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O_PENSAMENTO_MATEMATICO_-_Sua_grandeza_e

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COLEÇÃO CAIROSCÓPIO
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
REITOR
Proj. Dr. Luis Antônio da Gama e Silva
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO 
C o m i s s ã o E d i t o r i a l
P R E S I D E N T E
Proj. Dr. Mário Guimarães Ferri
FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LÈTRA8
M E M U R O 3
Proj. Dr. A. Brilo da Cunha Proj. Dr. C. da Silva Lacaz
FAC. CE FII.OK., ClfcNC. E LÊTRAS FACULDADE DE MEDICINA
Proj. Dr. Miguel Reale
f a c u l d a d e d e d ir e it o
Proj. Dr. Walier Borzani
ESCOLA POLITÉCNICA
O S K A R B E C I C E R
O PENSAMENTO 
M A T E M Á T I C O
Sua grandeza e seus limites
EDITORA IIERDER
SÃO PA U LO
Vorsâo portuguêsa do Prof. TIelmoth At.FRRno Sxmon, do original alemão: Groesse und Qreme der Malhfmatisclten Dcnkweise, von Oskar 
Bkoker (em. o. Prof. der Philoeophic an der Uniwisit&t Bonn), publicado pola Verlag Karl Albert, Freiburg'Mueneheti 1959.
( c ) Editôra Herder, Sáo Paulo, 1965
Imprciuo no* Estados l;nídon do Br&âil 
P rin ted itt the U nited S taU t oj Braeil
I N D I C E
Prejácio................................................................................... 7
CAPÍTULO PRIMEIRO
O P E N S A M E N T O PIT A G Ó R IC O
1. Os matemáticos o filósofos gregos mais antigos.. . . 11
2. A tese fundamental dos pitagóricos: as coisas sãonúmeros........................................................................ 15
3. A teoria “pitagóriea" de Platão sôbre a m atéria.. 18
4. Opiniões de Platão, dos pitagóricos e de Aristóteles
sóbre a natureza dos números................................. 25
CAPÍTULO SEGUNDO 
C IÊ N C IA DA N A TU REZA EX A TA
1. O papel da astronomia................................................. 28
2. A experiência “analítica” na Antigüidade e naIdade Moderna........................................................... 31
3. "Forçar” a natureza?................................................... 36
4. Naturam renuntiando vincimus.................................... 41
5. O problema da realidade na física clássica............ 46
6. A física moderna e o problema da realidade.......... 55
7. Visão de ooujunto........................................ ................. 75
CAPÍTULO TERCEIRO
M A T E M Á T IC A P U R A COM O C IÊ N C IA L IV R E
1. Os inícios da matemática grega. Aparece pela pri­meira vez o problema do Infinito (Zenão de Eléa) 82
2. A descoberta do irracional........................................... 90
3. A teoria aristotélica sôbre o infinito......................... 06
4. A teoria aristotélica da abstração na matemática.A mathesis universalis nos séculos XVII e XVIII. 100
5. Evolução em direção da matemática formal............... 108
CAPÍTULO QUARTO
0 3 L IM IT E S DO PE N S A M E N T O M A T E M Á T IC O
A) Os limites imanentes da matemática
1. Geometria não-euclidiana. Axiomática form al.. . . 114
2. Fundamentação crítica da análise............................ 121
3. A teoria dos conjuntos de Cant-or e suas antinomias.Provas da nfio-eontradição........................................ 124
4. O intuicionismo.............................................................. 139
5. Computabilidadc c decisibilidade. O princípio daineompletividade de Goedel...................................... 143
6. A prova da incompletividade de Goedel.. . . ............. 146
7. O conceito de função calculável e similares.............. 157
8. Definiç3o construtiva de números ordinais transfi-nitos............................................................................... 162
B) 0 Problema filosôjic) dos limites 
do pensamento matemático
1. Opinião de Kant sôbre a essência da m atem ática.. 169
2. A matemática e a finitude do homem........................ 173
3. Matemática e "História” (ciência hermenêutica doespírito)......................................................................... 178
4. Os limites do inteligível. Ser e existência do homem. 186
P r e f á c i o
S ôbre a grandeza e a miséria do homem es­
creveu Blaise Pascal, sôbre o brilho e a miséria 
das cortesãs escreveu Honoré de Balzac; porque 
não escrever agora sôbre a grandeza c a miséria 
da matemática? É verdade que a matemática é 
um assunto abstrato, ou pelo menos uma forma 
do espírito objetivo, ou absoluto, e tal forma pode 
muito bem ser grande, mas não miserável como 
o homem. Pode-se, talvez, perguntar se a matemá­
tica pode crescer ilimitadamente, ou se seus limites 
não coincidem com os do próprio matemático.
A grandeza das conquistas matemáticas no 
decurso dos três últimos séculos está hoje em dia 
claramente delineada diante de nossos olhos. Mas 
vemos igualmente a ambigüidade de uma tal gran­
deza no imenso terror que ela pode espalhar ao 
seu redor, por mais que dela necessitemos e sem 
ela não possamos mais viver. Só êste fato já bas­
taria para fazer-nos meditar sôbre a grandeza e 
os limites do pensamento matemático. É preciso 
indagar como tudo isto pôde acontecer; é por-
7
tanto imprescindível lançar um olhar sôbre a his­
tória da origem e da evoluçfio da matemática.
A ciência matemática moderna, que levou ao 
desenvolvimento extremo do domínio das fôrças 
da natureza no decorrer dos séculos x ix e xx, só 
existe há trezentos anos; começou no século xvn 
com Galileu e alcançou seu primeiro clímax com 
Newton. Mas, a matemática em si é alguns séculos 
mais antiga. Teve sua origem no Antigo Oriente, 
Babilônia e Egito, no segundo milênio antes da 
era cristã. Ciência no sentido europeu ela se 
tornou sômcnte no início do século vi antes de 
Cristo, por obra dos gregos, os quais, recebendo 
a herança babilônico-egipcíaca, profundamente a 
transformaram, como aliás fizeram em outros ter­
renos da cultura (escrita, arte, etc.). Uma outra 
transformação se verificou no "ocidente” , no 
século xvn, por obra dos povos germano-romanos, 
quando se descobriu a álgebra (a “fórmula” , que 
hoje nos parece tão característica da matemática), 
a geometria analítica e o cálculo infinitesimal. Ao 
mesmo tempo, e em conexão com aquelas desco­
bertas, surgiu a nova dinâmica de Newton, que 
se mostrou capaz de explicar pelos mesmos princí­
pios os processos (mecânicos) do céu e da terra. 
A partir dali se verificou um progresso contínuo, 
tanto no terreno matemático, como no físico (no 
sentido lato), até a ciência atual.
Se queremos compreender esta, será necessário 
ocupar-nos mais detalhadamente do esbôço histó­
rico, acima apresentado. Não de tôdas as parti­
8
cularidades, nem sequer de todo o seu alcance 
evolutivo, mas pelo menos dos pontos de intersec- 
çáo mais importantes desta longa história, isto é, 
das descobertas mais fundamentais para a ulterior 
evolução.
Náo queremos, contudo, parar aí; o estado 
atual da questáo em suas linhas mais caracterís­
ticas será igualmente exposto. Pois é precisa­
mente neste ponto que o pensamento matemático 
alcançou sua plena realização c atingiu seus limi­
tes, se é que tais limites existem. A questão dos 
limites se deve examinar, de um lado, a partir 
da própria matemática e, de outro, como um pro­
blema filosófico.
Com isto está esboçada a tarefa que nos impu- 
semos tratar no presente livro.
CAPÍTULO PRIM EIRO
O pensamento Pitagórico
1. Os matemáticos e jilósojos gregos 
mais antigos
De Pitágoras se afirma(l) que foi o primeiro a 
ensinar a matemática como disciplina livre (paidda). 
Esta significa para Arist,óteles(2) uma ciência que 
é estudada por si mesma, e não pela sua utilidade, 
ou por prazer. Pode-se duvidar da exatidão dêsse 
informe sôbre Pitágoras. De fato, numa geração 
antes de Pitágoras, no início do século VI, já sc 
cultivava a matemática nos círculos dos filósofos 
da natureza de Mileto (Tales e Anaximandro). 
É certo que muitos séculos antes já existia na 
Babilônia não sômente uma matemática, mas tam­
bém uma álgebra e até uma geometria, que se 
originaram nas escolas dos “escribas”, isto é, dos 
administradores das grandes fortunas estatais e 
privadas. O mesmo sucedeu 110 Egito, onde, con­
tudo, os conhecimentos matemáticos ficaram num 
estágio mais primitivo.Mas tanto na Babilônia 
como no Egito a matemática era utilizada para 
fins práticos, ainda que nas escolas os fins imedia­
tamente utilitários nem sempre se verificassem (o
(1) iVocitu <n BudúUm. pá*. 66, 15 (Frioiil.).
(2) M et. À 2, 982 b, 23-28.
11
que sucedeu também em outros tempos e lugares). 
Mas a tendência geral era restringir os conheci­
mentos matemáticos às construções, à agrimensura, 
à divisão das heranças e à astronomia. Os gregos, 
ao contrário, para quem “o homem tende por 
natureza ao saber”(3) consideravam a matemática 
como conhecimento puro. Não sabemos se já antes 
de Pitágoras se tinha uma idéia exata dessa “pu­
reza”. Pois o que sabemos dos primeiros matemá­
ticos se relaciona com o uso da matemática. Tales 
teria predito um eclipse do sol, medido a altura 
das pirâmides do Egito e determinado a distância 
de um navio no mar por observações feitas de 
um ponto na terra. Anaximandro fabricou instru­
mentos astronômicos para acompanhar o decurso 
dos dias e das noites em Esparta, construiu um 
globo celeste (sphaira) e deüneou uma carta ter­
restre.
Mas não era tudo. Tales e Anaximandro eram 
também “filósofos”, isto é, procuravam delinear 
um sistema ou uma imagem do mundo que nâo 
mais dependesse das concepções mitológicas tradi­
cionais, em que os fenômenos naturais (como os 
terremotos ou as enchentes do Nilo) fôssem expli­
cados sem recorrer a personificações divino-demo- 
níacas. Em Tales não se consegue ver a relação 
que existe entre sua filosofia (na qual, como se 
sabe, fêz da água o elemento original de tudo) e 
a matemática. Anaximandro, contudo, esboçou a 
primeira imagem do universo traduzida em nú­
meros, o que não deixa de ser algo muito apre­
ciável e de enormes conseqüências. Anaximandro 
é conhecido, sobretudo, pela sua “sentença”, 
um fragmento transmitido por Simplício que o 
tirou de Teofrasto; o conteúdo completo não nos
(3) Arist., M et. a 1, 980 a. 21. Vid. igualmente algumas sentenças pré-eocráticas: A nuágoraa A 39, Dcmócrito 118 (Dicls).
