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COLEÇÃO CAIROSCÓPIO UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO REITOR Proj. Dr. Luis Antônio da Gama e Silva EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO C o m i s s ã o E d i t o r i a l P R E S I D E N T E Proj. Dr. Mário Guimarães Ferri FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LÈTRA8 M E M U R O 3 Proj. Dr. A. Brilo da Cunha Proj. Dr. C. da Silva Lacaz FAC. CE FII.OK., ClfcNC. E LÊTRAS FACULDADE DE MEDICINA Proj. Dr. Miguel Reale f a c u l d a d e d e d ir e it o Proj. Dr. Walier Borzani ESCOLA POLITÉCNICA O S K A R B E C I C E R O PENSAMENTO M A T E M Á T I C O Sua grandeza e seus limites EDITORA IIERDER SÃO PA U LO Vorsâo portuguêsa do Prof. TIelmoth At.FRRno Sxmon, do original alemão: Groesse und Qreme der Malhfmatisclten Dcnkweise, von Oskar Bkoker (em. o. Prof. der Philoeophic an der Uniwisit&t Bonn), publicado pola Verlag Karl Albert, Freiburg'Mueneheti 1959. ( c ) Editôra Herder, Sáo Paulo, 1965 Imprciuo no* Estados l;nídon do Br&âil P rin ted itt the U nited S taU t oj Braeil I N D I C E Prejácio................................................................................... 7 CAPÍTULO PRIMEIRO O P E N S A M E N T O PIT A G Ó R IC O 1. Os matemáticos o filósofos gregos mais antigos.. . . 11 2. A tese fundamental dos pitagóricos: as coisas sãonúmeros........................................................................ 15 3. A teoria “pitagóriea" de Platão sôbre a m atéria.. 18 4. Opiniões de Platão, dos pitagóricos e de Aristóteles sóbre a natureza dos números................................. 25 CAPÍTULO SEGUNDO C IÊ N C IA DA N A TU REZA EX A TA 1. O papel da astronomia................................................. 28 2. A experiência “analítica” na Antigüidade e naIdade Moderna........................................................... 31 3. "Forçar” a natureza?................................................... 36 4. Naturam renuntiando vincimus.................................... 41 5. O problema da realidade na física clássica............ 46 6. A física moderna e o problema da realidade.......... 55 7. Visão de ooujunto........................................ ................. 75 CAPÍTULO TERCEIRO M A T E M Á T IC A P U R A COM O C IÊ N C IA L IV R E 1. Os inícios da matemática grega. Aparece pela primeira vez o problema do Infinito (Zenão de Eléa) 82 2. A descoberta do irracional........................................... 90 3. A teoria aristotélica sôbre o infinito......................... 06 4. A teoria aristotélica da abstração na matemática.A mathesis universalis nos séculos XVII e XVIII. 100 5. Evolução em direção da matemática formal............... 108 CAPÍTULO QUARTO 0 3 L IM IT E S DO PE N S A M E N T O M A T E M Á T IC O A) Os limites imanentes da matemática 1. Geometria não-euclidiana. Axiomática form al.. . . 114 2. Fundamentação crítica da análise............................ 121 3. A teoria dos conjuntos de Cant-or e suas antinomias.Provas da nfio-eontradição........................................ 124 4. O intuicionismo.............................................................. 139 5. Computabilidadc c decisibilidade. O princípio daineompletividade de Goedel...................................... 143 6. A prova da incompletividade de Goedel.. . . ............. 146 7. O conceito de função calculável e similares.............. 157 8. Definiç3o construtiva de números ordinais transfi-nitos............................................................................... 162 B) 0 Problema filosôjic) dos limites do pensamento matemático 1. Opinião de Kant sôbre a essência da m atem ática.. 169 2. A matemática e a finitude do homem........................ 173 3. Matemática e "História” (ciência hermenêutica doespírito)......................................................................... 178 4. Os limites do inteligível. Ser e existência do homem. 186 P r e f á c i o S ôbre a grandeza e a miséria do homem es creveu Blaise Pascal, sôbre o brilho e a miséria das cortesãs escreveu Honoré de Balzac; porque não escrever agora sôbre a grandeza c a miséria da matemática? É verdade que a matemática é um assunto abstrato, ou pelo menos uma forma do espírito objetivo, ou absoluto, e tal forma pode muito bem ser grande, mas não miserável como o homem. Pode-se, talvez, perguntar se a matemá tica pode crescer ilimitadamente, ou se seus limites não coincidem com os do próprio matemático. A grandeza das conquistas matemáticas no decurso dos três últimos séculos está hoje em dia claramente delineada diante de nossos olhos. Mas vemos igualmente a ambigüidade de uma tal gran deza no imenso terror que ela pode espalhar ao seu redor, por mais que dela necessitemos e sem ela não possamos mais viver. Só êste fato já bas taria para fazer-nos meditar sôbre a grandeza e os limites do pensamento matemático. É preciso indagar como tudo isto pôde acontecer; é por- 7 tanto imprescindível lançar um olhar sôbre a his tória da origem e da evoluçfio da matemática. A ciência matemática moderna, que levou ao desenvolvimento extremo do domínio das fôrças da natureza no decorrer dos séculos x ix e xx, só existe há trezentos anos; começou no século xvn com Galileu e alcançou seu primeiro clímax com Newton. Mas, a matemática em si é alguns séculos mais antiga. Teve sua origem no Antigo Oriente, Babilônia e Egito, no segundo milênio antes da era cristã. Ciência no sentido europeu ela se tornou sômcnte no início do século vi antes de Cristo, por obra dos gregos, os quais, recebendo a herança babilônico-egipcíaca, profundamente a transformaram, como aliás fizeram em outros ter renos da cultura (escrita, arte, etc.). Uma outra transformação se verificou no "ocidente” , no século xvn, por obra dos povos germano-romanos, quando se descobriu a álgebra (a “fórmula” , que hoje nos parece tão característica da matemática), a geometria analítica e o cálculo infinitesimal. Ao mesmo tempo, e em conexão com aquelas desco bertas, surgiu a nova dinâmica de Newton, que se mostrou capaz de explicar pelos mesmos princí pios os processos (mecânicos) do céu e da terra. A partir dali se verificou um progresso contínuo, tanto no terreno matemático, como no físico (no sentido lato), até a ciência atual. Se queremos compreender esta, será necessário ocupar-nos mais detalhadamente do esbôço histó rico, acima apresentado. Não de tôdas as parti 8 cularidades, nem sequer de todo o seu alcance evolutivo, mas pelo menos dos pontos de intersec- çáo mais importantes desta longa história, isto é, das descobertas mais fundamentais para a ulterior evolução. Náo queremos, contudo, parar aí; o estado atual da questáo em suas linhas mais caracterís ticas será igualmente exposto. Pois é precisa mente neste ponto que o pensamento matemático alcançou sua plena realização c atingiu seus limi tes, se é que tais limites existem. A questão dos limites se deve examinar, de um lado, a partir da própria matemática e, de outro, como um pro blema filosófico. Com isto está esboçada a tarefa que nos impu- semos tratar no presente livro. CAPÍTULO PRIM EIRO O pensamento Pitagórico 1. Os matemáticos e jilósojos gregos mais antigos De Pitágoras se afirma(l) que foi o primeiro a ensinar a matemática como disciplina livre (paidda). Esta significa para Arist,óteles(2) uma ciência que é estudada por si mesma, e não pela sua utilidade, ou por prazer. Pode-se duvidar da exatidão dêsse informe sôbre Pitágoras. De fato, numa geração antes de Pitágoras, no início do século VI, já sc cultivava a matemática nos círculos dos filósofos da natureza de Mileto (Tales e Anaximandro). É certo que muitos séculos antes já existia na Babilônia não sômente uma matemática, mas tam bém uma álgebra e até uma geometria, que se originaram nas escolas dos “escribas”, isto é, dos administradores das grandes fortunas estatais e privadas. O mesmo sucedeu 110 Egito, onde, con tudo, os conhecimentos matemáticos ficaram num estágio mais primitivo.Mas tanto na Babilônia como no Egito a matemática era utilizada para fins práticos, ainda que nas escolas os fins imedia tamente utilitários nem sempre se verificassem (o (1) iVocitu <n BudúUm. pá*. 66, 15 (Frioiil.). (2) M et. À 2, 982 b, 23-28. 11 que sucedeu também em outros tempos e lugares). Mas a tendência geral era restringir os conheci mentos matemáticos às construções, à agrimensura, à divisão das heranças e à astronomia. Os gregos, ao contrário, para quem “o homem tende por natureza ao saber”(3) consideravam a matemática como conhecimento puro. Não sabemos se já antes de Pitágoras se tinha uma idéia exata dessa “pu reza”. Pois o que sabemos dos primeiros matemá ticos se relaciona com o uso da matemática. Tales teria predito um eclipse do sol, medido a altura das pirâmides do Egito e determinado a distância de um navio no mar por observações feitas de um ponto na terra. Anaximandro fabricou instru mentos astronômicos para acompanhar o decurso dos dias e das noites em Esparta, construiu um globo celeste (sphaira) e deüneou uma carta ter restre. Mas não era tudo. Tales e Anaximandro eram também “filósofos”, isto é, procuravam delinear um sistema ou uma imagem do mundo que nâo mais dependesse das concepções mitológicas tradi cionais, em que os fenômenos naturais (como os terremotos ou as enchentes do Nilo) fôssem expli cados sem recorrer a personificações divino-demo- níacas. Em Tales não se consegue ver a relação que existe entre sua filosofia (na qual, como se sabe, fêz da água o elemento original de tudo) e a matemática. Anaximandro, contudo, esboçou a primeira imagem do universo traduzida em nú meros, o que não deixa de ser algo muito apre ciável e de enormes conseqüências. Anaximandro é conhecido, sobretudo, pela sua “sentença”, um fragmento transmitido por Simplício que o tirou de Teofrasto; o conteúdo completo não nos (3) Arist., M et. a 1, 980 a. 21. Vid. igualmente algumas sentenças pré-eocráticas: A nuágoraa A 39, Dcmócrito 118 (Dicls). 