCYCLOP�DIE DU CATHOLIQUE AU xxHME SikLB IIBRAIRIE ARTHEMI! FAYARD - PARIS DO MESMO AUTOR EDITADOS PELA FLAMBOYANT HISTORJA SAGRADA DAS CRIANÇAS OS MILAGRES DO FILHO DE DEUS A BC DA CRIANÇA CRISTà 1958 Dirfttos para a língua portuguésa adquiridos pela LIVRARIA EDITORA FLAMBOYANT Rua Lavradio, 222 - São Paulo que .se reserva a propriedade desta tradução. CAPITULO I BíBLIA, LIVRO DOS LIVROS BASE DE NossA CIVILIZAÇÃO Há um l ivro ún ico , inexgotá vel , no qual tu do se encontra a res pe ito de Deus e do homem . Deus , em tô da a parte pres ente , n êle se re vela sob to dos os aspectos em que nos é perm itido entre ver-lhe o m ist ér io , n êle se man ifestan do , falan do e ag in do . E o homem n êle também se reconhece em tô das as suas virtual ida des , suas gran dezas e falhas , des de as asp irações ma is subl imes at é êsses r ecantos obscuros da consciência on de , em ca da qua l, sangra a ferida or iginal do pe ca do . Se , ac ima de tu do , um ens ino rel ig ioso n êle se apresenta , o ensino da ver da de re vela da , os co nhecimentos human os e as at ivida des do esp ír ito encontram al imento de uma r iqu eza sempre no va . E tamb ém vão preten der tirar de seus princíp ios a mo ral e o direito , como a soc iolog ia , a econom ia e at é a pol ít ica , se fôr ignora da a mensagem de que êste l ivro é porta dor . Arte e l iteratura , mais e videntemente a in da , estão -lhe na depen dênc ia . Sem êste livro , nem os e scultores de Chartres , os mo sa ístas de Ra vena , Miguel Angelo e Re mbran dt e nem os Gregos seriam aqu êles que tanto a dm iramos . Ma is a in da mesmo que êste dese nvol vimento quant itat ivo das ob ras que lhe de vem os temas , o qu e con ta, o que lhe ren de testemunho , é a e xist ênc ia que lhe é de vida, de u ma arte , alçan do a estét ica ac ima de si mes ma, até a significação da es· p ir itual ida de . Assim também a conte ce às obras literárias. Bste llv� glorifi. cado ora por Monta ign e e Ra cine , Shakespea re e wthe, o ra por Nie- tzsche e Anatole France, mais fêz ainda que fornecer assuntos sem 8 QUE É A BfBLIA ? con ta a dra ma turgos , po is que dêle dimana a torren te de água viva a irr igar as raízes das obras -primas . Sem êle ter ia m surg ido Dan te e Ra cine , Pas cal e Dos to ie vs ki? Paul Val ér y, e m frase pro fun da, de monstrou que a civiliza ção o ci den tal repousa sôbre três bases : a in tel igên cia grega , a orde m roman a e a esp iritual ida de judeu -cris tã . Es fa cele-se u ma, e to do o e difício ver -se -á a mea ça do de ru ína . Ora, a terce ira dess as bases , a mais in dispen sá vel a bem dizer , po is que forne ce ao conjun to sua au tên tica s ign ifi ca ção , é o l ivro ún ico e inexgo tá vel que a de fine e al icer ça . Se m êle , não ser ia o Ociden te aqu ilo que é. :e, a in da , fa lsear-lhe o sentido e l imitar -lhe o al can ce , asso ciar ês te l ivro s omente à ex istên cia e ao desen vol vimen to da civil iza ção o ciden tal . D ia a dia , à me dida que um es fôr ço se con cre tiza no sentido de le var -lhe a mensage m ao plano do un iversal , ver ifica -se que , pelo s da dos pro fun dos tanto quan to pelos me ios de expressão que usa , es tá êle perfe ita men te de acôrdo com men tal ida des bem diversas das eu ropéias, e que Ãs ia e África mu ito na tural mente a po dem receber , es tan do -lhe o gênio , de certo mo do , a corde . Se a human ida de bran ca lhe de ve , e m a mpla me dida , ter as su mi do o papel de gu ia que lhe reconh ece a h is tória , de ve m-lhe as ra ças de côr o despertar ante o esplen dor de u ma no va lu z. Tal é a B íbl ia , l ivro do s l ivros , l ivro do ho mem e de Deus . Os livRos SAGRADOS : o LIVRO O t ítulo pelo qual de signamos êste l ivro , r esume e tra du z tô da s as suas e xcep ciona is cara cterísti cas . Esta pala vra , al ém da etimologia grega -"b iblos", "bibl ion ", o li vro , - penetra at é aqu êles temp os lon gínquos do segun do milená rio antes de Cristo em que o s Fen ício s de B yblos haviam feit o de seu pôrto o ma ior entreposto de pap i r os da ép oca , imp on do o próprio nome de sua ci da de ao pro dut o que ven diam . _ Na acepçã o que lhe damos, nã o remonta , contudo , seu empr êgo , senao � IV,Q s éculo de no ssa era , no s dia s de Sã o Jerôn im o, qu e general izou o emprêgo da e xpres são "os Santos Livros " ou s impl es- mente " L' " " bíbl' " O L ' d ', d , os tvro s , em gre go, ta t ta • s a ttnos a epo ca e - ca dente transpuser am a pala vra pa ra o f em ini no de sua l ín gu a, e a declinaram "bíblia - biblúe". BÍBLIA, LIVRO DOS LIVROS 9 . Assim transformo�-se êsse plural, na linguagem corrente, em um Smgular, e essa coleçao de setenta e três obras designada por uma palavra que lhe subentende a unidade profunda e a sobrenatural �arm�nia . .. O sinônimo que muit? também foi usado para designá-lo, Esc:ttura , - o que, com efetto, traduz: ·"As Santas Escrituras", exprtme, sob outra forma, a mesma idéia: que todos os elementos desconexos que o compõem, coordenam-se em uma síntese superior. Escritura, Livros Sagrados, Livro, Bíblia: palavras diversas que c?rres�o�dem tôdas a um mesmo objetivo. Trata-se, na verdade, de hvro umco e, por excelência, do livro que sôbre todos os demais mantém a primazia. f: o absoluto da cousa escrita, porquanto a men sagem que contém é o próprio absoluto. 0 LIVRO MAIS LIDO NO M UNDO f: a Bíblia, entre tôdas as obras do espírito, a mais lida do mundo. O algarismo de seus exemplares pode, apenas, ser conjec· turado: um bilhão ou dois, acrescidos, cada ano, de cêrca de dois bilhões. Desde a antigüidade, começou o livro a difundir-se. A his tória tradicional de Ptolomeu Philadelpho, pedindo ao Sumo Sacer dote Eleazar que lhe enviasse os setenta e dois melhores doutores de Israel a fim de dotar a biblioteca de Alexandria de uma tradução grega dos livros santos hebreus, tem valor de símbolo, pois que prova a celebridade de que já gozava a obra. A expansão da Bíblia tor nou-se mais vasta ainda quando os Cristãos, tendo acrescentado à parte judaica o que continha a suprema revelação trazida por Jesus, contri buiu para aumentá-la! Foi a Bíblia copiada nos conventos; os gran des da terra timbraram em possuir-lhe exemplares. Quando Gutem berg inventou a imprensa, foi da Escritura Sagrada que retirou o pri meiro texto ao qual aplicou a nova técnica. Em nossos dias, pode-se ler a Bíblia em quase tôdas as língu� por menos importantes que sejam. Quantas traduções já foram enu· meradas? Setecentas e trinta; mil cento e quarenta? Segundo os au tores, variam os algarismos. Existe tanto em japonês como em árabe, em bretão como em flamengo e até em esquimó e em ouolof. Poder -se-ia assinalar o ano de 1817 em que apareceu, pela primeira vez, em língua africana, - era, então, em malgache, - enquanto Morrison produzia a primeira versão chinêsa. A presença dêsse Livro não cessa 10 QUE É A BÍBLIA? ------------------------- de difundir-se. No século da "morte de Deus" êste sucesso vem con firmar-se, afirmando a soberania da Palavra, - dessa Palavra da qual foi dito que não haveria de passar. Os CATóLicos E M FACE DA BíBLIA n preciso, contudo, confessar que, nesse campo, durante muito tempo, atardaram-se os católicos. Durante cêrca de tr�zen�os anos mantiveram-se ante o Livro dos Livros numa atitude de mquteta des c onfiança. Tal foi uma das conseqüências da terrível crise que atra vessou o mundo cristão no decurso do século XVI e da ruptura que assinalou, na marcha dos destinos da Igreja, a revolução protestante. Enquanto, contudo, abrigado no castelo de Wartbourg que o ocultava dos olhos de seus inimigos, empreendia Lutero sua grande obra, a tradução alemã da Bíblia, não é exato dizer-se que todo o catolicismo desinteressava-se dos Livros Santos. Entre a invenção da imprensa, - 1450, - e êsse ano de 1520, no qual o antigo monge augusti niano punha-se ao trabalho, cento e cinqüenta e seis edições latinas da Bíblia haviam surgido, e, para não citar senão as do seu país, dezessete versões em língua alemã. n fora, porém, de dúvida que essas publicações eram dirigidas, quase exclusivamente, a especialistas, não tendo o povo a elas acesso. O Livro "que deveria encontrar-se, noite e dia, entre as mãos dos homens piedosos, jazia, em geral, envolto em poeira". A decadência simultânea da Bíblia e da Liturgia, desde os fins do século XIII, demasiadamente correspondeu a essa deslocação do ideal de Cristandade, do qual o desenvolvimento do nacionalismo em política, o nominalismo em teologia e a desagregação dos costumes assinalavam outros sintomas. Sem esta decadência, o ataque de Lu tero não teria tido maior alcance, e seu sucesso não seria aquêle que sabemos. Lutero, porém, e, ao lado dêle, os demais "reformadores", ren- . d�!ldo ao Livro sua supremacia e repercussão, cometeram o êrro ine:x: ptave� d� separá-lo d_a .Tradição que lhe havia garantido o texto e c�tnb�udo pa_r� eluoda-lo. . Tornada. para o homem fonte única de fe e vtda esp1r1tual, oferecia a Bíblta o meio de se prescindir da Igreja, de sua organização social, da Tradição e da Hierarquia. . A Igreja Católica mediu o perigo dessa quebra na evolução his tónca da mensagem cristã e dessa individualização da crença. Reagiu, BÍBLIA, LIVRO DOS LIVROS 11 então, pelas medidas de proteção que tomou o Concílio de Trento principalmente pela interdição aos fiéis de lerem a Sagrada Escritur� nas tra�uçõ�s em língua vulgar que não tivessem sido aprovadas por ela , e . nao fosse__m .acompanhadas ?e comentários conforme à Tradição catoltca. Pru?encta? �alvez exc�sstva, e certa influência do jansenismo deram a esta mterdtçao um carater de rigor absoluto que não possuía. Tornou-se corrente ouvir-se repetir que "a Bíblia está no Index" e que "um católico não deve ler a Bíblia". A crise do Modernismo, no início dêste século, em que trabalhos, imprudentemente conduzi dos, puseram em causa a autenticidade da Sagrada Escritura, muito contribuiu também para desenvolver esta desconfiança. Havia nisto, para os católicos, uma grave perda. Como ser ple namente cristão, cortando-se as próprias raízes que permitiram à fé cristã viver e expandir-se? Foi o grande mérito dos Papas, nestes últimos sessenta anos, o terem medido a amplitude desta perda, e procurado saná-la. Três grandes encíclicas restabeleceram a verdade - e a Bíblia - em seus direitos: "Providentissimus" de Leão XIII, em 1893, ·"Spiritus Paraclitus" de Benedito XV, por ocasião do XV.