12
é conhecido, nem seu contexto, e por causa de 
seu caráter fragmentário é difícil explicá-lo com 
clareza. Contudo, apesar de sua forma doxográ- 
fica pode-se reconhecer nesse fragmento as linhas 
essenciais do sistema cósmico de Anaximandro. (4) 
Segundo êste a terra paira no centro do cosmos 
sob a forma de um “bloco de coluna” (cilindros 
de pedra cuja superposição formava as colunas 
dos templos gregos), cuja altura e diâmetro estão 
na razão de 1:3. A terra está firme porque não 
há razão pela qual ela cairia para qualquer um 
dos lados do universo, que é representado como 
um sistema radial simétrico. Aparece aqui pela 
primeira vez na história o principio da simetria, 
de tão grande importância ainda hoje, tanto na 
matemática como na física teórica; também Platão 
insistirá mais tarde neste ponto. É possível ver 
nesta teoria cósmica de Anaximandro também a 
primeira "teoria da relatividade". Para o pensa­
mento simples da experiência diária os conceitos 
de “em cima” e “em baixo” são absolutos; assim 
o eram na Antigüidade para Demócrito e Epicuro. 
Mas para Anaximandro “em baixo” significa a 
direção da terra, que muda conforme o posto de 
observação.
Ao redor da terra se estendem grandes círculos 
ou anéis (kykloi) que se afastam à razão de 9, 
18, 27 . . . , isto é, na razâo de 3.3, 2.(3.3), 3.(3.3)... 
raios terrestres. O círculo interno contém ou as 
estréias fixas ou os planetas (o que é discutido), o 
médio contém a lua e o exterior o sol. A parte 
interna dêsses círculos está cheia de massa ígnea
(4) Vid. » "*ontcnçaM era: Frajtiu. B 1 CDlela). tirado de Simplício in AriHtot. Phy«v piijç. 21, 13. SiSbre o slaUsxna cdwinico: A 11, tirado do Hippolit., Ref. I 6, 3-5; vid. ijpmlrocuto A 18, A 1, A 22.
Hftbro * oarta torro#tro: A fl, A 7. Sôbru os luatrumentofi astronômico* em Esparta: A 1 (l) (2). Vide igualraontc W. Krant, Kotmoe, em: Archiv fuer Begriffftgxttchichte II, 1 (Bonn (1955) pág. 12 se.
13
que nos fica visível por uma abertura lateral e 
torna possível a visão das estréias. O cosmos nâo 
é eterno, mas se originou do “apeiron” (o ilimitado) 
e depois de um espaço de tempo aparentemente 
bem determinado voltará ao ilimitado. O conceito 
do “apeiron” é uma tentativa de representar racio­
nalmente o conceito mítico de “chaos”.
Nâo é aqui o lugar de entrar nos pormenores 
dos problemas propriamente filosóficos, talvez "es­
peculativos’', do pensamento de Anaximandro. O 
que é importante para nós é a grande influência 
da matemática nessa antiqüíssima imagem do 
mundo dos gregos. Pode ser que esta nos pareça 
bem simplória e talvez o número 3, que a deter­
mina, tenha fundamentos mitológicos. Em Hesíodo 
(Teogonia 722 ss.) se fala de um bloco de metal 
(akmôn) — talvez se trate de um meteoro — que 
leva nove dias para cair da abóbada celeste e 
atingir a terra e que levará outros nove dias para 
chegar até ao Tártaro. (Parece, portanto, que o 
Tártaro era concebido simètricamente ao céu como 
o hemisfério voltado para baixo). Tudo isto nâo 
impede que Anaximandro conceba o princípio 
fundamental do universo como ordenado numèri- 
camcntc. Esta opinião, portanto, precede a tese 
pitagórica, da mesma maneira como o conceito 
de "ilimitado", que pertence aos conceitos mais 
fundamentais do pitagorismo. É certo que 
se trata de pura especulação sem base na ex­
periência; mas tal é a característica de todo 
pensamento incipiente, como podemos observar 
nas crianças. Só lentamente a imagem do 
mundo assim formadu se adapta aos dados da 
experiência.
Deve-se acrescentar ainda que no terreno da 
astronomia Anaximandro fêz observações exatas; 
a fabricação dos instrumentos que seguiam exata­
mente o curso do sol, cm Esparta, supunha a me­
dida da altura polar dessa localidade e outras 
coisas ainda.
2. A tese fundamental dos pitagáricos: 
as coisas são números
Não 6 fácil datar a filosofia pitagóriea. As 
ricas fontes posteriores, da época “neopitagórica”, 
pós-cristã, não s5o dignas de confiança, sendo que 
os fontes mais antigas (sobretudo Aristóteles) são 
lacônicas e difíceis de interpretar. É verdade que 
a datação histórica e outros pormenores não são 
tão importantes na presente questão sôbre os 
inícios da matemática grega. Podemos, portanto, 
considerar a filosofia c a matemática pitagóriea 
como um todo até a época de Platão; as fontes 
para estudá-las encontramos, por um lado em 
Aristóteles e, por outro, na análise crítica dos 
“Elementos” de Euclides (para a aritmética e 
a geometria) e nas diferentes fontes doxográficas 
(para a astronomia e a doutrina da harmonia). 
Nem se devem esquecer os fragmentos de Filolau 
conservados oralmente (os quais, com W. Kranz, 
admito serem genuínos, pelo menos em seu 
conteúdo) e de Arquita. Preciosos indícios 
temos igualmente naquilo que nos foi transmitido 
sôbre Zenão de Eléa. Não é tarefa nossa expor 
aqui a matemática dos pitagóricos, já que isto 
foi feito por outrem(5) e por nós em outra
(S) Vid. sobretudo B. L. van d*T W a k r d j c n : Die Harmonielehre der PytlmíOTcwr, em: Herme* 78 (1943), páu. 163-179: Die Arilhinetik der Pythagorper, em M «th. Ann&lcn 120 (1947-1940), pás». 111-153, 676-7(10; Die Astronomie drr PythaEorrer. Verhundl. d. K. Nederland. Aked. v. Wetenach., Aid. Niiturerk. Drrl XX N.» 1 (Amstenl&m 1951). Ilesmmo dtete* diferentes cetudoa cm: Erwachcndo Wia»enacbalt (BaaiUüft e8tutt«art 1957), pí*g. 155-168, 177-21», 247-202.
15
ocasião (6). Trata-se agora de expor o sistema 
filosófico do pitagorismo que constitui o tema 
central dessa corrente de pensamento.
As notícias que nos fornece Aristóteles, sobre­
tudo em sua Metajísica (Livros A, M, N), não 
nos apresentam, como já dissemos, um quadro 
unitário c coerente sôbre aquilo que os pitagóricos 
ensinaram sôbre os números e suas relações com 
as coisas. Uma vez se diz que os números são 
as próprias coisas outra vez que estão nas coisas, 
e uma terceira vez se afirma que as coisas são 
compostas de números, sem que Aristóteles pareçafazer uma distinção essencial entre essas dife­
rentes afirmações.(7) Além disto Aristóteles pro­
curou exprimir a doutrina pitagórica por meio 
das “categorias” , por êle concebidas e dotadas de 
sentido dentro da lexcologia e sintaxe grega e 
estreitamente dependentes da crítica que exerceu 
sôbre os pitagóricos e Platão; esta crítica só podia 
ser feita de maneira imperfeita. Assim, segundo 
êle, os pitagóricos teriam concebido os números 
como a essência substancial (ousia) das coisas, ou 
ainda como seu princípio (arckê), conceito que em 
outro lugar é aplicado aos elementos originais dos 
antigos filósofos naturais da Jônia(8). Num con­
texto distinto do anterior o Estagirita explica que 
os pitagóricos descobriram semelhanças (homoiô-
8ôbre a estreita relação entre múaica e matemfitica na Grécia tra ta J . Lohmin, Muâíké und Logre, em: Wiaa. Zeitccbr. d. Univ. Grciíawald VI; OeBeUschafto - und Spraohwiaa. Rclhe, n.* 1/2, pá*. 31-37 (1956/57); id., Dio griochUche Muuik nla mathemntwiho Forra, em Archivfuer Muaík- wiaaanaeW t XIV, 147-155 (1957); Der U nprung der Muaik, 1b. XVI, 148 u . (1959).
(0) Grundlagen der M athem atik in ceaehichtlicher Entwicklung 34 as. Friburgo em Br. — M unique 1954 (abrev. GM).
(7) Vid. O. Martin, Klaa*laêh«* Ontologio d«r Zahl, em Kantntudícnl aupl. 70 (Goiânia 1956) $ § 1-3. Principais texto» dc Arlatólelc*: o) O» númoros tAo as coUa«: M ct A 5, 987 b, 28; M 8, 1083b, 17. 5) o* námeroa cwtfto ««a coisaa; Met. M 6, 1G&0 b, 1; PhvB. III, 4. 203 a, 6. c) Aa coiuou eSo compostas de números: M et. A 8, 990 a, 22; M 6, 1080 b, 2-3, 17-19; M 8. 1083 b, 11-18; N 3, 1090 a, 23-32; De coelo III. 1 300 a, 15-17.
(8) Número como ouaia: Met- A 5. 987a, 18; A 8, 1017 a» 20; vld.I 2, 1053 b, 11-13 número como arcM À 5» 986 a, 16,
jfí
mala) entre as propriedades dos números e das 
coisas, sobretudo na estrutura da harmonia mu­
sical e na construção dos céus e de seus movi­
mentos. Tildo isto é resumido por Aristóteles (sem 
que se constate um salto no curso de seus pensa­
mentos) pelas palavras: “Todo o céu é harmonia 
e número”(9).
Encontra-se igualmente uma formulação afim, 
isto é, que as coisas são o que são pela imitação, 
ou melhor, pela representação (mimêsis) dos nú­
meros, e isto é por Aristóteles identificado com a 
participação (methexis) platônica das coisas nas 
idéias(lO). Tudo isto se entende em parte quando 
se tem em mente que Aristóteles tem em mira 
antes de tudo a filosofia platônica, em que as 
“idéias" são explicadas como “números". Uma 
distinção essencial, entre Platão e os pitagóricos, 
Aristóteles vê no fato que aquêle separa as idéias 
das coisas, o que êstes não fizeram com os nú- 
meros(ll).
Ao tentar-se harmonizar estas diferentes afir­
mações sôbre a doutrina pitagórica, cai-se em con­
tradições e paradoxos. Assim dizemos: se os nú­
meros estão nas coisas, ou se as coisas se com­
põem de números, então as coisas não são os nú­
meros. Parece que esta última fórmula pode ser 
considerada como um resumo das duas anteriores, 
mais claras, ja que os diferentes modos de exprimir 
se encontram próximos uns dos outros na mesma 
sentença(12). O que se quer dar a entender 6 a 
imanência dos números nas coisas, quer se os 
conceba como partes integrantes, quer sòmente 
os “elementos” (stoicheia) dos números sejam iden-
(0) M et. A S. 985b, 27-986 a, S (vid. 986 a, 21).
(10) M et. A 6, 987 b, 11-12.
(11) M et. A 8, 987b, 27-28: N . 3. 1090a, 20-25.