12 é conhecido, nem seu contexto, e por causa de seu caráter fragmentário é difícil explicá-lo com clareza. Contudo, apesar de sua forma doxográ- fica pode-se reconhecer nesse fragmento as linhas essenciais do sistema cósmico de Anaximandro. (4) Segundo êste a terra paira no centro do cosmos sob a forma de um “bloco de coluna” (cilindros de pedra cuja superposição formava as colunas dos templos gregos), cuja altura e diâmetro estão na razão de 1:3. A terra está firme porque não há razão pela qual ela cairia para qualquer um dos lados do universo, que é representado como um sistema radial simétrico. Aparece aqui pela primeira vez na história o principio da simetria, de tão grande importância ainda hoje, tanto na matemática como na física teórica; também Platão insistirá mais tarde neste ponto. É possível ver nesta teoria cósmica de Anaximandro também a primeira "teoria da relatividade". Para o pensa mento simples da experiência diária os conceitos de “em cima” e “em baixo” são absolutos; assim o eram na Antigüidade para Demócrito e Epicuro. Mas para Anaximandro “em baixo” significa a direção da terra, que muda conforme o posto de observação. Ao redor da terra se estendem grandes círculos ou anéis (kykloi) que se afastam à razão de 9, 18, 27 . . . , isto é, na razâo de 3.3, 2.(3.3), 3.(3.3)... raios terrestres. O círculo interno contém ou as estréias fixas ou os planetas (o que é discutido), o médio contém a lua e o exterior o sol. A parte interna dêsses círculos está cheia de massa ígnea (4) Vid. » "*ontcnçaM era: Frajtiu. B 1 CDlela). tirado de Simplício in AriHtot. Phy«v piijç. 21, 13. SiSbre o slaUsxna cdwinico: A 11, tirado do Hippolit., Ref. I 6, 3-5; vid. ijpmlrocuto A 18, A 1, A 22. Hftbro * oarta torro#tro: A fl, A 7. Sôbru os luatrumentofi astronômico* em Esparta: A 1 (l) (2). Vide igualraontc W. Krant, Kotmoe, em: Archiv fuer Begriffftgxttchichte II, 1 (Bonn (1955) pág. 12 se. 13 que nos fica visível por uma abertura lateral e torna possível a visão das estréias. O cosmos nâo é eterno, mas se originou do “apeiron” (o ilimitado) e depois de um espaço de tempo aparentemente bem determinado voltará ao ilimitado. O conceito do “apeiron” é uma tentativa de representar racio nalmente o conceito mítico de “chaos”. Nâo é aqui o lugar de entrar nos pormenores dos problemas propriamente filosóficos, talvez "es peculativos’', do pensamento de Anaximandro. O que é importante para nós é a grande influência da matemática nessa antiqüíssima imagem do mundo dos gregos. Pode ser que esta nos pareça bem simplória e talvez o número 3, que a deter mina, tenha fundamentos mitológicos. Em Hesíodo (Teogonia 722 ss.) se fala de um bloco de metal (akmôn) — talvez se trate de um meteoro — que leva nove dias para cair da abóbada celeste e atingir a terra e que levará outros nove dias para chegar até ao Tártaro. (Parece, portanto, que o Tártaro era concebido simètricamente ao céu como o hemisfério voltado para baixo). Tudo isto nâo impede que Anaximandro conceba o princípio fundamental do universo como ordenado numèri- camcntc. Esta opinião, portanto, precede a tese pitagórica, da mesma maneira como o conceito de "ilimitado", que pertence aos conceitos mais fundamentais do pitagorismo. É certo que se trata de pura especulação sem base na ex periência; mas tal é a característica de todo pensamento incipiente, como podemos observar nas crianças. Só lentamente a imagem do mundo assim formadu se adapta aos dados da experiência. Deve-se acrescentar ainda que no terreno da astronomia Anaximandro fêz observações exatas; a fabricação dos instrumentos que seguiam exata mente o curso do sol, cm Esparta, supunha a me dida da altura polar dessa localidade e outras coisas ainda. 2. A tese fundamental dos pitagáricos: as coisas são números Não 6 fácil datar a filosofia pitagóriea. As ricas fontes posteriores, da época “neopitagórica”, pós-cristã, não s5o dignas de confiança, sendo que os fontes mais antigas (sobretudo Aristóteles) são lacônicas e difíceis de interpretar. É verdade que a datação histórica e outros pormenores não são tão importantes na presente questão sôbre os inícios da matemática grega. Podemos, portanto, considerar a filosofia c a matemática pitagóriea como um todo até a época de Platão; as fontes para estudá-las encontramos, por um lado em Aristóteles e, por outro, na análise crítica dos “Elementos” de Euclides (para a aritmética e a geometria) e nas diferentes fontes doxográficas (para a astronomia e a doutrina da harmonia). Nem se devem esquecer os fragmentos de Filolau conservados oralmente (os quais, com W. Kranz, admito serem genuínos, pelo menos em seu conteúdo) e de Arquita. Preciosos indícios temos igualmente naquilo que nos foi transmitido sôbre Zenão de Eléa. Não é tarefa nossa expor aqui a matemática dos pitagóricos, já que isto foi feito por outrem(5) e por nós em outra (S) Vid. sobretudo B. L. van d*T W a k r d j c n : Die Harmonielehre der PytlmíOTcwr, em: Herme* 78 (1943), páu. 163-179: Die Arilhinetik der Pythagorper, em M «th. Ann&lcn 120 (1947-1940), pás». 111-153, 676-7(10; Die Astronomie drr PythaEorrer. Verhundl. d. K. Nederland. Aked. v. Wetenach., Aid. Niiturerk. Drrl XX N.» 1 (Amstenl&m 1951). Ilesmmo dtete* diferentes cetudoa cm: Erwachcndo Wia»enacbalt (BaaiUüft e8tutt«art 1957), pí*g. 155-168, 177-21», 247-202. 15 ocasião (6). Trata-se agora de expor o sistema filosófico do pitagorismo que constitui o tema central dessa corrente de pensamento. As notícias que nos fornece Aristóteles, sobre tudo em sua Metajísica (Livros A, M, N), não nos apresentam, como já dissemos, um quadro unitário c coerente sôbre aquilo que os pitagóricos ensinaram sôbre os números e suas relações com as coisas. Uma vez se diz que os números são as próprias coisas outra vez que estão nas coisas, e uma terceira vez se afirma que as coisas são compostas de números, sem que Aristóteles pareçafazer uma distinção essencial entre essas dife rentes afirmações.(7) Além disto Aristóteles pro curou exprimir a doutrina pitagórica por meio das “categorias” , por êle concebidas e dotadas de sentido dentro da lexcologia e sintaxe grega e estreitamente dependentes da crítica que exerceu sôbre os pitagóricos e Platão; esta crítica só podia ser feita de maneira imperfeita. Assim, segundo êle, os pitagóricos teriam concebido os números como a essência substancial (ousia) das coisas, ou ainda como seu princípio (arckê), conceito que em outro lugar é aplicado aos elementos originais dos antigos filósofos naturais da Jônia(8). Num con texto distinto do anterior o Estagirita explica que os pitagóricos descobriram semelhanças (homoiô- 8ôbre a estreita relação entre múaica e matemfitica na Grécia tra ta J . Lohmin, Muâíké und Logre, em: Wiaa. Zeitccbr. d. Univ. Grciíawald VI; OeBeUschafto - und Spraohwiaa. Rclhe, n.* 1/2, pá*. 31-37 (1956/57); id., Dio griochUche Muuik nla mathemntwiho Forra, em Archivfuer Muaík- wiaaanaeW t XIV, 147-155 (1957); Der U nprung der Muaik, 1b. XVI, 148 u . (1959). (0) Grundlagen der M athem atik in ceaehichtlicher Entwicklung 34 as. Friburgo em Br. — M unique 1954 (abrev. GM). (7) Vid. O. Martin, Klaa*laêh«* Ontologio d«r Zahl, em Kantntudícnl aupl. 70 (Goiânia 1956) $ § 1-3. Principais texto» dc Arlatólelc*: o) O» númoros tAo as coUa«: M ct A 5, 987 b, 28; M 8, 1083b, 17. 5) o* námeroa cwtfto ««a coisaa; Met. M 6, 1G&0 b, 1; PhvB. III, 4. 203 a, 6. c) Aa coiuou eSo compostas de números: M et. A 8, 990 a, 22; M 6, 1080 b, 2-3, 17-19; M 8. 1083 b, 11-18; N 3, 1090 a, 23-32; De coelo III. 1 300 a, 15-17. (8) Número como ouaia: Met- A 5. 987a, 18; A 8, 1017 a» 20; vld.I 2, 1053 b, 11-13 número como arcM À 5» 986 a, 16, jfí mala) entre as propriedades dos números e das coisas, sobretudo na estrutura da harmonia mu sical e na construção dos céus e de seus movi mentos. Tildo isto é resumido por Aristóteles (sem que se constate um salto no curso de seus pensa mentos) pelas palavras: “Todo o céu é harmonia e número”(9). Encontra-se igualmente uma formulação afim, isto é, que as coisas são o que são pela imitação, ou melhor, pela representação (mimêsis) dos nú meros, e isto é por Aristóteles identificado com a participação (methexis) platônica das coisas nas idéias(lO). Tudo isto se entende em parte quando se tem em mente que Aristóteles tem em mira antes de tudo a filosofia platônica, em que as “idéias" são explicadas como “números". Uma distinção essencial, entre Platão e os pitagóricos, Aristóteles vê no fato que aquêle separa as idéias das coisas, o que êstes não fizeram com os nú- meros(ll). Ao tentar-se harmonizar estas diferentes afir mações sôbre a doutrina pitagórica, cai-se em con tradições e paradoxos. Assim dizemos: se os nú meros estão nas coisas, ou se as coisas se com põem de números, então as coisas não são os nú meros. Parece que esta última fórmula pode ser considerada como um resumo das duas anteriores, mais claras, ja que os diferentes modos de exprimir se encontram próximos uns dos outros na mesma sentença(12). O que se quer dar a entender 6 a imanência dos números nas coisas, quer se os conceba como partes integrantes, quer sòmente os “elementos” (stoicheia) dos números sejam iden- (0) M et. A S. 985b, 27-986 a, S (vid. 986 a, 21). (10) M et. A 6, 987 b, 11-12. (11) M et. A 8, 987b, 27-28: N . 3. 1090a, 20-25. (12) Por exemplo em M et. M 6. 1083b, 17-19. tifieados com as coisas. Êsses “elementos” são: “ limite” (peras) e “ilimitado” (apeiron)(13). Parece que a imanência deve ser representada como a presença nas coisas de determinada estrutura nu meral, semelhante a uma armadura aritmética, mais ou menos como ainda hoje pomos nos cristais uma “estrutura gradeada” , com o grupo corres pondente. 