<� centenário de São Jerônimo, em 1920, e a radiosa mensagem de Pio XII, em 1943, "Divino Afflante Spiritu", que foi ponto de partida do renascimento bíblico atual. Ao mesmo tempo, criadas pela Santa Sé ou encorajadas em sua fundação, surgiram várias instituições, tais como: a "Comissão Bíblica Pontifícia", em 1902, que fixa, em ma téria de Escritura Sagrada, o ensinamento comum da Igreja (1); o Instituto Bíblico Pontifício (jesuíta) e a Escola Bíblica de Jerusa lém (dominicana). O mosteiro beneditino de São Jerônimo, em Roma, foi investido da tarefa de rever a tradução latina dos Livros Santos, a mais impor- ( 1) A propósito dos decretos da Comissão Biblica, acabam de ser r�di tados os decretos (Euchiridion Biblicum 1954). Simultâneamente o secretáno e o subsecretário da C. B. publicam uma nota, salientando: 1.0 ·o alcance histó rico dos decretos (é necessário compreendê-los segundo as circunstâncias das respectivas publicações); 2.q a especificidade (é preciso disti��uir: "Dois tipos de decisões são encaradas: Pode dar-se o caso de uma dectsao estar em rela ção com a fé e os costumes. Na medida dessa relação, guarda natu�mente todo o seu valor e torna-se obrigatória. Muitas vêzes, porém, as dectsões da C. B., de acôrdo com a própria, natureza do seu objeto, não têm relação com a fé eos costumes. A Comissão é geralmente consultada sõbre questões de ordem histórica ou crítica. Em assuntos desta ordem, dados novos podem rea- brir uma questão que poderia parecer resolvida.; .. ) . • • (Artigo de Dom Jacques Dupont O. S. B., A propósrto do novo Endürt• dion Biblicum" na "Revista Biblica .. , julho de 19SS, pág1. 414-41�). 12 QUE É A BÍBLIA? -------------------------- tante, pois que é em latim que os textos sagrados são empregados na liturgia. "Lêde a Bíblia!" diz, portanto, doravante a seus filhos a Igreja Católica. E, em todos os países do mundo em que sua autoridade é reconhecida, considerável esfôrço realiza-se sob nossos olhos a fim de ser cumprida tal admoestação. Somente na França, seis tra· duções, - uma, velha de sessenta anos mas, desde pouco tempo, re novada; outra de vinte anos, e ainda quatro bem recentes, - são a partilha de um público, dia a dia mais numeroso. Uma delas patro· cinada pelo Cardeal Lienart, apenas em quatro anos, ultrapassou tre zentos mil exemplares. �. portanto, hoje em dia, bem fácil aos cató· licos conformarem-se com a ordem do Cânon 1.391, e de somente lerem a Bíblia em edições autorizadas. Quanto ao número de publi cações consagradas à Bíblia, é de pasmar: cêrca de duzentas obras em língua francesa, só em 1954, e inúmeros artigos. �ste esfôrço e tamanho sucesso têm um sentido. Não é mais aos caprichos do livre exame que se acha relegado o texto sagrado. • Transmitido aos fiéis pela própria "Ecclesia Mater", que o interpreta segundo as lições que vinte séculos acumularam ao fio da Tradição, a Escritura Sagrada retomou seu papel de laço vivo e fonte inexgo· tável. Ler a Bíblia não é mais lançar-se a uma aventura pessoal, em revolta contra a autoridade, a Tradição, a Hierarquia e os dogmas estabelecidos. � praticar um ato superior de fidelidade e adesão. Assim, o livro sagrado surge como elemento determinante na opinião fundamental do século XX, entre a fé e a repulsa. Há, do· ravante uma humanidade que vive da Escritura, do Livro dos Livros, e outra que o repele, porquanto, há uma humanidade que concebe a vida sem Deus e outra que faz d�le, como a própria Bíblia, o ••alfa" e o .. omega" de tudo. CAPITULO 11 DE NOSSAS uBíBLIAS" A PALAVRA 0 LIVRO FOI A PRINCÍPIO PALAVRA Estas obras cujo conjunto constituía a Bíblia, êstes livros, que te mos por base de nossa fé, como foram compostos e a nós transmitidos? Nossas "Bíblias" modernas dissimulam, sob aparência uniforme, não somente a prodigiosa diversidade das partes, mas o mistério de suas origens. Quem, folheando as páginas dêsse texto conciso, pen sará no tempo em que essas palavras e essas frases se não apresen taram sob o aspecto definitivo da impressão, mas sim proclamadas ou salmodiadas ao auditório pela voz dos Arautos de Deus? Bem antes de ser um texto escrito, a Bfblia, em sua maior parte, constituiu ensinamento oral. Sob a forma de narrações, mais ou me nos estereotipadas, de poemas ritmados e assonantes, de sentenças e ditos vigorosos, seus elementos foram transmitidos, de geração em geração, pela palavra, antes que o uso da escrita se ouvesse imposto. E esta gênese especial, da qual outros livros orientais oferecem exem plo, - tal o Alcorão, - acha-se em íntima relação com as próprias formas da cultura, da vida do espírito, da linguagem, no povo em que foi elaborada a Bíblia, formas de tipo simples e comunitário, em que a criação literária era infinitamente menos individualista e in telectual do que entre nós, e mais viva e expontânea. Para que bem se compreenda como nasceu a Bíblia, é preciso que nos desfaçamos de nossos hábitos de homens modernos, homens da civilização do papel. · Escrever e ler para nós são duas operações tão automáticas que imaginamos apenas como outras sociedades tenham podido dela totalmente prescindir. Tomaram-se nossa memória exan gue e estéril e nossas faculdades de improvisação mais verbais e "elo- 14 QUB É A BÍBLIA ? qüentes" que poéticas e proféticas. Em Israel dos tempos antigos e até os dias de Cristo, procedia-se diversamente. Falar com abundân cia, com arte e grande dom das fórmulas era o apanágio daqueles que, hoje em dia, seriam "escritores". A memória aperfeiçoada era instru mento de escol. "Um bom discípulo, diziam os Doutores judeus, é semelhante à cisterna bem cimentada: do ensino do Mestre não deixa escapar uma só gôta d'água". Esta transmissão pela memória e palavra era extremamente faci litada pela própria técnica que lhe era aplicada. Existia uma arte de aprender e guardar de cor que se aliava à arte de compor. �ste "estilo oral" gravou de modo visível o texto, e a passagem para o escrito, em margem grande, respeitou-lhe o molde. A modulação do ritmo, a repetição de certas palavras e o jôgo das aliterações constituíam auxiliares da memória. Basta ler em voz alta muitas passagens do Evangelho para encontrar, sob o texto escrito, a expressão oral. Tocamos flaut" e não danfasles Cantttmos lament11fÕes e não chorastes. Bstes dois versículos colocam-nos, evidentemente, em face de um trecho cadenciado de um verdadeiro estribilho. Conhecemos, por vêzes, com exatidão, a existência do ensinamento anterior ao escrito. As profecias de Jeremias foram feitas vinte e dois anos antes de serem redigidas. Todos os profetas, todos os salmos, tôdas as partes poéticas e, em primeiro lugar, o Cântico dos Cânticos, conjunto de cânticos nup· ciais, têm, evidentemente, o mesmo caráter. E, mesmo nos livros históricos, supõe-se pela linguagem, pela forma das frases, que se trata de crônicas faladas, análogas àquelas com que os aedos homéricos ou os trovadores da Idade Média sua visavam o tédio dos castelões. Não quer isto dizer que não existissem elementos escritos. A pró· pria Bíblia faz alusão a compilações, quais o "Livro das guerras de Javé" e o "Livro do Justo" que deveriam ser conhecidos de todos, a julgar pelo modo por que é falado. Como Josué, a fim de ter tempo para terminar sua vitória, ordenou ao sol que se detivesse e foi obedecido, "não está isto escrito no "Livro do Justo"? DE NOSSAS "BÍBLIAS" À PALAVRA 15 Hoje, depois das inúmeras descobertas da arqueologia, do Sinai a Ras-Shamra, ninguém mais contesta que escritos bíblicos muito an tigos, anteriores ao X.<.>, e, talvez mesmo, ao XII.<.