(12) Por exemplo em M et. M 6. 1083b, 17-19.
tifieados com as coisas. Êsses “elementos” são: 
“ limite” (peras) e “ilimitado” (apeiron)(13). Parece 
que a imanência deve ser representada como a 
presença nas coisas de determinada estrutura nu­
meral, semelhante a uma armadura aritmética, 
mais ou menos como ainda hoje pomos nos cristais 
uma “estrutura gradeada” , com o grupo corres­
pondente.
3. A teoria “piíagórica” de Platão 
sôbre a matéria
A novidade que Platão introduziu no problema 
dos números foi apontar para a diferença que 
existe entre o “caráter ideai”, inteiramente firme 
e determinado, dos números e o caráter incons­
tante — Platão, seguindo os heraclitenses, diz 
“fluido” — das coisas sensíveis. Já Filolau se 
exprimira do maneira semelhante. Estamos hoje 
em dia bem familiarizados com tal distinção no 
campo geométrico: sempre distinguimos cuidado­
samente entre o mais exato dos desenhos de uma 
circunferência, onde sempre há inexatidões, e a 
circunferência “ideal” , entendida pela geometria. 
Naturalmente, uma tal circunferência ideal, que 
se pode realizar em quantos exemplares quisermos 
de figuras geométricas, náo constitui a única idéia 
possível de circunferência, daquilo que se poderia 
designar como “circularidade” . Mas com os nú­
meros parece que a coisa é diferente: quando 
temos três homens diante de nós, o número 3 
está aí representado de modo perfeito, pois 3 está 
posto de forma bem determinada entre 2 e 4. 
Podemos afirmar, então, com absoluta certeza: sâo
(13) M et. A S. 986 », 1-2; vid. Filolau, F n p i . B 2 CDiel»).
trés homens, c não dois nem quatro. Platão o 
seus discípulos, contudo, pensavam diferente. Exi­
giam que o número da “aritmética filosófica” cons­
tasse sò mente de unidades inteiramente iguais(14). 
Este conceito de arilhmos monadikos ou malhema- 
tiko8 deve ser rigorosamente distinguido do “nú­
mero numerado” das coisas scnsíveis(15). Dêstes 
dois conceitos se deve distinguir ainda o “número 
ideal” ou o “número das idéias” (ideôn arithmos) 
platônico, conceito muito difícil, dc que agora não 
precisamos nos ocupar.
Os pitagóricos não faziam essa distinção, o que 
segundo Aristóteles lhes poupava muitas dificul­
dades. Não atribuíam valor decisivo à absoluta 
igualdade das unidades com que enumeravam. 
Para êles o “um” e os outros números não são 
atributos de quaisquer coisas concretas numeradas 
mas entidades independentes (ousiai, “substân­
cias”), o que é combatido por Aristóteles pelo 
seguinte argumento: Mesmo quando se concebe 
uma melodia como um “número” composto de 
quartos de tons, a unidade dela não constitui um 
ser independente, mas um quarto de tom. Assim 
também em outros casos(16). Conforme Aristó­
teles o número adere às coisas, não está nas coisas. 
Apesar desta formulação diversa, neste ponto o 
Estagirita se aproxima do conceito pitagórico de 
número. O que os pitagóricos chamam de “nú-
(14) R«p. V II, 528a; Phileb. 58de.
(15) Phya. IV, 11, 219b, 6. Aristóteles ao "ndmero numerado" opunha o "ndmero com que numeramoa". W. 2>. Rot* interpreta êste último como o n^msro m\tem dtico ou monádico. Mas, é tato inteiram ente justi­fica lo? E em to lo o caso necçsslrio ter em vtata a teoria arUtotélica da abâtriçSo matnmlticu [segundo èle a m itnm itica ôó exUt* ex aphoi-O ndmero raonádieo platônico n&o 6 abstrato, maa existente outo- lògicarivntr, é iim i ou*ia no avutMo pttOO* IttO A . IFfdôtfrp,PK to’a Philosophy of Mnthornatias (Stockholm 1955), cap. V (pág. 03 ss.). Infelizmente éste autor nilo tra ta da t**c decisiva do platonlamo posterior, segundo o qual as idéias «Ao números.
(16) M et. 1 , 1, 1053 b, 32 — 1054a. 9; vid. N 1. 1067b, 33-1088a, 14
19
mero” (arit.hmoe) é evidentemente o “número nu­
merado”, isto é, a coisa numerada ou numerável, 
ou mais exatamente, uma multiplicidade discreta 
(não contínua), que pode ser designada por um 
ou mais números, Na realidade tais “números” 
não deveriam ser expressos por “dois, três, qua­
tro . . mas por “duplo, triplo, quádruplo . . 
Que se recorde a etimologia da palavra “arUhmos”: 
esta provém de “a r a r i s k o “eu ordeno, ponho 
em ordem”, e significa em seu sentido original: 
“ordem, disposição” . Até mesmo em Aristóteles 
se encontra um eco dêste caráter concreto e estru­
tural do conceito primitivo de número, que não 
pode ser aplicado a qualquer coisa, mas que de­
pende de determinados objetos(17). Tal concepção 
se encontra muito mais acentuada nos pitagóricos, 
e até mesmo em Platão.
Partindo dêste conceito original e primitivo a 
tese pitagóricase torna muito mais inteligível. 
“Número” significa a estrutura das coisas, aritrnè- 
ticamente descritível, e que constitui sua essência 
própria mente dita. Contudo, na concepção pita­
górica esta “estrutura” não é o arcabouço atri­
buído à coisa por outrem, mas uma armação 
interna à própria coisa, e que de dentro a man­
tém unida. Como isto deva ser entendido, mais em 
particular pode-se ver na doutrina dos elementos 
contida no diálogo de Platão chamado “Timeu”. 
Aí Platão fala pela bôea do pitagórico Timeu 
(quer sc trate de uma pessoa histórica, quer não) 
mostrando-se de certa forma como pitagórico êle próprio.
Os átomos dos quatro elementos são concebidos 
como poliedros regulares: o fogo como tetraedro, 
o ar como octaedro, a água como icosaedro e a
(17) Vid. JT. iW>nní«0íf, Z&lilwort uad Ziffer, 2. ed.. Goettingen, 1958.
20
terra como cubo. Os três primeiros corpos, cujas 
faces são triângulos equiláteros e congruentes, são 
concebidos como compostos por êstes, constituindo 
assim corpos elementares tridimensionais a partir 
dc superfícies de sòmente duas dimensões! Isto, 
naturalmente, constituía uma pedra de tropêço 
para Aristóteles que critica violentamente a dou­
trina platônica sôbre os elementos em seu livro 
De coelo (III, 1). Afirma que a matéria real é 
corpórca e pesada, enquanto que as simples super­
fícies como entidades matemáticas, isto 6, abs­
tratas, não o são. Mas Aristóteles não compreen­
dera a profunda doutrina de Platão. Esta quer 
explicar a essência mesma da matéria c não o 
composto material que consta de pequenas partes 
indivisíveis. Em Platão o conceito de matéria 
ainda não se solidificou em “matéria prima”, não 
mais inteligível, como em Aristóteles. Se se qui­
sesse traduzir em têrmos modernos o sentido platô­
nico de matéria, poder-se-ia hesitar entre conceitos 
tais como “espaço”, “matéria” e “campo”.
Neste contexto os resultados de um estudo de 
E. M. Bmin(18) sôbre as mudanças “físicas” e 
“químicas” dos elementos platônicos são de grande 
interêsse. Entre outras coisas é necessário que o 
interior dos poliedros platônicos seja essencialmente 
vazio, já que a soma das faces fica igual nas trans­
formações (como na química de Lavoisicr a soma 
das massas), mas não a soma dos volumes (em 
alguns casos o volume se reduz à metade!).
Tôda a teoria, portanto, se baseia exclusiva­
mente nas superfícies dos poliedros e 110 fato de 
os poliedros se comporem de superfícies sendo que 
os ângulos que as superfícies formam são também 
de importância quanto à sua grandeza relativa.
(18) La Chimii du Tlw íe, em Revue do Métapliyaique e t de Moral», 56. p i* . 289-282.
21
A grossura das superfícies é contudo nula, o que 
demonstra o caráter puramente matemático dos 
átomos poliédricos. Esses mesmos poliedros não 
são materiais, nem no sentido da matéria prima 
aristotélica e nem no sentido da física clássica 
moderna, mas constituem de certa forma a matéria 
já formada dos quatro elementos. O fato de que 
se insiste precisamente no número das faoes elemen­
tares provém de que temos diante de nós um 
princípio pitagórico de consideração; êste tem sido 
levado adiante por Platão e pelos matemáticos 
de sua escola (sobretudo por Teeteto).
Um eminente físico teórico de nossos dias, W. 
Heisenberg, diz a respeito dos triângulos elemen­
tares de Platão: “Os triângulos não são matéria, 
mas são simples formas matemáticas . . . , e a ques­
tão do porquê dessas partículas elementares é 
reduzida por Platão à matemática. As partículas 
elementares têm a forma que lhes é atribuída por 
Platão porque tal é a forma mais bela e mais 
simples. A última causa dos fenômenos, portanto, 
não é a matéria, mas a lei matemática, a simetria, 
a fórmula mat.emática” (19). E Heisenberg explica 
por esta mesma tendência à simetria sua própria 
teoria sôbre as partículas elementares hoje conhe­
cidas, por mais que no decurso de mais de dois 
milênios se tenha modificado a posição da física. 
Com a descoberta, feita por Planck, dos quanta 
energéticos, de nôvo entrou na ciência natural a 
idéia platônica “ que na ba.no da estrutura aJômica 
da matéria está em última análise uma lei mate­
mática, uma simetria matemática”(20).
(19) N a conforènci» pronunciada em Berlim & 25-4-10.58: "A diweo- berta de Planclc e u h w i filosòfiefta da doutrina atôm ica", cm: Dia NaturwUnenuchaítcji 1968. fase. 10. pága. 237-234.
(20) Podc-M perguntar se os triângulo* elementar™ d« PlatXo sSo triànguloa m utcm íticos exatos, lato é, entidades "uicnía". Tal pergunta4 difícil de re aponde r a partir do texto do "Tim eu” . P or um lado a dou-
22
E dc fato, a equação fundamental da física das partículas elementares, proposta por Heisen- 
berg, se caracteriza pelo fato de utilizar-se de tôda 
uma série de relações simétricas. Ê verdade que 
não se trata aí da simetria simbólieo-espacial dos 
corpos platônicos, que se apóia sôbre o grupo 
abstrato das operações de reoobrimento que são 
possíveis sôbre aquêles corpos, pois o tempo desem­
penha agora um papel relevante. Entretanto, tam ­
bém as leis físicas invariantes para grupos dc trans­
formações de vários tipos “são no fundo nada mais 
que fórmulas matemáticas abstratas que se re­
ferem ao espaço e ao tempo”.