3. A teoria “piíagórica” de Platão sôbre a matéria A novidade que Platão introduziu no problema dos números foi apontar para a diferença que existe entre o “caráter ideai”, inteiramente firme e determinado, dos números e o caráter incons tante — Platão, seguindo os heraclitenses, diz “fluido” — das coisas sensíveis. Já Filolau se exprimira do maneira semelhante. Estamos hoje em dia bem familiarizados com tal distinção no campo geométrico: sempre distinguimos cuidado samente entre o mais exato dos desenhos de uma circunferência, onde sempre há inexatidões, e a circunferência “ideal” , entendida pela geometria. Naturalmente, uma tal circunferência ideal, que se pode realizar em quantos exemplares quisermos de figuras geométricas, náo constitui a única idéia possível de circunferência, daquilo que se poderia designar como “circularidade” . Mas com os nú meros parece que a coisa é diferente: quando temos três homens diante de nós, o número 3 está aí representado de modo perfeito, pois 3 está posto de forma bem determinada entre 2 e 4. Podemos afirmar, então, com absoluta certeza: sâo (13) M et. A S. 986 », 1-2; vid. Filolau, F n p i . B 2 CDiel»). trés homens, c não dois nem quatro. Platão o seus discípulos, contudo, pensavam diferente. Exi giam que o número da “aritmética filosófica” cons tasse sò mente de unidades inteiramente iguais(14). Este conceito de arilhmos monadikos ou malhema- tiko8 deve ser rigorosamente distinguido do “nú mero numerado” das coisas scnsíveis(15). Dêstes dois conceitos se deve distinguir ainda o “número ideal” ou o “número das idéias” (ideôn arithmos) platônico, conceito muito difícil, dc que agora não precisamos nos ocupar. Os pitagóricos não faziam essa distinção, o que segundo Aristóteles lhes poupava muitas dificul dades. Não atribuíam valor decisivo à absoluta igualdade das unidades com que enumeravam. Para êles o “um” e os outros números não são atributos de quaisquer coisas concretas numeradas mas entidades independentes (ousiai, “substân cias”), o que é combatido por Aristóteles pelo seguinte argumento: Mesmo quando se concebe uma melodia como um “número” composto de quartos de tons, a unidade dela não constitui um ser independente, mas um quarto de tom. Assim também em outros casos(16). Conforme Aristó teles o número adere às coisas, não está nas coisas. Apesar desta formulação diversa, neste ponto o Estagirita se aproxima do conceito pitagórico de número. O que os pitagóricos chamam de “nú- (14) R«p. V II, 528a; Phileb. 58de. (15) Phya. IV, 11, 219b, 6. Aristóteles ao "ndmero numerado" opunha o "ndmero com que numeramoa". W. 2>. Rot* interpreta êste último como o n^msro m\tem dtico ou monádico. Mas, é tato inteiram ente justifica lo? E em to lo o caso necçsslrio ter em vtata a teoria arUtotélica da abâtriçSo matnmlticu [segundo èle a m itnm itica ôó exUt* ex aphoi-O ndmero raonádieo platônico n&o 6 abstrato, maa existente outo- lògicarivntr, é iim i ou*ia no avutMo pttOO* IttO A . IFfdôtfrp,PK to’a Philosophy of Mnthornatias (Stockholm 1955), cap. V (pág. 03 ss.). Infelizmente éste autor nilo tra ta da t**c decisiva do platonlamo posterior, segundo o qual as idéias «Ao números. (16) M et. 1 , 1, 1053 b, 32 — 1054a. 9; vid. N 1. 1067b, 33-1088a, 14 19 mero” (arit.hmoe) é evidentemente o “número nu merado”, isto é, a coisa numerada ou numerável, ou mais exatamente, uma multiplicidade discreta (não contínua), que pode ser designada por um ou mais números, Na realidade tais “números” não deveriam ser expressos por “dois, três, qua tro . . mas por “duplo, triplo, quádruplo . . Que se recorde a etimologia da palavra “arUhmos”: esta provém de “a r a r i s k o “eu ordeno, ponho em ordem”, e significa em seu sentido original: “ordem, disposição” . Até mesmo em Aristóteles se encontra um eco dêste caráter concreto e estru tural do conceito primitivo de número, que não pode ser aplicado a qualquer coisa, mas que de pende de determinados objetos(17). Tal concepção se encontra muito mais acentuada nos pitagóricos, e até mesmo em Platão. Partindo dêste conceito original e primitivo a tese pitagóricase torna muito mais inteligível. “Número” significa a estrutura das coisas, aritrnè- ticamente descritível, e que constitui sua essência própria mente dita. Contudo, na concepção pita górica esta “estrutura” não é o arcabouço atri buído à coisa por outrem, mas uma armação interna à própria coisa, e que de dentro a man tém unida. Como isto deva ser entendido, mais em particular pode-se ver na doutrina dos elementos contida no diálogo de Platão chamado “Timeu”. Aí Platão fala pela bôea do pitagórico Timeu (quer sc trate de uma pessoa histórica, quer não) mostrando-se de certa forma como pitagórico êle próprio. Os átomos dos quatro elementos são concebidos como poliedros regulares: o fogo como tetraedro, o ar como octaedro, a água como icosaedro e a (17) Vid. JT. iW>nní«0íf, Z&lilwort uad Ziffer, 2. ed.. Goettingen, 1958. 20 terra como cubo. Os três primeiros corpos, cujas faces são triângulos equiláteros e congruentes, são concebidos como compostos por êstes, constituindo assim corpos elementares tridimensionais a partir dc superfícies de sòmente duas dimensões! Isto, naturalmente, constituía uma pedra de tropêço para Aristóteles que critica violentamente a dou trina platônica sôbre os elementos em seu livro De coelo (III, 1). Afirma que a matéria real é corpórca e pesada, enquanto que as simples super fícies como entidades matemáticas, isto 6, abs tratas, não o são. Mas Aristóteles não compreen dera a profunda doutrina de Platão. Esta quer explicar a essência mesma da matéria c não o composto material que consta de pequenas partes indivisíveis. Em Platão o conceito de matéria ainda não se solidificou em “matéria prima”, não mais inteligível, como em Aristóteles. Se se qui sesse traduzir em têrmos modernos o sentido platô nico de matéria, poder-se-ia hesitar entre conceitos tais como “espaço”, “matéria” e “campo”. Neste contexto os resultados de um estudo de E. M. Bmin(18) sôbre as mudanças “físicas” e “químicas” dos elementos platônicos são de grande interêsse. Entre outras coisas é necessário que o interior dos poliedros platônicos seja essencialmente vazio, já que a soma das faces fica igual nas trans formações (como na química de Lavoisicr a soma das massas), mas não a soma dos volumes (em alguns casos o volume se reduz à metade!). Tôda a teoria, portanto, se baseia exclusiva mente nas superfícies dos poliedros e 110 fato de os poliedros se comporem de superfícies sendo que os ângulos que as superfícies formam são também de importância quanto à sua grandeza relativa. (18) La Chimii du Tlw íe, em Revue do Métapliyaique e t de Moral», 56. p i* . 289-282. 21 A grossura das superfícies é contudo nula, o que demonstra o caráter puramente matemático dos átomos poliédricos. Esses mesmos poliedros não são materiais, nem no sentido da matéria prima aristotélica e nem no sentido da física clássica moderna, mas constituem de certa forma a matéria já formada dos quatro elementos. O fato de que se insiste precisamente no número das faoes elemen tares provém de que temos diante de nós um princípio pitagórico de consideração; êste tem sido levado adiante por Platão e pelos matemáticos de sua escola (sobretudo por Teeteto). Um eminente físico teórico de nossos dias, W. Heisenberg, diz a respeito dos triângulos elemen tares de Platão: “Os triângulos não são matéria, mas são simples formas matemáticas . . . , e a ques tão do porquê dessas partículas elementares é reduzida por Platão à matemática. As partículas elementares têm a forma que lhes é atribuída por Platão porque tal é a forma mais bela e mais simples. A última causa dos fenômenos, portanto, não é a matéria, mas a lei matemática, a simetria, a fórmula mat.emática” (19). E Heisenberg explica por esta mesma tendência à simetria sua própria teoria sôbre as partículas elementares hoje conhe cidas, por mais que no decurso de mais de dois milênios se tenha modificado a posição da física. Com a descoberta, feita por Planck, dos quanta energéticos, de nôvo entrou na ciência natural a idéia platônica “ que na ba.no da estrutura aJômica da matéria está em última análise uma lei mate mática, uma simetria matemática”(20). (19) N a conforènci» pronunciada em Berlim & 25-4-10.58: "A diweo- berta de Planclc e u h w i filosòfiefta da doutrina atôm ica", cm: Dia NaturwUnenuchaítcji 1968. fase. 10. pága. 237-234. (20) Podc-M perguntar se os triângulo* elementar™ d« PlatXo sSo triànguloa m utcm íticos exatos, lato é, entidades "uicnía". Tal pergunta4 difícil de re aponde r a partir do texto do "Tim eu” . P or um lado a dou- 22 E dc fato, a equação fundamental da física das partículas elementares, proposta por Heisen- berg, se caracteriza pelo fato de utilizar-se de tôda uma série de relações simétricas. Ê verdade que não se trata aí da simetria simbólieo-espacial dos corpos platônicos, que se apóia sôbre o grupo abstrato das operações de reoobrimento que são possíveis sôbre aquêles corpos, pois o tempo desem penha agora um papel relevante. Entretanto, tam bém as leis físicas invariantes para grupos dc trans formações de vários tipos “são no fundo nada mais que fórmulas matemáticas abstratas que se re ferem ao espaço e ao tempo”. Apontamos neste contexto para os estudos de Andreas Speiser sôbre a análise matemática da simetria na ornamentação, na arquitetura e na música(21). Eis o que diz êste notável matemático e filósofo sôbre uma composição musical: “Assim como para a equação algébrica existe uma metafí sica, o grupo, cujo conhecimento encerra o cerne da equação, assim também para a obra de arte existe uma metafísica, isto é, um conteúdo simé- trina doe elementos está em certa contradiçfco com os outro* temo» mato- máticos do diálogo e com a estru tu ra da “alma do raundo". Esta * um eaqueraa, ou um mod&o i material, e é aua cópia que constitui o cosmos visível com o equador celeste, a eclíptica e o curso doe planetas. A dis- tlnçAo entre alma do mundo e cosmos visível tom a possível explicar as diferença* entre oa movimentos observado® nos corpos celcstes e no esquema ideal doa meamos. Mas 09 componentes últimos dos "elementos" s&o concebido», de forma mais pitagórica, como verdadeiras partícula* elementares invisíveis do* assim chamados “elementos’' visíveis: Í o e o , ar, água, terra . Pode ser que estilo subtraídos ao ôlHo humano tinicamente em ras&o de sua pequenes, enquanto que ura deus o« poderia ver. Por outro lado é duvidoso se se pode considerar como materiaà* os triângulos elementares incorpôreos; em tèrmos modernos: silo élcs "roaia" ou “ ideais" ? Neste ponto Aristóteles entrou com sua crític* (De eoelo III , 1). É verdade que Plat&o fala do “ reino eterno do espaço" (cK6ra: Tira. 52 ab), mas a questSo é se esta propriedade de "eternidade" deve snr entendida como relacionada com a exatidão matemáitca; esta questfio mcrecerla um estudo mais detalhado; fica-se em todo o coso com a impr©«fio qno Platão "pitagorisa" sobretudo em sua doutrina sôbre as partículas elementares. (21) A. S p tú tr, Theorie der Gruppen von endlicher Ordnung (3. ed. Berlim 1037); Id., Die mathematbche Denkweise (2. ed., Basiléia, 1945)# pág. 34. Vid. H. W*yl, Symmetrie (Dasiléia-ôtuttgart 1055). 