> século, tenham exis tido. Na época em que os hebreus de Moisés estiveram no Egito, havia quinze séculos que a escrita estava em uso corrente no país do Nilo. �sses elementos escritos, porém, não passaram, durante muito tempo, senão de auxiliares da memória, antes de serem inseridos na redação que possuímos. E, coisa curiosa, o mesmo exatamente aconteceu aos textos bíbli cos da tradição cristã, ao menos, aos Evangelhos, porquanto, para o que diz respeito aos "Atos dos Apóstolos", às "Epístolas" e ao "Apo calipse", trata-se de documentos escritos e que se apresentam como tais, escritos ou ainda ditados, como acontece às cartas de São Paulo, e nêste último caso encontra-se o "estilo oral". Os Evangelhos foram, certamente, a princípio ·"ditos", bem antes de terem sido escritos. As primeiras gerações cristãs emprestaram a êsse ensino oral enorme importância. Imagine-se uma criança de hoje a quem conte a vóvó que sua própria avó, no tempo em que era jovem, falava de Napoleão que ela vira passar revista às tropas, jus tamente antes de Waterloo. Esta lembrança direta lhe não parece infinitamente mais concreta e mais verdadeira que tudo quanto po deria ler no manual de história? Durante, pelo menos, quatro ou cinco gerações, ouviram os cristãos o Evangelho como história trans mitida, de bôca em bôca, por testemunhas irrecusáveis. Pelo ano de 130, isto é, em época em que os quatro evangelistas tinham, há muito, publicado seus livros, - São Papias, bispo de Hierapolis, na Fri� declarou que o que a tudo preferia, em matéria de tradição, era a "palavra viva e duradoura". E, pouco mais tarde, Santo Irineu, em Lião, evocavao tempo em que escutava São Policarpo, o grande bispo ·de Smima, relatar o que, êle próprio, havia colhido do· apóstolo São João. B dêstes testemu nhos vivos que o Evangelho guarda o acento que nos toca o coração. A necessidade, contudo, de guiar os transmissores do Evangelho, e o desejo de evitar os desvios, erros, exageros e deformações exigi ram que se recorresse à escrita. Através do texto definitivo dos qua tro pequenos livros, adivinha-se ainda o traço dêsses memoriais de que os "porta-evangelhos" a princípio se serviram. 16 QUE É A BÍBLIA? 0 TRIUNFO DA ESCRITURA Esta passagem da transmissão pela palavra para a escrita, suscita inúmeros problemas. O primeiro dêles é saber-lhe a data: em que momento tomou o texto a forma escrita? No que se refere à tradição judaica a resposta não pode ser dada senão com prudência. Sem dúvida, houve três épocas de intensa ati vidade literária. No tempo de Ezequias, foram colecionados e redi gidos os documentos orais ou escritos do Reino do Sul, confrontan do-os com os do Reino do Norte, que letrados de Samaria, refugia dos em Jerusalém, depois de 722, haviam trazido (cf. Prov. XXV, 1). Na época de Josias realizou-se a famosa "descoberta" do "Deutero nômio", e talvez tenha sido escrita uma primeira versão conjunta do "Pentateuco". O trabalho completo parece situar-se após o Exílio, quando Ciro, em 538 antes de nossa era, autorizou "o resto de Israel", os exilados de Babilônia, a regressar à pátria, aí refazendo uma es pécie de pequeno Estado sob o protetorado persa. Assim como, pelo ano de 445, Nehemias reconstruiu os muros de Jerusalém, assim também outro grande homem soergueu a cidade espi ritual, a Bíblia. Esdras, sábio escriba, jurista e teólogo, passava por ter ditado, milagrosamente, noventa e quatro livros santos, e obrigado todo o seu povo a seguir-lhes os preceitos. Seria, portanto, a partir do século V.9 que teriam sido coligadas as antigas versões fragmen tárias, redigidas as partes ainda oralmente transmitidas e editado o conjunto. Um século antes, em Atenas, Pisistrato havia ligado sua glória a operação idêntica sôbre os textos de Homero. A esta Bíblia primitiva vieram juntar-se, com o tempo, pequeno número de textos r�ativos. �os .séculos que se lhe seguiram, exprimindo novas aquisi· çoes esptntuaJS. Melhor conhecidos são os fatos que se referem à segunda parte da Bíblia, a das tradições cristãs. Já assinalamos que os "Atos dos Apóstolos", as "Epístolas" e o "Apocalipse" apresentam-se formal mente como textos escritos ou ditados. Não se apresenta portanto A ) , para estes o .problema. Para os quatro evangelhos, a passagem do oral � o escnto efetuou-se em datas diversas, por razões e condições d1f�rentes. . sem entrar nos pormenores de sábias discussõs, pode-se �rm r�� a red .. ação dos Evangelhos. Disse Papias que ·"Mateus fot o prrmeuo a por em ordem os ditos do Senhor, em língua he braica". O primeiro dos "evangelistas" teria sido, portanto, o antigo DE NOSSAS "BÍBLIAS" À PALAVRA 17 publicano de Cafarnaum, com um texto redigido, provàvelmente, na língua semítica usual, isto é, o aramaico, e, sem dúvida, entre 50 e 55. Pouco depois, São Pedro, que se achava em Roma, foi visi tado por um jovem judeu helenista, Marcos. Escutando as palavras do príncipe dos apóstolos, êste diligente rapaz anotou o que ouvia, confrontou suas notas com os livretos que, então, circulavam, e de tudo isto formulou, entre 55 e 62, o seu evangelho, o qual, em grego popular, dirigia-se evidentemente ao pequeno grupo cristão de Roma que o cercava. Quase ao mesmo tempo um médico erudito, Lucas, que havia sido companheiro de São Paulo em suas viagens, chegou a Roma. Recolhera êle do apóstolo dos gentios outras informações e, durante s..ra permanência em Jerusalém, documentara-se em primeira mão, (talvez junto da própria Virgem Maria). Dirigindo-se aos elementos mais cultos que constituíam o círculo de Paulo, escreveu por sua vez, em excelente grego, o seu evange· lho ( 63) . Foi o sucesso dêsses dois novos ou o seu próprio texto aramaico que decidiram Mateus a traduzir o seu texto, completando-o? Em todo o caso, foi isto feito pouco depois, entre 64 e 68. Quanto ao quarto evangelho, o de São João, foi o mesmo redigido em :Sfeso, pelo apóstolo preferido, no fim de sua longa existência, muito tempo depois dos três primeiros. :e obra, ao mesmo tempo, de recordações, de documentação e meditação espiritual, à qual se atribui ordinàriamente a data dos últimos anos do século, entre 96 e 98. :Sste breve resumo acaba de nos indicar quais as línguas em que foi escrita a Bíblia. Foram três: O hebraico, língua original e santa do povo de Deus, foi utilizado na maioria das partes que decorrem da tradição judaica. Deveria permanecer até nós a língua litúrgica de Israel, e as descobertas do Mar Morto provaram que os Essenianos dela ainda se serviam nas proximidades de nossa era. O aramaico, idioma semítico aparentado, não cessou de ganhar terreno em detrimento do hebraico no uso oral, a ponto de ter sido talvez êste fato que impôs a Esdras a fixação do texto. No momento da morte de Cristo todos o empregavam, mas há na Bíblia poucos textos escritos em aramaico: o evangelho primitivo, segundo São Mateus, como acabamos de ver; certas partes de "Esdras", de "Daniel" e de "Jeremias". Quanto ao grego, pouco usado antes de Cristo, - há apenas o segundo "Livro dos Macabeus" e o da "Sabedoria", que tenham sido redigidos nesta língua, - era êle, no momento em que se iniciava a nossa era, de uso tão corrente que, pràticamente, todos os textos sagrados dos cris· 18 QUE É A BÍBLIA ? tãos foram redigidos na língua helênica - a qual, tornada popular, não era entretanto sempre a de Homero e de Platão. Restam duas questões práticas: sôbre 9ue suporte material � .em que escrita foi fixado o texto bíbl�co . ? Dots el�mentos fora� utdJza dos: um mais modesto era constltUJdo pelas fJbras do paptro e do caniço do Egito, esmagados e ligados por um endumento, e que foi a origem de nosso papel; outro, muito mais caro, era o pergaminho, isto é, a pele cortida e polida com esmero. Primitivamente gruda vam-se as fôlhas de papiro ou de pergaminho, de ponta a ponta, em rôlos. A liturgia judaica conservou-se fiel a êste uso. O hábito de unir as fôlhas por grupo de quatro páginas - "quaternion", palavra que deu origem a "caderno" - que em seguida eram reunidas em volume, data do li.� século antes de nossa era, e foi disseminado pe los cristãos. Quanto aos escritos, variaram enormemente no decurso dos séculos. O hebraico primitivo não conhecia a forma quadrada e maciça que se encontra em suas letras atuais. Esta grafia não se fixou senão nos séculos que precederam, imediatamente, a Cristo. A forma arcaica aproximava-se do alfabeto fenício. Nem uma nem outra contava êstes sinais e pontos que, no hebraico atual, indicam as vogais. O grego era, pouco mais ou menos, o que nós conhecemos, com a ressalva de que os antigos copistas ignoravam separações entre as palavras e a pontuação, o que torna a leitura muitas vêzes difícil. :e natural que, em uma e outra língua, os tipos de escrita variassem, uns caligrafados muito cuidadosamente, como os das "casas editoras", outros, cursivos, rápidos, onde as palavras são ligadas umas às outras. :este tipo de escrita contribui a tornar escabroso o problema da trans missão dos textos no decorrer dos séculos antes da invenção da im prensa, isto é, o famoso problema dos manuscritos. Os MANUSCRITOS DA BÍBLIA .:e apenas necessário dizer que não possuímos texto algum autó grafo dos textos bíblicos, assim como também que não o temos de Homero ou de Pindaro. :e, portanto, pelas cópias que os conhecemos. Existem milhares de manuscritos da Bíblia, estando todos longe de serem compilados. Em 1780, um sábio hebraizante, chamado Ken nicot, tendo-se vangloriado de haver cotejado diretamente 261 manus critos da Bíblia judaica e de ter examinado outros 349,um d os seus DE NOSSAS "BÍBLIAS" À PALAVRA 19 -------------------------- êmulos, o italiano Rossi, retrucou, declarando que possuía, somente em sua biblioteca, 310 cópias desconhecidas pelo inglês. �stes tão nu· merosos manuscritos, que valor terão? Seu interêsse é, evidentemente, de muito desigual valor, segundo a data e também aos cuidados em· pregados em prová-los. Quando se fala ·de um texto antigo, não se deve jamais perder de vista o fato elementar de que, até a invenção da imprensa, fazia-se a transmissão dos escritos por sucessivas