Apontamos neste contexto para os estudos de 
Andreas Speiser sôbre a análise matemática da 
simetria na ornamentação, na arquitetura e na 
música(21). Eis o que diz êste notável matemático e 
filósofo sôbre uma composição musical: “Assim 
como para a equação algébrica existe uma metafí­
sica, o grupo, cujo conhecimento encerra o cerne 
da equação, assim também para a obra de arte 
existe uma metafísica, isto é, um conteúdo simé-
trina doe elementos está em certa contradiçfco com os outro* temo» mato- máticos do diálogo e com a estru tu ra da “alma do raundo". Esta * um eaqueraa, ou um mod&o i material, e é aua cópia que constitui o cosmos visível com o equador celeste, a eclíptica e o curso doe planetas. A dis- tlnçAo entre alma do mundo e cosmos visível tom a possível explicar as diferença* entre oa movimentos observado® nos corpos celcstes e no es­quema ideal doa meamos. Mas 09 componentes últimos dos "elementos" s&o concebido», de forma mais pitagórica, como verdadeiras partícula* elementares invisíveis do* assim chamados “elementos’' visíveis: Í o e o , ar, água, terra . Pode ser que estilo subtraídos ao ôlHo humano tinicamente em ras&o de sua pequenes, enquanto que ura deus o« poderia ver. Por outro lado é duvidoso se se pode considerar como materiaà* os triângulos elementares incorpôreos; em tèrmos modernos: silo élcs "roaia" ou “ ideais" ? 
Neste ponto Aristóteles entrou com sua crític* (De eoelo III , 1). É ver­dade que Plat&o fala do “ reino eterno do espaço" (cK6ra: Tira. 52 ab), mas a questSo é se esta propriedade de "eternidade" deve snr entendida como relacionada com a exatidão matemáitca; esta questfio mcrecerla um estudo mais detalhado; fica-se em todo o coso com a impr©«fio qno Platão "pitagorisa" sobretudo em sua doutrina sôbre as partículas elemen­tares.
(21) A. S p tú tr, Theorie der Gruppen von endlicher Ordnung (3. ed. Berlim 1037); Id., Die mathematbche Denkweise (2. ed., Basiléia, 1945)# pág. 34. Vid. H. W*yl, Symmetrie (Dasiléia-ôtuttgart 1055).
23
trico, cujo conhecimento tom a possível a composi­
ção de muitas belas peças, sendo a descoberta de 
tal configuração a verdadeira invenção artística. 
Tarefa da ciência seria então o descobrimento da 
estrutura total dessas peças com todos os seus 
nexos m últiplos. . . Pode-se supor que existem 
composições, como as fugas de Bach, em que cada 
tom é determinado por nexos próprios, de modo 
que êste se tom a o único tom possível. Pode 
ser que a obra de arte se distinga por algumas 
propriedades mínimas: é a peça mais simples que 
é possível produzir dentro de um determinado 
complexo simétrico” .
Voltando a Heisenberg encontramos o seguinte: 
“ . . . Pela significação básica das propriedades 
simétricas, qualquer csbôço de teoria sôbre as 
partículaselementares recebe um caráter todo pe­
culiar de unidade. Encontram-se estruturas tão 
Intimamente ligadas e entrelaçadas entre si que é 
impossível introduzir qualquer mudança cm qual­
quer uma de suas partes sem pôr em perigo todo 
o conjunto. Lembramos neste contexto os orna­
mentos das mesquitas árabes em que não se pode 
modificar um mínimo detalhe sem estragar todo 
o conjunto” . . . Esta última sentença contém 
uma alusão evidente à análise dos ornamentos de 
Speiser que conta entre os mais ricos e complexos 
as janelas de algumas mesquitas árabes.
Tôdas essas considerações de Speiser e Heisenberg 
são no fundo pitagorismo. Pois a idéia básica dos 
pitagóricos era que a essência das coisas se reduz a 
“números”, — leis definíveis por meio de números 
— o que leva à afirmação de que a-s leis que regem 
as coisas coincidem com a simetria interna ou 
a “harmonia” das leis que presidem os números. 
Vemos assim que existe uma ponte que une entre 
si os pitagóricos e Platão com a pesquisa atual.
24
4. Opiniões de Platão, dos 'pitagóricos 
e de Aristóteles sôbre os números
Mas não se pode definir Platão simplesmente 
como pitagórico; sempre foi e permaneceu um 
filósofo critico. No “Timeu” freqüentemente repete 
que suas exposições constituem um “mythos” que 
não deve ser tomado como verdade pròpriamente 
dita; além disto, falou claramente sôbre o caráter 
“ideal” da verdadeira astronomia (no livro VII, 
do “Estado”). As posições e os movimentos obser­
váveis dos astros não correspondem ao “verda­
deiro” estado de coisas, já que fazem parte do 
que é “visível” (isto é, essencialmente imperfeito), 
O céu visível pode ser comparado com um modêlo 
geométrico no qual os conhecedores da geometria 
podem reconhecer uma obra de mestre, mas que 
êles certamente não porão na base de suas pes­
quisas sôbre a verdadeira essência do “igual” e 
do “duplo” .
Êste, para nós tão estranho, paralelo entre um 
modêlo artificial para o uso do ensino c os fenô­
menos observáveis da natureza, é também aceito 
sem dificuldade por Aristóteles (Met. B 2, 997b 34 
até 99Sa 0), ainda que se trate sômente de uma 
tese a ser considerada (no livro B da Metafísica). 
Aí se diz que a Astronomia não pode tra tar do 
grandezas observáveis pelos sentidos, nem sequer 
do céu que está imediatamente sôbre nós, pois 
as linhas de que fala o geômetra não são observá­
veis, e não se pode dizer que um anel material 
tangencia uma régua num único ponto (o que já 
fôra notado por Protátçoras) e os movimentos e 
as trajetórias espirais dos planetas no céu não são 
aquêlca que o astrônomo trata.
25
Estamos inclinados a rejeitar êsses paralelos se 
os modelos imaginados pelos homens, para o uso 
da demonstração, não correspondem a fenômenos 
objetivos da natureza. Devemos igualmente con­
ceder que a concepção platôncia (que tanta influ­
ência teve!) nâo favorecia o progresso da ciência 
exata.
Mas, pode-se ver na opinião de Platão um 
lado mais positivo quando se a considera como 
expressão do espirito critico de Platão. Conside­
rada dêste ponto de vista ela afirma claramente a 
pressuposição necessária do conceito de modêlo nas 
ciências matemáticas. Também nós falamos na 
física moderna de “modêlo” , empregando a mesma 
palavra já usada por Platão para os modelos geomé­
tricos. O físico moderno, partindo de determinado 
grupo de fenômenos constrói um “modêlo” , ela­
bora-o como que “in abstracto” e procura ver 
quais traços da realidade observada são nêle refle­
tidos, ou, como se dizia antigamente, até que ponto 
o modêlo 6 “verdadeiro”.
A posição de Aristóteles frente a êsse problema 
é, do ponto de vista moderno, notável por sua 
sobriedade. Os objetos matemáticos têm sua ori­
gem na “abstração” (aphaireMS). Aristóteles é 
aliás o primeiro a empregar tal têrmo. 0 matemá­
tico considera como separado o que na realidade 
não é separado, por exemplo, na bola de bronze, 
simplesmente a forma esférica; na régua sòmente 
a linha reta, no raio de luz ou de visão só a retili- 
neidade dêstes. 0 que não fica explicado nesta 
opinião é que a abstração só não basta para dar 
origem às imagens geométricas, pois (quase sem­
pre) se acrescenta uma certa idealização; uma 
roda não é exatamente circular, a régua de fato 
nâo é reta. Aristóteles sabe disto e alude ao mesmo 
fato. Mas o problema é por êle transferido para
26
o terreno lógico: sòmente para o geòmctra tem 
importância o fato que uma linha que no- desenho 
tem um pé de comprimento, na realidade não tem 
tal extensão; para o matemático isto não constitui êiTo. Também isto concorda em certo sentido com o tão freqüente ponto de vista “convencional” da 
ciência moderna. Mas é duvidoso que se possa ir 
tão longe na interpretação dos textos aristotélicos; 
pois em outras passagens o ponto de vista ontoló- 
gico é fortemente sublinhado.
Não é aqui o lugar de nos ocuparmos de discus­
sões históricas. O que acabamos de dizer só quer 
fazer ver como já na Antigüidade clássica o pro­
blema não era fácil, pois já aí se cruzam motivos 
que no decorrer dos séculos sempre de nôvo sur­
giram. Vê-se que o pensamento pitagórico não é 
aceito simplesmente, sem contudo deixar de sub­
sistir sob diferentes formas e variantes, e que até 
os nossos dias êle continua valendo como um dos 
ingredientes mais essenciais do pensamento mate­
mático.
27
CArÍTULO SEGUNDO
Ciência exata da natureza
1. O papel da astronomia
Freqüentemente se ouve a afirmação que a 
ciência exata da natureza é, senão uma conse­
qüência, pelo menos uma preparação e até um 
pressuposto da técnica. Afirma-se(l) que a ciência 
matemática recente é um produto do capitalismo 
incipiente; que ela é o produto de uma concepção 
do mundo segundo a qual o trabalho humano nos 
ofícios e na produção de bens se tornou o modêlo 
dos fenômenos naturais e determinou assim nosso 
conhecimento da natureza; na ciência está sempre 
presente a vontade de dominar e subjugar a natu­
reza. As fórmulas matemáticas da física teórica 
“dominam” um determinado ciclo de fenômenos, 
mas sem “entendê-los” , ou querer entendê-los. E 
quando Nietzsche afirma que em tôda a vontade 
de conhecer está incluída uma certa crueldade, e 
quando um neo-romântico moderno se queixa de 
que a técnica moderna “ rebaixou a grande mãe a es­
crava” , estamos na mesma linha de pensamento. 
O próprio Heidegger fala de um desafio mútuo, 
de uma “afirmação” recíproca da natureza e do 
homem, do ser e do homem, nesta nossa era atô-
(1) V;d. M as ScKtUr, "Erkenntniii und A rbeit" n» ob rt: Die Wímhm. (ormea und die GwolUcbaft (U>ip*i« 1926).
25
tica. Mais tarde voltaremos a esta linha do pensa­
mento moderno.
Mas perguntamos: tal concepção, que quase 
já se tornou lugar-comum, é verdadeira? Parece- 
nos bastar pronunciar a palavra “astronomia” para 
refutá-la. Porventura a astronomia nâo é uma 
ciência exata da natureza? Quando foi ela a pre­
paração para qualquer técnica? Com as estréias, 
até hoje, nâo se pôde fazer experiências; o máximo 
que se podo fazer é examinar sua irradiação. Fenô­
menos celestes podemos sòmente observar, mas 
não modificar. Galileu pôde fazer rolar suas bolas 
sôbre um plano inclinado, “com um pêso que êle 
mesmo escolheu” (como K ant diz tão plàstiea- 
mente), mas com os astros ninguém pode brincar.
