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6º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte/MG de 20 a 22 de novembro de 2019. ARQUITETURA E DOCUMENTAÇÃO: A PESQUISA NA ÁREA DA HISTÓRIA DA ARQUITETURA E DO URBANISMO ESTUDO DE UMA EDIFICAÇÃO DE VALOR HISTÓRICO/ESTÉTICO: O CASO DA RESIDÊNCIA JOSÉ GONÇALVES DANTAS (1955). MIRANDA, MAYDA B. (1); PINHEIRO, DANILO M. (2); MATIAS, RAPHAELA DOS S. (3); FREIRE, LUCAS R. (4) 1. Universidade Federal de Sergipe. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Praça Samuel de Oliveira, 1 - Centro, Laranjeiras - SE, 49170-000 mayda_barbosa@hotmail.com 2. Universidade Federal de Sergipe. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Praça Samuel de Oliveira, 1 - Centro, Laranjeiras - SE, 49170-000 danilomlp@bol.com.br 3. Universidade Federal de Sergipe. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Praça Samuel de Oliveira, 1 - Centro, Laranjeiras - SE, 49170-000 karolinersvm@gmail.com 4. Universidade Federal de Sergipe. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Praça Samuel de Oliveira, 1 - Centro, Laranjeiras - SE, 49170-000 lucasfreire201290@gmail.com RESUMO O presente trabalho procura demonstrar através de uma análise teórica, o valor patrimonial-histórico da Residência José Gonçalves Dantas, cujo projeto data de 1955, e está localizada na Rua Vila Cristina, epicentro da contextualização da arquitetura moderna na cidade de Aracaju (SE), a partir da sua expansão urbana. Partindo de uma pesquisa sobre o objeto de estudo e com base nas teorias de restauro, teve-se a intenção de formular um aparato de documentação conceitual capaz de fornecer as informações necessárias para a catalogação do mesmo como patrimônio arquitetônico. Baseado nos valores patrimoniais estabelecidos por Alois Riegl (2014) e Cesare Brandi (2004), a edificação foi analisada a partir de seu projeto original, levantamento cadastral, croquis e registros fotográficos que compõem o estudo técnico, estético e histórico da mesma. Apesar do objeto analisado não apresentar uma configuração projetual estritamente moderna, possui características modernistas fundamentais para a valoração histórica desse movimento na conjuntura aracajuana da época. Palavras-chave: Arquitetura Moderna, Patrimônio Arquitetônico, Valoração Histórica. Introdução Esta pesquisa se refere à exposição de um estudo realizado sobre o aspecto patrimonial da Residência José Gonçalves Dantas, projetada em 1955, compondo o pioneirismo da estética moderna no cenário de Aracaju, capital de Sergipe. Por ser uma obra advinda de um desenhista em um processo de introdução do modernismo na arquitetura sergipana, sua composição não alcança todos os parâmetros para se enquadrar neste movimento. Para sua análise como acervo do patrimônio material da cidade, este trabalho busca verificar sua valoração além do semblante estético desta obra, aprofundando-se desta forma na sua importância dentro do contexto em que se insere a partir das características proto-modernas que a mesma apresenta. Para tanto, foi feito uma pesquisa sobre a relação de tal movimento no âmbito nacional e local, seguido pela consulta da visão dos teóricos Alois Riegl (2014) e Cesare Brandi (2004), culminando em uma exploração in loco onde croquis e fotografias foram registrados para o ensaio da morfologia da edificação. Assim sendo este trabalho demonstrará que a classificação de uma edificação como patrimônio material deve ir além das suas características formais, sendo imprescindível a erudição acerca da expressividade arquitetônica da mesma no ambiente em que se encontra. Arquitetura Modernista Contexto Nacional O estilo modernista foi apreciado em território brasileiro pela primeira vez a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, que se apresentou como um movimento de vanguarda artística que desnudava a ruptura estilística já vigente na Europa Ocidental desde o final da Primeira Guerra Mundial. O modernismo brasileiro passou a ser fomentado a partir do movimento ocorrido em 1930 que se desdobrou sob três aspectos relevantes a esta análise: a) em termos políticos, no governo Getúlio Vargas; b) em termos econômicos: no incentivo à industrialização; c) em termos culturais, à nomeação de Lucio Costa para a direção da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. A partir desse período as obras públicas de grande vulto passaram a ser fomentadoras da arquitetura moderna e de sua interferência na paisagem urbana, movimento manifestado pelo concurso para o Ministério da Educação e da Saúde (Rio de Janeiro, 1935), passou pelo Complexo da Pampulha (Belo Horizonte, 1942) e teve como ápice o concurso