cópias. No decurso de cada uma das cópias, corria o texto múltiplos pe rigos: podiam ser negligentes os escribas, ou ignorantes, ou ainda, tão desejosos de bem agir que "aperfeiçoavam" a seu talente o ori ginal. Quanto aos "revisores" que, periodicamente intervinham para reconduzir o texto a sua pureza primitiva, acontecia-lhes que a ousa· dia ou incompreensão provocava outros enganos. Por conseguinte, as probabilidades que temos de pôr em sua exa tidão um texto antigo, diminuem com o tempo decorrido. Ignora-se, geralmente, que, no tocante aos grandes clássicos, a distância entre a redação e o primeiro manuscrito conhecido é quase sempre imensa: mil e quatrocentos anos para as tragédias de Sofocles, assim como para Esquilo, Aristofanes e Tucidido; mil e seiscentos para Eurípedes e Catulo; mil e trezentos para Platão, e mil e duzentos para Demós tenes. Qual é essa distância em relação à Bíblia? Com relação à parte hebraica, a resposta, até êstes últimos ao� era bastante pessimista. Não se conhecia manuscrito algum anterior ao século IV.'l. O mais antigo parecia ser o da Sinagoga de Kara soubazar, perto de Sioferopol, na Criméia, que foi datado de 830 depois de Cristo. A Bíblia de Petrogrado, "Codex Petropolitani", descoberta também em Criméia, é datada do "ano de 1228 da era dos Seleucidas", isto é, que, tendo o grande Antiocus, na Síria, reinado de 223 a 187 antes de nossa era, êste manuscrito seria das proocimi dades de 900. As diferenças entre as cópias da Bíblia hebraica são ainda mínimas, porquanto, desde antes da Alta Idade Média, os rabi nos dedicaram-se, cuidadosamente, a fixar o texto santo, assim como sua pronuncia por meio dos pontos-vogais. O resultado dêsse trabalho denomina-se "Massore". E como tivessem feito desaparecer, quanto possível, os manuscritos anteriores a essa revisão massocrética, nenhum mais resta, salvo insignificantes fragmentos. Foi tal situação modificada pelo fato das recentes e célebres des· cobertas, feitas nas cercanias do Mar Morto. Sabe-se que em 1947, 20 QUB É A BÍBLIA ? em uma gruta, foram encontrados, ocultos em jarros, diversos rôlos contendo inúmeros textos bíblicos. Buscas, em seguida procedidas em cavernas vizinhas, apresentaram ainda outros. Admite-se tratar-se da biblioteca de um mosteiro he braico da vizinhança, pertencente à seita austera dos Essenianos, que lá foi ocultada por ocasião dos terríveis acontecimentos da guerra Judaica, no ano 68 de nossa era. � natural que os textos sejam anteriores a esta data, e alguns parecem muito mais antigos, datando mesmo, talvez, do IIJ.ç século, ou até do IV.<? século. Para as partes da Bíblia que figuram nos "manuscritos do Mar Morto" - Isaías, integralmente, e em dois exem plares, e, em parte, o "Gênesis", o "Deuteronômio" e, principalmente, o ".nxodo" - temos, portanto, doravante, cópias muito próximas do original. O confronto com os manuscritos já conhecidos permitirá mo dificações importantes no texto recebido? Tal não parece, de acôrdo com os primeiros estudos. Com relação a Isaías, o texto apresenta-se, com pouquíssima diferença, idêntico ao n osso (I). No que toca aos textos cristãos da Bíblia, o problema é muito mais complexo. Estamos em face de inúmeras cópias de tôdas as épo cas, e muitas vêzes bastante variáveis. Dividem-se em três categorias : as "minúsculas", as "maiúsculas" e os "papiros". As minúsculas são tôdas posteriores ao século IX,Q, Nessa época, o texto havia sido uni formizado e, sob reserva de algumas graduações, reproduz o "texto recebido". Os mais célebres manuscritos são os que, entre o IV,Q e IX. ç séculos foram recopiados nessa nobre caligrafia, denominada "oncial". Dois, pelo menos, datam do IV.q século: "Vaticanus" (ao Vati cano) e o "Sinaiticus" que, encontrados no Convento do Sinai, entre velhos pergaminhos desprezados, e levados à Rússia, foram vendidos pelos soviéticos ao Museu Britânico. O Codex Bezae que, tomado em Lião pelos protestantes, se acha na Universidade de Cambridge, à qual Teodoro de Beze, famoso discípulo de Calvino, o entregou em 1 581, data do V,Q século. Vê-se, portanto, que entre as cópias dos livros cristãos e o original, não há mais de três a quatro séculos. � uma situação que, na Antigüidade, sõmente Terêncio e Virgílio tiveram a felicidade de possuir. (1) Ver "Les Manusc.rits hébreux du Désen de Judá", por A. Vincent (Paris, 1954). DE NOSSAS "BÍBLIAS" À PALAVRA 21 Há, porém, fato ainda melhor. As salas do Egito forneceram pa piros que muitas vêzes serviram a envolver múmias e que são porta dores de escrituras. Entre êstes inestimáveis documentos figuram di versos trechos dos evangelhos e das epístolas. Os mais notáveis são os papiros Egerton, os papiros Chester Beatty, e os adquiridos pela Universidade de Michigan. A parte mais importante restitui-nos as cartas de São Paulo em sua quase totalidade. O mais precioso de todos é o papiro Rylands que se vê em Manchester, e que contém uma passagem do cap. XVIII do evangelho segundo São João, datando de cêrca de 130 de nossa era, isto é, mais ou menos contemporâneo do original. � êste um caso único em tôda a história dos textos da Antigüidade, e que prova quanto foi rápida a expansão do Evangelho . .E confrontando todos êsses manuscritos, uns com os outros, que se pode chegar a estabelecer um texto que tenha probabilidade de total autenticidade. Preciso é acrescentar que outro meio de verifica ção indireta nos é oferecido: o que nos proporcionam as versões. A BíBLIA NAS ANTIGAS TRADUÇÕES Hoje em dia, é em traduções que lemos a Bíblia. Sômente os exegetas profissionais se referem ao texto original, o hebraico da grande edição de Rudolf Kettel na Bibelanstall de Stuttgart, e mesmo às edi ções gregas dos textos cristãos, por Nestle ou pelo R. P. Merck e o Instituto Pontifício Bíblico. Desde época muito antiga, foi a Bíblia traduzida, e o interêsse dessas velhas traduções é considerável, por permitirem reconstituir os textos de que se serviram os tradutores e que são muitas vêzes anteriores aos que nos guardaram os manuscritos. A primeira em data dessas traduções, e uma das mais célebres, é a dos "Setenta" que, conforme vimos, foi feita no Egito, - nos III.<;> e Il.'9 séculos antes de nossa era, - a pedido de um faraó esclarecido, diz a lenda, e na realidade porque os judeus de Alexandria, conhe cendo mal o hebraico, tinham necessidade de uma tradução. Esta ver· são grega obteve sucesso imenso. Foi usada pelas primeiras comuni· dades cristãs, e por ela, - à exceção de uma ou duas, - foram feitas tôdas as outras traduções em outras línguas. Certos Padres da Igreja, notadamente Santo Agostinho, julgaram que fôra ela "inspirada". A ciência moderna, contudo, criticou essa obra ilustre e, ainda que lhe manifestando extremo interêsse, demonstrou que, entre os tradutores, haviam alguns cometido erros ou parafraseado o texto. Seja, porém� 22 QUE É A BÍBLIA? como fôr, a celebridade dessa tradução eliminou tôdas as demais ver sões gregas, notadamente as de Teodócio e de Aquila, as quais, en tretanto, eram reputadas por Orígenes. Os textos evangélicos, mal eram publicados, davam origem a ver sões, principalmente nas duas línguas mais empreg�d. as pelas co�lU nidades cristãs primitivas, - com o grego, - o strtaco e o lattm. As versões latinas têm, evidentemente, capital importância. Em pri meiro lugar por figurarem em manuscritos muitoantigos e numero sos, e também por ser em latim que a Sagrada Escritura passou à seiva e à medula de nossa civilização ocidental. Entre tôdas, uma tornou-se célebre, e um nome glorioso a ela ligou-se: "A Vulgata de São Jerônimo". Antes, porém, que o grande sábio se pusesse ao trabalho, numerosas versões latinas haviam sido feitas, notadamente dos evangelhos, muitas vêzes bem diferentes umas das outras, apoiando-se sem dúvida, sôbre textos primitivos. Delas, apenas resta uma quinzena de manuscritos, dos quais os dois mais cé lebres encontram-se na Itália, em Verceil, - pertenceu a Eusébio que foi bispo dessa cidade, tendo morrido em 371, - e, em Trento, o "Palatinus", igualmente do IV.