Do ponto de vista histórico a astronomia é 
muito antiga. Como ciência exata, baseada em 
métodos matemáticos, existe desde o século vm 
antes de Cristo, desde os tempos babilônico-assi- 
ríacos. Desde a metade do século vm existem 
observações sistemáticas dos eclipses; a mais an­
tiga, citada por Cláudio Ptolomeu, teve lugar em 
746. O primeiro sistema exato do mundo, baseado 
em observações, é do grego Eudoxo (teoria das 
esferas homocêntricas); um outro, talvez também 
do século rv, é de Herakleides Pontikos(2). O 
mais tardar no século m são conhecidos epiciclos 
e excêntricos (Apolônio de Perge). No decurso do 
período hclenístico, tanto no mundo grego como 
neo-babilônico, se desenvolveu uma astronomia 
subtil baseada em observaçõese cálculos; os 
documentos dessa época nos foram conservados 
sobretudo nos escritos de Cláudio Ptolomeu para
(2) Conforme B. L . van d*r Wnerden Já ao acha oxpre*** no "Tim eu" um a teoria do* «piriclos p*ra Mercúrio e Venua (Di« Autronomie der Pytbasoreer, ia Verhandl. d. K . Nederl. Akad. y. Wctcn*ch. Afd. N atutirk.1. R . Deel X X Nr. 1 (Amaterdam, 1951) 8 . 45 ff.).
29
a parto grega, e em numerosos textos euneiformes, 
para a parte neo-babilônica. O que aí encontra­
mos é, sem dúvida alguma, ciência exata de alto 
quilate, baseada no pensamento matemático. O 
valor desta ciência pode ser demonstrado pelo fato 
que seu8 métodos e resultados foram aceitos por 
Copérnico sem restrições. É sòmente a “Astro­
nomia nova” de Kepler (1609) que produz uma 
reviravolta e traz novidades que mais tarde tor­
naria possível a mecânica celeste de Newton.
O próprio Kepler ainda adota dois métodos. 
Suas obras Mysterium cosmographicum e Hamwnice 
Mundi existem lado a lado com a “Astronomia 
nova” : de um lado pitagorismo, de outro obser­
vação cmpírico-cxata. E digno de nota que a 
terceira lei de Kepler (de significado secundário 
11a Harmonice Mundi) juntamente com a deter­
minação feita por Huygens da aceleração centrí­
fuga se tornou 0 ponto de partida para a lei de 
Newton sôbre a gravitação.(3) Huygens de sua 
parte se utiliza da analogia entre a aceleração 
centrífuga e a aceleração da queda como a calculara 
Galileu. Vê-se assim que na teoria newtoniana 
se ajuntam os pensamentos de Galileu e de Huygens 
com os de Kepler para a elaboração da teoria da 
mecânica celeste(4).
(3) Conformo a terceira lei do Kepler os cubos doa grandea eUoa daa trajetórias dos planeta* (aproximadamente os cuboa (r*] doe raios) afio proporcionais aos quadrados dos trmpos das cireunvoluções (T*). Conforme Hiiygnn* a a^elcraçfto centrifuga («) £ diretamente proporcional ao qua­drado da velocidade da circunvoluçl© (c*) « indiretamente proporcional ao raio (r); ora a velocidade citada é igual ao comprimento da circunfe­rência (2pir) dividida pelo tem po da circunvoluç&o f ; ent&o. a acele­ração centrífuga a 6 proporcional a c«/r ou (rtyTtyr ou r{T1 e, en tio . como T* é proporcional a r», conclui-ee que está na proporção r/r* ou l/r*. O ceme da lei da gravitayfio de Newton é. no fundo, igual, no que concerne à cine- mática.
(4) Deve-ae aereaeentar ainda que Newton ampliou a teoria de Huygens eatenlen to-a do movimento circular para o movimento elíptico com acele raçio dirigida para um doa focos íromo exigem a primeira e a segunda lei de Kepler) e assim aplicou rigorosamente aa leis kephrianaa e solu­cionou o assim chamado "problema doe dota corpo*"*
30
Nesta confluência de duas correntes de pensa­
mento, das quais uma trata da mecânica terrestre 
e a outra das leis dos movimentos dos planetas 
no céu, se operou algo de nôvo: a assimilação 
das leis dos movimentos terrestres c celestes; lan­
çou-se assim uma ponte por sôbre o abismo exis­
tente entre a terra e o céu, cavado pela tradição 
clássica antico-medieval, em oposição ao atomismo 
democrítico-epicureu, difamado como suspeito. Em 
princípio, a mecânica dos corpos sòmente observá­
veis e não influenciáveis é a mesma que a dos 
corpos terrestres que podemos tocar. Também na 
esfera terrestre existem leis não menos exatas do 
que no céu. Com isto se inicia a ciência matemá­
tica clássica do Ocidente. É verdade que hoje 
em dia esta unidade das leis naturais para tôdas 
as esferas foi de algum modo abalada, já que para 
corpos muito grandes (no caso, as estréias) as leis 
exatas conservam seu valor, enquanto que para 
as partículas muito pequenas só existem leis esta­
tísticas (teoria dos quanta). Contudo a passagem 
da física clássica de Newton para a física mo­
derna (que se efetivou ai por 1900), não é, apesar 
de tudo o que se diz cm contrário, um passo maior 
na direção de um outro modo de pensar do que 
a descoberta da mecânica celeste no século xvn 
(elaborada por Newton já em 1666, mas publi­
cada sòmente em 16S7).
2. A “experiência analítica” na Antigüidade 
e na Idade Moderna
A questão por que a Antigüidade não conseguiu 
produzir uma ciência exata da natureza, no sen­
tido próprio desta palavra, não pode ser respon­
dida em poucas palavras. Alguma luz, embora
31
bastante unilateral, é atirada sôbre a questão 
quando se compreende que a ciência antiga não 
conhecia a “experiência analítica”.
Não há dúvida que os gregos eram finos obser­
vadores e pensadores penetrantes, mas tinham um 
pavor instintivo de analisar artificialmente, por 
manipulações apropriadas, qualquer fenômeno e 
assim destruí-lo em sua integridade. O que se 
podia observar diretamente na natureza e aquilo 
que resultava de atividades práticas pré-científicas 
na guerra e na paz (técnica manual e técnica 
guerreira), era considerado como objeto de ciência 
"livre”. Mas quase ninguém construía aparelhos 
para fins ünicamente de pesquisa.
Típica, para uma assim chamada “experiência” 
na antigüidade helênica, é a descrição que Empé- 
docles (B 100, 8-21) nos oferece de uma criada 
que brinca com um elevador dc água (klepshydra, 
literalmente: “ladrão de água”). A clepsidra é 
um antigo aparelho doméstico (conservam-se alguns 
exemplares), uma espécie de pipeta que servia para 
tirar água dos enormes cântaros que não se podiam 
fàcilmente levantai- ou inclinar. A “experiência” 
descrita no jôgo da criada serve como modêlo 
(que na poesia de Empédocles toma a forma de 
uma parábola homériea) de um processo fisioló­
gico. Mas se tra ta da observação de uma inocente 
brincadeira de criada e não de uma experiência 
com fins científicos.
Algo semelhante encontramos freqüentemente 
entre os pré-socráticos. As homoiomerias dc Anaxá- 
goras, por exemplo, são explicadas pela mistura 
(manual) de côres (Anaxágoras B 10 [p. I I 37, 
7-10], B 21 [p. II 43, 8-12 Diel-Kranz]; sôbre 
a clepsidra: A 69). Igualmente as experiências 
acústicas, parcialmente verdadeiras, parcialmente 
pretensas, dos antigos pitagóricos pertencem a êste
gênero de experiências, como a de Hipaso (12.13) 
com discos de diferente grossura e com recipientes 
mais ou menos cheios de água. Sòmentc em época 
mais recente se praticam ocasionalmente experi­
ências sistemáticas, por exemplo, no terreno da 
ótica: Cláudio Ptolomeu pesquisa a visâo binocular 
e a refração da luz. Mas mesmo aí o fenômeno 
natural nunca é decomposto em seus componentes, 
como seja, a luz branca através de um prisma em 
seus componentes coloridos.
Ainda mais importante é o fato que a decom­
posição e a composição das fôrças mediante o tão 
conhecido paralelogramo de fôrças é inteiramente 
desconhecido na Antigüidade; parece que sômente 
pelo fim do século xvi foi utilizado por Stevin 
para explicar o equilíbrio no plano inclinado. Os 
gregos não foram capazes de calcular êsse equilíbrio 
(vide uma tentativa falha em Pappus, Coll. math. 
vm , 8-9); conseguiu-o, é verdade, no início do 
século xvi um discípulo de Jordanus Nemorarius, 
mas sômente pela aplicação do princípio dos deslo­
camentos virtuais, e não pela decomposição dos 
componentes. No decurso do século xvn o prin­
cípio do paralelogramo é extensamente aplicado 
aos mais variados problemas e a dinâmica newto- 
niana seria ininteligível sem êle.
Não entraremos agora nas particularidades his­
tóricas ou nos diferentes experimentos e suas expli­
cações, mas insistimos no princípio fundamental 
da análise dos fenômenos naturais e na decompo­
sição dêstes cm seus elementos para depois nova­
mente reuni-los, geralmente (embora não sempre) 
pela simples superposição dos componentes. O 
princípio da análise dos elementos foi formulado 
por Descartes em suas ‘‘Regulae ad directioncm 
ingenii” (1G29). Está em estreita relação com a 
“Mathesis universalis” que se servo da “Álgebra
33
speciosa” (cálculo por meio dc letras, descoberta 
por Viète e melhorada pelo mesmo Descartes) e 
que pode ser aplicada a tôda espécie dc números e 
grandezas; está além disto em relação com oideal 
cartesiano da matematicização da física, segundo 
a qual tudo se consegue pela elaboração de axiomas 
e pelo cálculo algébrico. A matemática de Descartes 
é assim um modôlo metódico. Na realidade per­
tence à essência mesma da matemática ser fácil e 
até trivial em todos os seus passos, pela conexão 
gradual de figuras sempre mais complexas e argu­
mentos sempre maiB intrincados que são difíceis de 
seguir e compreender. Contudo seu caráter cientí­
fico provém precisamente desta complexidade estru­
tural.
Portanto, um traço característico e fundamental 
da ciência natural exata, a partir do século xvn, 
é que ela decompõe em seus elementos, muitas 
vêzes invisíveis, os fenômenos pré-científicos e coti­
dianos, para depois novamente reuni-los; por aí 
se exerce igual mente uma crítica sôbre a observa­
ção ingênua dos sentidos. Pense-se, por exemplo, 
na ingênua concepção de Aristóteles, e de outros, 
que velocidade e fôrça motora são proporcionais 
entre si; a doutrina da física clássica moderna, 
ao contrário, ensina a proporcionalidade da fôrça 
e da aceleração. O caráter matemático da física 
moderna repousa precisamente sôbre êssc traço 
construtivo, próprio da ciência exata moderna.
Da tendência moderna para a análise segue, 
antes dc mais nada, a construção de aparelhos e 
seu uso para observações sempre mais exatas. Tal 
tendência existia na antigüidade sòmente no campo 
da astronomia (que necessitava de medições exatas 
de ângulos) e de algum modo no da geodésia (os 
“Dioplra” de Herãó), Ao contrário, os aparelhos 
“pneumáticos” de IJeron nada mais são que brin­
quedos geniais, "coisas admiráveis que se movem 
por si mesmas” (Aristóteles, Met. A 2, Pág. 983a, 
14), que serviam para divertir o público e nâo 
para pesquisas. O homem antigo encontrava os 
“ m odelos” dos fenômenos naturais na própria natu­
reza ou na ocupação manual e não os empregava 
para fins científicos (excetuados mais uma vez os 
modelos astronômicos, as “esferas”).