23 trico, cujo conhecimento tom a possível a composi ção de muitas belas peças, sendo a descoberta de tal configuração a verdadeira invenção artística. Tarefa da ciência seria então o descobrimento da estrutura total dessas peças com todos os seus nexos m últiplos. . . Pode-se supor que existem composições, como as fugas de Bach, em que cada tom é determinado por nexos próprios, de modo que êste se tom a o único tom possível. Pode ser que a obra de arte se distinga por algumas propriedades mínimas: é a peça mais simples que é possível produzir dentro de um determinado complexo simétrico” . Voltando a Heisenberg encontramos o seguinte: “ . . . Pela significação básica das propriedades simétricas, qualquer csbôço de teoria sôbre as partículaselementares recebe um caráter todo pe culiar de unidade. Encontram-se estruturas tão Intimamente ligadas e entrelaçadas entre si que é impossível introduzir qualquer mudança cm qual quer uma de suas partes sem pôr em perigo todo o conjunto. Lembramos neste contexto os orna mentos das mesquitas árabes em que não se pode modificar um mínimo detalhe sem estragar todo o conjunto” . . . Esta última sentença contém uma alusão evidente à análise dos ornamentos de Speiser que conta entre os mais ricos e complexos as janelas de algumas mesquitas árabes. Tôdas essas considerações de Speiser e Heisenberg são no fundo pitagorismo. Pois a idéia básica dos pitagóricos era que a essência das coisas se reduz a “números”, — leis definíveis por meio de números — o que leva à afirmação de que a-s leis que regem as coisas coincidem com a simetria interna ou a “harmonia” das leis que presidem os números. Vemos assim que existe uma ponte que une entre si os pitagóricos e Platão com a pesquisa atual. 24 4. Opiniões de Platão, dos 'pitagóricos e de Aristóteles sôbre os números Mas não se pode definir Platão simplesmente como pitagórico; sempre foi e permaneceu um filósofo critico. No “Timeu” freqüentemente repete que suas exposições constituem um “mythos” que não deve ser tomado como verdade pròpriamente dita; além disto, falou claramente sôbre o caráter “ideal” da verdadeira astronomia (no livro VII, do “Estado”). As posições e os movimentos obser váveis dos astros não correspondem ao “verda deiro” estado de coisas, já que fazem parte do que é “visível” (isto é, essencialmente imperfeito), O céu visível pode ser comparado com um modêlo geométrico no qual os conhecedores da geometria podem reconhecer uma obra de mestre, mas que êles certamente não porão na base de suas pes quisas sôbre a verdadeira essência do “igual” e do “duplo” . Êste, para nós tão estranho, paralelo entre um modêlo artificial para o uso do ensino c os fenô menos observáveis da natureza, é também aceito sem dificuldade por Aristóteles (Met. B 2, 997b 34 até 99Sa 0), ainda que se trate sômente de uma tese a ser considerada (no livro B da Metafísica). Aí se diz que a Astronomia não pode tra tar do grandezas observáveis pelos sentidos, nem sequer do céu que está imediatamente sôbre nós, pois as linhas de que fala o geômetra não são observá veis, e não se pode dizer que um anel material tangencia uma régua num único ponto (o que já fôra notado por Protátçoras) e os movimentos e as trajetórias espirais dos planetas no céu não são aquêlca que o astrônomo trata. 25 Estamos inclinados a rejeitar êsses paralelos se os modelos imaginados pelos homens, para o uso da demonstração, não correspondem a fenômenos objetivos da natureza. Devemos igualmente con ceder que a concepção platôncia (que tanta influ ência teve!) nâo favorecia o progresso da ciência exata. Mas, pode-se ver na opinião de Platão um lado mais positivo quando se a considera como expressão do espirito critico de Platão. Conside rada dêste ponto de vista ela afirma claramente a pressuposição necessária do conceito de modêlo nas ciências matemáticas. Também nós falamos na física moderna de “modêlo” , empregando a mesma palavra já usada por Platão para os modelos geomé tricos. O físico moderno, partindo de determinado grupo de fenômenos constrói um “modêlo” , ela bora-o como que “in abstracto” e procura ver quais traços da realidade observada são nêle refle tidos, ou, como se dizia antigamente, até que ponto o modêlo 6 “verdadeiro”. A posição de Aristóteles frente a êsse problema é, do ponto de vista moderno, notável por sua sobriedade. Os objetos matemáticos têm sua ori gem na “abstração” (aphaireMS). Aristóteles é aliás o primeiro a empregar tal têrmo. 0 matemá tico considera como separado o que na realidade não é separado, por exemplo, na bola de bronze, simplesmente a forma esférica; na régua sòmente a linha reta, no raio de luz ou de visão só a retili- neidade dêstes. 0 que não fica explicado nesta opinião é que a abstração só não basta para dar origem às imagens geométricas, pois (quase sem pre) se acrescenta uma certa idealização; uma roda não é exatamente circular, a régua de fato nâo é reta. Aristóteles sabe disto e alude ao mesmo fato. Mas o problema é por êle transferido para 26 o terreno lógico: sòmente para o geòmctra tem importância o fato que uma linha que no- desenho tem um pé de comprimento, na realidade não tem tal extensão; para o matemático isto não constitui êiTo. Também isto concorda em certo sentido com o tão freqüente ponto de vista “convencional” da ciência moderna. Mas é duvidoso que se possa ir tão longe na interpretação dos textos aristotélicos; pois em outras passagens o ponto de vista ontoló- gico é fortemente sublinhado. Não é aqui o lugar de nos ocuparmos de discus sões históricas. O que acabamos de dizer só quer fazer ver como já na Antigüidade clássica o pro blema não era fácil, pois já aí se cruzam motivos que no decorrer dos séculos sempre de nôvo sur giram. Vê-se que o pensamento pitagórico não é aceito simplesmente, sem contudo deixar de sub sistir sob diferentes formas e variantes, e que até os nossos dias êle continua valendo como um dos ingredientes mais essenciais do pensamento mate mático. 27 CArÍTULO SEGUNDO Ciência exata da natureza 1. O papel da astronomia Freqüentemente se ouve a afirmação que a ciência exata da natureza é, senão uma conse qüência, pelo menos uma preparação e até um pressuposto da técnica. Afirma-se(l) que a ciência matemática recente é um produto do capitalismo incipiente; que ela é o produto de uma concepção do mundo segundo a qual o trabalho humano nos ofícios e na produção de bens se tornou o modêlo dos fenômenos naturais e determinou assim nosso conhecimento da natureza; na ciência está sempre presente a vontade de dominar e subjugar a natu reza. As fórmulas matemáticas da física teórica “dominam” um determinado ciclo de fenômenos, mas sem “entendê-los” , ou querer entendê-los. E quando Nietzsche afirma que em tôda a vontade de conhecer está incluída uma certa crueldade, e quando um neo-romântico moderno se queixa de que a técnica moderna “ rebaixou a grande mãe a es crava” , estamos na mesma linha de pensamento. O próprio Heidegger fala de um desafio mútuo, de uma “afirmação” recíproca da natureza e do homem, do ser e do homem, nesta nossa era atô- (1) V;d. M as ScKtUr, "Erkenntniii und A rbeit" n» ob rt: Die Wímhm. (ormea und die GwolUcbaft (U>ip*i« 1926). 25 tica. Mais tarde voltaremos a esta linha do pensa mento moderno. Mas perguntamos: tal concepção, que quase já se tornou lugar-comum, é verdadeira? Parece- nos bastar pronunciar a palavra “astronomia” para refutá-la. Porventura a astronomia nâo é uma ciência exata da natureza? Quando foi ela a pre paração para qualquer técnica? Com as estréias, até hoje, nâo se pôde fazer experiências; o máximo que se podo fazer é examinar sua irradiação. Fenô menos celestes podemos sòmente observar, mas não modificar. Galileu pôde fazer rolar suas bolas sôbre um plano inclinado, “com um pêso que êle mesmo escolheu” (como K ant diz tão plàstiea- mente), mas com os astros ninguém pode brincar. Do ponto de vista histórico a astronomia é muito antiga. Como ciência exata, baseada em métodos matemáticos, existe desde o século vm antes de Cristo, desde os tempos babilônico-assi- ríacos. Desde a metade do século vm existem observações sistemáticas dos eclipses; a mais an tiga, citada por Cláudio Ptolomeu, teve lugar em 746. O primeiro sistema exato do mundo, baseado em observações, é do grego Eudoxo (teoria das esferas homocêntricas); um outro, talvez também do século rv, é de Herakleides Pontikos(2). O mais tardar no século m são conhecidos epiciclos e excêntricos (Apolônio de Perge). No decurso do período hclenístico, tanto no mundo grego como neo-babilônico, se desenvolveu uma astronomia subtil baseada em observaçõese cálculos; os documentos dessa época nos foram conservados sobretudo nos escritos de Cláudio Ptolomeu para (2) Conforme B. L . van d*r Wnerden Já ao acha oxpre*** no "Tim eu" um a teoria do* «piriclos p*ra Mercúrio e Venua (Di« Autronomie der Pytbasoreer, ia Verhandl. d. K . Nederl. Akad. y. Wctcn*ch. Afd. N atutirk.1. R . Deel X X Nr. 1 (Amaterdam, 1951) 8 . 