<� século. O triunfo da Vulgata eclip sou as antigas traduções. São Jerônimo viveu de 347 a 420, primeiramente em Roma e, em seguida, em uma ermida solitária em Belém. A conselho de seu amigo o Papa Dâmaso, resolveu dotar a Igreja com uma tradução perfeita quanto possível dos Livros Sagrados. Limitando-se, para os textos cristãos, a fazer uma revisão minuciosa, empreendeu, para tôda a Bíblia hebraica, a obra monumental de uma tradução viva, ardente e, muitas vêzes, pitoresca, feita diretamente dos originais. � esta Vulgata de São Jerônimo que, até os dias de hoje, marcou profundamente a lei tura da Bíblia entre os cristãos. Eliminou até, no uso corrente, trabalhos que, entretanto, eram de valor, tal a revisão feita por Santo Agostinho. Transcrita de ge ração em geração, sofreu a Vulgata, até a invenção da imprensa, a sorte comum dos textos reproduzidos. Em seguida ao Concílio de Trento foi lançada uma edição especial, por ordem do Papa Cle mente :VIII." (1592-1605). :e para uma revisão mais científica que se dedicam, doravante, os Beneditinos romanos da Abadia de São Jerônimo. As recentes traduções da Bt'blia para as línguas modernas têm, quase sempre, em consideração, ao mesmo tempo, a Vulgata, os Se- DE NOSSAS "BÍBLIAS" À PALAVRA 23 tenta e os originais hebraicos. Imenso trabalho vem se desenvolven do, sobretudo nestes cinqüenta anos, para um exame profundo dos textos. Possuímos, certamente, uma Bíblia mais "verdadeira" que os antigos cristãos. A CRÍTICA TEXTUAL Ressalta êste trabalho de uma ciência: a crítica textual. Ciência minuciosa, disciplina árdua. Através da multiplicidade das variantes e das lições algo divergentes, como fixar a verdade? Ter-se-á uma idéia da complexidade do problema, sabendo que, apenas para os qua tro evangelhos, oscilam as variantes entre cem e cento e cinqüenta mil! A maior parte, evidentemente, não se refere senão a causas de pe quena monta: por vêzes uma palavra, uma sílaba ou até uma letra. Isto, porém, não torna o confronto mais fácil. A crítica textual recorreu a métodos que, usados simultâneamente, devem chegar a fixar os critérios de autenticidade dos textos. A "crí tica externa" estuda os manuscritos e os confronta. Entre duas va riantes, qual a boa? A proveniente de cem manuscritos que, talvez, sejam todos reproduções de um só, e que poderia conter uma falta, ou a que propõe um só manuscrito que parece mais garantido? Será preciso, portanto, para cada texto, procurar reconstituir o histórico de sua transmissão. Será, porém, sempre possível? Bem pouco. Far-se-á, então, in tervir a "crítica interna", que afastará os erros evidentes, lançando mão, principalmente, do contexto que tratará de discernir se tal lição não rompe a seqüência do desenvolvimento, se não foi influenciada por outro texto (é bastante freqüente no que diz respeito aos evangelhos), se não está em contradição com o gênio e os hábitos de pensar e es crever do autor. Ciência, como se pode imaginar, infinitamente delicada e, muitas vêzes, conjetura! aos respetivos resultados. :e, contudo, graças a seus pacientes esforços que se pode esperar um texto tão fiel quanto possí· vel. :e necessário, porém, estabelecer que, no conjunto, estas variantes não atingem senão pontos mínimos, como pequeninos pormenores, e que raro é que as discussões decorrentes possam pôr em jôgo uma ver dade de importância. Tal como hoje o possuímos, o texto da Sagrada Escritura é, no conjunto, bastante sólido e garantido para servir de base à fé. C A P I T U L O 111 O "CÃNON" DOS DOIS TESTAMENTOS LIVRO COMPLEXO E DE APARÊNCIA DESCONEXA Abramos, portanto, a Bíblia; sigamos-lhe os capítulos. .n preciso confessar que a primeira impressão que deverá sentir o leitor será a de um grande espanto. Em uma página célebre do "Gênio do Cris tianismo", Chateaubriand assim o confessa. Que significa êsse con junto de livros desconexos, uns dos outros diferentes, quanto ao gê nero, ao tom, às mais evidentes intenções? .n como se tivéssemos pôsto, ponta a ponta, a "Canção de Rolando", um código de direito canônico, as "Crônicas de Joinville", "Cirano de Bergerac", bons trechos da "His tória da França" de Michelet, dois ou três "Contos Filosóficos" de Vol taire e compilações poéticas. Ensaie-se estabelecer uma unidade menos formal, descobrir estilo comum a todos os textos, ou comum a todos os autores? Vã tentativa ! Fulguram uns em cintilações de gênio; outros são de tal insipidez e despertam um tédio que se não poderia negar. E, êsse pasmo que causa o simples exame das aparências da Bíblia é ainda bem pouco, - nós o veremos, - ao lado do que se encontra ao se lhe considerar o conteúdo e ao pretender tomar ao pé da letra quanto nêle se contém . .n preciso ir além dessa decepção, recorrer às introduções e comen· tários, - e tantos hoje existem -, que permitem não se perder no labirinto. Necessário se torna, sobretudo, esforçar-se por apreender a idéia grandiosa que une todos êsses livros desconexos. Considerar a Bíblia como um amontoado de textos heteróclitos que vão das receitas de cozinha às mais elevadas especulações místicas, é condenar-se a nada compreender. 26 QUE É A BÍBLIA ? Tudo se aclara, ao contrário, e tudo se harmoniza e coordena <juando se sabe e se crê que, tomado em conjunto, é uma hist?ria, a história de um povo. que �ão �r� semel.ha�t� aos outros, mas , cuJo des tino obedecia a uma mtençao dtvma. Ltterartamente falando, e absurdo falar sôbre o "plano da Bíblia". Tudo, p�r�m, - mesmo os escritos mais inesperados, - ordena-se ao plano dtvmo. LER UMA REFERÊNCIA BÍBLICA Quando um texto bíblico é citado, ?rdinàriame?te é seguido de uma referência de algumas letras e algansmos e, mats comumente, de uma palavra abreviada, um algarismo romano ou árabe ( por vêzes dois algarismos árabes o que torna menos claro ) . Ler-se-á assim, por exem plo : Jer. VII. 15 (Jer. VII. 15), Mt. IX. 7 ( Mt. IX. 7 ) , o que se traduz : livro do profeta Jeremias, capítulo sétimo, décimo quinto ver sículo, ou Evangelho segundo São Mateus, capítulo nono, versículo sétimo. Estas simples indicações revelam, desde logo, um fato : a divisão da Bíblia em livros, capítulos e versículos. Divisão cômoda, certamente, pois que a tríplice indicação permite localizar desde logo qualquer passagem. Não é certo, porém, que êste corte, do qual o artificial salta aos olhos desde que se empreenda a sua leitura consecutiva, não quebre bem desagradàvelmente a "se <JÜência do pensamento", e mesmo não perturbe, por vêzes, a própria compreensão dos fatos. A divisão em Livros designados por título ( "Livro dos Reis", "Bxodo", "Epístolas aos Romanos", ou "Apocalipse", seja pelo nome do aut?r ("Jeremias", "Isaías", "Mateus", "Marcos" ) , seja ainda pelo do seu principal ator ("Tobias", "Jó", "Rute" ) , está ligada às pró prias condições em que a Bíblia foi formada, isto é, ao problema da escolha que iremos abordar. As demais divisões são de menos im portância e, além do mais, sua origem é muito mais recente. Os capítul� de extensão aproximadamente igual, não datam se não do comêço do século XIII. O mérito dêste secionamento cabe a Estêvã� Langton,. o qual . foi, primeiramente, professor na Universidade de P� e depolS arcebispo de Canterburye Cardeal. Foi grande o sucesso� e os copistas parisienses puseram em moda tal maneira de agir. A partlr de 1226, espalhou-se por tôda a parte. Os próprios judeus o adotaram, com reserva de algumas mínimas diferenças. A divisão atual mantém-se de conformidade com a do erudito cardeal inglês. O "cÂNON" DOS DOIS TESTAMENTOS 27 Quanto à divisão em versículos é esta recente, tendo exatamente quatrocentos anos. O célebre editor parisiense Robert Estienne, ao publicar a Bíblia em 1551 , nela introduziu os famosos pequenos alga rismos que estacam, ou melhor, cortam e deslocam os períodos. O método que presidiu a êsses cortes escapa a qualquer análise racional. Tal membro de frase é cindido em duas partes e, por vêzes, ao con trário, duas proposições, despidas de qualquer relação, são associadas, parecendo que, freqüentemente, simples razões tipográficas tenham atuado. O uso, porém, de tal modo consagrou o processo que é, pràtica mente, impossível abandoná-lo. Os DOIS "TESTAMENTos" A primeira e a mais importante das divisões da Bíblia é a que lhe reparte os livros em duas seções de desiguais dimensões, chama das "Antigo e Novo Testamento". À primeira vista, a palavra "testamento" presta-se a equívoco. Tem ela em francês sentido muito definido, que se não vê como aplicar aos textos bíblicos. Entretanto, se fôr bem compreendido, coloca imedia tamente o leitor em face do mistério que se acha no próprio âmago da Sagrada Escritura, o do acôrdo integral entre Deus e o homem, por intermédio de um povo, isto é, em face do plano divino. Testamento, com efeito, nada mais significa que "aliança", a pa lavra hebraica ·"berith" aplicando-se a esta Aliança que, desde o cha mado ouvido por Abraão, existia entre o Todo-Poderoso e o Povo que havia lHe encarregado de ser seu testemunho e porta-voz. "Berith" foi traduzido em grego, nos Setenta, pela palavra "dia theke", que insiste sôbre a idéia de tratado, de documento que con sagra a aliança ( o têrmo "suntheke" teria sido preferível, tendo sido, aliás, empregado por outros tradutores menos ilustres) . Em latim, "diatheke" foi traduzido por "testamentum", têrmo que significava "documento escrito de caráter oficial", isto é, tanto tratado de aliança como testamento. No presente sentido, caracteriza, primeiramente, as relações par ticulares de Deus com o seu povo; pode designar, porém, a união que o próprio Deus, tendo tomado a forma humana, selou com o homem pela oblação de Cristo. Há, portanto, uma "antiga aliança .. e uma "nova aliança" e o Evangelho o repete muitas vêzes. Assim, o segundo sentido não se acha também inclui do ? 28 QUE É A BÍBLIA ? Como diz a ''Epístola aos Hebreus" (IX. 15-22) é pela morte do testador que os herdeiros entram na posse de seus bens. � pela morte de Cristo que os filhos de Deus têm acesso à herança eterna. Na acepção mais trágica do têrmo, testamento exprime os direitos do homem à filiação divina, para êle adquiridos pelo sacrifício do Cal vário. A nova aliança foi selada com o sangue. 