A construção de aparelhos científicos para uso 
da pesquisa surge quase repentinamente no século 
xvii; pense-se no telescópio, no microscópio, no 
relógio de pêndulo, no vácuo de Torricelli e na 
bomba de ar com que Otto v. Guericke conseguiu 
tantos efeitos dinâmicos. Mas experiências exatas, 
levadas de forma realmente científica, não eram 
ainda freqüentes; Blaise Pascal constitui uma 
honrosa exceção.
O esfórço para ser exato pressupõe um grande 
interesse por constatações numéricas exatas, o 
que leva a pesquisa numa direção inteiramente 
nova. Parece-nos hoje evidente que "o livro da 
natureza está escrito em linguagem matemática” 
(Galileu). Naquele tempo isto era novidade e con­
trário à tradição antico-medieval, excetuada sempre 
a astronomia; esta, contudo, com rIVcho Brahe 
muito ganhou em exatidão nas suas observações 
(de 10 minutos para 1 minuto e até menos!).
Não é por acaso que o mesmo Galileu, para 
quem a natureza fala a linguagem da matemática, 
aprova o método risolutivo e compostlivo, da mesma 
forma como Descartes, Isto significa: a maneira 
de pensar matemática em certo sentido nada mais 
é que o método analítico, tanto que o têrmo “Ana- 
lysis' tem uma justificativa quando aplicado à 
alta matemática que surgiu no século xvii.
Este fato não é diminuído por êsse outro, que 
no decurso do século xvm se descobriram processos
35
matemáticos que permitem estabelecer leis de ca­
ráter integral e aparentemente teleológico, os cha­
mados “princípios extremais” (leis integrais). T ra­
ta-se do cálculo das variações, concretamente do 
problema da curva do percurso no menor tempo 
(“ braquistocrona”, de que se ocuparam Leibniz 
e Jakob e Johann Bernoulli); do princípio do 
caminho mais curto para a luz (Fermat) e dos 
resultados mínimos (Leibniz e Maupertius). Para 
Leibniz êsses princípios maximais e minimais têm 
uma significação básica, filosófico-teológica: Deus, 
que criou o melhor de todos os mundos possíveis, 
produz o máximo com os menores meios, solve 
todos os problemas da maneira mais econômica, 
como Arquiteto perfeito do universo. Mas, mais 
tarde se descobriu que a todos êsses princípios 
extremais correspondem sistemas de equações dife­
renciais (as assim chamadas “equações de La- 
grange”) e que não têm caráter integral ou teleoló- 
gieo. Esses integrais principais extremais geral­
mente possuem duas soluções e têm resultados 
máximos e mínimos e constituem assim as soluções 
“melhores” c “piores” . Apesar disto é digno de 
nota, do ponto de vista da história da filosofia, 
que Leibniz tenha tentado conciliar a tradição 
filosófico-teológica da Idade-Média com a ciência 
exata da Idade Moderna.
De tudo isto resulta que a experiência analítica 
e a análise matemática estão cm íntima relação 
entre si e expressa-se pelo fato de cm ambas se tra ­
duzir a tendência construtiva da ciência moderna.
3. 11 Forçar" a natureza?
Talvez seja o processo analítico da ciência mate­
mática recente que inspirou a idéia do “força- 
mento” (ou violação) da natureza pelo homem
36
por meio do método científico, idéia que é uma conseqüência necessária, senão um pressuposto, 
da moderna técnica. M. Hcidegger exprimiu elo­
qüentemente isto ao afirmar que a natureza e o homem mütuamente se “afirmam” (“Ge-stell”), o 
que entretanto não é entendido como cegueira ou 
“hybris” do homem, com suas conseqüências trá­
gicas, mas como o “destino do ser” (“Seins-Ge- 
schick”) do nossa época(5).
O limite onde começa êsse “forçar” da natureza 
não é fácil de determinar. Heidegger, por exemplo, 
ainda não considera como forçamento o aproveita­
mento da fôrça do vento pelas velas ou pelos 
moinhos dc vento nem o aproveitamento do solo 
11a agricultura tradicional; mas considera força­
mento da natureza a máquina a vapor, a eletrici­
dade e o adubamento químico, que supõe uma 
técnica química muito desenvolvida. Mas pode- 
se perguntar: qual é o princípio da distinção?
No século xvn Luis XIV fêz construir as obras 
hidráulicas de Marly 110 Sena, as quais por meio 
de bombas acionadas por rodas hidráulicas eleva­
vam a água para as margens do rio a uma altura 
que lhes permitia alimentar os chafarizes do parque 
de Versailles. Esta obra tão admirada em seu 
tempo, extensa e cara, pode ser considerada um 
forçamento da natureza ? A eficiência desta enorme 
obra era extraordinàriamente baixa; fizeram-se os 
cálculos que o produto de tôda essa imensa maqui­
naria poderia hoje em dia ser alcançado pelo motor 
de um carro médio. Pode-se dizer que as má­
quinas dc Marly constituíam um forçamento muito 
débil da natureza, apesar de seu tamanho. Mas
(6) Vid. Àí. Bddfoffffgr, “Vortnegt) und AufHtuttxa'' (Píulliji£en l&M), pág. 118 mb. C'Di« Frage nach der Tbohaik" (19.53). pág. 163 a». ("Dm Diog (1950); "Iden tltâ t und Differeoi” (Píuilimcm 1957), pá*. 25 w.
37
qualquer aparellio produzido pela técnica perfeita 
de nossos dias, como seja um avião a jato, um 
foguete espacial que coloca um satélite em órbita 
ao redor da terra, ou uma máquina de calcular 
eletrônica (da qual algumas pessoas chegam a 
afirmar que é capaz de pensar por si), tem um 
efeito bem mais conRpícuo e de fato "força” a 
natureza. Existem pessoas que julgam que o ta ­
lento e o esfôrço que o inventor tem de gastar 
na construção de um dêsses aparelhos diabólicos 
exercerá algum dia qualquer ação nefasta sôbre a 
humanidade! Ainda que se não tenha em vista 
o uso e o abuso militar dessas descobertas, as 
reações sociológicas que inevitàvelmcnte suscita a 
tócnica sempre mais desenvolvida das máquinas 
são de temer, e sem sombra de dúvida já se fize­
ram sentir. Os homens perdem aos poucos a liber­
dade que no decurso da história tão denodada- 
mente conquistaram para serem absorvidos inexora­
velmente pelo coletivismo, como uma “engrena­
gem” na monstruosa máquina socialista.
Pode-se acrescentar que não havia outra es­
colha. O enorme aumento da população na Eu­
ropa no decurso do século x ix obrigou a uma 
evolução técnica em etapas forçadas, o que teria 
sido evitadoapenas se ela se trvesse conformado a 
descer até o nível de vida das populações asiáticas, 
realmente insuportável. Mas com Heidegger se 
pode responder que é precisamente nisto que reside 
a necessidade inelutável (o “destino do ser”) do 
homem ocidental.
Quando se pergunta como e porquê se chegou a 
êsse estado de coisas, será necessário chamar a 
atenção para o papel desempenhado pelo pensa­
mento matemático. É êle que torna possível a 
pesquisa analítica dos fenômenos naturais, sua 
decomposição em processos simples e controláveis
38
em mias causas, e assim a construçfio de aparelhos 
técnicamente mais perfeitos do que era capaz de 
produzir a cultura antiga que “nascia” da natu­
reza. Foi preciso antes de tudo destruir e decompor 
os conjuntos naturais para conseguir que as fôrças 
da natureza agissem segundo a vontade do homem.
Em segundo lugar o pensamento matemático 
não é sòmente analítico, mas também construtivo, 
e construtivo de forma inteiramente conseqüente. 
Seu método fundamental, o cálculo, é um processo 
segundo regras bem determinadas que não per­
mitem exceção, um processo de conseqüências inelu­
táveis; depois que se escolhem livremente as regras 
de um cálculo estamos restritos a elas de modo 
absoluto. “ Na primeira escolha somos livre», na 
segunda escravos”. Um ta l processo leva sempre 
mais longe, para novas construções c argumentos.
Em terceiro lugar está ainda a idéia dos extre­
mais. Alcançar o máximo com o mínimo dc meios, 
tal era já para Leibniz a lei da ação não só dos 
homens, mas também de Deus. Dêste princípio 
resulta a tendência para um sempre maior aper­
feiçoamento dos aparelhos técnicos. Um conhecido 
provérbio diz: “O ótimo é inimigo do bom”. Uma 
tal tendência não é tão natural como hoje em dia 
nos poderia parecer. A Antigüidade, por exemplo, 
era muito conservadora nas coisas técnicas; e 
melhoramentos técnicos de grande estilo, como 
seja no tráfego, tais como a estrada de ferro e o 
avião consigo trouxeram, dificilmente são encon- 
tráveis. Na técnica guerreira algumas vêzes apa­
reciam novidades, como os elefantes de guerra, 
mas nunca se chegou a mudanças tão radicais 
como a descoberta da pólvora no fim da Idade- Média.
A irrupção de tantas novidades no século xv n 
ê algo de notável. Nâo é preciso peusar no “apri-
39
sionamcnto” de grandes fôrças naturais nas má­
quinas, que então nem sequer tinham sido cons­
truídas com êxito (embora o plano de Hrygcns 
de uma máquina a pólvora pode ser considerado 
prcdeccssor dos motores a explosão), mas cm 
descobertas tão simples como o telescópio c o 
microscópio. A simples justaposição de lentes, 
conhecidas há tanto tempo (vidros de aumento já 
havia na Antigüidade e óculos já sc usavam no 
século xv), abriu mundos novos, macrocosmos e 
microcosmos inteiramente desconhecidos até en­
tão. (O telescópio foi descoberto por práticos ho­
landeses desconhecidos; Galileu imediatamente os 
usou para fins astronômicos e Kepler formulou a 
teoria que os rege, ainda que não tivesse desco­
berto a lei dos senos, mas sòmente uma aproxi­
mação da mesma para o cálculo dos ângulos muito 
pequenos).
De nôvo perguntamos: O telescópio e o micros­
cópio representam um “forçamento” da natureza, 
enquanto que a lupa e os óculos não o são ainda ? 
Ou o limite é ultrapassado sòmente pelo telescópio 
gigante de Monte Palomar, ou talvez já pelo 
grande instrumento de F. W. Herschel?
Está-se tentado a ver o critério do “forçamento” 
da natureza no fato de que novos instrumentos 
abrem um mundo inteiramente nôvo; assim pelo 
telescópio de Galileu ficaram visíveis as luas de 
Júpiter, de cuja existência antes ninguém jamais 
sonhara. Não entraria nesta classe, contudo, o teles­
cópio náutico que não trouxe consigo uma revira­
volta na navegação marítima; como tal deveria 
ser considerado o cronômetro náutico que se desen­
volveu a partir dos relógios construídos por Huy- 
gens.