para a nova capital federal (Brasília, 1956). Esse novo tratamento conferido pelo movimento modernista à arquitetura brasileira combinou elementos característicos já vigentes na Europa Ocidental com elementos desenvolvidos no Brasil que garantiram a adequação climática e cultural. Por um lado cultivou-se a ideia da eliminação dos adornos e da adequação da forma à função aliada ao uso de pilotis, terraços jardim, panos de vidro, janelas em fita e brise-soleil. Por outro lado, dois elementos passaram a compor intensivamente o repertório arquitetônico brasileiro: os revestimentos de painéis de azulejaria e os elementos vazados que permitiam ventilação e iluminação naturais (cobogós). Benevolo (2016) descreve o rigor estilístico modernista empreendido no Ministério da Educação e da Saúde: Essa é, de fato, a primeira realização de um tipo de edificação que Le Corbusier de há muito cogitava – o arranha-céu cartesiano, com função direcional, em vão projetado para Paris, Argel, Nemours , Buenos Aires – e aqui estão rigorosamente aplicados todos os princípios de seu ideário arquitetônico: os pilotis, o terraço jardim, o pan de verre, o brise-soleil. (Benevolo, 2016. p. 712) Já Cordeiro manifesta a adequação do estilo modernista referendada pelas necessidades bioclimáticas locais: No entanto, analisando a história da arquitetura moderna no Brasil, especialmente entre as décadas de 1930 e 1960, ficam evidentes as características de adaptação bioclimática, das quais se pode destacar o emprego de quebra-sois e cobogós, amplamente adotados por arquitetos desse período. (Cordeiro, 2018, p. 49) Contexto Aracajuano Esta situação política de evolução não se diferencia em Sergipe, neste período Aracaju conta com a construção de importantes edificações da cidade. Nos anos de 1950 a maioria das cidades que carregam o título de capital do estado, terá seus limites físicos e seu cenário modificados. Impulsionadas pela crescente migração de contingentes populacionais do campo para a cidade, novos bairros irão surgir. A solicitação por novos espaços de morar aliado ao discurso de progresso e modernização irão paulatinamente inserir no cenário urbano novas residências e além delas o edifício alto, todos eles com um repertório formal moderno. No contexto acima apresentado a expansão do tecido urbano se apresenta como uma necessidade. Em Aracaju essa irá ocorrer em dois eixos, um ao leste que será destinado à população menos abastada o outro ao sul reservado à população de maior poder aquisitivo. Assim, banhado pelo Rio Sergipe surge o bairro São José, que desde os primeiros tempos foi dotado de infraestrutura e pavimentação pela prefeitura da cidade. Segundo NERY e ARAGÃO (2007), essa é uma “área privilegiada na primeira grande expansão qualificada da cidade”, reflexo disso são as dimensões dos lotes encontrados. Segundo NERY (2003), o crescimento populacional e geográfico da cidade é impulsionado pelo enfraquecimento das atividades agrícolas e portuárias, em contraponto com a crescente atividade industrial e têxtil. Contando também com a descoberta do petróleo no estado em 1963, instalando assim a Petrobrás, ingressa com a empresa funcionários de poder aquisitivo compatível com aimplantação de serviços bancários, de transporte e imobiliário. Esse movimento provocou uma expansão da cidade em dois eixos, um a oeste da região central e o outro a sul. A oeste, seguindo o eixo rodoviário se instala a população menos favorecida. Enquanto ao sul originou-se o bairro São José, uma região provida pela urbanização realizada pela prefeitura da cidade, ocupada pela população mais abastada. Onde está localizada a edificação que é objeto de estudo desse trabalho: Residência José Gonçalves Dantas. É possível inferir que as principais influências para a composição formal da residência em foco são oriundas das experimentações do Rio de Janeiro e mais expressivamente de Recife, cidade que assim como Aracaju localiza-se no Nordeste brasileiro e por esse motivo apresenta características climáticas, econômicas e de desenvolvimento semelhantes. As características formais e estéticas da edificação resultam dos símbolos que compõem o vocabulário da Arquitetura Moderna. É importante ressaltar que se trata de uma experimentação formal ainda em processo de maturação e que diferente dos resultados obtidos no eixo composto por Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais não estão no grupo de obras onde essa modernidade constitui um movimento formado. Visão Teórica Alois Riegl (2014) A criação e a conservação de monumentos constituem-se num mecanismo de preservação cultural, artisticamente e historicamente datado e