0 "CJ.NON", REGRA DE FÉ Em cada uma das duas grandes partes da Bíblia figura · certo nú mero de textos ou Livros. Por que assim foi feito ? Porque a Igreja afirma que exprimem, autêntica e regularmente, sob as duas formas, a Aliança de Deus com o homem. :B esta idéia que traduz ( e não, como muitas vêzes se pensa, a de "lista", simplesmente, ou "catálo- ") A 1 d "CA .. go o termo usua e · anon . :B grega esta palavra, mas, provàvelmente, tomada de empréstimo a algum idioma semítico. Em hebraico "qaneh" significa a cana para medir, aquela de que fala Ezequiel (XL. 3-5 ) . Foi empregada pelos gramáticos alexandrinos na coleção das obras clássicas, dignas de ser vir de modêlo; por Cícero, no mesmo sentido; por Plínio, a propósito do escultor Polideto, a fim de designar os bons métodos a seguir na estatuária; por Epíteto, para caracterizar as regras morais de vida reta. Os Padres da Igreja, em grande número, de São Clemente de Roma a Santo Hipólito, utilizaram a palavra para designar tudo quanto serve de fundamento à religião, regra da tradição, da fé e da verdade. Muito naturalmente, estendeu-se o sentido ao do "escrito regulador". Um texto foi denominado "canônico" quando fixava a regra de ser pre ciso crer e fazer. Dai, ainda por extensão, o sentido de "coleção de escritos i)Ue fixam a regra". Quando, desde 350, Santo Atanásio dizia do "Pastor" de Hermes : "Isto não é do Cânon", era neste sentido que êle entendia o têrmo. A partir dessa época, tomou-se corrente, e São Jerônimo, Santo Agostinho e São Gregório de Nazianzo o utilizaram . . . �oi nêste sentido que, no decurso dos séculos, muitos documentos of1oa1S da Igreja o tomaram, e, entre os mais importantes, as deci sões do Concilio de Trento, em 1 546, e as do Concílio do Vaticano e . m 1870. O "C�non" das E�.rituras compreende, portanto, todos os livros que a IgreJa proclama reguladores da fé", ao mesmo tempo, "inspirados", o que depende, como o veremos, de outro critério. Sua relação é doravante imutável. Como, porém, foi fixada ? O "CÂNON" DOS DOIS TESTAMENTOS 29 o CÂNON DO ANTIGO TESTAMENTO A relação dos livros "canônicos" é, portanto, a que o Concílio de Trento estabeleceu em sua quarta sessão. Compreende quarenta e cinco livros : "Gênesis", "�xodo", "Levítico", "Números", "Deuteronômio" ( êstes cinco primeiros conjuntos, designados pelo têrmo de Pentateuco) , "Josué", "Juízes", "Rute", dois d e "Samuel", dois dos "Reis", dois das "Crônicas", "Esdras", "Neemias", "Tobias", "Judite", "Ester", dois dos "Macabeus", "Jó", "Salmos", "Provérbios", "Eclesiástico", "Isaías", "Jeremias" (nêste compreendidas as ·"Lamentações" ) , "Ba ruque", "Ezequiel", "Daniel", "Oséias", "Joel", "Amós", ·"Abdias", "Jonas", "Miquéias", "Na um", "Habacuque", "Sofonias", "Ageu", "Zacarias" e "Malaquias". Os judeus ( seguidos pelos protestantes) , apenas reconhecem trinta e oito. Desde o tempo de Cristo, não estavam êles de acôrdo sôbre a canonicidade de todos os livros sagrados : de uns, - os mais nume rosos, e também os mais rigorosos - aceitando apenas os textos es critos em hebraico, em outros, querendo incluir sete obras, geralmente conservadas em grego : "Tobias, "Judite", "A Sabedoria", "O Ecle siástico", "Baruque", e Os dois livros dos "Macabeus", sem falar de algumas partes do livro de "Ester" que apenas se possui em língua helênica. Os católicos, há muito tempo, desde o século XIII, em todo caso, dividem o ·Antigo Testamento em quatro grandes partes : o Pentateuco (que os judeus denominam a Lei, a Torah) , os Livros Históricos (de Josué a Macabeus) , os Livros Poéticos e Sapienciais (de J ó ao Eclesiástico) e os Livros Proféticos de Isaías a Malaquias) . Como foi constituído êste Cânon do Antigo Testamento ? Isto é, como os chefes religiosos de Israel, príncipes dos Sacerdotes e douto· res da lei determinaram o que era "canônico" ? � certo o fato, ates tado notadamente pelo historiador judeu Flávius Josephe, na época de Cristo, - sob a reserva das divergências que acabamos de ver entre judeus rigorosos e judeus helenistas mais tolerantes, - de existir uma relação devidamente estabelecida das Sagradas Escrituras, um "cânon", contendo os trinta e oito livros, número que artificialmente ligava-se, por vêzes, ao de vinte e dois, que era o das letras do alfabeto he braico. Quanto, porém, a saber segundo que critério, por que méto dos e a que datas os rabinos haviam feito tal escolha, são questões sem respostas exatas. Afigura-se que o rei Josías (639-609), sob cujo reinado o grande sacerdote Helcias "encontrou na casa de Javé o Livro 30 QUE É A BÍBLIA ? da Lei", tenha, em primeiro lugar, estabelecido um �ânon, aind� que muito reduzido e rudimentar. Em todo caso, a parttr do V.<:> secu1o, uma lista existe dos livros sagrados que eram lidos nas sinagogas. Esdras, em cêrca de 444, o havia fixado. O grupo dos Profetas pa rece ter sido delimitado posteriormente;talvez pelo III::• século. O Livro dos Salmos, cujo prestígio era grande, em virtude de ser atri buído ao rei-poeta Davi, e do uso litúrgico imemorial que dêle era feito, devia estar no cânon, de longa data e como por direito naturaL As demais obras, denominadas "hagiógrafas", foram agrupadas pelos cui dados dos escribas e doutores, durante os III.<� e 11.<� séculos, e a lista deve ter sido suspensa em seguida à célebre perseguição de Antiochus Epiphanio ( 175-163) quando Judas Macabeu mandou que fôssem pro curados os rôlos sagrados, salvos da destruição, a fim de reuni-los. Não parece, portanto, que tenha havido julgamento oficial comparável a uma decisão conciliar, a fim de declarar canônico o conjunto do An tigo Testamento. Como passou êste Cânon para o uso cristão ? Não foi sem dis· cussões e hesitações numerosas. O princípio deve ter sido o de ado tar como canônicos os livros que haviam sido citados por Jesus e os Apóstolos. Isto, porém, não foi suficiente. Pode-se dizer que os Padres da Igreja oriental foram mais favoráveis à lista limitativa he braica. Os Padres ocidentais admitem os "deutero•canônicos" que os judeus haviam finalmente apartado. No IV. 11 século, a situação era ainda flutuante. Santo Hilário recusava aos sete livros discutidos o título de canônicos, mas os considerava, entretanto, como fazendo parte da Escritura Sagrada. Foram, segundo parece, São Jerônimo e Santo Agostinho que, filiando-se ao cânon mais amplo, fizeram-nos triunfar na Igreja. Os concílios de Hippone (393) e de Cartago (397) , e uma carta de Inocêncio J.q, em 405, provam que naquele momento o cânon es· tava fixado tal como o possuímos. 0 CÂNON DO Novo TESTAMENTO Para o Novo Testamento, estão os protestantes, pràticamente, de acôrdo com os católicos, sob a mínima reserva de não serem tão cate góricos em suas atribuições. A "Epístola aos Hebreus", por exemplo, que os católicos assinalam sob o nome de Paulo, conserva-se para êles O "cÂNON" DOS DOIS TESTAMENTOS 31 de atribuição problemática. �. porém, o �esmo o número de livros, tanto para uns como para os outros : vmte e sete. Foram êles divididos em três seções : livros históricos (Evangelhos segundo "São Mateus", "São Marcos", "São Lucas", "São João" e os "Atos dos Apóstolos" ) ; Livros Didáticos (as quatorze epístolas de São Paulo, e sete outras epístolas, cujas assinaturas são de São Pedro, São João, São Tíago e São Judas ) ; finalmente, um Livro Profético, o Apocalípse. Não se deve, de modo algum, acreditar que êste novo Cânon fixou-se ràpidamente, por uma decisão ex-cátedra. Trata-se bem mais do comum assentimento, no fervor inspirado dessas igrejas primitivas que, próximas da Revelação, mantinham ainda a chama do Espírito Santo. Nasceu essa decisão da própria vida, dentro de um natural plano de serenidade. Houve, certamente, indecisões, reflexões e, tal vez mesmo, discussões. Conta Eusébio que Serapião, bispo de Antio quia, tendo-se-lhe apresentado certo "Evangelho segundo Pedro", au torizou, a princípio, a leitura, mas, em seguida, tendo-o examinado mais atentamente e encontrado traços da heresia docete o interditou. O "Pastor" de Hermas, livro tão atraente do comêço do segundo sé culo, que passou durante algum tempo por inspirado, foi afastado do Cânon pelos ocidentais, mas continuou sendo acolhido na Igreja do Egito. O que é certo é que a Igreja mostrou-se extremamente rigorosa nos métodos que presidiram a escolha. Narra Tertuliano, cêrca do ano 200, que, uns trinta anos antes, aparecera na Província da Ásia, um livro dos "Atos de Paulo", em que se via o Apóstolo converter uma jovem pagã, Thekla, tendo esta, em seguida, começado a pregar, por conta própria e de modo admirável, o Evangelho. Paret:endo suspeita esta narração, foi procurado o seu autor, sacerdote mais cheio de boas intenções que de prudência e que, sem tardar, foi castigado. B suficiente, ainda, ler os textos chamados "apócrifos", confrontan do-os com os textos canônicos, para concluir de que lado se acham a prudência, a medida e a sabedoria, e com que tato a Sagrada Escri tura fixa e limita os direitos do sobrenatural e do maravilhoso. Os dois critérios que preponderaram no julgamento foram essen· cialmente a catolicidade e a apostolicidade. Um texto era admitido no Cânon quando, no conjunto das comunidades, era reconhecido como fiel à verdadeira tradição, à verdadeira mensagem. À medida que a liturgia se estabilizava, o hábito de ler, no. de curso da Missa, páginas das epístolas e dos evangelhos, submeua o QUE É A BÍBLIA ? 32�------------��---------------------- respetivo teor a uma prova p�b d li d ca. Q 1 u.�n�o a con 1 sc�ência cristã, esclarecida e guiada pela auton a e ec estasttca, cone UJa que certo número trazia a marca do Espírito, a escolha estava feita. E como, nessas comunidades primitivas, a filiação apostólica era fundamental, foram conservados aquêles textos estabelecidos pelos testemunhos vi vos, que provinham diretamente dos discípulos de Jesus. Em todo caso, no momento em que terminava o segundo século, a escolha estava terminada. Possuímos, com efeito, um documento extremamente precioso que o prova : o "Cânon de Muratori", assim chamado pelo nome de um bibliotecário da Ambrosiana que o desco briu e publicou em 1740, segundo um manuscrito do VI.