Voltando para o terreno das máquinas, vemos 
que o uso das primeiras máquinas a vapor para
40
tirar a água das minas da Inglaterra não foi um
fato decisivo; elas simplesmente substituíram os 
homens e os animais em seu trabalho. Mas já 
as primeiras locomotivas a vapor trouxeram con­
sigo uma verdadeira revolução nos transportes e 
na velocidade das viagens, que só se pode com­
parar com a introdução do avião intercontinental 
de nossos dias. Igualmente a descoberta do navio 
a vapor possibilitou a renovação de tôda a técnica 
naval. Estas duas invenções transformaram costu­
mes e hábitos milenares que se criam imutáveis.
Nestes exemplos vemos claramente o quo Hei- 
degger chama de forçamento recíproco (o “afir- 
mar-sc”) do homem e da natureza. O homem 
arrancou da natureza mistérios de cuja existência 
nem se suspeitava e libertou suas fôrças secretas 
(pensemos na eletricidade e na energia atômica!), 
as quais por sua vez reagem sôbre o homem, seus 
hábitos e sua posição na sociedade; e isto de ma­
neira irresistível. Não no sentido que a natureza 
Be vingaria do homem, mas que aqui se nos revela 
uma influência necessária de uma sôbre o outro.
Não se pode negar que em tudo isto o pensa­
mento matemático teve uma participação decisiva.
Sòmente êle torna possível o "forçamento”, e 
isto de maneira paradoxal, pela renúncia, como 
agora queremos explicar.
4. “Naturam renuntiando vincimus”
Foi Francis Bacon que forjou o aforisma: Na- 
tura non nisi parendo vincitur; uma variante en­
contramos neste outro princípio: Naturam renun­
tiando vincimus: pela renúncia vencemos a natu­
reza. Por mais paradoxal que isto pareça, o processo 
para arrancar à natureza seus mistérios e pôr suas
41
fôrça3 a nosso serviço é renunciar ao conheci­
mento de sua “essência” . Esta idéia já se encontra 
em Galileu. Tendo trabalhado a princípio em Pisa 
como discípulo dos terministas parisienses (esco- 
lásticos do século xiv, dentre os quais os mais 
conhecidos sâo Buridano e Oresme), em Pádua (a 
partir de 1592) se afastou desta tradição medieval, 
renunciando a investigar as causas do movimento 
da queda e do tiro, para se limitar inteiramente 
ao decurso dêsses fenômenos. Embora tal renúncia 
fôsse em sua mente só provisória, trata-se contudo 
de um acontecimento de grande significação. Pois 
êste método paradoxal de penetrar nos segredos 
da natureza mais e mais porfundamento, renun­
ciando a responder às questões que sempre tinham 
sido propostas (pense-se nas numerosas “causas” 
de Aristóteles), sempre de nôvo se mostrou fru- 
tuoso. Uma tal atitude favoreceu o conhecimento 
teórico e não só a prática. É isto que é notável, 
mas fàcilmente compreensível se se olhar de mais 
perto.
Aqui está o ponto em que a maneira especifica­
mente matemática de pensar desempenhou seu 
papel. A “renúncia” tem por conseqüência uma 
limitação de respostas possíveis sôbre a natureza. 
Em muitos casos esta limitação, a impossibilidade 
de dar diversas respostas, se deixa precisar matemà- 
ticamente. Resulta daí que as possibilidades estru­
turais do formular matemàticamente as leis da 
natureza são igualmente limitadas. A fórmula é 
sempre determinada c em casos extremos absoluta­
mente imutável. Não 6 como se sòmente o pro­
cesso, e não a causa, de um fenômeno fôsse repre- 
sentável pelos meios matemáticos, mas que outros 
conhecimentos a que se renunciou podem ser 
conhecidos positivamente por métodos matemá­
ticos.
42
Êste fato aparecerá de forma particularmente 
clara quando se tomam em consideração as dife­
rentes “teorias da relatividade” que no decurso 
da longa história da física viram a luz do mundo. 
Estas teorias sempre afirmam que certas coisas 
não podem ser concebidas de maneira “absoluta” 
c que sôbre elas nada se pode em princípio afirmar 
de absoluto. Daí se segue que as leis fundamentais 
da natureza devem ser invariantes relativamente 
a determinado grupo de transformações. E isto 
significa que deve haver simetrias correspondentes 
na estrutura das leis naturais e nas fórmulas mate­
máticas que as exprimem. E isto de nôvo nos 
leva ao pontode partida de nossas considerações 
que expuseram a tese básica dos pitagóricos.
Tal modo de pensar já se encontra no exemplo 
mais antigo que temos de raciocínio matemático, 
isto ê, na relativizaçâo dos conceitos “em cima” e 
“em baixo”, de Anaximandro. Como já vimos, 
segundo êle a terra paira no centro do muudo e 
“em cima” significa o que se afasta “da terra” 
e “em baixo”, o que se aproxima da terra em 
direção radial. Esta afirmação vale ainda hoje e 
permanece imutável quando se representa a terra 
como girando em redor de um eixo que passa pelo 
seu centro.
Esta concepção nos é hoje em dia tão evidente 
que raras vêzes refletimos no fato que ela não é 
clara assim. Na Antigüidade pensadores como 
Demócrito e Epicuro não partilharam desta opinião 
mas falaram de uma “queda” de átomos no sen­
tido absoluto, e durante a Renascença os antípodas 
pertenciam ao reino da fantasia e eram represen­
tados como sêres fantásticos agarrados na beirada 
do mundo, como cefalópodos e semelhantes.
Anaximandro, portanto, elaborou uma “teoria 
da relatividade” para os conceitos “em cima —
em baixo” e lhes deu uma definição invariável 
relativamente às rotações da terra (onde o centro 
fica firme). Ao mesmo tempo todo o mundo, consi­
derado da terra, recebe uma estrutura radial- 
8imétrica.
Outro exemplo temos na relatividade do lugar 
e do movimento no espaço. Não nos é possível 
entrar nos pormenores desta questão que já existia 
na Antigüidade (sobretudo nas teorias do eleata 
Zenão). Chamamos a atenção sòmente para o 
assim chamado princípio de relatividade de Galileu 
(embora nâo fôsse ainda plenamente formulado 
por Galileu, e mais tarde fôsse usado por Huygens 
na dedução que daí fêz de suas leis sôbre o choque), 
a célebre discussão entre Leibniz e Clarke (que 
defendia a Newton) e as discussões posteriores 
entre Euler e Kant.
Na polêmica entre Leibniz e Clarke não se 
tra ta da invariança das leis mecânicas no movi­
mento retilíneo uniforme de todo o sistema em 
consideração, pois sôbre êste ponto todos estavam 
concordes; mas, entre outras, da questão, que 
hoje nos parece um pouco grotesca, se Deus poderia 
ter colocado o mundo real em outro lugar do espaço 
absoluto c vazio ou se ainda agora pode mudar 
o lugar do universo. Leibniz declarava a questão 
tôda como absurda; não tem sentido falar de um 
lugar absoluto do mundo no espaço vazio. Clarke 
(e Newton) é de opinião inteiramente contrária.
Constatamos que a posição do Leibniz encerra 
uma teoria da relatividade do lugar; todos os 
lugares no espaço vazio eão iguais e impossíveis 
de distinguir, e portanto as leis da natureza são 
invariáveis com a mudança de lugar, o qual deve 
ser entendido não como um movimento concreto 
no tempo, mas como uma mudança de posição 
abstratamente concebida.
44
Quanto à relatividade do próprio movimento, 
o problema foi muito discutido cm nossos dias e 
pode ser suposto como conhecido. As leis mecâ­
nicas de Newton são invariáveis no movimento 
uniforme retilíneo, mas não nas rotações por causa 
do aparecimento da fôrça centrífuga. Contudo a 
rotação “absoluta” no espaço vazio não se pode 
representar concretamont-e. A dificuldade que daí 
surge já foi discutida 110 século xvxi (por Huygens 
e Leibniz) 0 depois no século xvm (por Euler e 
Kant) e no século xtx (por Mach e Andrade) sem 
que se tenha chegado a uma resposta satisfatória. 
Einstein em sua “teoria da relatividade geral” 
no século x x tratou do problema de maneira ra­
dical e formulou matemàticamente as leis invari- 
antes da natureza que lhe dizem respeito. Mas 
esta teoria tão ampla não está ainda inteiramente 
esclarecida.
Com isto não chegamos ainda ao fim da evolu­
ção. Na física atômica apareceram novos limites 
110 conhecimento da natureza, os quais não podem 
ser interpretados simplesmente pelas teorias da 
relatividade. As assim chamadas relações de inde- 
terminaçâo de Heisenberg excluem a possibilidade 
de determinar ao mesmo tempo e exatamente lugar 
e velocidade (0 impulso) de uma partícula elemen­
tar. A dupla concepção de tal “partícula” como 
corpúsculo e onda é a conseqüência necessária. 
Também estas relações de inexatidão impõem às 
leis fundamentais da natureza limitações que levam 
a condições de simetria nas equações diferenciais que as exprimem.
Outra coisa ainda se acrescentou nos tempos 
recentes: referimo-nos à existência de um “com­
primento mínimo” (a partir de 10~13 cm), abaixo 
do qual não mais é possível a medição, de modo 
quo estruturas de dimensões menores de certa
45
forma não podem mais ser consideradas como exis­
tentes do ponto de vista físico(6). Esta limitação 
de conhecimento leva igualmente a uma “relação 
de simetria” nas derradeiras equações básicas. 
(Comparar com o que dissemos no cap. primeiro 
sôbre a “Fórmula do mundo” de Heisenberg-Pauli).
Não é aqui o lugar de apreciar criticamente 
tôdas essas teorias. O que mais tarde de tôdas 
elas ainda subsistir como integrado na história da 
ciência e o que será superado por novas teorias 
no futuro, não sabemos ainda. Mas queremos 
apontar aqui para um traço que lhes é comum e 
que é muito significativo: tôda negação de certo 
conhecimento traz consigo a conseqüência de impor 
às leis matemáticas fundamentais da natureza rela­
ções de simetria, explicando-as desta forma sempre 
mais plenamente. Isto significa que a tão freqüen­
temente afirmada contingência das leis da natureza 
cede lugar a uma espécie de necessidade, que se 
poderia chamar de necessidade pitagórico. O mundo 
se parece assim, não com uma “flor”, como se 
diz nos belos versos de Platen sôbre a visão do 
mundo de Schelling(7), mas com um cristal.
Com isto já tocamos num outro problema, o 
da realidade.