45 ff.). 29 a parto grega, e em numerosos textos euneiformes, para a parte neo-babilônica. O que aí encontra mos é, sem dúvida alguma, ciência exata de alto quilate, baseada no pensamento matemático. O valor desta ciência pode ser demonstrado pelo fato que seu8 métodos e resultados foram aceitos por Copérnico sem restrições. É sòmente a “Astro nomia nova” de Kepler (1609) que produz uma reviravolta e traz novidades que mais tarde tor naria possível a mecânica celeste de Newton. O próprio Kepler ainda adota dois métodos. Suas obras Mysterium cosmographicum e Hamwnice Mundi existem lado a lado com a “Astronomia nova” : de um lado pitagorismo, de outro obser vação cmpírico-cxata. E digno de nota que a terceira lei de Kepler (de significado secundário 11a Harmonice Mundi) juntamente com a deter minação feita por Huygens da aceleração centrí fuga se tornou 0 ponto de partida para a lei de Newton sôbre a gravitação.(3) Huygens de sua parte se utiliza da analogia entre a aceleração centrífuga e a aceleração da queda como a calculara Galileu. Vê-se assim que na teoria newtoniana se ajuntam os pensamentos de Galileu e de Huygens com os de Kepler para a elaboração da teoria da mecânica celeste(4). (3) Conformo a terceira lei do Kepler os cubos doa grandea eUoa daa trajetórias dos planeta* (aproximadamente os cuboa (r*] doe raios) afio proporcionais aos quadrados dos trmpos das cireunvoluções (T*). Conforme Hiiygnn* a a^elcraçfto centrifuga («) £ diretamente proporcional ao quadrado da velocidade da circunvoluçl© (c*) « indiretamente proporcional ao raio (r); ora a velocidade citada é igual ao comprimento da circunferência (2pir) dividida pelo tem po da circunvoluç&o f ; ent&o. a aceleração centrífuga a 6 proporcional a c«/r ou (rtyTtyr ou r{T1 e, en tio . como T* é proporcional a r», conclui-ee que está na proporção r/r* ou l/r*. O ceme da lei da gravitayfio de Newton é. no fundo, igual, no que concerne à cine- mática. (4) Deve-ae aereaeentar ainda que Newton ampliou a teoria de Huygens eatenlen to-a do movimento circular para o movimento elíptico com acele raçio dirigida para um doa focos íromo exigem a primeira e a segunda lei de Kepler) e assim aplicou rigorosamente aa leis kephrianaa e solucionou o assim chamado "problema doe dota corpo*"* 30 Nesta confluência de duas correntes de pensa mento, das quais uma trata da mecânica terrestre e a outra das leis dos movimentos dos planetas no céu, se operou algo de nôvo: a assimilação das leis dos movimentos terrestres c celestes; lan çou-se assim uma ponte por sôbre o abismo exis tente entre a terra e o céu, cavado pela tradição clássica antico-medieval, em oposição ao atomismo democrítico-epicureu, difamado como suspeito. Em princípio, a mecânica dos corpos sòmente observá veis e não influenciáveis é a mesma que a dos corpos terrestres que podemos tocar. Também na esfera terrestre existem leis não menos exatas do que no céu. Com isto se inicia a ciência matemá tica clássica do Ocidente. É verdade que hoje em dia esta unidade das leis naturais para tôdas as esferas foi de algum modo abalada, já que para corpos muito grandes (no caso, as estréias) as leis exatas conservam seu valor, enquanto que para as partículas muito pequenas só existem leis esta tísticas (teoria dos quanta). Contudo a passagem da física clássica de Newton para a física mo derna (que se efetivou ai por 1900), não é, apesar de tudo o que se diz cm contrário, um passo maior na direção de um outro modo de pensar do que a descoberta da mecânica celeste no século xvn (elaborada por Newton já em 1666, mas publi cada sòmente em 16S7). 2. A “experiência analítica” na Antigüidade e na Idade Moderna A questão por que a Antigüidade não conseguiu produzir uma ciência exata da natureza, no sen tido próprio desta palavra, não pode ser respon dida em poucas palavras. Alguma luz, embora 31 bastante unilateral, é atirada sôbre a questão quando se compreende que a ciência antiga não conhecia a “experiência analítica”. Não há dúvida que os gregos eram finos obser vadores e pensadores penetrantes, mas tinham um pavor instintivo de analisar artificialmente, por manipulações apropriadas, qualquer fenômeno e assim destruí-lo em sua integridade. O que se podia observar diretamente na natureza e aquilo que resultava de atividades práticas pré-científicas na guerra e na paz (técnica manual e técnica guerreira), era considerado como objeto de ciência "livre”. Mas quase ninguém construía aparelhos para fins ünicamente de pesquisa. Típica, para uma assim chamada “experiência” na antigüidade helênica, é a descrição que Empé- docles (B 100, 8-21) nos oferece de uma criada que brinca com um elevador dc água (klepshydra, literalmente: “ladrão de água”). A clepsidra é um antigo aparelho doméstico (conservam-se alguns exemplares), uma espécie de pipeta que servia para tirar água dos enormes cântaros que não se podiam fàcilmente levantai- ou inclinar. A “experiência” descrita no jôgo da criada serve como modêlo (que na poesia de Empédocles toma a forma de uma parábola homériea) de um processo fisioló gico. Mas se tra ta da observação de uma inocente brincadeira de criada e não de uma experiência com fins científicos. Algo semelhante encontramos freqüentemente entre os pré-socráticos. As homoiomerias dc Anaxá- goras, por exemplo, são explicadas pela mistura (manual) de côres (Anaxágoras B 10 [p. I I 37, 7-10], B 21 [p. II 43, 8-12 Diel-Kranz]; sôbre a clepsidra: A 69). Igualmente as experiências acústicas, parcialmente verdadeiras, parcialmente pretensas, dos antigos pitagóricos pertencem a êste gênero de experiências, como a de Hipaso (12.13) com discos de diferente grossura e com recipientes mais ou menos cheios de água. Sòmentc em época mais recente se praticam ocasionalmente experi ências sistemáticas, por exemplo, no terreno da ótica: Cláudio Ptolomeu pesquisa a visâo binocular e a refração da luz. Mas mesmo aí o fenômeno natural nunca é decomposto em seus componentes, como seja, a luz branca através de um prisma em seus componentes coloridos. Ainda mais importante é o fato que a decom posição e a composição das fôrças mediante o tão conhecido paralelogramo de fôrças é inteiramente desconhecido na Antigüidade; parece que sômente pelo fim do século xvi foi utilizado por Stevin para explicar o equilíbrio no plano inclinado. Os gregos não foram capazes de calcular êsse equilíbrio (vide uma tentativa falha em Pappus, Coll. math. vm , 8-9); conseguiu-o, é verdade, no início do século xvi um discípulo de Jordanus Nemorarius, mas sômente pela aplicação do princípio dos deslo camentos virtuais, e não pela decomposição dos componentes. No decurso do século xvn o prin cípio do paralelogramo é extensamente aplicado aos mais variados problemas e a dinâmica newto- niana seria ininteligível sem êle. Não entraremos agora nas particularidades his tóricas ou nos diferentes experimentos e suas expli cações, mas insistimos no princípio fundamental da análise dos fenômenos naturais e na decompo sição dêstes cm seus elementos para depois nova mente reuni-los, geralmente (embora não sempre) pela simples superposição dos componentes. O princípio da análise dos elementos foi formulado por Descartes em suas ‘‘Regulae ad directioncm ingenii” (1G29). Está em estreita relação com a “Mathesis universalis” que se servo da “Álgebra 33 speciosa” (cálculo por meio dc letras, descoberta por Viète e melhorada pelo mesmo Descartes) e que pode ser aplicada a tôda espécie dc números e grandezas; está além disto em relação com oideal cartesiano da matematicização da física, segundo a qual tudo se consegue pela elaboração de axiomas e pelo cálculo algébrico. A matemática de Descartes é assim um modôlo metódico. Na realidade per tence à essência mesma da matemática ser fácil e até trivial em todos os seus passos, pela conexão gradual de figuras sempre mais complexas e argu mentos sempre maiB intrincados que são difíceis de seguir e compreender. Contudo seu caráter cientí fico provém precisamente desta complexidade estru tural. Portanto, um traço característico e fundamental da ciência natural exata, a partir do século xvn, é que ela decompõe em seus elementos, muitas vêzes invisíveis, os fenômenos pré-científicos e coti dianos, para depois novamente reuni-los; por aí se exerce igual mente uma crítica sôbre a observa ção ingênua dos sentidos. Pense-se, por exemplo, na ingênua concepção de Aristóteles, e de outros, que velocidade e fôrça motora são proporcionais entre si; a doutrina da física clássica moderna, ao contrário, ensina a proporcionalidade da fôrça e da aceleração. O caráter matemático da física moderna repousa precisamente sôbre êssc traço construtivo, próprio da ciência exata moderna. Da tendência moderna para a análise segue, antes dc mais nada, a construção de aparelhos e seu uso para observações sempre mais exatas. Tal tendência existia na antigüidade sòmente no campo da astronomia (que necessitava de medições exatas de ângulos) e de algum modo no da geodésia (os “Dioplra” de Herãó), Ao contrário, os aparelhos “pneumáticos” de IJeron nada mais são que brin quedos geniais, "coisas admiráveis que se movem por si mesmas” (Aristóteles, Met. A 2, Pág. 983a, 14), que serviam para divertir o público e nâo para pesquisas. O homem antigo encontrava os “ m odelos” dos fenômenos naturais na própria natu reza ou na ocupação manual e não os empregava para fins científicos (excetuados mais uma vez os modelos astronômicos, as “esferas”). A