<� ou VII."' século. Reproduz êsse documento um simples catálogo, uma tábua das matérias da Escritura Sagrada, datada das proximidades do ano 200 e redigida em Roma, demonstrando que nessa época a Igreja Ro mana possuía o mesmo Cânon que a cristã de hoje (com exceção das Espístolas de São Tiago e São Pedro) e rejeitando o "Pastor", cuja leitura, entretanto, autorizava, e, mais categoricamente, certos escritos de tendências gnósticas. Cento e cinqüenta a duzentos anos mais tarde, entre 359 e 400, os catálogos dos Cânones multiplicaram-se. Foram encontrados na África, na Frígia, no Egito e em Roma. O Concílio de Cartago de 397 estabeleceu a lista definitiva. "O primeiro artigo de nossa fé, dirá Tertuliano, é que não há nada que além dela devamos crer". O decreto do Concílio de Trento, em sua quarta sessão em 1 546, nada mais fêz que confirmar essa relação, à qual os ortodoxos orien tais se filiaram em 1672. UM MUNDO ESTRANHO: 0 APocALÍPSE O Cânon é, portanto, o resultado de uma escolha, querida e guiada pelo Espírito Santo. Aparece a Bíblia como o resultado de uma produção literária mais ampla, que está longe de nos ser co· nhecida na totalidade. As recentes descobertas nos arredores do Mar Morto revelam-nos a existência de uma literatura religiosa não bíblica de qualidade insigne. Certos fragmentos já publicados, - o "Comen tário de Habacuque", os "Salmos de Ações de Graças", o "Manual de Disciplina", a "Guerra dos Filhos da Luz e dos Filhos das Tre- O "CÂNON" DOS DOIS TESTAMENTOS 3 3 vas", - não seriam indignos de figurar ao lado de muitos textos do Antigo Testamento. Designa-se pelo têrmo de "apócrifos" o conjunto dos textos que não foram acolhidos pelo Cânon. A palavra significa, originalmente, "segrêdo esotérico", mas como os heréticos das seitas gnósticas esta vam empolgados pelo esoterismo, ao qual o gênio do cristianismo era hostil, tudo quanto provinha do pretendido segrêdo tornou-se sus peito, e "apócrifo" passou a significar "condenado pela Igreja" ( 1 } . Existem apócrifos d o Antigo Testamento elaborados entre os anos de 300, antes de nossa era, e 100 após, isto é, em uma época eln que a comunidade judaica sofria com amargura a tirania de diversos ven cedores pagãos. Nascidos em atmosfera de angústia, refletiam um estado de fer mentação espiritual intensa. Uns, encarniçavam-se em comentar alu cinadamente a Lei; outros constituíram apêlos a uma vida moral mais pura, mais elevada e a uma revivescência das almas. Os últimos, en fim, e os mais numerosos, propunham aos espíritos a evasão dos "Apo calipses", - "apocalyptein" em grego quer dizer: descobrir, -reve lando-lhe um futuro de fim do mundo, em que a justiça seria feita aos eleitos de Deus : os "Salmos de Salomão", a "Ascensão de Isaías", e os "Livros Sibilinos" são os mais notórios. Quanto aos Apócrifos do Novo Testamento, constituem um mundo estranho, em que se mesclam pedaços de verdade e delírios. Nasce ram êstes textos nas comunidades cristãs primitivas, desde os primei ros dias até o VI.<� ou VII.'� séculos, e, ao mesmo tempo, determinados por uma curiosidade piedosa para com tudo que dizia respeito ao Senhor pela função romântica das massas, e, por vêzes, por suspeitas intenções heréticas. Conhecem-se assim pretensos evangelhos segundo São Tiago, se gundo São Mateus e segundo São Pedro, e até segundo Nicodemos, evangelhos da infância, cheios de pormenores sôbre os primeiros anos de Jesus, narrações da Assunção de Maria, pseudos atos dos Apóstolos e apocalipses atribuídos a Pedro e a Paulo. A Idade Média sabo- ( 1 ) Os protestantes não usam a mesma terminologia que os católicos. Denominam "apócrifos" os sete livros que a Bíblia c�tólica conserva,_ e �e os católicos denominam "deuteronômicos", isto é, postenores ao CAnon Judatco. Designam êles os apócrifos pelo têrmo "pseudopfgrafos" por, e�pregarem quase todos os nomes de vários personagens célebres como pseudôrumos. QUE ti A BÍBLIA ? reou essas histórias, das quais a "Legende Dorée" de Jacques de Vo ragine recolheu bom número e que a arte utilizou. Não teriam elas maior interêsse senão histórico, se certos usos atuais não tivessem nelas a sua fonte : assim, por exemplo, o de colocar um asno e um boi de cada lado do Presépio em que dorme o Menino Jesus (2) . (2) Ver os números 7t e 72 da Coleçio. C A P I T U L O I V O LIVRO EM QUE DEUS FALA SOB O SÔPRO DIVINO Em todos os livros que compõem a Bíblia, a Igreja Católica (e também os protestantes conservadores) reconhece um caráter par ticular, que é o da "Inspiração". � êste um dado essencial, um dado de fé. A Bíblia inteira é um livro "inspirado". Devemos, escreve o Padre Lagrange, sendo filhos da Igreja, crer nêle com uma fé divina. Se a Igreja no-la impõe, é que para isto tem o poder, e é sômente pela sua autoridade que podemos estar seguros sôbre êste ponto". Esta noção está, além do mais, contida nas diversas expressões que designam a Bíblia : Livros Santos, Sagrada Escritura, "Literatura Di vina", segundo Tertuliano, "Divina Biblioteca", segundo São Jerônimo, Santa Bíblia. E as primeiras palavras da mais recente encíclica sôbre a questão bíblica, a de S. S. Pio XII, em 1943, não falam de maneira diversa : "Divino afflante spiritu", "sob a inspiração do Espírito Sant� os escritores sagrados compuseram os Livros que Deus quis dar ao gênero humano . . . " A Bíblia é, portanto, a Palavra de Deus dirigida aos homens; é o Verbo escrito de Deus. Esta certeza, recebeu-a a Igreja de Israel, onde existia de tempos imemoriais. Desde que o povo hebreu sabia haver sido eleito por Deus, que existia uma Aliança entre o Todo Poderoso e êle, que tôda a sua história fazia parte de um plano di vino, não seria natural que o livro em que eram descritas, juntamente com essa história, as instruções e manifestações de Deus, fôsse tido como inspirado? 36 QUE É A BÍBLIA ? 0 próprio Deus não revelara a Abraão sua essência única ? . Nã? ordenara também a Moisés que escrevesse suas palavras, e asstm ft- xasse a Lei ? E assim também não se dirigiu aos profetas ? A palavra de Javé a Jeremias era verdadeira para todos êles. "Ponha em tua bôca mi nhas palavras" (Jer. I. 9) . Assim o historiador judeu, Flavius Jose phe resume um verdadeiro dogma quando assegura que todos os au tor:s do Livro escreveram "sob o sôpro de Deus". Não disseram e não dizem outra cousa os cristãos. Nos lábios de Jesus e dos Apóstolos são inúmeras as fórmulas .e� que se afirma a mesma fé. Foi Deus, em verdade, que falou a Motses (Me. XII. 26; ]o. IX. 29; Act. VII. 44; Rm. IX. 1 5 ) . Foi êle que s e exprimiu pe los profetas (Lc. I. 70; Act. III. 18) . Falou mesmo pela bôca do rei-poeta Davi (Act. I. 16; IV. 25 ) . A frase elíptica da epístola aos Coríntios é categórica e significativa : "Disse Deus" (li. Cor. VI, 16) . "Tôda a Escritura é inspirada por Deus", proclama ainda São Paulo a seu amigo Timóteo (UI. 15-16) , e São Pedro ensina que "Foram levados pelo Espírito Santo os homens que falaram por parte de Deus" (11. Pet. I. 2 1 ) . Inútil é citar os Padres e os Doutores da Igreja, tão numerosos são os textos que assinalaram e afirmaram essa idéia : o "Enchiridion bíblicum", publicado em Roma em 1935, no decurso de perto de dois mil anos, os dos Papas e dos Concílios. O que escrevia o Papa São Leão IX.9 em 1053, é exatamente igual ao que, em 1943, escrevia Pio XIV'; o que o Concílio de Lião, em 1274, proclamou, é, palavra por palavra, idêntico aos decretos do Concílio de Trento, em 1546, e do Concílio do Vaticano, em 1870. Jamais vacilou o ensino da Igreja Católica. 0 QUE É EXATAMENTE A INSPIRAÇÃO 1!, contudo, evidente que o têrmo "Inspiração" necessita ser de terminado. Nada seria mais falso que o representar-se a Bíblia como obra milagrosa, nascida não se sabe onde nem como e surgida no meio dos homens de modo mais misterioso ainda. Adversários do cristianismo reduziram, por vêzes, a êste esque ma, a fim de ridicularizá-la, a doutrina da Inspiração. "A Bíblia, diz com sábio humor S. Ex. Mons. W eber, bispo de Strasbourg, é um livro divino, mas não é um livro caído pronto do Céu". O LIVRO EM QUE DEUS FALA 37 A definição exata de Inspiração encontra-se em São Tomás de Aqui no : "O Espírito Santo é o autor principal das Escrituras; os homens foram apenas instrumentos" (Quodl. VII. art. 14), o que foi esclarecido ainda na encíclica "Providentissimus Deus" de Leão XIII : "A inspiração é um impulso sobrenatural pelo qual o Espírito Santo excitou e impulsionou os escritores sagrados e os assistiu en quanto escreviam, de maneira que concebiam exatamente, queriam transmitir fielmente e exprimiam com uma verdade infalível tudo quanto Deus lhes ordenava, e somente o que lhes ordenava que es crevessem". Sábia e penetrante definição que, na elaboração dos tex tos sagrados, deixa o lugar respetivo ao Poder de Deus, de um lado, e, do outro, à inteligência e vontade do homem. O Senhor não escreveu a Bíblia, como a sua mão visível traçou na parede do palácio de Baltazar as célebres palavras de advertência : "Mane, Thekel, Phares". Nem a ditou a