5. O problema da realidade na Jísica clássica
Não nos incumbe entrar aqui nos pormenores 
do problema da “ realidade” em tôda a sua ampli-
(d) Podcr-so-ia apontar neste contexto para a assim chamada “idade do mundo" (que segundo alguns st*ria d*4 -5 bilhões de anoa, ou do 8 bilWVes segundo outros). Antes dôstç tempo, conforme alguns ífaicoa, nâo *6 nâo havia mundo nem açontopimçntcw, ma» nem aequer tempo; seguindo a Agostinho (que dependia do “T im eu" de Platão) afirmam que o tem po foi criado juntam ente com o mundo.(7) Em um soneto dedicado a &nhclling dia o autor:
" IF é iw tw r *er8Ít4*cfc<«íí nur die W eli empjangen,S téh il du 4ie ganx, vrie von dem Bcrgea Spilze;
W uê w ir zcrpjlueckt m il un term armen W itu ,
Da* i*t a fs Blum c por d ir awJotffanffirí’.
4(i
dão. Não podemos expor em tôda a sua extensão 
a velha controvérsia entre realismo e idealismo, já 
que hoje em dia esta questão parece estar de pre­
ferência restringida à questão da "existência inde­
pendente” de outros homens ("outros eus”). Para 
nós êste problema é de importância só enquanto 
tem conseqüências para a ciência da natureza. 
Não tomaremos, portanto, nosso ponto de partida 
da problemática “filosófica” , mas daquela que re­
sulta de tôda a evolução da física (no sentido mais 
amplo).
Como vimos, a ciência exata da natureza se 
originou de diferentes fontes. A astronomia, pri­
meira ciência exata, desde o comêço se ocupou de 
objetos — os astros — que não fazem parte do 
ambiente imediato do homem, que portanto não 
possuem um caráter real tão imediato como as 
coisas com que lidamos todos os dias. Não pode­
mos tratá-los como tratam os uma mesa ou uma 
cadeira, chapéu, manto, arado, barco, espada e 
escudo. A grandeza e a distância dos corpos ce­
lestes só dificilmente pode ser comparada com a 
grandeza e as medidas de nosso próprio corpo e 
com as distâncias que nos são familiares.
Em poucas palavras: os objetos que constituem 
o campo de pesquisa da astronomia (sol, lua, es­
tréias) são puros fenômenos e como tais estão ao 
nosso alcance, mas não podemos vê-los e tocá-los 
com as mãos. As coisas que nos cercam e com 
que lidamos todos os dias, que estão ou que podem 
estar ao alcance de nossas mãos, que estão “pre­
sentes”, estão aí como sendo nossas, ou ao menos 
comoatingíveis.
Só muito mais tarde e com muito maiores difi­
culdades a ciência exata começou a se ocupar das 
coisas que nos estão próximas. A Antigüidade 
clássica conseguiu alguns resultados sòmente no
terreno da física estática e um pouco no da ótica 
e acústica (neste sòmente na doutrina sôbre a har­
monia musical). A “física” de Aristóteles era pouco 
inclinada a pesquisas quantitativas exatas; a cate­
goria da quantidade aí aparecia ao lado de outras 
categorias, (como substância, qualidade, relação), 
ocupando um lugar bem modesto. No mundo que 
estava abaixo da esfera da lua, as leis da natureza 
não tinham valor exato e preciso, mas eram tão 
sòmente regras estatísticas, dificilmente determi- 
náveis, “assim como as coisas freqüentemente, ou 
em geral, são” . Sòmente no século xvn com a 
mecânica de Newton, que tanto vale para os pro­
cessos terrestres como para os celestes, a física se 
tornou uma ciência universal; sòmente então o 
pensamento matemático perpassa todo o mundo e 
o faz objeto da pesquisa exata.
Quanto à teoria do conhecimento, na Antigüi­
dade nunca se chegou a formular uma teoria idea­
lista no sentido moderno da palavra. Nem a 
explicação dos eleatas nem a de Platão sôbre as 
coisas sensíveis como sendo meros fenômenos, que 
nâo existem no sentido próprio, nem o ceticismo 
dos tempos hclenísticos, podem ser interpretados 
como sendo idealismo. Descartes foi o primeiro 
que começou a raciocinar de um ponto de vista 
subjetivista, com sua célebre meditação sôbre a 
dúvida metódica; mas acabou por decidir-se pelo 
realismo. Berkeley é o primeiro idealista genuíno 
com o seu ‘‘esse est percipi”; sua atitude diante 
da ciência exata de seu tempo é só parcialmente 
negativa. Em seu escrito “De motu” êlo critica a 
doutrina de Newton sôbre o espaço absoluto do 
ponto de vista empirista e no “The Analyst” 
critica violentamente o cálculo do fluxo.
Voltemos à ciência exata e perguntemo-nos sôbre 
o conceito de realidade que está na sua base.
48
Como acabamos dc ver, na Antigüidade jus­
tamente os objetos “ terrenos”, tão acessíveis aos 
homens e de cuja realidade nem a filosofia peri- 
patética, nem a cstóica ou a epicúrica jamais du­
vidaram, estavam subtraídos à pesquisa exata. 
(Por esta razão algumas opiniões éticas da Anti­
güidade não têm importância para a nossa ques­
tão). O terreno da astronomia, o único a que se 
aplicava a ciência matemática exata, é, ao con­
trário, problemático quanto à espécie de reali­
dade que se lhe deve atribuir. Para Platão e 
Aristóteles os astros são uma espécie de sêres di­
vinos cuja “matória” é distinta da dêste mundo. 
Havia também outras opiniões como as de Anaxá- 
goras, Demócrito e Epicuro; mas estas não podiam 
ser formuladas de maneira satisfatória do ponto 
de vista da matemática e por isto não constituíam 
sérias teorias concorrentes(8).
A realidade própria dos astros era, portanto 
duvidosa. Isto teve como conseqüência que na 
astronomia antiga e medieval se formaram duas 
tendências: uma, puramente matemática (melhor: 
cinemática), que se limitava a analisar os com­
plexos movimentos dos planetas no céu, compostos 
de movimentos circulares uniformes (anàlogamente 
ao desenvolvimento de uma função em série trigo-
(8) B. L . wan der Warrdtn expG» longamente por que a conccpçllo platónlco-aristotllica. quo em áUitna análise depende doe pitagóricos. á superior do ponto dc vista matemático à concepç&o anaxssórico-democritica (Die Antronomie dtr PyihafforMr, pág. 13*15). Anaxágoras decompóe o movimento anual do sol (e anàlogamente o da lua) numa componente paralela ao equador celeste e numa que 6 paralela ao eixo celeste. Isto ê possível do ponto de vista cinemático, mas aom conseqüências astronô* minas. De fato. ambas as componentes s io explicadas de maneira dife­rente do ponto de vista dinâmico: a primeira pela revolução do éter, a ou tra pela resistência oferecida pelo ar frio do Norte que obriga o sol a "virar-ee” , isto é. voltar para a proximidade do equador. Não wi explica eorao os movimentos das duas componentes se relacionam entre si, isto ê, o fato de o sol depois de um ano voltar, nfto para a mesma órbita, mas também para o mesmo signo do soiíaco. À concep^lo pitagóriea, ao contrário, pelo fato de afirmar que o sol possui movimento próprio na •líp tica de oasto para leste (isto é, contrário ao movimento diário das estréias fixas), explicava ob fenômenos corretamente.
49
nométrica(9), sem se importar do mecanismo físico 
que tornasse possível aqueles movimentos; a outra 
tendência se orientava mais no sentido físico, e 
tentava descrever o mecanismo físico e as causas 
dos processos, descritos pelos matemáticos do ponto 
de vista puramente cinemático: êstes, portanto, 
se preocupavam com pesquisas dinâmicas. O pri­
meiro método é empregado por Cláudio Ptolomeu 
no "Almagesto”, o segundo na “Hypothesis pla- 
netarum” do mesmo autor.
Esta dupla concepção, que tornava fácil falar 
em “hipóteses” astronômicas no sentido do pri­
meiro método, pelo qual se podem calcular tabelas 
de planetas em cuja verdade não se precisa acre­
ditar, teve sua importância ainda durante a Idade 
Média e mesmo nos séculos xvi e xvn. Assim, 
por exemplo Osiander, editor póstumo da obra 
principal de Copérnico “De revolutionibw”, con­
cebia o sistema heliocêntrico dêsto como simples 
hipótese. Tycho Brahe, Keplcr e Galileu, ao con­
trário, estabeleceram sistemas que deviam também 
ter valor físico. No processo de Galileu isto teve 
sua importância: O Cardeal Belarmino lutou sem 
resultado por uma interpretação hipotética do 
sistema(lO). O progresso ulterior das ciências no 
século xvu mostrou, pelo sistema da mecânica 
celeste de Newton, que a tendência “hipotética” 
nâo mais correspondia ao espírito do tempo.
(9) Havia ainda oa método» ' ‘lineares" dos babilônios ((empo helenls* tico), empregados ifualm snte por aatrckiomos gregos, como se pode ver 
no ‘'Aaaphorikos" de HipaUdea e no "Tetrablblo*" do PtoJomcu. Êsioa 
s io nemalhantea ao» noasoâ métodos de desenvolvimento em séries do potências,
(10) Vld. a rxpo*içllo de E. J . Dijk$terhuii no livro “ Díe Meckanl- 
eierunfc doa Weltbildes” (Berlim-Goottingen-Heidelberg 195fl), págs. 69-77 (Antigüidade), 23Ss., 239-243 {Idade Média). 304 ss. (Renascença), 320 es. 
(Copémiao), 334 as. (Tycho), 337 ss. (Kepler, sobretudo págs. 343-349), 
424-429 (Galileu). Vld. igualmente O. jY#w6«u*r, The Kxact Sciences in Antiquity (Providence, [Rhodo IsJand] *1957), págs. 204-206.
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Trata-se, portanto, da realidade física dos corpos 
celestes e de seus movimentos. A separação funda­
mental entre o mundo terrestre e o mundo celeste 
está definitivamente superada; a mesma matéria 
constitui as estréias e a nossa terra, as mesmas 
leis mecânicas valem para todos os corpos. Mas 
surge uma nova dificuldade que diz respeito à 
natureza das fôrças que movem os planetas em 
suas órbitas e fazem cair os corpos pesados na 
terra. Trata-se da fôrça centrífuga e da gravitaçáo 
(resp. a gravidade terrestre). A fôrça centrífuga 
é uma fôrça aparente que resulta da inércia da 
matéria, como explicou Huygens. A gravitaçáo, 
contudo, é uma fôrça distante que opera instantâ- 
ncamente, e como tal é explicada por Newton em 
seus “Princípios”. Sua natureza permaneceu enig­
mática e ninguém dentre os contemporâneos de 
Newton (como Huygens e Lcibniz) e nem sequer 
o próprio Newton se contentavam com a concepção 
da gravitação como fôrça distante, apesar da utili­
dade que do ponto de vasta matemático daí pro­
vinha, como brilhantemente o demonstrara Newton. 
Huygens em todo o caso foi o único que estabeleceu 
uma teoria quantitativamente determinada de ação 
de contato da gravidade, pelo menos da gravidade 
terrestre, teoria geiúal que já como a teoria dos 
turbilhões de Descartes (que entretanto não fora 
elaborada a ponto de poder ser traduzida em têr- 
mos de matemática) reduzia a gravitação à fôrça 
centrífuga de uma matéria muito subtil que gira 
em redor da terra (e dos outros astros respectiva­mente).

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