construção de aparelhos científicos para uso da pesquisa surge quase repentinamente no século xvii; pense-se no telescópio, no microscópio, no relógio de pêndulo, no vácuo de Torricelli e na bomba de ar com que Otto v. Guericke conseguiu tantos efeitos dinâmicos. Mas experiências exatas, levadas de forma realmente científica, não eram ainda freqüentes; Blaise Pascal constitui uma honrosa exceção. O esfórço para ser exato pressupõe um grande interesse por constatações numéricas exatas, o que leva a pesquisa numa direção inteiramente nova. Parece-nos hoje evidente que "o livro da natureza está escrito em linguagem matemática” (Galileu). Naquele tempo isto era novidade e con trário à tradição antico-medieval, excetuada sempre a astronomia; esta, contudo, com rIVcho Brahe muito ganhou em exatidão nas suas observações (de 10 minutos para 1 minuto e até menos!). Não é por acaso que o mesmo Galileu, para quem a natureza fala a linguagem da matemática, aprova o método risolutivo e compostlivo, da mesma forma como Descartes, Isto significa: a maneira de pensar matemática em certo sentido nada mais é que o método analítico, tanto que o têrmo “Ana- lysis' tem uma justificativa quando aplicado à alta matemática que surgiu no século xvii. Este fato não é diminuído por êsse outro, que no decurso do século xvm se descobriram processos 35 matemáticos que permitem estabelecer leis de ca ráter integral e aparentemente teleológico, os cha mados “princípios extremais” (leis integrais). T ra ta-se do cálculo das variações, concretamente do problema da curva do percurso no menor tempo (“ braquistocrona”, de que se ocuparam Leibniz e Jakob e Johann Bernoulli); do princípio do caminho mais curto para a luz (Fermat) e dos resultados mínimos (Leibniz e Maupertius). Para Leibniz êsses princípios maximais e minimais têm uma significação básica, filosófico-teológica: Deus, que criou o melhor de todos os mundos possíveis, produz o máximo com os menores meios, solve todos os problemas da maneira mais econômica, como Arquiteto perfeito do universo. Mas, mais tarde se descobriu que a todos êsses princípios extremais correspondem sistemas de equações dife renciais (as assim chamadas “equações de La- grange”) e que não têm caráter integral ou teleoló- gieo. Esses integrais principais extremais geral mente possuem duas soluções e têm resultados máximos e mínimos e constituem assim as soluções “melhores” c “piores” . Apesar disto é digno de nota, do ponto de vista da história da filosofia, que Leibniz tenha tentado conciliar a tradição filosófico-teológica da Idade-Média com a ciência exata da Idade Moderna. De tudo isto resulta que a experiência analítica e a análise matemática estão cm íntima relação entre si e expressa-se pelo fato de cm ambas se tra duzir a tendência construtiva da ciência moderna. 3. 11 Forçar" a natureza? Talvez seja o processo analítico da ciência mate mática recente que inspirou a idéia do “força- mento” (ou violação) da natureza pelo homem 36 por meio do método científico, idéia que é uma conseqüência necessária, senão um pressuposto, da moderna técnica. M. Hcidegger exprimiu elo qüentemente isto ao afirmar que a natureza e o homem mütuamente se “afirmam” (“Ge-stell”), o que entretanto não é entendido como cegueira ou “hybris” do homem, com suas conseqüências trá gicas, mas como o “destino do ser” (“Seins-Ge- schick”) do nossa época(5). O limite onde começa êsse “forçar” da natureza não é fácil de determinar. Heidegger, por exemplo, ainda não considera como forçamento o aproveita mento da fôrça do vento pelas velas ou pelos moinhos dc vento nem o aproveitamento do solo 11a agricultura tradicional; mas considera força mento da natureza a máquina a vapor, a eletrici dade e o adubamento químico, que supõe uma técnica química muito desenvolvida. Mas pode- se perguntar: qual é o princípio da distinção? No século xvn Luis XIV fêz construir as obras hidráulicas de Marly 110 Sena, as quais por meio de bombas acionadas por rodas hidráulicas eleva vam a água para as margens do rio a uma altura que lhes permitia alimentar os chafarizes do parque de Versailles. Esta obra tão admirada em seu tempo, extensa e cara, pode ser considerada um forçamento da natureza ? A eficiência desta enorme obra era extraordinàriamente baixa; fizeram-se os cálculos que o produto de tôda essa imensa maqui naria poderia hoje em dia ser alcançado pelo motor de um carro médio. Pode-se dizer que as má quinas dc Marly constituíam um forçamento muito débil da natureza, apesar de seu tamanho. Mas (6) Vid. Àí. Bddfoffffgr, “Vortnegt) und AufHtuttxa'' (Píulliji£en l&M), pág. 118 mb. C'Di« Frage nach der Tbohaik" (19.53). pág. 163 a». ("Dm Diog (1950); "Iden tltâ t und Differeoi” (Píuilimcm 1957), pá*. 25 w. 37 qualquer aparellio produzido pela técnica perfeita de nossos dias, como seja um avião a jato, um foguete espacial que coloca um satélite em órbita ao redor da terra, ou uma máquina de calcular eletrônica (da qual algumas pessoas chegam a afirmar que é capaz de pensar por si), tem um efeito bem mais conRpícuo e de fato "força” a natureza. Existem pessoas que julgam que o ta lento e o esfôrço que o inventor tem de gastar na construção de um dêsses aparelhos diabólicos exercerá algum dia qualquer ação nefasta sôbre a humanidade! Ainda que se não tenha em vista o uso e o abuso militar dessas descobertas, as reações sociológicas que inevitàvelmcnte suscita a tócnica sempre mais desenvolvida das máquinas são de temer, e sem sombra de dúvida já se fize ram sentir. Os homens perdem aos poucos a liber dade que no decurso da história tão denodada- mente conquistaram para serem absorvidos inexora velmente pelo coletivismo, como uma “engrena gem” na monstruosa máquina socialista. Pode-se acrescentar que não havia outra es colha. O enorme aumento da população na Eu ropa no decurso do século x ix obrigou a uma evolução técnica em etapas forçadas, o que teria sido evitadoapenas se ela se trvesse conformado a descer até o nível de vida das populações asiáticas, realmente insuportável. Mas com Heidegger se pode responder que é precisamente nisto que reside a necessidade inelutável (o “destino do ser”) do homem ocidental. Quando se pergunta como e porquê se chegou a êsse estado de coisas, será necessário chamar a atenção para o papel desempenhado pelo pensa mento matemático. É êle que torna possível a pesquisa analítica dos fenômenos naturais, sua decomposição em processos simples e controláveis 38 em mias causas, e assim a construçfio de aparelhos técnicamente mais perfeitos do que era capaz de produzir a cultura antiga que “nascia” da natu reza. Foi preciso antes de tudo destruir e decompor os conjuntos naturais para conseguir que as fôrças da natureza agissem segundo a vontade do homem. Em segundo lugar o pensamento matemático não é sòmente analítico, mas também construtivo, e construtivo de forma inteiramente conseqüente. Seu método fundamental, o cálculo, é um processo segundo regras bem determinadas que não per mitem exceção, um processo de conseqüências inelu táveis; depois que se escolhem livremente as regras de um cálculo estamos restritos a elas de modo absoluto. “ Na primeira escolha somos livre», na segunda escravos”. Um ta l processo leva sempre mais longe, para novas construções c argumentos. Em terceiro lugar está ainda a idéia dos extre mais. Alcançar o máximo com o mínimo dc meios, tal era já para Leibniz a lei da ação não só dos homens, mas também de Deus. Dêste princípio resulta a tendência para um sempre maior aper feiçoamento dos aparelhos técnicos. Um conhecido provérbio diz: “O ótimo é inimigo do bom”. Uma tal tendência não é tão natural como hoje em dia nos poderia parecer. A Antigüidade, por exemplo, era muito conservadora nas coisas técnicas; e melhoramentos técnicos de grande estilo, como seja no tráfego, tais como a estrada de ferro e o avião consigo trouxeram, dificilmente são encon- tráveis. Na técnica guerreira algumas vêzes apa reciam novidades, como os elefantes de guerra, mas nunca se chegou a mudanças tão radicais como a descoberta da pólvora no fim da Idade- Média. A irrupção de tantas novidades no século xv n ê algo de notável. Nâo é preciso peusar no “apri- 39 sionamcnto” de grandes fôrças naturais nas má quinas, que então nem sequer tinham sido cons truídas com êxito (embora o plano de Hrygcns de uma máquina a pólvora pode ser considerado prcdeccssor dos motores a explosão), mas cm descobertas tão simples como o telescópio c o microscópio. A simples justaposição de lentes, conhecidas há tanto tempo (vidros de aumento já havia na Antigüidade e óculos já sc usavam no século xv), abriu mundos novos, macrocosmos e microcosmos inteiramente desconhecidos até en tão. (O telescópio foi descoberto por práticos ho landeses desconhecidos; Galileu imediatamente os usou para fins astronômicos e Kepler formulou a teoria que os rege, ainda que não tivesse desco berto a lei dos senos, mas sòmente uma aproxi mação da mesma para o cálculo dos ângulos muito pequenos). De nôvo perguntamos: O telescópio e o micros cópio representam um “forçamento” da natureza, enquanto que a lupa e os óculos não o são ainda ? Ou o limite é ultrapassado sòmente pelo telescópio gigante de Monte Palomar, ou talvez já pelo grande instrumento de F. W. Herschel? Está-se tentado a ver o critério do “forçamento” da natureza no fato de que novos instrumentos abrem um mundo inteiramente nôvo; assim pelo telescópio de Galileu ficaram visíveis as luas de Júpiter, de cuja existência antes ninguém jamais sonhara. Não entraria nesta classe, contudo, o teles cópio náutico que não trouxe consigo uma revira volta na navegação marítima; como tal deveria ser considerado o cronômetro náutico que se desen volveu a partir dos relógios construídos por Huy- gens. Voltando para o terreno das máquinas, vemos que o uso das primeiras máquinas a vapor para 40 tirar a água das minas da Inglaterra não foi um fato decisivo; elas simplesmente substituíram os homens e os animais em seu trabalho. Mas já as primeiras locomotivas a vapor trouxeram con sigo uma verdadeira revolução nos transportes e na velocidade das viagens, que só se pode com parar com a introdução do avião intercontinental de nossos dias. Igualmente a descoberta do navio a vapor possibilitou a renovação de tôda a técnica naval. Estas duas invenções transformaram costu mes e hábitos milenares que se criam imutáveis. Nestes exemplos vemos claramente o quo Hei- degger chama de forçamento recíproco (o “afir- mar-sc”) do homem e da natureza. O homem arrancou da natureza mistérios de cuja existência nem se suspeitava e libertou suas fôrças secretas (pensemos na eletricidade e na energia atômica!), as quais por sua vez reagem sôbre o homem, seus hábitos e sua posição na sociedade; e isto de ma neira irresistível. Não no sentido que a natureza Be vingaria do homem, mas que aqui se nos revela uma influência necessária de uma sôbre o outro. Não se pode negar que em tudo isto o pensa mento matemático teve uma participação decisiva. Sòmente êle torna possível o "forçamento”, e isto de maneira paradoxal, pela renúncia, como agora queremos explicar. 