espécies de mediuns em transe à semelhança, como julgavam os gregos, do que se passava com a Pythia de Delfos. As próprias pinturas que representam um anjo soprando ao ou vido de um evangelista o texto que está em vias de escrever, podem ser admitidas em sentido simbólico, mas ameaçam dar uma idéia falsa do fenômeno. Para que a Bíblia se concretizasse, serviu-se o Espírito Santo de instrumentos que eram homens e que conservavam a respe tiva personalidade, o caráter, talento e gênio, os hábitos intelectuais e poderes de estilo. Não destruiu nem violentou as faculdades daque les que deviam formular a sua menságem. E, é necessário assinalar que foi um dos mais importantes resul tados do ensino pontifício, desde sessenta anos, do "Providentissimus Deus" ao "Divino Afflante", o ter permitido que melhor fôsse con siderado o papel mantido pelo homem, instrumento de Deus, no fe nômeno da Inspiração. Muitas pretensas dificuldades, asbsurdos ou contradições que a crítica "livre" assegura encontrar no estudo da Bíblia, resolvem-se, quando se tem em conta esta justa partilha entre a obra divina e o encargo humano. Renan, hoje em dia, bastante dificuldade teria em enumerar as famosas contra-verdades da Bíblia que o separaram da fé. SE o SENHOR FALAR, QUEM Rl!SISTIRÁ? B preciso considerar os três tempos do fenômeno, como tão bem foram assinalados por Leão XIII. Deus "incitou e impulsionou" os 38 QUE � A BÍBLIA ? escritores sagrados a escrever. Nãoé por exclu.siva vontade dêles . que se entregam à essa tarefa, como fazem os escrtto�es profanos ( atnda que a inspiração literária, tantas vêzes evocada, seJa de alguma forma o reflexo leigo da "inspiração" autêntica o o o " O caso é flagrante quando se trata dos profetas e de tudo qu . anto se liga à inspiração profética. São inúme . ros os textos da . Escrttura que mostram a irresistível ação do Espínto sôbre o Insptrado, de quem se apossa. "Cai" sôbre êle, diz o livro �e Sam�el, e o "reveste". O Inspirado não pode dizer senão o que Jave lhe dtta. n Deus que lhe "abre os olhos" ou os ouvidos. Não pode o profeta furtar-se a essa missão que lhe é inspirada. "Se o Senhor falar, quem resistirá ?". Assim o disseram o velho Amós, Jeremias e muitos outros, tendo disto experiência pessoal. E ninguém ignora quanto a Jonas custou o ter recusado levar a palavra de Deus a Nínive. Luta entre a vontade de Deus e a do homem que redunda em mistério de fé. Menos nitidamente, a inspiração escrita é, contudo, também de 'pendente da vontade divina. Acontece que escritores sagrados citem suas fontes exatamente como faria um historiador de nossos dias. (I. Reis. XI. 41, XIV. 19, 29 : Pr. XXX. 1 ) , ainda que reconheçam ter sido penoso o seu trabalho literário. (Assim no Prólogo do "Ecle siástico" ou em li. Mac. li. 24, 32) . A tradição judaica e a fé da Igreja, em seguida, afirmam que a ação do Espírito Santo, neste caso, foi tão positiva como na inspiração fulgurante aos profetas, ainda que diferente tenha sido o método. DEUS NÃO PODE ERRAR Em segundo lugar, de acôrdo com a Encíclica Deus "esclareceu" a i'!teligência daqueles q�e escolheu para porta-vo�es e, de tal forma o fez que, embora respettando o pleno exercício das faculdades hu manas, conferia à obra um valor divino. Esta luz sobrenatural deve entender-se de dois modos. Por um lado, Deus revelou "segredos" àqueles que deviam transmitir-lhe a mensagem . . Assim está escrito a propósito de Samuel, de Daniel, de Amós e muxtos outros. São Paulo, em célebre texto, chegou mesmo a dizer que ap�endera cousas "que não é permitido ao homem repetir". Esta luz dtvma, po�ém, não faz. senão abrir ao espírito humano os cam· pos d� c?n�ectmento. O Julgamento do autor inspirado permanece seu propno Julgamento, enquanto homem; toma-se, porém, julgamento O LIVRO E M QUE DEUS FALA 39 divino pela ação sobrenatural de Deus, indissoluvelmente unida à ação do homem. :n êste um ponto de doutrina de importância capital, pois que a êle se liga o dogma da "inerrância bíblica". Eis como a define o Padre Benoit, da Escola Bíblica de Jerusalém : "Deus não pode en ganar-se nem nos enganar. Sua palavra é sempre verídica. Se, por tanto, lHe impele um homem a escrever em seu nome, não lhe pode permitir que ensine o êrro. O carisma da inspiração é, necessària mente, acompanhado do privilégio da inerrância. :n dogma de fé que sempre professou a Igreja". Até que limites estende-se esta inerrânda ? Não é suficiente di zer que, tomado em conjunto, o Livro Sagrado contém uma doutrina de verdade. A inerrância deve ser entendida como propriedade inte grante de tôda a Bíblia, pois que a Bíblia é obra de Deus, e Deus é a própria verdade; inerrância ao mesmo tempo de fato e de direito. Tôdas as partes do Livro Sagrado dela se beneficiam. A Co missão Bíblica, em decisão de 18 de junho de 1915, assim concluiu : "O que o autor sagrado afirma, enuncia e insinua deve ser encarado como afirmado, enunciado, insinuado pelo Espírito Santo". :n, portanto, absolutamente interditado a um católico crer e dizer que a Inspiração, e por conseguinte a inerrância, limitam-se a certas partes dos Livros Santos, às partes dogmáticas e morais, por exem plo, e que, para as demais, o julgamento crítico é livre; assim como também crer e dizer que pode haver êrros de fato na perspectiva em que se coloca o escritor sagrado, como, por exemplo, que, em um dos Livros Bíblicos, que se apresentam como sendo da história, possam existir êrros históricos. Tal é, em tôda a nitidez e fôrça, a doutrina da Igreja. Os ESCRmAs DB DBus Contudo, "em face desta doutrina, uma constatação se nos impõe com inteira evidência, e a que todos podemos proceder : a Bíblia livro divino, é, ao mesmo tempo, livro autênticamente humano" ( Mons. Weber) . E esta constatação projeta-se sôbre uma obra escrita por homens, homens de carne como nós, vivendo em determinado tempo, em contexto histórico bem definido, sofrendo as reações, o modo de pensar e mesmo os preconceitos da sociedade em que viviam. Age sôbre êles a inspiração de modo total, até nas minúcias do estilo ? 40 QUE É A BÍBLIA ? Se os dados essenciais os conceitos profundos procedem diretamente do Espírito Santo, pdder-se-á dizer que tenha também determinado a escolha das palavras, das expressões e das frases ? Humana e lite ralmente falando, sabe-se quanto é difícil dissociar o pensamento puro da respetiva expressão. Deus não poderia estar ausente da formulação e da escrituração de sua mensagem. .e o que se denomina "inspiração verbal", que era admitida, em geral, pelos teólogo_s e �xeg�tas, nã�, . porém, de ��do universal, e que, em todo caso, 1amats fot dogmatteamente deftntda por texto oficial da Igreja. O ensino pontifício tem em larga conta as condições humanas em que foi feita a redação da mensagem. Evidentemente, "não se deve imputar um êrro ao autor sagrado onde copistas, ao executar seu trabalho, deixaram escapar alguma inexatidão" (Divino Afflante) ; mas também é preciso ter em conta as condições em que viveram os escritores sagrados, e seus hábitos pessoais de pensar e exprimir-se. Foi por meio de um homem que o Senhor falou; é, portanto, legítimo e necessário conhecer êsse homem. � nessa direção que se orientou, presentemente, a grande maioria dos estudos bíblicos. Foi a intuição genial do Padre Lagrange, ilustre fundador da Escola Bí blica de Jerusalém, que pressentiu estar ai a solução de inúmeras dificuldades. O conhecimento profundo da Bíblia não se pode mais, doravante, separar das épocas e dos lugares em que o livro foi escrito. Assim, surge a Inspiração como operação divina, espécie de graça que empolga o autor sagrado na totalidade do seu ser, que o escla rece e guia, assistindo-o durante todo o trabalho mental, desde o im pulso de escrever e a idéia original, até a execução literária e, por vêzes, a expressão formal, mas que deixa livre a reação da perso nalidade humana do escritor sôbre a obra. "Livro de Deus livro do homem", diz Mons. Weber, a respeito da Bíblia. Esta fón�ula, tudo resume. C A P I T U L O V O LIVRO DITADO A HOMENS 0 PAÍS DA BÍBLIA Conhecer as condiçõe em que homens, sob inspiração divina� escreveram a Bíblia, parece, portanto, indispensável à compreensão do texto sagrado. Em primeiro lugar são de examinar as condições geográficas dos países em que se desenrolaram os episódios do An· tigo e do Novo Testamento. "Geografia e cronologia são as duas muletas da história", assegura velho ditado da Universidade de França. Assim também da história sagrada e de tôda a ciência das Escrituras. O país bíblico, por excelência, é a Palestina, êsse pequenino pe daço de terra, não maior que a Bretanha, que um automóvel atra vessa, fàcilmente, de Norte a Sul, em um dia, e em que o :viajante moderno admira-se de achar tão curtas as distâncias. Estende-se essa faixa de terra ao longo da costa mediterrânea, a qual, apesar de tão estreita, a geologia e o relêvo individualizam três zonas paralelas muito diversas : a planície marítima, as monta nhas (não muito altas, mas ásperas e rudes) e a fossa de aluimento - o "Ghor" - em que o Jordão desce para o Mar Morto, a 392 metros abaixo do nível dos oceanos. :e esta região de clima semi -mediterrâneo, semi-deserta, de primaveras deliciosas e breves, de ve rões escaldantes em que as chuvas caem, entre outubro e maio, em rajadas violentas, ainda que muitas vêzes em quantidade
Compartilhar