localizado, valendo-se como instrumento de transmissão das memórias entre gerações. Sob essa perspectiva, Riegl (2014) classifica a valoração do patrimônio considerando duas abordagens fundamentais, quais sejam as valorações artística e histórica. Por um lado o valor artístico é tradicionalmente identificado por características atribuídas “às suas propriedades de concepção, forma e cor” (Riegl, 2014, p.34) que traduzem os critérios objetivos de adequação estética, modernamente relativizados pelo entendimento de que a percepção dessa valoração varia nos diferentes momentos históricos. Por outro lado, atribui valor histórico às referências que demonstram a evolução do modo de vida humano, em suas palavras “tudo o que foi e não é mais nos dias de hoje” (Riegl, 2014, p. 32), mas que guarda importância para a compreensão da sucessão de eventos da atividade humana ao longo do tempo. Dessa forma, há que se verificar sob essa perspectiva, que o fator tempo guarda relevância excepcional na compreensão e valoração do patrimônio, alcançando inclusive, o valor das modificações que a obra sofreu ao longo do tempo decorrido e a sua percepção pela atividade humana não restrita à intelectualidade, conforme se verifica a seguir: O monumento apresenta-se como não mais do que um substrato – evidente e inevitável – para evocar no observador contemporâneo a representação do ciclo da gênese e do desaparecimento, o surgimento do indivíduo para além da generalidade e a sua dissolução gradual no universo, premido pela natureza. Desde que essa evocação não pressuponha experiências científicas, nem exija para a sua satisfação, quaisquer conhecimentos adquiridos por intermédio da formação histórica, mas seja provocada unicamente por uma percepção física, que se exterioriza por uma sensação; ela pode ser compartilhada não apenas pelos homens cultos, para os quais a conservação dos monumentos fica necessariamente limitada aos históricos, mas estender-se também para as massas, para todos os homens sem distinção de formação intelectual. (Riegl, 2014, p. 38) Cesare Brandi (2004) A partir das postulações de Brandi (2004), foi possível identificar e aferir o valor estético do objeto. Segundo o autor a obra de arte se apresenta como um ato mental que se manifesta em imagem tendo como veículo de transmissão a matéria. Entendemos que a residência com sua composição prismática e carregada de elementos do vocabulário moderno – os elementos vazados, sendo o da fachada norte uma construção amebóide, forma encontrada com recorrência no paisagismo de Burle Marx, além do telhado invertido conhecido também como borboleta– é fruto do desejo de modernização que se faz presente não apenas no proprietário que encomendou o projeto, mas em uma grande parte da população que vê na arquitetura residencial um meio para alcançar os ideais disseminados no período. Assim, a modernidade se apresenta como ideia e utiliza da matéria para se expressar. Quando essa expressão toma forma resulta em obras como essa a qual estamos analisando. Brandi (2004) entende a obra de arte (o objeto) como imagem material que responde e interage com a percepção do observador, e o reconhecimento desta percepção deve ser apoiado na análise dos aspectos físicos, da figura estética com suas particularidades, e as mudanças e significados agregados ao longo do tempo (historicidade) gerando um juízo de valor que estabelece as diretrizes para a preservação do objeto, mantendo dentro do possível a “essência primeira do objeto”, mas também preservando suas marcas (pátina). Análise da Edificação Estudo Técnico, Estético e Histórico. A residência José Gonçalves Dantas, teve seu projeto aprovado em 1955 pela Prefeitura De Aracaju. Foi um ano de grande importância para a cidade que completou seu centenário. Em seu cartão de lembrança já apresentava edificações de cunho modernista na Rua João Pessoa e Art Déco na delegacia fiscal (ver Figura 01). Figura 01: Lembrança do centenário de Aracaju, onde aparecem obras do movimento moderno, como o Hotel Palace e a delegacia fiscal representando o Art Decó. Fonte:<https://www.facebook.com/AracajuAntigaMinhaTerraSerigy/photos/a.221108811356000.56849 .221106918022856/221113178022230/?type=3&theater>.Acesso em 06 de agosto de 2018. A antiga Residência José Gonçalves Dantas, utilizada atualmente como Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual (CAP), localiza-se no Bairro São José, especificamente na Rua Vila Cristina, n° 194 (esquina com a Rua Senador Rollemberg). O CAP, não foi o uso proposital desta edificação, inicialmente de caráter residencial. Foi projetada e construída por seu proprietário, mas o desenho em seu projeto original