4. “Naturam renuntiando vincimus” Foi Francis Bacon que forjou o aforisma: Na- tura non nisi parendo vincitur; uma variante en contramos neste outro princípio: Naturam renun tiando vincimus: pela renúncia vencemos a natu reza. Por mais paradoxal que isto pareça, o processo para arrancar à natureza seus mistérios e pôr suas 41 fôrça3 a nosso serviço é renunciar ao conheci mento de sua “essência” . Esta idéia já se encontra em Galileu. Tendo trabalhado a princípio em Pisa como discípulo dos terministas parisienses (esco- lásticos do século xiv, dentre os quais os mais conhecidos sâo Buridano e Oresme), em Pádua (a partir de 1592) se afastou desta tradição medieval, renunciando a investigar as causas do movimento da queda e do tiro, para se limitar inteiramente ao decurso dêsses fenômenos. Embora tal renúncia fôsse em sua mente só provisória, trata-se contudo de um acontecimento de grande significação. Pois êste método paradoxal de penetrar nos segredos da natureza mais e mais porfundamento, renun ciando a responder às questões que sempre tinham sido propostas (pense-se nas numerosas “causas” de Aristóteles), sempre de nôvo se mostrou fru- tuoso. Uma tal atitude favoreceu o conhecimento teórico e não só a prática. É isto que é notável, mas fàcilmente compreensível se se olhar de mais perto. Aqui está o ponto em que a maneira especifica mente matemática de pensar desempenhou seu papel. A “renúncia” tem por conseqüência uma limitação de respostas possíveis sôbre a natureza. Em muitos casos esta limitação, a impossibilidade de dar diversas respostas, se deixa precisar matemà- ticamente. Resulta daí que as possibilidades estru turais do formular matemàticamente as leis da natureza são igualmente limitadas. A fórmula é sempre determinada c em casos extremos absoluta mente imutável. Não 6 como se sòmente o pro cesso, e não a causa, de um fenômeno fôsse repre- sentável pelos meios matemáticos, mas que outros conhecimentos a que se renunciou podem ser conhecidos positivamente por métodos matemá ticos. 42 Êste fato aparecerá de forma particularmente clara quando se tomam em consideração as dife rentes “teorias da relatividade” que no decurso da longa história da física viram a luz do mundo. Estas teorias sempre afirmam que certas coisas não podem ser concebidas de maneira “absoluta” c que sôbre elas nada se pode em princípio afirmar de absoluto. Daí se segue que as leis fundamentais da natureza devem ser invariantes relativamente a determinado grupo de transformações. E isto significa que deve haver simetrias correspondentes na estrutura das leis naturais e nas fórmulas mate máticas que as exprimem. E isto de nôvo nos leva ao pontode partida de nossas considerações que expuseram a tese básica dos pitagóricos. Tal modo de pensar já se encontra no exemplo mais antigo que temos de raciocínio matemático, isto ê, na relativizaçâo dos conceitos “em cima” e “em baixo”, de Anaximandro. Como já vimos, segundo êle a terra paira no centro do muudo e “em cima” significa o que se afasta “da terra” e “em baixo”, o que se aproxima da terra em direção radial. Esta afirmação vale ainda hoje e permanece imutável quando se representa a terra como girando em redor de um eixo que passa pelo seu centro. Esta concepção nos é hoje em dia tão evidente que raras vêzes refletimos no fato que ela não é clara assim. Na Antigüidade pensadores como Demócrito e Epicuro não partilharam desta opinião mas falaram de uma “queda” de átomos no sen tido absoluto, e durante a Renascença os antípodas pertenciam ao reino da fantasia e eram represen tados como sêres fantásticos agarrados na beirada do mundo, como cefalópodos e semelhantes. Anaximandro, portanto, elaborou uma “teoria da relatividade” para os conceitos “em cima — em baixo” e lhes deu uma definição invariável relativamente às rotações da terra (onde o centro fica firme). Ao mesmo tempo todo o mundo, consi derado da terra, recebe uma estrutura radial- 8imétrica. Outro exemplo temos na relatividade do lugar e do movimento no espaço. Não nos é possível entrar nos pormenores desta questão que já existia na Antigüidade (sobretudo nas teorias do eleata Zenão). Chamamos a atenção sòmente para o assim chamado princípio de relatividade de Galileu (embora nâo fôsse ainda plenamente formulado por Galileu, e mais tarde fôsse usado por Huygens na dedução que daí fêz de suas leis sôbre o choque), a célebre discussão entre Leibniz e Clarke (que defendia a Newton) e as discussões posteriores entre Euler e Kant. Na polêmica entre Leibniz e Clarke não se tra ta da invariança das leis mecânicas no movi mento retilíneo uniforme de todo o sistema em consideração, pois sôbre êste ponto todos estavam concordes; mas, entre outras, da questão, que hoje nos parece um pouco grotesca, se Deus poderia ter colocado o mundo real em outro lugar do espaço absoluto c vazio ou se ainda agora pode mudar o lugar do universo. Leibniz declarava a questão tôda como absurda; não tem sentido falar de um lugar absoluto do mundo no espaço vazio. Clarke (e Newton) é de opinião inteiramente contrária. Constatamos que a posição do Leibniz encerra uma teoria da relatividade do lugar; todos os lugares no espaço vazio eão iguais e impossíveis de distinguir, e portanto as leis da natureza são invariáveis com a mudança de lugar, o qual deve ser entendido não como um movimento concreto no tempo, mas como uma mudança de posição abstratamente concebida. 44 Quanto à relatividade do próprio movimento, o problema foi muito discutido cm nossos dias e pode ser suposto como conhecido. As leis mecâ nicas de Newton são invariáveis no movimento uniforme retilíneo, mas não nas rotações por causa do aparecimento da fôrça centrífuga. Contudo a rotação “absoluta” no espaço vazio não se pode representar concretamont-e. A dificuldade que daí surge já foi discutida 110 século xvxi (por Huygens e Leibniz) 0 depois no século xvm (por Euler e Kant) e no século xtx (por Mach e Andrade) sem que se tenha chegado a uma resposta satisfatória. Einstein em sua “teoria da relatividade geral” no século x x tratou do problema de maneira ra dical e formulou matemàticamente as leis invari- antes da natureza que lhe dizem respeito. Mas esta teoria tão ampla não está ainda inteiramente esclarecida. Com isto não chegamos ainda ao fim da evolu ção. Na física atômica apareceram novos limites 110 conhecimento da natureza, os quais não podem ser interpretados simplesmente pelas teorias da relatividade. As assim chamadas relações de inde- terminaçâo de Heisenberg excluem a possibilidade de determinar ao mesmo tempo e exatamente lugar e velocidade (0 impulso) de uma partícula elemen tar. A dupla concepção de tal “partícula” como corpúsculo e onda é a conseqüência necessária. Também estas relações de inexatidão impõem às leis fundamentais da natureza limitações que levam a condições de simetria nas equações diferenciais que as exprimem. Outra coisa ainda se acrescentou nos tempos recentes: referimo-nos à existência de um “com primento mínimo” (a partir de 10~13 cm), abaixo do qual não mais é possível a medição, de modo quo estruturas de dimensões menores de certa 45 forma não podem mais ser consideradas como exis tentes do ponto de vista físico(6). Esta limitação de conhecimento leva igualmente a uma “relação de simetria” nas derradeiras equações básicas. (Comparar com o que dissemos no cap. primeiro sôbre a “Fórmula do mundo” de Heisenberg-Pauli). Não é aqui o lugar de apreciar criticamente tôdas essas teorias. O que mais tarde de tôdas elas ainda subsistir como integrado na história da ciência e o que será superado por novas teorias no futuro, não sabemos ainda. Mas queremos apontar aqui para um traço que lhes é comum e que é muito significativo: tôda negação de certo conhecimento traz consigo a conseqüência de impor às leis matemáticas fundamentais da natureza rela ções de simetria, explicando-as desta forma sempre mais plenamente. Isto significa que a tão freqüen temente afirmada contingência das leis da natureza cede lugar a uma espécie de necessidade, que se poderia chamar de necessidade pitagórico. O mundo se parece assim, não com uma “flor”, como se diz nos belos versos de Platen sôbre a visão do mundo de Schelling(7), mas com um cristal. Com isto já tocamos num outro problema, o da realidade. 5. O problema da realidade na Jísica clássica Não nos incumbe entrar aqui nos pormenores do problema da “ realidade” em tôda a sua ampli- (d) Podcr-so-ia apontar neste contexto para a assim chamada “idade do mundo" (que segundo alguns st*ria d*4 -5 bilhões de anoa, ou do 8 bilWVes segundo outros). Antes dôstç tempo, conforme alguns ífaicoa, nâo *6 nâo havia mundo nem açontopimçntcw, ma» nem aequer tempo; seguindo a Agostinho (que dependia do “T im eu" de Platão) afirmam que o tem po foi criado juntam ente com o mundo.