é assinado pelo desenhista Walter Freire Barros, responsável por algumas obras de natureza modernista na cidade. Não existem muitos relatos históricos antigos da obra, no entanto a função atual da mesma já completa 10 anos segundo a Prefeitura de Aracaju. Devido aos poucos usos diferenciados, a edificação passou por poucas intervenções degradatórias, mas é importante ressaltar a discrepância construtiva apresentada entre seu projeto e sua condição atual, esta por sua vez pressupostamente em seu processo de execução. Figura 02: Localização e Situação Fonte: https://www.google.com.br/maps. Acesso em: 02 de agosto 2018. LAPEM, 2018. O bairro São José - onde está implantada a edificação - se encontra ao sul do Centro, sítio inicial da ocupação da cidade de Aracaju fundada em 17 de Março de 1855 e representa uma das primeiras áreas de expansão da cidade. Ela está localizada no cruzamento das ruas Vila Cristina e Senador Rollemberg, em seu entorno o que se nota é a presença de outros elementos arquitetônicos expressivos e relevantes para a história da cidade. São eles o terreno onde se localizava a Associação Atlética de Aracaju, o Colégio Atheneu Sergipense e o Edifício Atalaia, primeiro arranha céu da cidade construído em 1958. A existência desses prédios indica para o tipo de ocupação do bairro e o público ao qual se buscava atender. Na figura 02 relatamos também o caso do isolamento da edificação no lote, deslocando as fachadas do limite e dando a este uma leitura de objeto isolado. É preciso ressaltar que esse resultado só se torna possível por conta das dimensões generosas do lote (14,00 X 31,00 m). Por estar localizado numa esquina, o projeto previu um recuo no pavimento térreocriando assim um diálogo da residência com o tecido urbano em que se encontra. Figura 03: Croqui de estudos “In situ”; fotos do recuo e do espelho d’água. Fonte: Autores, 2018. A composição da edificação parte do volume prismático característico das obras do movimento Moderno e que corrobora para a leitura unitária do objeto. A residência apresenta uma volumetria prismática gerada a partir das platibandas que embutem o telhado invertido. Suas fachadas apresentam poucos elementos ornamentais, dentre eles os frisos horizontais que percorrem toda a edificação, conferindo destaque à altura das janelas. O nível do pavimento térreo foi elevado em 60 cm em relação ao nível da rua. Essa elevação junto com a configuração da cobertura atribuiu à edificação um destaque para a sua verticalidade, como se pode observar na figura 03. Ocorre, entretanto, que essa relação da edificação com a rua encontra no muro uma barreira visual que dificulta o diálogo descrito. O recuo no pavimento térreo apoiado num pilar de seção circular, que a despeito de não traduzir o térreo livre das edificações modernistas apoiadas em pilotis, a elas fazem referência. A presença do espelho d’água concebido durante a execução do projeto é outro elemento de vocabulário moderno ressaltado neste ponto. Figura 04: Planta-baixa térreo em projeto original e levantamento cadastral. Escada interna engastada. Esquadria interna como divisória. Fonte: LAPEM, 2018; Autores, 2018. Há poucas discrepâncias entre a planta-baixa do projeto original e a elaborada a partir do levantamento cadastral, muito relacionado ao fato de atualmente possuir um uso diferente do original, tendo assim apenas as alterações quanto às atribuições dos cômodos. Como se trata de uma obra de caráter experimental, não há ainda uma composição de planta livre como o previsto dentro do modernismo, no entanto há detalhes como a presença dessa escada engastada que já demonstra uma evolução da técnica construtiva, atrai leveza com seu balanço e contrasta com o revestimento de pedra também presente na área externa da edificação. Muito se deve ao uso do concreto armado em sua estrutura que aparece como outra novidade no cenário aracajuano da década de 1950. No canto esquerdo (ver Figura 04) temos uma esquadria interna, cujo o detalhe orgânico se repete na maioria delas, sua composição em madeira e vidro proporcionam permeabilidade visual e atua como divisória dos ambientes, já prevista no projeto original. Figura 05: Planta-baixa 1º pav em projeto original e levantamento cadastral. Esquadria interna folha dupla. Piso de taco original. Fonte: LAPEM, 2018; Autores, 2018. Já em relação ao pavimento superior, o levantamento cadastral constata o cômodo acrescido durante a construção do projeto (ver Figura 05, direita superior) que é responsável por formular um de seus principais elementos modernos, o telhado que será demonstrado mais à frente. Fora isso, as alterações são as mesmas relatadas na planta do pavimento térreo (ver Figura 04, direita superior). De acordo com a figura 05, à esquerda temos as esquadrias de folha dupla, confeccionadas em madeira e vidro, onde para o lado de fora se apresentam com venezianas, garantindo privacidade e auxiliando no conforto térmico através da preservação da ventilação natural. À direita temos os pisos de quase toda área comum da residência, são pisos de tacos de madeira em diferentes tonalidades e com configuração geométrica variada, e encontra-se em um bom estado de conservação atualmente. Figura 06: Fachada Norte projeto original. Fachada Norte atualmente. Detalhe cobogó medida. Detalhe cobogó desgaste. Croqui de estudo com corte de funcionamento do cobogó. Fonte: LAPEM, 2018; Autores, 2018. Um elemento característico das obras de vocabulário moderno, vastamente encontrado em Recife, é o telhado invertido, também conhecido como borboleta, onde a queda das águas converge para o centro da edificação. Em outras obras residenciais tal recurso aliado ao uso de platibandas objetiva a omissão da cobertura. Nessa residência, a decisão de expor esse elemento garante ao objeto uma volumetria trapezoidal. Os elementos que caracterizam a obra são as aberturas em sistema móvel e fixo. Ao analisar a presença deles no modernismo recifense Holanda, afirma: “O primeiro grupo inclui as esquadrias, nas suas diversas formas e materiais, e o brise-soleil móvel (horizontal ou vertical). Do segundo grupo fazem parte o elemento vazado, nos seus diversos materiais e desenhos, o brise-solei em concreto e o peitoril ventilado. Esses sistemas fixos eram utilizados em superfícies voltadas para as orientações de menor incidência de ventilação (oeste), permitindo a saída permanente do ar dos ambientes e controlando a incidência direta solar nos cômodos. Os elementos vazados foram mais extensivamente utilizados do que qualquer outro sistema fixo, provavelmente pelo seu baixo custo e fácil manutenção”. (Holanda, 1976, p.21) Compõem o objeto arquitetônico estudado, diversos desses elementos vazados fixos e o que chama atenção pelo seu caráter experimental é que esses foram moldados in loco e confeccionados em concreto. Vale ainda ressaltar que consiste nessas peças o valor arquitetônico e estético da obra. Elas deixam claro que mesmo em condições adversas, com a inexistência de tecnologias avançadas e um mercado que disponibilize a comercialização dessas peças, não houve obstrução às pretensões modernistas da construção. A configuração orgânica dos cobogós instalados na fachada norte cria um ponto de contraste com as linhas retas e a geometrização predominante na composição plástica da edificação e não representa um elemento meramente ornamental. Ela contribui também para a ambientação climática no interior da edificação. A fachada norte apresenta elementos vazados circulares com diâmetro de 10 cm e que foram reunidos em formato ameboide (ver Figura 06), carregando assim o aspecto significativo de memória da obra para a sociedade de Aracaju, pois é comum conhecer a localização do CAP a partir da identificação como “casa da ameba”. “O cobogó ocorre frequentemente nas construções modestas do Nordeste, com desenhos fantasiosos ou ingênuos, mas sempre um elemento simples, leve, resistente, econômico, sem exigências de manutenção e com alto grau de padronização dimensional. Com o estágio de racionalização atingido, num processo natural de seleção, o combogó é um componente preparado para a grande produção industrial” (Holanda, 1976, p.22). Já a fachada leste apresenta como destaque os elementos vazados quadrados que também foram moldados durante a obra e possuem um recorte em chanfro que reduzem sua abertura e promovem a filtragem da iluminação natural no interior da edificação ao mesmo tempo em que funcionam como indutor da ventilação. Tal elevação permite também identificar um traçado predominantemente ortogonal e a composição de materiais diferentes em seus elementos constitutivos. Além dos cobogós moldados em concreto, a varanda do pavimento superior apresenta um adorno em bandeira de madeira com venezianas (ver Figura 07, superior) e esquadrias em alumínio e vidro (que indicam as alterações sofridas pela edificação já que não corresponde a um material utilizado na construção civil da época). Por fim, o revestimento em pedra aplicado na base da edificação, na parede lateral esquerda e no tanque do espelho d'água (ver Figura 07, inferior) finalizam junto com a vedação em alvenaria a combinação dos materiais ora utilizados. Figura 07: Fachada Leste projeto original. Fachada Leste atualmente. Estudo de cores e materiais. Detalhe do cobogó. Fonte: LAPEM, 2018; Autores , 