(7) Em um soneto dedicado a &nhclling dia o autor: " IF é iw tw r *er8Ít4*cfc<«íí nur die W eli empjangen,S téh il du 4ie ganx, vrie von dem Bcrgea Spilze; W uê w ir zcrpjlueckt m il un term armen W itu , Da* i*t a fs Blum c por d ir awJotffanffirí’. 4(i dão. Não podemos expor em tôda a sua extensão a velha controvérsia entre realismo e idealismo, já que hoje em dia esta questão parece estar de pre ferência restringida à questão da "existência inde pendente” de outros homens ("outros eus”). Para nós êste problema é de importância só enquanto tem conseqüências para a ciência da natureza. Não tomaremos, portanto, nosso ponto de partida da problemática “filosófica” , mas daquela que re sulta de tôda a evolução da física (no sentido mais amplo). Como vimos, a ciência exata da natureza se originou de diferentes fontes. A astronomia, pri meira ciência exata, desde o comêço se ocupou de objetos — os astros — que não fazem parte do ambiente imediato do homem, que portanto não possuem um caráter real tão imediato como as coisas com que lidamos todos os dias. Não pode mos tratá-los como tratam os uma mesa ou uma cadeira, chapéu, manto, arado, barco, espada e escudo. A grandeza e a distância dos corpos ce lestes só dificilmente pode ser comparada com a grandeza e as medidas de nosso próprio corpo e com as distâncias que nos são familiares. Em poucas palavras: os objetos que constituem o campo de pesquisa da astronomia (sol, lua, es tréias) são puros fenômenos e como tais estão ao nosso alcance, mas não podemos vê-los e tocá-los com as mãos. As coisas que nos cercam e com que lidamos todos os dias, que estão ou que podem estar ao alcance de nossas mãos, que estão “pre sentes”, estão aí como sendo nossas, ou ao menos comoatingíveis. Só muito mais tarde e com muito maiores difi culdades a ciência exata começou a se ocupar das coisas que nos estão próximas. A Antigüidade clássica conseguiu alguns resultados sòmente no terreno da física estática e um pouco no da ótica e acústica (neste sòmente na doutrina sôbre a har monia musical). A “física” de Aristóteles era pouco inclinada a pesquisas quantitativas exatas; a cate goria da quantidade aí aparecia ao lado de outras categorias, (como substância, qualidade, relação), ocupando um lugar bem modesto. No mundo que estava abaixo da esfera da lua, as leis da natureza não tinham valor exato e preciso, mas eram tão sòmente regras estatísticas, dificilmente determi- náveis, “assim como as coisas freqüentemente, ou em geral, são” . Sòmente no século xvn com a mecânica de Newton, que tanto vale para os pro cessos terrestres como para os celestes, a física se tornou uma ciência universal; sòmente então o pensamento matemático perpassa todo o mundo e o faz objeto da pesquisa exata. Quanto à teoria do conhecimento, na Antigüi dade nunca se chegou a formular uma teoria idea lista no sentido moderno da palavra. Nem a explicação dos eleatas nem a de Platão sôbre as coisas sensíveis como sendo meros fenômenos, que nâo existem no sentido próprio, nem o ceticismo dos tempos hclenísticos, podem ser interpretados como sendo idealismo. Descartes foi o primeiro que começou a raciocinar de um ponto de vista subjetivista, com sua célebre meditação sôbre a dúvida metódica; mas acabou por decidir-se pelo realismo. Berkeley é o primeiro idealista genuíno com o seu ‘‘esse est percipi”; sua atitude diante da ciência exata de seu tempo é só parcialmente negativa. Em seu escrito “De motu” êlo critica a doutrina de Newton sôbre o espaço absoluto do ponto de vista empirista e no “The Analyst” critica violentamente o cálculo do fluxo. Voltemos à ciência exata e perguntemo-nos sôbre o conceito de realidade que está na sua base. 48 Como acabamos dc ver, na Antigüidade jus tamente os objetos “ terrenos”, tão acessíveis aos homens e de cuja realidade nem a filosofia peri- patética, nem a cstóica ou a epicúrica jamais du vidaram, estavam subtraídos à pesquisa exata. (Por esta razão algumas opiniões éticas da Anti güidade não têm importância para a nossa ques tão). O terreno da astronomia, o único a que se aplicava a ciência matemática exata, é, ao con trário, problemático quanto à espécie de reali dade que se lhe deve atribuir. Para Platão e Aristóteles os astros são uma espécie de sêres di vinos cuja “matória” é distinta da dêste mundo. Havia também outras opiniões como as de Anaxá- goras, Demócrito e Epicuro; mas estas não podiam ser formuladas de maneira satisfatória do ponto de vista da matemática e por isto não constituíam sérias teorias concorrentes(8). A realidade própria dos astros era, portanto duvidosa. Isto teve como conseqüência que na astronomia antiga e medieval se formaram duas tendências: uma, puramente matemática (melhor: cinemática), que se limitava a analisar os com plexos movimentos dos planetas no céu, compostos de movimentos circulares uniformes (anàlogamente ao desenvolvimento de uma função em série trigo- (8) B. L . wan der Warrdtn expG» longamente por que a conccpçllo platónlco-aristotllica. quo em áUitna análise depende doe pitagóricos. á superior do ponto dc vista matemático à concepç&o anaxssórico-democritica (Die Antronomie dtr PyihafforMr, pág. 13*15). Anaxágoras decompóe o movimento anual do sol (e anàlogamente o da lua) numa componente paralela ao equador celeste e numa que 6 paralela ao eixo celeste. Isto ê possível do ponto de vista cinemático, mas aom conseqüências astronô* minas. De fato. ambas as componentes s io explicadas de maneira diferente do ponto de vista dinâmico: a primeira pela revolução do éter, a ou tra pela resistência oferecida pelo ar frio do Norte que obriga o sol a "virar-ee” , isto é. voltar para a proximidade do equador. Não wi explica eorao os movimentos das duas componentes se relacionam entre si, isto ê, o fato de o sol depois de um ano voltar, nfto para a mesma órbita, mas também para o mesmo signo do soiíaco. À concep^lo pitagóriea, ao contrário, pelo fato de afirmar que o sol possui movimento próprio na •líp tica de oasto para leste (isto é, contrário ao movimento diário das estréias fixas), explicava ob fenômenos corretamente. 49 nométrica(9), sem se importar do mecanismo físico que tornasse possível aqueles movimentos; a outra tendência se orientava mais no sentido físico, e tentava descrever o mecanismo físico e as causas dos processos, descritos pelos matemáticos do ponto de vista puramente cinemático: êstes, portanto, se preocupavam com pesquisas dinâmicas. O pri meiro método é empregado por Cláudio Ptolomeu no "Almagesto”, o segundo na “Hypothesis pla- netarum” do mesmo autor. Esta dupla concepção, que tornava fácil falar em “hipóteses” astronômicas no sentido do pri meiro método, pelo qual se podem calcular tabelas de planetas em cuja verdade não se precisa acre ditar, teve sua importância ainda durante a Idade Média e mesmo nos séculos xvi e xvn. Assim, por exemplo Osiander, editor póstumo da obra principal de Copérnico “De revolutionibw”, con cebia o sistema heliocêntrico dêsto como simples hipótese. Tycho Brahe, Keplcr e Galileu, ao con trário, estabeleceram sistemas que deviam também ter valor físico. No processo de Galileu isto teve sua importância: O Cardeal Belarmino lutou sem resultado por uma interpretação hipotética do sistema(lO). O progresso ulterior das ciências no século xvu mostrou, pelo sistema da mecânica celeste de Newton, que a tendência “hipotética” nâo mais correspondia ao espírito do tempo. (9) Havia ainda oa método» ' ‘lineares" dos babilônios ((empo helenls* tico), empregados ifualm snte por aatrckiomos gregos, como se pode ver no ‘'Aaaphorikos" de HipaUdea e no "Tetrablblo*" do PtoJomcu. Êsioa s io nemalhantea ao» noasoâ métodos de desenvolvimento em séries do potências, (10) Vld. a rxpo*içllo de E. J . Dijk$terhuii no livro “ Díe Meckanl- eierunfc doa Weltbildes” (Berlim-Goottingen-Heidelberg 195fl), págs. 69-77 (Antigüidade), 23Ss., 239-243 {Idade Média). 304 ss. (Renascença), 320 es. (Copémiao), 334 as. (Tycho), 337 ss. (Kepler, sobretudo págs. 343-349), 424-429 (Galileu). Vld. igualmente O. jY#w6«u*r, The Kxact Sciences in Antiquity (Providence, [Rhodo IsJand] *1957), págs. 204-206. 50 Trata-se, portanto, da realidade física dos corpos celestes e de seus movimentos. A separação funda mental entre o mundo terrestre e o mundo celeste está definitivamente superada; a mesma matéria constitui as estréias e a nossa terra, as mesmas leis mecânicas valem para todos os corpos. Mas surge uma nova dificuldade que diz respeito à natureza das fôrças que movem os planetas em suas órbitas e fazem cair os corpos pesados na terra. Trata-se da fôrça centrífuga e da gravitaçáo (resp. a gravidade terrestre). A fôrça centrífuga é uma fôrça aparente que resulta da inércia da matéria, como explicou Huygens. A gravitaçáo, contudo, é uma fôrça distante que opera instantâ- ncamente, e como tal é explicada por Newton em seus “Princípios”. Sua natureza permaneceu enig mática e ninguém dentre os contemporâneos de Newton (como Huygens e Lcibniz) e nem sequer o próprio Newton se contentavam com a concepção da gravitação como fôrça distante, apesar da utili dade que do ponto de vasta matemático daí pro vinha, como brilhantemente o demonstrara Newton. Huygens em todo o caso foi o único que estabeleceu uma teoria quantitativamente determinada de ação de contato da gravidade, pelo menos da gravidade terrestre, teoria geiúal que já como a teoria dos turbilhões de Descartes (que entretanto não fora elaborada a ponto de poder ser traduzida em têr- mos de matemática) reduzia a gravitação à fôrça centrífuga de uma matéria muito subtil que gira em redor da terra (e dos outros astros respectivamente).
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