2018. Nesta última remessa de figuras continuamos com a análise da paleta de cores, demonstrando o destoante elemento contemporâneo acrescido,uma nova tecnologia de proteção térmica como intervenção, que seriam os toldos em um tom de azul mais forte, descaracterizando a proposta arquitetônica original. Além de apresentar as instalações hidráulicas aparentes, outra solução funcional utilizada de forma negativa para sua composição estética, que em se tratando de patrimônio é uma das características mais difíceis de lidar. Abaixo temos a demonstração de áreas fortemente afetadas justamente pelo que Fernando Diniz Moreira menciona em “Os desafios postos pela conservação da arquitetura moderna”, publicado pela revista CPC (São Paulo, 2011), a ausência de uma cultura da manutenção, e a dificuldade de aceitação da pátina nos edifícios modernos, são alguns dos desafios para a conservação da arquitetura moderna. Como se pode observar na figura 08, grande parte das anomalias, perda do reboco, pintura, e cerâmica, deve-se ao desgaste do tempo e uso sem manutenção adequada principalmente decorrente da umidade. Figura 08: Estudo de cores e materiais. Instalações hidráulicas Fachada Oeste. Detalhe de desgastes. Detalhe de desgastes viga. Fonte: Autores , 2018. Considerações Finais A partir da argumentação acima mencionada e da análise dos elementos arquitetônicos que se destacam na edificação resta nesse momento verificar a adequação de suas características à estética modernista. Sob esse aspecto é relevante considerar que se trata de um projeto datado de 1955, contemporâneo ao ápice da arquitetura moderna no Brasil. A nível local, entretanto, trata-se de um momento histórico que apresenta as primeiras manifestações modernistas, incentivadas por aspectos econômicos que capitanearam a expansão urbana em Aracaju/SE. Considerando tal singularidade, foi possível identificar o caráter experimental que a edificação promoveu, sendo uma das primeiras expressões de natureza moderna na cidade. Elementos arquitetônicos consolidados da estética modernista foram incluídos nessa edificação. A cobertura formatada em telhado borboleta e o espelho d’água implantado na fachada leste são elementos inseridos desde o processo de concepção. Ademais, o uso de cobogós nas vedações revela a solução funcional brasileira para a adequação desta estética aos fatores climáticos imperativos do litoral nordestino. Sob esse aspecto é importante considerar ainda que a forma amebóide utilizada em um dos elementos vazados foi uma característica do modernismo brasileiro que quebrou a tradição europeia das linhas retas inserindo soluções orgânicas ao desenho arquitetônico. Ademais, porém não menos importante, há que se identificar ainda os elementos que, apesar de não estarem efetivamente localizados nessa edificação, remetem às características da arquitetura modernista. Nessa categoria enquadram-se o recuo no pavimento térreo apoiado num pilar de seção circular, que a despeito de não traduzir o térreo livre das edificações modernistas apoiadas em pilotis, a elas fazem referência. Outras características são as grandes aberturas e os frisos em relevo nas paredes da fachada e que contornam toda a edificação. Esses elementos marcam uma tentativa de horizontalizar a percepção visual da obra. Dessa forma, identificados os elementos que experimentaram a estética modernista a nível local e a relevância histórica dessa edificação para a cidade de Aracaju. Há que se registrar o valor patrimonial a ela conferido e a importância de sua conservação como marco de uma época. Acredita-se que esta deve ser considerada patrimônio, pois ainda segundo Riegl (2014) se esta obra fosse a única testemunha artística do movimento em questão, ela assim seria considerada como elemento de arte absolutamente indispensável. Como reforço desse desfecho temos o Anexo XI da Lei Complementar 42/2000 que estabelece o Plano Diretor de Aracaju, nele temos o quadro que classifica os “Bens de Patrimônio Cultural”, sendo que todas as residências da fase modernista são declaradas como de interesse cultural, apesar de nenhuma delas ter passado por processo de tombamento, logo não possuem a proteção legal para que sua conservação e uso ocorram de modo que não afete a sua valoração artística e histórica como símbolo da presença do movimento na cidade. Referências Bibliográficas ARACAJU. Lei Complementar Nº 42, de 04 de outubro de 2000. Institui o Plano Diretor de desenvolvimento urbano de Aracaju, cria o sistema de planejamento e gestão urbana e dá outras providências. Diário Oficial do Município de Aracaju. Aracaju, 2000. 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